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Copyright © 2023 Bruna Borges

 
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra pode ser
reproduzida ou usada de qualquer maneira ou por qualquer meio, eletrônico
ou físico, inclusive fotocópias, gravações, ou sistema de armazenamento em
banco de dados, sem permissão por escrito da autora, com exceção de
citações curtas utilizadas em resenhas críticas, artigos ou divulgação em
mídias sociais.
 
Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, nomes, localidades e
acontecimentos histórico e/ou atuais retratados neste romance são produto
da imaginação da autora e utilizados de modo fictício, sem qualquer
referência à realidade.
 
Capa: Larissa Chagas (@lchagasdesign).
Diagramação: Bruna Borges (@autorabrunaborges) Leitura crítica:
Heloísa Fachini (@readbyhelo) Revisão gramatical: Camille Gomes
(@k.millereditorial) Ilustração dos personagens: Aline Silva
(@heeyalline) e Lane (@artesmedusa) Demais imagens: Canva
 
SUMÁRIO
NOTAS DA AUTORA
PLAYLIST
EPÍGRAFE
DEDICATÓRIA
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
 
 
 
Sejam bem-vindx a mais uma história do Brunaverso, dessa vez
navegando por mares brasileiros. Espero que essa comédia romântica
arranque risadas e suspiros durante a leitura e que possam se apaixonar por
Pérola e Joca como eu me apaixonei.
Antes de iniciar a leitura, é válido lembrar que se trata de um livro leve,
com personagens que vão viver sua vida dessa forma, ainda que sejam
adultos. Não espere encontrar personagens extremamente responsáveis ou
sérios como um adulto engravatado dentro de um escritório. É muito
provável que um adolescente de quinze anos tenha mais juízo que todos
eles juntos.
Para preveni-los de qualquer desconforto durante a leitura, segue abaixo
a lista de possíveis gatilhos presentes no livro. Ressaltando que não há
como prever toda e qualquer situação que possa os deixar aflitos, portanto,
caso ocorra, interrompam a leitura e preservem sempre sua saúde mental.
O livro contém menção a luto, alcoolismo, consumo de drogas lícitas e
ilícitas, violência física e verbal, palavras de baixo calão, cenas de sexo
explícitas e sem censura, relacionamento familiar conflituoso, menção à
transtornos alimentares, assim como menção à bullying.
A classificação indicativa é para maiores de 18 anos.
 
Boa leitura;
Com amor, Bruna Borges
 
 
 
Se assim como eu, você gosta de escutar música enquanto faz a sua
leitura para entrar no clima da história, então basta clicar no link abaixo
para acessar a playlist exclusiva de SOS Nerd a Bordo.
 
https://acesse.one/PLAYLISTSOS
 
“Entre razões e emoções
a saída é fazer valer à pena
se não agora
depois não importa
por você
posso esperar”
 
ENTRE RAZÕES E EMOÇÕES│NX ZERO
 
 
Para todos aqueles que já foram cornos, porque apesar do chifre, ainda
são gente.
Ps: não desistam do amor. Continuem procurando a sua metade fiel da
laranja.
 

Há dois momentos decisivos na vida de um homem que mudam toda a


sua perspectiva de futuro.
O primeiro, é quando ele se apaixona pela primeira vez.
E o segundo, é quando ele ganha seu primeiro par de chifres.
É, eu definitivamente me tornei um homem protegido… não dizem que
um animal sem chifre, é um animal indefeso? Agora eu tenho o melhor
equipamento de proteção contra traumas cranianos já desenvolvido.
— Joca, você precisa parar de comer batata frita… — JP esbraveja
assim que põe os pés dentro de casa. — Recebi tanta notificação no cartão,
que tô pensando seriamente em virar sócio do MC Donalds.
Molho mais uma batata no milkshake de Ovomaltine.
— Eu tomei um chifre, você disse que faria qualquer coisa pra me ver
feliz. — Encolho os ombros.
—É… eu disse. — Bufa uma risada irônica. — Mas eu tava pensando
mais em te pagar uma garota de programa ou te levar pra beber até você
esquecer todos os códigos de Software, não acabar com meu limite do
cartão comendo carboidrato. — Meu amigo toma o pote de batatas da
minha mão — Se quer algo que realmente resolva sua galhada, eu posso
trazer uma lixadeira e a gente apara as pontas.
Ergo o dedo do meio para ele. Sabe, aquele dedo que fica ao lado do
anelar? Anelar esse que costumamos colocar alianças? Pois é. A marca da
minha ainda está branca, rodeando a pele. Oito anos. Seis de namoro e dois
de noivado, faltando apenas a porra de uma semana para o casamento. E eu
pego aquela desalmada, cachorra, ninja renegada da aldeia da folha[1], com
o meu assistente, na nossa cama.
Eu ainda nem terminei de pagar aquele colchão ergométrico que fazia
bem para as costas dela.
Diaba… agora eu sei por que a coluna doía tanto.
— É sério, não aguento mais te ver chorando e assistindo Naruto toda
vez que chego em casa.
— Eu prefiro chorar pela vida dele… sabia que ele só come miojo e
ainda consegue ser um ninja? O que são minhas batatinhas perto disso?
João Pedro revira os olhos, se jogando ao meu lado no sofá.
— Faz cinco dias que você descobriu, passou da hora de meter o louco e
sair para conhecer gente. E por conhecer quero dizer foder.
Olho incrédulo para meu amigo de infância.
— Como posso esquecer oito anos em cinco dias?! É o mesmo que
pedir para alguém jogar as oito mil fases de Pac-Man [2]em uma semana.
A expressão dele permanece tão tediosa que tenho vontade de virar o
milkshake na sua cabeça.
— Meu caro amigo... — Sorri de lado, condescendente. — Você pegou
sua noiva com outro uma semana antes de se casar… deveria ter esquecido
a mina quando viu o pau do seu assistente dentro dela.
Faço careta, afastando a imagem da mente.
— Não precisa me lembrar disso.
Há coisas na vida, que a gente tem que esquecer pra ser feliz. Olívia
quicando no meu assistente é uma delas.
Penteio meus cabelos para trás, incomodado com a mecha que cai no
olho. Estava deixando crescer porque minha ex-futura esposa gostava
assim. Agora queria muito uma máquina zero para raspar essa bosta fora.
Não foi no meu cabelo que ela segurou enquanto dava para o babaca do
Igor.
Ah, Igor… quando eu pedi pra você buscar um adaptador na minha
casa, não era pra se adaptar com minha noiva, cria do Satanás!
— Escuta, enquanto você chora todo catarrento, ela está aproveitando
os presentes de casamento junto do seu assistente. Devem estar fazendo
torradas em formato de coração agora mesmo — me provoca com
sobrancelhas dançantes.
Talvez eu use a máquina para raspar elas fora também. Babaca!
— Ela estaria, se ao menos soubesse como usar algum daqueles
eletrodomésticos… colocaria fogo na casa na primeira tentativa de usar a
torradeira.
JP coça a cabeça.
— Nem posso julgar a garota por isso, eu não sei fritar um ovo.
— Eu sei bem disso. — Retorço a boca. — Não tem nada nessa
geladeira desde que eu me mudei daqui para morar com a Olívia.
— Por isso estou feliz de não ter se casado — ele pisca cinicamente. —
Agora eu tenho meu cozinheiro particular de volta.
Abro a boca ofendido.
— Não acredito que você está feliz do meu casamento ter levado um
fatality[3] só para preencher esse poço sem fundo que é o seu estômago.
— Você sabe que eu nunca gostei dela.
— A recíproca era verdadeira.
— Eu sei, sua ex-noiva deixou bem claro que não gostava de mim
quando não me enviou o convite de casamento.
— Ela disse que se perdeu nos correios.
— Nós moramos no mesmo prédio... — JP me dá um de seus famosos
petelecos na testa. Eu parei de brigar quando ele disse que era sua forma de
demonstrar afeto. — Olívia literalmente só precisava descer dois andares.
É… ela mora no mesmo prédio. No apartamento que comprei e reformei
ao gosto dela para quando nos casássemos. E pior, está tudo no nome dela.
Não gosto nem de pensar que ela está tão perto. Posso me encontrar
com Olívia a qualquer momento. Deve ser por isso que estou pedindo
comida ao invés de ir ao mercado. Que desço nove andares de escada para
não a encontrar no elevador… e que mantenho meu celular desligado para
evitar suas ligações. Isso se ela estiver mesmo tentando me ligar.
Faz bem para o meu coração achar que ela pode estar tentando se
explicar, mas no fundo eu sei que a verdade está longe de ser essa. Se
quisesse falar comigo, teria vindo até aqui.
Não aconteceu ainda.
— Ok, mas não é como se você não fosse comparecer… era o padrinho.
— Afasto meus pensamentos.
— Tá aí a única coisa que me deixa deprê… eu ia entrar na igreja com
uma mina gostosa, que provavelmente acordaria do meu lado da cama na
manhã seguinte — ele lamenta como se o Corinthians tivesse perdido a
libertadores.
— Quem te garante que ela iria querer amanhecer na sua cama?
— O fato dela ter me seguido no Instagram e curtido três fotos minhas.
— E daí? — Franzo o cenho. — Eu curto fotos das pessoas o tempo
todo e nem por isso quero amanhecer na cama delas.
— Eram fotos antigas, João Guilherme! — Ele suspira decepcionado.
— Vou ter que te ensinar muitas coisas agora que você ficou solteiro. Hoje
em dia não se manda mais indiretas no Facebook.
— Eu nunca mandei indireta pra ninguém no Facebook. — Cruzo os
braços.
Ele gargalha.
— E aquela vez que fez um texto para o desenvolvedor de Mortal
Combat reclamando das atualizações?
— Ah, mas ali não foi uma indireta, eu até marquei o cara. — Além
disso, eu tinha razão.
— E ganhou um block.
Sorrio sem graça.
— Ele não sabia aceitar críticas, fazer o quê?
— Foda-se esse cara! — Seus braços vão para o alto e me esquivo antes
que me acertem. — Eu quero saber quando vai sair dessa fossa, cortar esse
cabelo horroroso e aproveitar a noite na Vila Madá [4]comigo.
Jogo a cabeça no encosto do sofá, com a veia da testa latejando só de
pensar em começar tudo de novo para conhecer alguém. Ou talvez seja
enxaqueca por causa dessas malditas lentes de contato. Preciso voltar a usar
meus óculos agora que não tenho uma mulher que reclama deles. Ou que os
quebre acidentalmente.
— Eu deveria estar embarcando em um cruzeiro em dois dias, sabia? —
A melancolia é palpável na minha voz.
— Sabia, você me deixou a cargo de organizar a lua de mel, esqueceu?
— Eu nunca me esqueço de nada. Por isso estou te lembrando de tentar
cancelar tudo, com pelo menos algum estorno do meu dinheiro... —
massageio a têmpora. — Só de pensar na quantidade de taxa de entrada que
não tem devolução que eu paguei para buffet, banda, decoração...
— É melhor pagar isso agora do que uma cirurgia de coluna depois de
anos de casado — ele interrompe minha lista infindável de prejuízos.
— Cirurgia de coluna? — Endireito meu pescoço.
— Quanto tempo acha que o pescoço suportaria o peso dos galhos
crescendo na sua cabeça? — Ele balança a cabeça. — Uma hora ou outra a
coluna seria afetada.
— Você é o pior amigo que existe!
— Não sou não, porque vou resolver sua situação e daqui alguns meses
nem vai se lembrar daquela cascavel sete peles.
Virgem Maria, por que eu ainda falo com ele?
— Provavelmente não vão devolver o dinheiro tão em cima da hora —
aviso, voltando a encarar o teto. Meu dinheirinho todo indo embora… meu
pai deve estar se revirando no túmulo.
Em dois dias, eu estaria casado e embarcando em um cruzeiro com
saída do Rio de Janeiro e destino final nas praias nordestinas, curtindo três
semanas rodeado por mar, sol, suco de laranja fresquinho e a minha esposa.
Agora, vou me deitar no sofá durante todo esse tempo, assistir à terceira
guerra ninja, enquanto tomo um pote de sorvete barato, porque estou em
processo de economia de gastos.
— A gente não precisa que eles devolvam o dinheiro! — JP fica de pé
em um pulo e sua voz sobe alguns decibéis. Sinto vontade de chorar.
Sempre que ele fala assim, é porque teve alguma ideia mirabolante que eu
não vou gostar, mas vou acabar consentindo porque ainda não aprendi a
dizer “não” para as pessoas.
Eu trabalho isso em terapia, toda segunda e quinta, não se preocupe.
Sou um corno, mas um corno com um bom plano de saúde que cobre a
minha psicóloga. Eu deveria contar a ela sobre o chifre, mas será que vai
querer aumentar o valor das minhas sessões por isso?
Eu deveria é ter um desconto. Cadê o governo que não me dá um bolsa-
chifre?
— Então o quê? Qual sua grande ideia? — Encaro meu amigo
ironicamente. — Vamos nós dois curtir o cruzeiro da minha lua de mel,
como um casal apaixonado e cheio de hormônios?
— Acertou, miserável! — Ele sorri abertamente, tão abertamente que
consigo contar seus dentes. E talvez ele tenha uma cárie em um dos
molares.
Pisco aturdido, esperando o juízo na cabeça dele aparecer.
— Eu estava sendo irônico, João Pedro.
— O que é um hábito muito desrespeitoso, João Guilherme — me
provoca. — A tia Das Dores não puxou suas orelhas o suficiente na
infância?
— Deixa minha mãe fora disso… — Faço bico. — Até porque ela
puxou tanto minha orelha que acho que a direita é um pouco torta.
Confiro a pobre cartilagem fragilizada e JP explode em uma gargalhada
enquanto rola no tapete como um cão sarnento.
Eu juro que não entendo como aturo esse cara por vinte e cinco anos. A
culpa é das nossas mães, ninguém mandou nos fazer conviver desde a
maternidade. E como se já não bastasse termos nascido com a diferença de
um dia, ainda ganhamos o mesmo primeiro nome. Mamãe e tia Eliana não
tinham nem um pouco de criatividade.
Pelo menos não nos chamamos Arnold Schwarzenegger. Eu estudei
com um no ensino médio e definitivamente a ortografia não era idêntica ao
do homenageado... o escrivão devia tá de porre e só socou o teclado. Pobre
garoto, apanhava dia sim e outro não. Eu só não ajudava porque eu
apanhava dia sim e no outro também.
— Você vai parar de rir ou eu vou ter que te inscrever como novo
integrante do Patati e Patatá? — perco a paciência.
— E eles estão contratando, é? — Ele para de rir e me encara
seriamente. — Tô precisando de grana extra.
Respiro fundo. Talvez ele seja assim do tanto que apanhou. Vou relevar,
tadinho.
— JP… dá pra falar sério? — Bato as mãos no sofá. — Apenas ligue
para a companhia de turismo e veja se eles devolvem parte do meu
dinheiro.
— Ah, mas por quê? — choraminga como uma criança birrenta. — O
que custa embarcar em um navio erótico pela Cidade Maravilhosa até as
praias quentes e deliciosas do Nordeste com seu amigo gostosão?
Abro a boca para responder, mas um detalhe da sua fala me faz
comprimir as sobrancelhas.
— Espera… navio o quê?
Poucas vezes na vida fui capaz de ver o rosto de João Pedro Valadares
ficando vermelho depois que ele ganhou massa corporal e ficou sarado na
faculdade. Isso só acontece quando ele faz uma merda que nem ele próprio
entende o motivo de ter feito.
Como agora.
— O que você fez? — Pra quê fui perguntar? Eu não quero saber.
— Em minha defesa, foi pensando na sua vida sexual monótona e
pacata de beato.
— JP… — murmuro a um único fio de perder minha sanidade.
— Eupossotercompradosualuademelemumcruzeiroeróticosóparacasais.
— É o quê?! Entendi porra nenhuma, tira os ovos da boca!
— Eu posso ter comprado sua lua de mel em um cruzeiro erótico só
para casais. — João Pedro sorri como Madre Tereza, como se não tivesse
acabado de me contar a merda do século, que vai ser a razão do seu óbito
eminente.
— Você… — Rio desacreditado. — Você está me dizendo, que se eu
me casasse nesse final de semana, passaria a lua de mel com minha esposa
na porra de um cruzeiro erótico de swing?
— Não, eu não falei nada sobre swing. — Balança as mãos no ar,
negando rapidamente. Mas isso não me dá tempo de ficar tranquilo, porque
o infeliz continua falando. — Também deve ter áreas para voyeur, ménage
à trois e por que não uma surubinha de boa? Quando se trata de sexo, as
opções são variadas.
Abro a boca.
Fecho a boca.
Abro novamente.
Não sei o que falar.
Só sei o que eu vou fazer.
— Eu vou te matar. — Levanto do sofá e JP se prepara para correr,
pegando uma almofada para se proteger.
— Não vai não, eu sou seu melhor amigo.
— E quem precisa de inimigo com um amigo como você? — meu rosto
esquenta de raiva. — Você consegue imaginar a Olívia em um cruzeiro
assim? Teria estragado nossa lua de mel!
— Você também não conseguia imaginar ela sentando no seu assistente
e olha onde estamos agora…
Meus olhos saltam. Acho que minha veia da testa vai estourar. Será que
é possível ter estria na testa de tanto arregalar os olhos? Meu
questionamento é válido, eu tenho estria nos pés porque eles cresceram
demais em pouco tempo.
Ah, droga, deixa isso pra lá, eu tenho um pervertido para assassinar.
— Eu vou mesmo te matar.
Pego a estatueta de bronze que ganhei de presente de formatura, pronto
para jogar no crânio desse maldito. Agora ele deveria se sentir triste por não
ter chifres, tem muito espaço livre para acertar.
João Pedro sai correndo da sala e o persigo pelo corredor, mirando a
engrenagem — que representa meu curso de engenharia da computação —
no centro da cabeleira cacheada.
— Não vale a pena me matar. A cadeia é uma zona lotada, não vai ter
computador e a comida é pior que a minha.
— Viver com trinta prisioneiros com sudorese, em uma sala apertada e
sobrevivendo a pão e água, deve ser melhor do que morar com você!
Ele entra no seu quarto e tenta fechar a porta, mas enfio o pé no vão,
impedindo de se fechar por completo. O encaro pela fresta ainda aberta. Se
eu ganhar novas estrias pela madeira esmagando meu querido pé, vou
fazê-lo pagar sessões de raspagem. — Quais são suas últimas palavras?
— Partiu putaria em alto-mar?
— Péssima escolha, deveria ter falado: Deus, me perdoa pelos meus
pecados.
— Joca… — Sorri ladino. — Deus sabe tudo que eu fiz e,
principalmente, sabe que não me arrependo de nada. Eu me confesso duas
vezes no mês.
— Você é uma pessoa horrível.
Ele inclina o rosto, assentindo. Otário.
Respiro fundo, tirando o pé da porta. Espero que ele vá fechar e se
esconder de mim pelo resto da noite, mas JP me segue até a sala e se senta
no sofá ao meu lado. Em uma coisa tem razão... não vai adiantar de nada
matá-lo. Tudo foi por água abaixo e não por culpa dele.
Não foi ele que sentou no meu assistente como se fosse um pula-pula.
Suspiro cansado e João Pedro fica sério pela primeira vez desde que
entrou em casa… ou talvez na vida. Não me recordo de vê-lo com essa
expressão estoica alguma outra vez, a não ser quando recebeu uma recusa
da garota que gostava enquanto estávamos no ensino médio. Ele tinha
achado um bilhete na sua mesa que dizia que ela estava apaixonada, mas a
verdade é que a pessoa que enviou errou o destinatário. O bilhete era para o
garoto popular sentado atrás. Foi bem vergonhoso, porque ele pediu a
menina em namoro no pátio do colégio e levou não apenas um “não”, como
um “quem você pensa que é para me pedir em namoro, cabeça de nós
todos? Nem se nascer de novo teria uma chance comigo”.
Agora isso me faz querer sorrir. A cabeça dele é realmente grande...
— Escuta... — JP espera que eu olhe para ele para continuar falando. —
Não foi proposital ter comprado o embarque nesse cruzeiro, eu só fechei o
pacote errado por engano, e quando me dei conta, já não havia mais vaga no
outro. Achei que seria melhor manter esse erro em segredo até vocês
estarem no meio do oceano, sem chance de me matar.
Fecho os olhos por alguns segundos, tentando entender por que
repentinamente sinto vontade de rir dessa situação. Seria trágico se eu
realmente chegasse a me casar. Mas como não é o caso, desisto de apertar o
pescoço do meu amigo até ver a cara dele ficar roxa.
João Pedro aperta meu ombro, dando tapinhas em seguida.
— Eu sei que você amava aquela mulher… não entendo, mas sei. — Ri
incrédulo. — Só que claramente ela não te amava, então isso é um
livramento. A parada toda de Deus escreve certo por linhas tortas…
— Eu não sei o que fazer agora, JP. — Nego com a cabeça. — Eu
projetei toda a minha vida, os mínimos detalhes. Desde a minha graduação
até os nomes que daríamos ao nosso casal de filhos.
Passando pela lista de mercado que faríamos todo mês, o roteiro das
viagens que faríamos para comemorar os aniversários de casamento, o local
onde passaríamos os natais, revezando entre minha família e a dela...
— Não deu tudo errado — me repreende com outro peteleco. — Você
se graduou, foi contratado por uma empresa que te paga um salário gordo
para desenvolver os games que gosta. A única coisa que mudou é que agora
você vai fazer isso sem uma mulher que reclamava o tempo todo do quanto
seu trabalho era brega demais e que os namorados das amigas eram
médicos e advogados.
O encaro sem entender.
— Se você achava meu casamento uma ideia tão ruim e odiava tanto
minha noiva, por que me deixou seguir com tudo isso?
— Velho, eu tentei impedir — aponta o dedo na minha cara. — Eu
literalmente escondi as alianças que você comprou por um mês. Ninguém
mandou você ser um tarado e procurar dentro da minha gaveta de cuecas.
Faço cara de tédio.
— Eu fui lá procurar as minhas cuecas que você sempre rouba da
máquina de lavar!
— É porque elas sempre estão limpas… — JP coça a nuca se fazendo
de embaraçado.
Quem não te conhece que te compre…
— Foda-se, não importa mais. Não vou me casar e tenho que refazer
todos os meus planos de agora em diante. Talvez pensar mais no meu
trabalho, colocar mais metas…
— Não, Joca — ele me interrompe. — Você precisa fazer exatamente o
contrário. Tem que parar de fazer planos de tudo. Parece uma agenda
ambulante, com cada parte do seu dia cronometrado… porra, cê anota até
quantas vezes vai ao banheiro.
— O intestino diz muito sobre nossa saúde — me defendo. — Palavras
de Sheldon Cooper.
— Vai me dizer que analisa até seu cocô? — gargalha.
— Você não? A condição das fezes também diz muito sobre…
— Sobre nossa saúde, ok… — JP faz careta. — Credo, que nojo. Mas
eu entendo a gente ter passado do assunto Olívia pra fezes, faz total sentido.
Abro a boca para contestar, mas lembro que agora não tenho nenhuma
razão para defendê-la. Na verdade, eu deveria concordar.
Recosto contra o sofá, analisando o teto novamente. Eu tenho olhado
muito para o teto nos últimos dias, estou até reparando em algumas
infiltrações que nunca tinha visto no apartamento.
— Você precisa reagir, tá ligado? O cruzeiro seria perfeito para colocar
o pau em dia — JP sacode meus ombros.
Bufo uma risada. Meu pau está tão cabisbaixo quanto eu. Duvido que o
coitado se levante com facilidade depois de ver minha noiva gemendo para
outro cara como uma cabrita desmamada.
— Você mesmo disse que o cruzeiro é só para casais — nego com a
cabeça. — Vamos fazer o quê? Fingir que somos noivos?
— É.
Rio alto, achando verdadeira graça. Mas quando JP não ri junto, meu
sorriso é borrado.
— Você tá brincando, né?
— Claro que não! A gente não precisa se pegar, só entrar junto. Mas pra
constar, se perguntarem, eu sou o ativo.
— Por que eu tenho que ser o passivo? — Cruzo os braços. — A gente
não pode ser totalflex?
— Eu não dou a minha bunda pra você não, terceira perna!
— E nem eu a minha pra você, minhoquinha.
Se estivéssemos em um desenho animado, os efeitos sonoros seriam
sinos de início de round.
— E a gente faz o quê então? Lutinha de espada? — sugere.
JP e eu nos encaramos por um momento e explodimos em uma
gargalhada estrondosa.
— Essa visão vai ficar na minha mente por décadas e vai ser a causa dos
meus pesadelos — estremeço.
— Presta atenção, caralho! — Ele soca meu braço. — O cruzeiro exige
que entremos em par, apenas isso. A gente vai de mãos dadas, e lá cada um
pega a mulher que quiser. Não é como se fossem ter fiscais dentro do nosso
quarto vendo se a gente se come.
Comprimo as sobrancelhas para um furo na sua lógica.
— Mas se é só para casais, nós vamos pegar a mulher dos outros? Eu
não tô a fim de decorar a cabeça de ninguém como fizeram comigo.
— Não, idiota! — Revira os olhos impaciente. — O cruzeiro erótico é
justamente pra isso, tem casais que querem fazer uma troca, outros que
querem assistir você pegar a mulher deles, outros que querem uma coisinha
a três… ou a quatro, cada um com seu fetiche, quem sou eu pra criticar?
Arregalo os olhos ao ponto das veias segurarem o globo ocular para não
cair.
— Eu não vou pra essa coisa não, é muita putaria pra mim. Sou um cara
mais tradicional.
Nego com a cabeça. Eu faço o tipo para namorar, noivar, casar e ter
filhos. Nessa ordem e necessariamente monogamicamente. Além disso, o
padre me faria rezar “Pai Nossos” até depois da minha morte.
A primeira e única vez que uma mulher me convidou para um ménage,
eu desmaiei. E não, não estou exagerando. Eu desmaiei. Na época eu ainda
morava em Atibaia e o incidente ficou conhecido em um perímetro de dez
quarteirões. E no twitter.
Foi por isso que me mudei para o Jardim América assim que consegui
meu emprego.
— Não é só putaria, alguns casais vão só curtir as atrações que o navio
oferece. Tem massagistas, aulas de pole dance, terapia para casais…
Cubro o rosto com as mãos.
— E por acaso a gente vai fazer alguma dessas coisas? Já pensou eu e
você fazendo terapia juntos? — Estremeço só de imaginar.
— Eu pulo a terapia, mas a massagem e pole dance pode contar comigo.
Coço a cabeça, pensando no que Olívia pensaria de mim se eu fosse.
“Ela não pensou em você quando estava brincando de cavalinho
pocotó com o Igor” —Shikamaru, o nome do meu personagem favorito de
Naruto, e também o que dei para a voz racional da minha mente, me
lembra.
Eu sei que sou um pouco velho pra essas coisas, mas eu só tinha o JP
de amigo e nem sempre ele estava perto, então precisei recorrer aos
imaginários. Olívia podia ter me traído com um amante imaginário
também.
Levanto do sofá em um pulo quando a imagem do flagra vêm nítida na
minha cabeça, fazendo meu sangue ferver novamente. Olho para o meu
amigo, tomando a decisão mais inconsequente e impulsiva de toda minha
vida.
— Vamos arrumar nossas malas.
— Ah, caralho! Vamos tomar sol com a bunda nua! — João Pedro sai
gritando pelo apartamento.
E eu fico estático quando me dou conta da besteira que fiz.
Como aceitei ir para um cruzeiro erótico fingindo ser noivo do meu
melhor amigo?
Estou na merda. E tende a piorar.
Ah, se tende…
 
— Ah, meu pau! — JP coloca as mãos na cintura, encarando minhas
malas na sala. — Nem fodendo que isso tudo é pra três semanas.
— Só tem duas malas aqui, esperava o quê? Uma mochila de costas?
— É. — Ele ergue a sua na minha cara. — É exatamente isso que eu
esperava.
— Não acredito que vai levar só isso — minha boca retorce de
desgosto. — São três semanas, não três dias.
— Nem três meses!
— Só estou levando o essencial. — Ergo o queixo. Quero só ver quando
ele ficar sem roupa e precisar das minhas. Eu não vou dar!
— Só o essencial? — JP gargalha. — E a porra desse diário?
Abraço meu caderno de couro que comprei para registrar minha lua de
mel, enquanto o palhaço enche uma xícara do café que eu preparei.
— Eu vou guardar recordações, é um diário de bordo.
— Parece mais o diário de uma adolescente de filme americano. Aposto
que na primeira página está escrito: querido diário, hoje eu levei um
chifre… — diz imitando uma voz feminina esquisita e irritante.
— Ao contrário de você, eu não saio espalhando esse incidente — digo
entredentes.
— Eu só contei para o porteiro.
— E para o zelador, para a moça da limpeza e ah… não vamos
esquecer, você contou para a atendente do caixa do supermercado. —
Aposto que São Paulo inteira já sabe da história do noivo corneado. Não
duvido nada que o Hugo Gloss noticie nas redes sociais em alguns dias.
— Eu fiquei sem assunto, foi mal. — Dá de ombros, pegando o diário
da minha mão para folhear. Eu tenho certeza que ele está procurando se
acertou o que está na primeira página. Mas falei sério, eu não espalho meu
chifre por aí.
— Da próxima vez que ficar sem assunto, enfia a língua no rabo e gira!
— Que agressivo… — Meu amigo gargalha, pegando uma caneta.
— O que você vai fazer? — Estico na ponta dos pés quando ele apoia
meu diário na mesa e escreve algo na capa.
— Só tem seu nome aqui, eu tenho que colocar o meu.
— Mas é meu diário, por que teria seu nome, criatura? — tento pegar o
caderno das suas mãos.
— Sai fora, deixa eu anotar aqui, egoísta! — JP bate no meu braço, mas
acaba acertando também a xícara de café, que vira sobre o diário,
manchando todo o couro.
— Ah, que merda, João Pedro! — Tento limpar as páginas do líquido,
mas isso só serve para sujar ainda mais.
Respiro fundo, fechando os olhos.
Um, dois, três… eu vou ter que contar até duzentos se quiser me
acalmar. Mas tudo bem, porque eu desconfio de pessoas calmas, elas só
podem viver com gelo enfiado na bunda para não surtarem com essa vida
de cão.
— Foi culpa sua, ninguém te ensinou a dividir? — me acusa.
— JP, vai logo pedindo nosso Uber antes que eu precise usar essas
malas pra esconder seu corpo.
— Ui, que medinho… — cantarola. — Ele tá nervoso!
Encaro o céu pela minha varanda.
Deus… eu sei que você tem planos para tudo, mas se puder me iluminar
do porquê colocou essa cruza de orangotango com preguiça na minha vida,
vou ficar muito grato.
João Pedro sai com sua mochila de costas e eu guardo meu diário
manchado e gravado com o nome dele dentro da minha mala de mão. Tudo
que preciso fazer agora é enviar uma mensagem para a minha mãe e torcer
para que ela não exija mais respostas do que estou disposto a dar.
Eu: estou indo para o aeroporto pegar o voo para o RJ.
Mãe: espero mesmo que essa viagem seja importante para o seu
trabalho ao ponto de ter adiado o casamento.
Ah é… esqueci de contar. Ela não sabe a verdadeira história por trás.
Não tive coragem de contar o que aconteceu. Minha mãe acha que adiei o
casamento por uma viagem de trabalho muito importante que apareceu de
última hora. Ela está furiosa comigo.
Eu: é importante sim, mãe. Já conversamos sobre isso.
Mãe: Olívia é uma santa mesmo em não se importar. Menina de ouro.
Santa… só se for do pau oco.
Eu: é, mãe. Sou um homem de sorte. Agora preciso ir, fica com Deus.
Mãe: vá e volte com Deus, meu filho.
Suspiro, balançando a cabeça.
Como, por Cristo, vou contar a ela que sua nora amada não é tão santa
como ela pensa?
— Joca, o Uber chegou, vem logo! — JP grita do elevador e saio
correndo atrás.
— Não grita no corredor! A gente já levou uma multa mês passado!

Quando a vida te der limões, faça uma limonada. Mas se quer um


conselho, se ela te der amigos malucos e inconsequentes, não aceitem
embarcar com eles em um passeio em alto-mar. Você pode acabar como o
Jack, congelando a bunda na água enquanto uma egoísta não divide um
lugarzinho na porta.
Confesso que eu esperava que a companhia de turismo não permitisse a
troca do bilhete para o nome do meu amigo, mas ele inventou uma história
digna de filme, onde eu havia deixado minha noiva pelo meu verdadeiro
amor: meu amigo de infância. Ou seja, até semana passada eu era um hétero
prestes a me casar e agora sou apaixonado pelo João Pedro. Ser gay tá tudo
ótimo, mas ser apaixonado por ele? É apelar demais. Meu gosto é melhor
do que isso. Com certeza eu escolheria um cara com gostos mais aflorados
para higiene pessoal. Tipo o Vin Diesel. Aquela careca não brilha atoa.
O pior é que eu estava do lado enquanto ele contava para a atendente.
Ela me fez um discurso bonito sobre como me aceitar e não ligar para a
opinião preconceituoso das pessoas. Eu me emocionei, foi realmente bonito.
Mas enquanto ela falava que tudo bem eu lutar pelo meu amor, porque
todos fazem isso, eu só conseguia pensar: tudo bem ser corno, todo mundo
é.
Calma, se você ainda não foi, sua vez vai chegar. Ou já chegou e só
esqueceram de te contar.
— A gente vai ser expulso e jogado no mar que nem em Madagascar.
— Observo os casais entrando pela rampa de acesso do navio, me sentindo
um porco. Eu não deveria ser um solteiro aqui. Essas pessoas estão
confiantes que só comprometidos vão embarcar e não um deprimido com
problemas de autoestima e um tarado que achou o pinto no lixo.
— Para de ser pessimista, o máximo que vai acontecer é sermos presos.
— O QUÊ?! — Estanco no meio da rampa, todos os tripulantes se
virando para mim. Meu rosto pinica de tanta vergonha.
— Cala a boca, mané! — JP pede desculpas por mim, abraçando minha
cintura. — Meu bombonzinho tem medo do mar.
As pessoas param de nos olhar, continuando seu caminho.
— Bombonzinho é seu ovo! — Belisco a pele da sua costela.
— Só se for de chocolate branco, minhas bolas precisam de um sol... —
Ele belisca a minha de volta e terminamos os dois subindo a rampa com
uma careta de dor.
Algo me diz que essa vai ser minha cara pelo resto das três semanas que
se seguirem. Arrasto minhas duas malas rampa acima, enquanto JP carrega
sua mochila. Eu olhei o interior dela e só tinha duas sungas, uma calça
jeans, três blusas, quatro cuecas e cinco caixas fechadas de camisinha.
Pela quantidade de preservativo que ele acha que vai usar, realmente
não precisaria de roupas. Eu só duvido que vá utilizar pelo menos uma
caixa cheia deles. Meu amigo pode ter ficado forte com o tempo, mas ainda
é só um. Eu duvido que um pau comum aguente uma maratona de sexo tão
intensa… não que eu já tenha tentado, porque meu máximo foram duas
rodadas seguidas, onde a segunda não teve final feliz.
É um pouco difícil gozar quando você não pode colocar nem metade do
pau pra dentro. Eu detesto meu pênis. Não poderia ser um pouco menor,
senhor? Do que adianta tamanho, se nenhuma mulher vai querer ter o
útero cutucado?!
— Até aquela mulher ali tem menos bagagem do que você — JP aponta
para uma ruiva levando uma minúscula mala cor-de-rosa.
— Primeiro, que ela está com pouca bagagem porque é o namorado que
tá carregando o restante. — Indico o careca atrás de nós, com três malas de
rodinhas e mais duas penduradas nos braços. — E segundo, que quero ver
você me zoar quando precisar de cuecas limpas.
— Eu sempre posso virar as minhas do avesso.
— Misericórdia, que nojo! — Seguro a bile dentro do estômago,
terminando de subir a rampa.
Eu pensei que sabia o quanto um navio era grande, mas vendo de perto,
a coisa é ainda mais monstruosa. Quanto mais eu olho a embarcação branca
com entalhes em azul e laranja, mais parece não ter fim. Ficar tão próximo
é como assistir àqueles vídeos da dimensão do universo, você se sente uma
formiga prestes a ser esmagada.
— Sejam bem-vindos ao Royal Pleasure Line. Seus bipes, senhores. —
Uma mulher de chapéu de marinheiro e lenço no pescoço, nos entrega um
aparelho eletrônico, que se parecem com aqueles dados por lanchonetes no
shopping, que vibram quando sua comida está pronta.
— Pra quê isso? — JP encara o aparelho desconfiado. Ele sempre acha
que alguém vai desenvolver um mecanismo eletrônico que vai acabar com o
mundo. Isso que dá passar tanto tempo teorizando sobre a Marvel.
— São os bipes usados pela Sara para fazer anúncios e determinar as
dinâmicas do navio. Basicamente, quando ele vibrar e acender uma luz,
vocês deverão seguir os comandos que ela ditar.
— Sara? — Franzo o cenho.
— Nossa inteligência artificial, que será sua comissária de bordo
durante a viagem — ela sorri como quem encerra o assunto e não pretende
dizer mais nada.
Inteligência artificial? É meu papo. Eu perguntaria mais coisa, mas a
fila atrás de nós me impede de continuar o assunto.
— Até que vai ser divertido — Dou de ombros.
— Você gosta de coisas que vibram, né?
— Cala a boca!

Sabe uma coisa que não deixa as pessoas tranquilas? Treinamento para
emergências. Eu sei que o objetivo é justamente evitar que a gente morra
caso essa coisa gigantesca afunde, mas eu não vou lembrar nem de como se
anda, que dirá como afivelar um colete caso o navio queira descobrir os
mistérios do fundo do oceano.
Fomos enfileirados em um auditório para ouvir os avisos, onde na tela
branca à frente, uma mulher com traços computadorizados aparece vestindo
o uniforme do navio e um quepe de marinheiro com a logo do Royal
Pleasure Line. Ela tem a pele negra retinta, trança nos cabelos e um
papagaio sobre o dedo. Sua voz robotizada não demora a ecoar nos alto-
falantes.
“Oi, aqui é a Sara, sua comissária de bordo particular. Serei sua fiel
amiga enquanto navegarmos por essas águas misteriosas. Vocês me
carregarão consigo 24h por dia em seus bipes… quando menos
esperarem, eles irão vibrar e eu vou aparecer.”
— Não tô gostando disso — JP cochicha no meu ouvido. — Eu já vi
“Eu, Robô” e a culpada era o computador gigante.
— Cala a boca, me deixa escutar.
“Antes de iniciarmos nossa viagem, precisam saber que nosso navio está
equipado e preparado para incidentes que possam vir a acontecer. Temos
lanchas ao redor da embarcação em caso de emergência e botes
infláveis.”
— Aposto que os ricos vão ficar com as lanchas — meu amigo
resmunga.
— Ainda bem que ganho mais que você. — Tusso uma risada e JP tosse
um palavrão.
“Vocês possuem coletes nas cabines e também espalhados pelas
dependências do navio. Em caso de emergências, ressoaremos o sinal de
alerta e todos deverão colocá-los e seguir para o andar Mistaken[5], onde
os colocaremos nos barcos. Por favor, em hipótese alguma se atirem no
mar.”
— E se o navio pegar fogo? — JP ergue as mãos e pergunta como se
estivesse falando com uma pessoa. Para minha completa surpresa, Sara o
responde. Estranho… um navio investiria tanto assim em uma inteligência
artificial? Ou há uma pessoa por trás de Sara, escondida por uma imagem
computadorizada?
“Em caso de incêndio, sigam para o andar Mistaken e embarquem nos
botes. Se pularem no mar, poderão morrer de quatro formas. Número
1: comidos por tubarões. Número 2: hipotermia. Número 3:
afogamento. Número 4: se o navio afundar e vocês estiverem perto,
serão sugados junto com ele para o fundo, com a força da água.
Entendido?”
— Eu não caio na água! — JP diz com a voz tremida. — O tubarão me
come aqui dentro, mas eu não pulo.
Seguro a risada, ouvindo o restante dos avisos, que duram mais meia
hora de um monólogo sobre como podemos morrer de formas
diversificadas. Super encorajador! Quando saímos do auditório, minha
bunda já tomou o formato retilíneo dos bancos.
João Pedro coça a cabeça enquanto procuramos pela nossa cabine, sem
qualquer senso de direção. Se os andares tivessem número, seria mais fácil,
mas são definidos por nomes de livros com conteúdo erótico, dos quais
nunca cheguei nem perto. Nesse momento, estamos no andar “Atração
Fatal[6]”. Os quartos também não possuem números, mas se diferem do fato
de que os nomes são posições sexuais, das quais eu também nunca fiz.
Acabamos de passar pelo “frango assado”, “canguru perneta” e “carrinho
de mão”.
— Uma pergunta — JP abre a boca e já quero socar a cara dele.
— Não sou o passivo e se você disser isso a alguém de novo, vou te
matar enforcado com as fivelas do colete.
— Eu só falei pra comissária porque ela estava com cara de quem
desconfiava do nosso relacionamento amoroso.
Paro de andar, indignado. Acho que tenho que fazer um exame do
coração. Eu vou infartar antes dos trinta.
— Ela só tinha perguntado se a gente queria ajuda para achar a cabine.
— Exatamente!
— E você disse que sim, porque estava ansioso para transar com seu
noivo passivo.
Minha cara ainda está ardendo. O mais surpreendente foi que a mulher
sorriu como se fosse algo comum de se escutar por aqui. As coisas que ela
deve ver... será que eles oferecem terapia para os funcionários?
— Vai me deixar fazer uma pergunta ou não, porra?
— Desembucha. — Reviro os olhos.
— Caso isso aqui afunde, quem vai ficar com a sua coleção de funkos?
Considerando que eu sobreviva, é claro.
— Se você sobreviver, quer dizer que me deixou morrer, então o
máximo que vou te deixar é um ódio eterno como alma penada e ir te visitar
todas as noites.
— Você puxaria meus pés?
— Nem morto eu pegaria nessas coisas nojentas. — Faço careta.
— Não sou eu que tenho estrias nos meus.
Arregalo os olhos, olhando em volta para conferir se alguém o escutou.
— Você sabe que esse é um tema sensível pra mim. — Cruzo os braços
emburrado. — Eles cresceram rápido demais!
— Desculpe tocar no assunto, foi insensível da minha parte.
Apresso meu passo, ignorando esse babaca. Ele não se arrepende porra
nenhuma!
Cruzamos mais um corredor repleto de portas, até acharmos finalmente
a cabine “69”. Ergo as sobrancelhas.
— Não dava pra você ser menos óbvio?
JP gargalha, passando nosso cartão de acesso.
— Podia ser pior, a gente podia ter ficado com a do “beijo grego” —
Ele aponta para a cabine atrás de nós.
Coloco minhas malas no canto da cabine, suspirando.
— Eu deveria saber o que é beijo grego? — Franzo o cenho. O que tem
demais em dois gregos se beijando?
— Você precisa passar mais tempo vendo pornô, cara.
— E você precisa passar mais tempo dentro da igreja!
— Para de ser careta! Vai me dizer que nunca fez um 69 antes...
Eh, então… desvio o olhar, assobiando para tentar mudar de assunto.
— Ca-ra-lho... — diz pausadamente cada sílaba. — Não acredito que
você nunca chupou uma boceta enquanto seu pau era feito de picolé.
Minha cara retorce com a imagem, porque imagino ele nessa situação.
Oh visão dos infernos.
— Nunca, Olívia dizia que queria guardar algumas coisas para depois
do casamento.
— Ah, 69 para depois do casamento, mas chifre antes dele... entendi.
Fecho a cara.
— Você poderia ser menos inconveniente.
— E você menos puritano. — João Pedro enlaça meu pescoço com o
braço. — Não vai sair desse cruzeiro sem fazer um 69.
Minha risada é de puro divertimento.
— Eu não vou transar com ninguém, pode esquecer. Só vou ler meu
mangá na proa do navio e comer o máximo que eu conseguir porque a
comida está inclusa no pacote.
— Ah claro, com certeza alguma garota aqui deve ter fetiche por nerds
antissociais viciados em quadrinhos e com a boca suja de farelo de pão.
Bato no seu braço para me livrar do aperto no meu pescoço.
— Não estou te impedindo de se divertir do jeito que quiser, então faça
o mesmo por mim.
— Vamos ver se você vai continuar com esse pensamento aberto
quando eu trouxer uma garota para o quarto... ou duas.
— O quarto é zona proibida. Só tem uma cama, caso não tenha visto. —
Aponto para o colchão redondo, tipicamente de motel. Não que eu já tenha
ido em um, porque a título de informação, nunca fui. É higienicamente
precário. E não me venha com esse papo de que tudo se limpa com um
pouco de água sanitária, porque só de imaginar todos os fluidos corporais
que passaram por lá, eu tenho urticária.
Além disso, acho que é pecado. Vou perguntar ao padre da próxima vez.
— Eu não preciso de uma cama pra transar. — JP dá de ombros.
— João Pedro Valadares, se eu encontrar seu pau enfiado em algum
orifício dentro dessa cabine, banheiro incluso, vou te transformar em
eunuco.
Meu amigo ergue as mãos em concordância, mas tenho o
pressentimento que nossa amizade vai ter a data limite dessa viagem. Tudo
bem, foi traumatizante enquanto durou.
Ele se joga na cama com os braços abertos, me chamando com um dedo
enquanto morde os lábios. Assustador.
— Se acha que está sexy, sinto te decepcionar. Essa visão é quase tão
ruim quanto Boruto[7].
Definitivamente esse anime não deu tão certo quanto pretendiam.
— Deita aqui comigo, bombonzinho. — Ele bate no colchão
balançando as sobrancelhas. É assim que ele conquista as mulheres? Se
alguma cai nesse papo, só pode tá carente.
— Se eu deitar, você para de me chamar assim?
JP assente com um bico e reviro os olhos. Tão logo me deito, o infeliz
pula para cima de mim, beijando meu rosto.
— Sai, filho da...
— Não xinga minha mãe — ele puxa minha orelha e ergo meu joelho,
acertando suas bolas. Enquanto rola no colchão de dor, eu sorrio satisfeito.
— Eu ia dizer filho de uma pobre mulher que merecia algo melhor que
você.
— Se me deixar incapacitado de gerar descendentes, quem vai se tornar
o próximo galã da Globo?
— Seu filho só se tornaria um galã se você se casasse com a miss
Brasil. E talvez nem os genes dela resolvessem.
— Tudo bem que eu era feio no ensino fundamental...
— E no médio — complemento.
— Tá, porra, e no médio, mas fiquei um gostoso. — Ele segura as bolas
doloridas com uma das mãos, enquanto a outra ergue sua camiseta. — Você
já viu meu abdômen, sou uma delícia.
Jogo os ombros.
— Você malhou o corpo, mas a cara continua a mesma.
João Pedro passa mais alguns minutos tentando me convencer de que é
o Reynaldo Gianecchini da nossa geração e eu finjo estar escutando
enquanto leio o itinerário de eventos do navio. É assustador como a maioria
das coisas envolve sexo. Mas isso é um cruzeiro erótico, seria estranho se
não envolvesse.
— Não precisa olhar esse papel, eu já nos inscrevi para o evento de hoje
— Ele pega o papel da minha mão.
— Por favor, me diz que não foi para o “primeiros passos no
pompoarismo” — aponto para o folheto onde mostra que haverá uma aula
de uma hora de contração dos músculos internos.
— Não, esse negócio de ficar piscando o cu não é pra mim.
Faço careta.
Ele é nojento.
— Então... o que vamos fazer? — Que fique claro que estou com medo
da resposta.
— É apenas uma festa, pode destrancar suas nádegas. Você não vai
precisar usá-las a não ser para fazer quadradinho.
— Eu não sei dançar essas coisas.
— É por isso que eu salvei alguns tutoriais, a gente precisa decorar as
dancinhas do TikTok até às 19h.
Arregalo os olhos.
Acho que o navio afundar é uma boa ideia.
Eu moro com a Pequena Sereia antes de sacolejar minha bunda por aí.
 
Geralmente, uma mulher sonha com um cara que abra a porta do carro,
que puxe a cadeira para ela se sentar, que a presenteie com flores e
chocolates, que seja compreensivo e, principalmente, que seja bonito.
Não sou essa garota.
Eu me contento com um cara que não tenha uma namorada secreta,
noiva em outro estado ou uma esposa raivosa.
É, eu sei que não estou esperando muito, mas mesmo com as
expectativas baixas, não achei a metade da minha laranja. Porque ela era
sempre a metade chupada de outra pessoa. A minha sorte é que eu
desapaixono tão rápido quanto os caras gozam.
— Eu tenho cara de amante? — pergunto para Manuela, enquanto me
encaro através do espelho da cabine para funcionários.
— Quer que eu seja sincera? — Ela luta para fechar o zíper enferrujado
da sua calça… também, essa calça está tão velha, que me admira não ter
rasgado ainda.
— Deixa pra lá — dispenso. — Eu só queria entender por que atraio
tanto homem comprometido.
— Não é culpa sua, você não tinha como saber que o Felipe era casado.
Suspiro, amarrando o lenço no pescoço.
Eu queria me sentir menos culpada, mas a verdade é que eu deveria ter
adivinhado que todas aquelas ligações de noite não seriam da avó dele.
Felipe, meu ex-namorado, dizia que a velhinha ligava para avisar que estava
bem sempre que ele saía de casa. Eu achava que era um neto preocupado,
mas descobri que, na verdade, era a mulher dele muito brava porque o
marido a estava traindo... comigo.
Só descobri por que ela apareceu na minha casa, em uma noite de
sábado, muito disposta a levar alguns fios do meu cabelo consigo. O pior é
que eu estava nua, com chantili nas tetas e a calcinha presa na cabeça do
marido dela. Eu nem tive tempo de raciocinar e já estava sendo xingada de
todos os nomes feios já criados pelo homem.
Em um primeiro momento, pensei que ela tinha errado de apartamento,
afinal meu namorado não podia ser casado…, mas alerta de spoiler: ele era.
Por sorte, nosso porteiro colocou os dois para fora antes que ela destruísse o
apartamento, o que não impediu de sujar minha fama pelo prédio. A
senhorinha do 202 faz sinal da cruz sempre que me vê.
Eu nunca sei se ela está orando pela minha alma ou tentando proteger a
sua de mim.
— Pode não ser culpa minha, mas já é a terceira vez que isso acontece.
— Já tive um namorado que tinha outro namorado e um noivo que já era
noivo de outra mulher. Todos esses, eu descobri por amigas que me
contaram. Essa foi a única que a flagrada fui eu. — Agora além do
Instagram, vou ter que fazer uma busca pelo CPF do cidadão para ver seu
estado civil?
— Isso resolveria com os casados, mas e os que só namoram? — Manu
levanta o questionamento.
Boa pergunta…
— Esses eu deixo um fio de cabelo no carro... se ele aparecer no Cidade
Alerta como manchete “homem é morto a facadas, após namorada
encontrar fio de cabelo desconhecido no carro”, então não é pra mim.
— Boa tática, Cheetos.
— Para de me chamar assim, a cor já tá saindo!
Observo minha pele com vontade de chorar. Talvez eu tenha errado no
bronzeamento e ficado um pouco alaranjada, mas não chego a parecer esse
salgadinho fedido.
— É, agora você não parece mais um Cheetos e sim anêmica.
Comprimo os lábios.
— Acho que prefiro Cheetos.
— Escuta... — Ela segura minha mão, me fazendo levantar da cama. —
Você não tem culpa desses caras serem um bombom de alho.
— Bombom de alho?
— É, sabe... quando você une duas coisas que são maravilhosas
separadas, mas juntas não dão certo... pênis e fidelidade.
Caio na risada, abrindo a porta da cabine.
— Sou sua amiga há anos, mas ainda não entendo metade do que você
fala.
— Esse é meu charme. — Manu passa por mim rebolando, parecendo
uma criancinha saltitante com todos os seus 153 centímetros de altura.
Que Manu não sonhe que contei isso, mas ela não tem tamanho
suficiente para ir no toboágua do parque aquático. Uma vez ela tentou usar
meias dentro do sapato, mas isso só causou a sua queda no meio do saguão
principal. Foi hilário.
— Seja como for, fiz uma promessa a mim mesma para me livrar do
dedo podre pra homem — conto orgulhosa quando a alcanço no corredor.
Precisei de duas meditações para chegar a essa solução e uma garrafa de
Velho Barreiro.
— Qual?
— Não vou transar com ninguém pelos próximos dois meses.
Manu me encara séria por alguns segundos, mas logo cai em uma
gargalhada esquisita.
Ela ri tempo suficiente para eu perceber que não tenho muita moral.
Não posso julgá-la, sou conhecida por pagar minha língua. Sempre que eu
falo que não vou fazer algo, sou vista poucas horas depois fazendo. O
inverso também é verdadeiro. Já perdi as contas de quantas vezes prometi a
mim mesma que iria à academia se pagasse o plano anual, e cá estou eu
pagando oitenta reais todo mês para um lugar que frequentei apenas nas
duas primeiras semanas.
— Já está satisfeita ou quer mais cinco minutos de volta ao passado e
bullying com os amigos? — Pelo que me contou, Manu não foi uma boa
pessoa na adolescência enquanto morava em São Paulo. Mas ela não é
exatamente uma boa pessoa até hoje. É seu charme ser malvada e
pequenininha. Tipo um Minion.
— Eu aposto meu bônus salarial que você transa antes do cruzeiro
ancorar na primeira parada. — Ela ergue o queixo cheia de si. Não disse?
Cruel!
— Fechado. — Estendo minha mão, disposta a ganhar a aposta.
— Nunca ganhei dinheiro tão fácil na vida — graceja.
Vamos ver, queridinha... vamos ver. Eu posso controlar minha vagina.
Não é ela que me controla…
Ao menos não na maior parte do tempo.

Como massagista tântrica, meu trabalho é ensinar a se conectar consigo


mesma e com o parceiro, desvendar zonas erógenas e se tornar um com a
energia do seu corpo..., mas o energúmeno na minha frente está me
enxergando como uma garota de programa. Não que eu tenha algo contra
elas, ao contrário, trabalham mais que muita gente, mas é que eu não estou
fazendo sexo nem de graça, que dirá cobrando.
— Não senhor, dormir com você e sua esposa não está nas minhas
atribuições de cargo. — Quem inventou aquela merda de “o cliente tem
sempre razão” nunca deve ter trabalhado com atendimento ao público. —
Só há interação sexual ou afetiva entre os passageiros e com o
consentimento do outro casal, é claro. Não há nenhuma oferta de serviços
de acompanhante. Na verdade, os funcionários são proibidos de ter
qualquer relação com tripulantes.
Não que eu obedeça a esse requisito. E não brigue comigo, nem todos
os casais são monogâmicos. Falei sério sobre não ter intenção de pegar
comida emprestada das coleguinhas sem elas saberem.
— Eu vi que você é massagista tântrica... — Ele sorri. — Achei que seu
trabalho fosse dar prazer.
Abro a boca com a intenção de ofender trinta direitos humanos, mas
Manuela chega na hora exata de me impedir.
Eu sou uma pessoa calma. De verdade, sou quase um Buda ambulante,
mas existem três coisas que me tiram do sério.
A primeira, é mentira.
A segunda, são pessoas negativas.
E a terceira, é acharem que meu trabalho é uma grande putaria sem fim.
— Senhor, desculpe interromper, mas estou precisando dela para uma
reunião final antes de zarparmos.
Ela sai me arrastando pela blusa, enquanto meu olho direito pisca.
— Se eu afogar ele, pego quantos anos de prisão? — Manuela fez
direito na faculdade... bom, pelo menos 2 semestres do curso ela fez, então
vai ter mais noção da minha pena por assassinato do que eu, que fiz quatro
semestres de arquitetura.
Aprendi mais com irmãos à obra do que na faculdade, a parada toda do
conceito aberto e tal... eu tinha um crush no que vendia as casas.
— Você não vai afogar ele, é proibido jogar lixo no mar.
— Solta minha roupa, vai me deixar amarrotada.
— Se eu te soltar, promete que não vai lá xingar o desprovido de
vergonha na cara?
— Mas ele merece.
— Eu sei, mas você sabe como as coisas funcionam por aqui. — Ela me
encara séria e sou obrigada a concordar.
A última funcionária que reclamou da conduta dos passageiros foi
mandada embora e a gente não pode sequer pensar em ser demitida.
Ainda faltam alguns anos de parcelas do empréstimo que pegamos com
o banco para comprar nosso pequeno apartamento. Isso que dá duas garotas
que mal sabiam como assinar um cheque, negociarem com um gerente
sacana. Eu, no auge dos meus vinte e dois anos e com um juízo de dez,
aceitei a primeira proposta que nos fizeram. Cá estamos nós, cinco anos
depois, ainda atoladas em dívidas.
Olhando pelo lado bom, temos um apartamento. Ele pode ser apertado,
mal localizado, ter sérios problemas de infiltração e vizinhos mal-
humorados, mas é o lugar onde Manu e eu encontramos paz.
Esse lugar me deu a chance de ficar longe das lamentações de mamãe.
Não me entenda errado, eu a amo, devo tudo a essa mulher, mas seu
vitimismo constante desde a morte do meu pai, tornou minha vida mais
melancólica do que poderia suportar.
Manuela me entrega um copo de água para me acalmar e viro tudo na
boca de uma só vez. Meus olhos só se arregalam quando percebo tarde
demais que não era água. A vodka desce rasgando e finjo dignidade quando
os passageiros passam por mim.
Tusso disfarçadamente.
— Você podia ter me avisado — digo rouca.
— De nada — ela pisca, jogando algo na própria boca. Se a taurina não
tiver mastigando, então pode mudar de signo.
— Vai fazer hora extra na festa de abertura? — mudo de assunto
massageando minha garganta.
— Vou, a gente precisa de dinheiro para trocar o forro do apê.
— É, eu vou também. Não é tão ruim limpar algumas mesas e servir
petiscos.
— O ruim é lidar com os bêbados — ela ri ironicamente. — Alguém
sempre queima a largada e passa mal no primeiro dia.
— Pelo menos teremos fofocas fresquinhas.
— Por isso eu te amo, você sempre vê o lado positivo.
Dou de ombros.
Eu tenho um lema: não existe algo tão ruim, que não haja espaço para
uma coisa boa. A escuridão só existe porque em algum lugar há luz.
— Você me ama porque só eu te aturo, Manuela. — Envolvo seus
ombros.
— Nunca neguei minha insuportabilidade.
— Acho que essa palavra não existe.
— Eu não sigo as regras do Aurélio, Cheetos.
— Vamos nos trocar para o trabalho antes que eu te faça engolir um
saco desse salgadinho fedorento.
— Que divertido — ironiza. — Hora de vestir a roupa preta e branca e
parecer com um pinguim recém-chegado do ártico.
— É isso que paga nossas contas — desdenho. — Quando eu te mandei
vender foto do pé, você recusou.
Manuela sai reclamando e se arrependendo de não ter vendido até a
virgindade por um bom preço e eu finjo que escuto todas as suas
maluquices. Virgindade… só se for da orelha.
Nossa realidade da noite vai se resumir a entregar bebidas, isso sim.
Qualquer pessoa na faixa dos vinte aos trinta anos está fazendo o que
pode para sobreviver. É por isso que o onlyfans está lotado.
Ah, se eu tivesse um pé bonito...
— Dessa vez tem muitas pessoas jovens. — Manuela comenta quando
nos encontramos na cozinha do bar. A festa mal começou e já estamos
suando feito jogadoras de futebol com esse entra e sai.
— É bom que as pessoas da nossa idade estejam se abrindo para um
sexo além do papai e mamãe de dois minutos. — Coloco os copos usados
na pia, beijando a cabeça da tia Fátima. Ela é uma senhora de sessenta e
cinco anos que já trabalhava no navio quando comecei. Na verdade, ela
esteve em navios sua vida toda, seu falecido marido era marinheiro.
— Pra você ter ideia, minha agenda da semana já foi toda preenchida —
Manu conta animada. — Só quero ver quantos homens vão permanecer nas
minhas aulas até o fim.
Como instrutora de Yoga, Manuela tinha que ser alguém calma, que tem
o objetivo de relaxar as outras pessoas, mas essa endemoniada adora ver o
sofrimento alheio durante seus alongamentos. Eu já fui sua aluna, sei o
quanto ela pode ser má. Minhas pobres perninhas já foram castigadas para
chegar a esse nível de flexibilidade.
Pelo menos eu posso dizer que ninguém faz a “campeã olímpica[8]”
como eu.
— Sorte sua que nas suas aulas eles não acham que vão fazer sexo na
frente de todo mundo — Já tive uma quota considerável de homens
arrancando as roupas nas minhas sessões em grupo. — Tente explicar que
o tantra é muito mais conexão e menos penetração e veja como a cabeça
deles explode.
— Admiro sua paciência, Cheetos.
— Para de me chamar assim! — pego água da pia que tia Fátima está
lavando os pratos e jogo em Manuela, que sai correndo pela cozinha sem
precisar se abaixar para esquivar das panelas penduradas no teto.
— Saiam as duas da minha cozinha, vocês são barulhentas demais!
A velhinha ameaça jogar água em nós e saímos apressadas. Eu não fiz
escova no meu cabelo à toa; meu braço está quase caindo. A água salgada tá
deixando o pobre tão frisado, que eu poderia muito bem passar por alguém
que levou um choque.
— Não se esqueça da nossa aposta... — Manu joga o quadril contra
mim, atingindo minha coxa. Nanica.
— Não me esqueci, Mônica.
— Eu me pareço com a Magali!
— Com síndrome de Mônica.
— Como é?
— A fome é da queridíssima e gentil Magali, mas o temperamento e
personalidade é da valentona dentuça.
— Vai procurar um pau pra subir, Cheetos!
— Nada de pau. Eu vou ganhar a aposta. — Sopro um beijo.
— Aham, eu acredito…
Ela acha mesmo que vou perder no primeiro dia? Eu preciso de no
mínimo dois para saber quem são os casais não monogâmicos.
 
 
— Eu não sou obrigado a andar perto de você com essa roupa. —
Aponto para a camisa do Corinthians que meu amigo veste orgulhosamente.
— Estamos indo para uma festa!
— Tá falando isso só porque a camisa do seu porco não combina com
tudo como a do meu timão.
A veia da minha testa salta.
— Não use essa palavra de forma pejorativa, o porco é nossa mascote!
— Cruzo os braços. Ele pode falar de mim, mas do Palmeiras já é demais.
— Que seja — JP desdenha. — O fato é que fico um gato de black and
white.
— Devia dizer isso à sua psicóloga na próxima sessão, ela com certeza
vai te encaminhar para um oftalmologista ou aprofundar no tratamento do
seu narcisismo.
— Não sou narcisista, eu só fico me autoafirmando por causa da minha
baixa autoestima derivada do que sofri na escola... palavras dela. — João
Pedro faz piada, mas eu sei que as coisas são por aí mesmo.
Bato nas costas dele, reconhecendo sua dor. Afinal, pra quem
compartilhou tantas surras, o que é dividir um trauma? Quase nada.
— Não vou te convencer a trocar essa blusa mesmo, né?
— Não. — Ele me avalia dos pés à cabeça. — E agradeça por eu não te
obrigar a trocar a sua.
Abro a boca, ofendido.
— Isso aqui seria meu smoking do casamento, seu otário!
E eu aqui com pena dele...
— Eu não acredito que você trouxe a roupa que ia se casar — JP
explode em uma gargalhada, batendo palmas. Espero que nossos vizinhos
de cabine saibam que são palmas mesmo e não ele brincando de Christian
Grey comigo.
— Eu paguei caro para o alfaiate fazer, não vou jogar fora. — Já não
bastam todos os prejuízos que levei?
— Joca, às vezes ser econômico pode custar bem caro… ou custar a sua
dignidade.
— Você queria o quê?! — Ergo os braços. — Que eu picotasse a roupa
e enviasse os pedaços de presente pra Olívia?
— Se mandasse tinha que ser cortado mesmo, porque senão ela dava de
presente pro seu assistente.
Ergo o dedo do meio. Só não mando ele enfiar na bunda porque é o meu
dedo.
— É apenas um terno! Não vou lembrar dela só porque vesti algo que
estaria estampado no nosso álbum de casamento, no quadro que
colocaríamos na parede da sala, no porta-retrato do meu escritório, na tela
do meu computador...
Quando dou por mim, estou quase chorando.
— Ah, caralho... ligou a torneirinha de novo. — JP me puxa para um
abraço, esfregando meu rosto sem um pingo de delicadeza.
— Você tá bagunçando meu cabelo — fungo, fazendo o catarro voltar
para dentro. Ah, que nojo de mim.
— E você tá sujando minha camisa do Timão, então não reclama — ele
continua me abraçando até que eu me recomponha em um ser humano
descente novamente. — Achei que você já tinha esgotado o estoque de
lágrimas por aquela messalina.
— Estou chorando pelo meu terno, não por ela.
— Vou fingir que acredito pelo bem da sua dignidade, mas se alguém
perguntar por que seu olho tá inchado, diz que foi porque eu bati o pau na
sua cara com muita força.
— Mas eu já falei que não sou o passivo! — grito.
— E eu não falei que fodi sua bunda, você acha que é só assim que
homens transam? Vai estudar, preconceituoso!
— Eu odeio você. — Sigo para a porta, decidido a ir de uma vez para
essa festa para que acabe o quanto antes. — Não sou mais seu amigo!
— Claro que não. — JP gargalha atrás de mim. — É meu querido noivo
passivo.
— Não sou passivo! — falo alto demais, no exato momento que um
casal de dois homens passa por nós. Um deles para de andar e fica na minha
frente. Ele é enorme. Arregalo os olhos.
Acho que vou relembrar os dias de escola e levar uma surra no
corredor.
— Tudo bem ser passivo, mona! — diz com uma voz extremamente
grossa e bate no meu peito. — Dói no começo, mas eu posso te passar umas
dicas depois.
— É... não, eu... Quer dizer... — Pelo amor de Deus, alguém me
enterra... ou me afoga, sei lá. Só quero morrer agora mesmo.
— Claro que vamos querer as dicas. — JP diz sorrindo e me abraça na
lateral.
Meu olho começa a piscar.
Os dois trocam contatos e o casal sai na nossa frente como se não
tivéssemos acabado de falar sobre invadir meu orifício anal.
— Esse cruzeiro foi o seu dinheiro mais bem gasto!
Meu amigo sai rindo e eu só consigo pensar em uma coisa:
Já passei vergonha de graça, mas pagar pra perder a dignidade é a
primeira vez que me ocorre.

Devo confessar, eu estava sendo preconceituoso. Achei que por ser um


cruzeiro erótico, todo mundo começaria a transar em cima da mesa ou a
tocar qualquer desavisado que passasse do lado, mas isso está mais pacato
do que minha festa de despedida de solteiro.
Não aproveitei nada, é claro, mas JP pode contar com riqueza de
detalhes todas as obscenidades que fez naquela noite. Ele me prometeu que
nós iríamos ao barbeiro... eu só não sabia que barbeiro era o nome da boate
que ele alugou.
— Você vai ficar parado aí como um dois de paus? — Ele me empurra
com os ombros, se recostando no balcão de vidro.
A festa começou há pouco mais de meia hora, mas ele já está com
aquele sorriso lerdo de bêbado. Um fato sobre João Pedro: ele pode ser alto,
forte e parecer que aguenta muita coisa, mas álcool não é uma delas. Ele
fica bêbado com uma única cerveja.
Eu queria ser assim, ficaria bem mais barato beber um copo e já
embarcar rumo a Nárnia, mas não consigo me lembrar de já ter ficado
bêbado. Posso tomar uma garrafa de Gin e ainda lembrar como se faz o
jutsu dragão de água do Kakashi[9].
— Eu estou analisando as pessoas, não sei como me comportar nesses
ambientes. — Ajeito a gola da minha camisa. Isso aqui está esquentando
demais, talvez eu devesse ter optado por algo mais fresco.
— Você não precisa analisar o comportamento das pessoas como faz
com seus jogos. Isso aqui é vida real, ninguém vai agir de acordo com
padrões numéricos.
Reviro os olhos.
— Não estou falando de padrões numéricos, mas se você reparar em
cada casal, vai notar coisas em comum. Por exemplo, dá pra perceber os
que já estão acostumados a esse tipo de experiência, como aqueles dois ali...
— Aponto para dois casais que conversam entrosados e íntimos, falando
abertamente sobre suas vidas. — E também aqueles que parecem estar em
algo assim pela primeira vez... estão tensos, olha — Indico o casal que
vimos subir ao navio junto com a gente. A mulher está grudada no braço do
marido e ele envolve a cintura dela possessivamente. É bem provável que
eles não vão participar de nenhuma atividade que envolva ficar com outras
pessoas.
— Você parece entender demais de pessoas pra alguém que não sai da
frente do computador.
— Desenvolver jogos não está ligado só à parte tecnológica e numérica
de softwares, também envolve conhecer o público-alvo e o tipo de
experiência que essas pessoas querem ter. Não adianta termos os melhores
gráficos, se não fizermos o público se interessar por passar para a próxima
fase. É tudo sobre storytelling.
— Se você usar essa mesma lógica para pegar alguém, pode dar certo.
— João Pedro ergue os polegares. — Só não fale dos jogos e muito menos
dos números. Analise, veja o que a garota quer ouvir e... ataque.
— Ataque? — Franzo o cenho.
— É um jeito de falar, não leva tudo ao pé da letra. — Ele bufa
impaciente. — Só chega junto, chama pra dançar, segura na mão, espere
que ela te dê liberdade para avançar e veja se ela quer ficar com você.
— Ah, você quer dizer conquistar?
— Não precisa chegar a tanto, você só quer uma noite de sexo, não um
noivado. Deixe claro que você não quer compromisso, não é legal iludir as
garotas.
— Eu quem deveria estar te falando isso — debocho.
— Eu nunca iludo ninguém... sei bem o quanto isso é ruim. — JP vira o
copo na boca, ficando sério.
Acho que ele nunca vai superar a humilhação daquela garota.
— Você deveria beber mais devagar, assim não vai aguentar metade da
festa. E também deveria comer, eu reparei que fez jejuns muito severos
esses dias.
— Eu paro de beber e começo a comer quando te confundir com o
garçom.
— Como assim? — fico confuso.
— A sua roupa é igual a deles, olha… — Ele indica os garçons
servindo. — Você ia se casar com isso, ainda bem que não deu certo.
— Eu não quis ousar, achei que o habitual branco e preto fosse ser
melhor — me defendo. A verdade é que eu não quis mesmo foi gastar com
algo mais caro.
— Da próxima vez, me deixa escolher sua roupa.
Rio alto.
— Vai sonhando.
E não é como se eu fosse me casar de novo. Acho que minha chance
acabou. Quem vai querer se casar comigo? Nem a minha noiva quis. Depois
dessa história patética, as mulheres vão correr de mim como sempre
fizeram. Ninguém quer um cara abandonado.
João Pedro não fica muito tempo comigo, logo indo atrás de alguma
conquista. Sento nos bancos próximos ao balcão, tamborilando os dedos no
vidro. No vidro sujo e embaçado. Será possível que não passaram um pano
nisso aqui?
— É, senhor... senhor — chamo o barmen, que sacode uma coqueteleira
como se estivesse em uma competição com o liquidificador. — Você
poderia me arrumar um pano?
— Um pano? — Ele me encara esquisito, gritando através da música
alta.
— É, um pano.
O que tem de estranho em pedir um pano?
Eu só quero me ocupar, fazer alguma coisa para me livrar da timidez.
Quando estou em um lugar cheio de pessoas, automaticamente pego meu
celular e finjo estar vendo a coisa mais interessante e intelectual do
universo. O que não é uma opção, já que o desliguei para não ser achado
pela minha mãe.
O homem volta com o pano que pedi e começo a limpar as manchas de
copo do vidro. Se as pessoas me virem limpando o balcão, vão ter certeza
que sou o garçom. Não me importo com isso, é muito melhor ser um cara
trabalhando dignamente, do que um cara abandonado e traído antes do
casamento.
Dói pensar nisso. E não digo só a dor da cabeça. Dói no coração.
Porque no fundo, mesmo que eu não conte a ninguém, acho que preferia
ter me casado e nunca descoberto a traição. Eu poderia ser feliz na
ignorância.
Uma pena que decidi voltar mais cedo para casa naquele dia.
Tudo teria sido diferente…

Manu e eu passamos a noite de mesa em mesa, recolhendo copos,


bebendo escondido dos gerentes, procurando cacos de vidro das taças
quebradas pelos passageiros e ouvindo cantadas horríveis. A pior foi de um
cara de cabelos cacheados, pele pálida, com uma blusa do Corinthians, que
encontrei quando me perdi da minha amiga.
Primeiro ponto para ter achado a cantada ruim: sou vascaína, já era
minha obrigação dar um fora nele. E segundo que “Você acredita em amor
à primeira vista, ou preciso passar mais vezes aqui?” é um tanto
presunçoso demais. Eu gosto dos que chegam com calma, que comem pelas
beiradas, até me fazer de prato principal sem que eu tenha percebido. Tenho
uma queda pelos tímidos e inexperientes... Os tipos oferecidos e assanhados
não fazem parte do meu cardápio.
Esses eu deixo para Manu.
A festa está pela metade quando já não aguento mais meus sapatos
apertando o dedo mindinho. Eu sei que eles acabam com meu pé, mas é que
deixam a minha bunda incrível! Não nasci com carne suficiente na região,
uso os meios que posso para compensar.
Olho em volta para ver se algum gerente está por perto e me jogo em
uma das cadeiras quando noto que todos já foram embora. Afrouxo a
gravata preta, liberando meu lindo pescocinho e abro dois botões da camisa
branca. Deveria ser crime nos obrigar a trabalhar com tanta roupa nesse
calor.
Observo o salão procurando por algum sinal de Manuela, mas ela já deu
um de seus famosos perdidos. Aproveito para me distrair analisando os
casais na pista; alguns com habilidade e outros apenas movendo seus corpos
desengonçadamente. O salão de festas tem uma iluminação mais lúdica do
que elegante, mas sem perder a luxuosidade. Esse navio foi projetado para
que nos sentíssemos poderosas, antes mesmo de sensuais. Afinal, só uma
pessoa com muito poder próprio, consegue expor seus desejos sem
restrições. Tudo grita que podemos. Que conseguimos. Que somos.
Eu gosto de trabalhar aqui; fora o salário baixo e alguns passageiros
sem noção, não tenho vontade de abandonar meu emprego. Vivo em meio a
um ambiente de pessoas com energia explodindo pelas orelhas, animadas
com a viagem, de bom-humor e sem falso moralismo. É quase um sonho de
princesa. Uma princesa safada e despudorada.
Exatamente o meu tipo.
Suspiro, imaginando onde Manu se meteu. Faz mais ou menos uma hora
que ela desapareceu das minhas vistas e estou seriamente preocupada que
ela esteja se atracando com alguém no convés... ou ocupando a cabeça de
um pobre coitado sobre os quadrinhos da Turma da Mônica e teorias da DC.
Quem olha para aquela bonequinha com cara de patricinha, não faz
ideia dos seus gostos peculiares. Deixaria qualquer nerd chocado. A coleção
de quadrinhos dela ocupa até mesmo a minha parte do armário. Quase não
sobra espaço para a minha de vibradores.
— Eu posso limpar sua mesa, senhora? — uma voz grave pergunta duas
mesas atrás de mim, me tirando do mundo das ideias.
Giro o pescoço, encontrando um dos garçons tentando recolher o copo
da mão de uma mulher que está apagada sobre a mesa. Querido, se você
conseguir, eu te dou um prêmio.
— Senhora, eu posso recolher o seu copo? Senhora? — ele a cutuca,
mas não tem resposta. — Senhora?
— Eu já tentei pegar, mas ela não desgruda — aviso antes que o pobre
coitado passe a noite ali.
A mulher se agarrou ao maldito copo como se sua vida dependesse
disso. Dado o fato de o marido dela estar dançando com dois caras na pista,
nem se importando com sua existência, o copo realmente parece uma
companhia melhor.
O homem ergue o pescoço depois de me escutar, procurando minha voz.
Levanto a mão para chamar sua atenção e quando ele finalmente se vira na
minha direção, sou obrigada a erguer as sobrancelhas.
Uau!
Fala sério, que rostinho é esse?
Cabelos castanhos, um pouco grandes demais para o meu gosto, mas
nada que um corte bem-feito não resolva, olhos azuis, nariz grande... gosto
de narizes grandes — geralmente indicam outras partes da anatomia
proporcionais —, maxilar bem-marcado e definido; bochechas cheias e
rosadas... Uma verdadeira mistura de perigo e doçura. Meu número.
Onde essa benção estava escondida? Não lembro dele nas reuniões.
Sorrio, acenando com uma mão. Para minha miséria, as bochechas
adotam o tom vermelho instantaneamente.
Alerta de ponto fraco!
Bochechas vermelhas não indicam inocência, as pessoas confundem.
Bochechas vermelhas indicam pensamentos maliciosos em um corpo sem
coragem de colocá-los em prática.
Bem, eu nunca me importei em ensinar a como executar os
conhecimentos teóricos. Colocar a teoria em prática é exatamente o meu
trabalho. As borboletas no meu clitóris se agitam.
“Não se esqueça da nossa aposta” — A voz de Manuela faz meu sorriso
morrer.
Cacete, pra quê fui apostar isso? Desde quando eu consigo ficar sem
sexo?
O gostoso, quer dizer, o homem, continua me olhando sem esboçar
nenhuma reação, a não ser piscar incessantemente. Ele está flertando ou
tentando enxergar? Não vai falar nada? Nem um oi, tchau, quero te pegar
em cima dessa mesa... ele travou? Eu sei que eu sou bonita, mas não é pra
tanto.
Levanto da mesa e os olhos dele se arregalam. Querido, me deixa nadar
de biquini fio dental nesse mar dos seus olhos...
Pérola Duarte, se recomponha, você está igual ao Corinthiano das
cantadas ruins!
Estendo minha mão quando fico de frente para ele, focando toda a
minha atenção no bigode um pouco maior que o restante da barba. Alguém
me traga uma calcinha nova… bigodinho é sacanagem!
— Oi, senhor bochechas rosadas... — Sorrio lateralmente. Não me
julgue, estou apenas sendo educada. Educadamente sensual, sem nenhuma
segunda intenção... apenas terceiras e quartas. — Meu nome é Pérola, mas
pode me chamar de sua joia.
Ele pigarreia, limpando as mãos nas calças.
— O-oi... — segura minha mão, me cumprimentando com um beijo de
bochecha com bochecha.
Não o deixo se afastar.
— Aqui são dois.
— Ah, é, eu sempre me esqueço. — Ri sem graça, dando o segundo
beijo.
— Seu nome? — continuo sorrindo e isso parece ser como um atiçador
de brasa para suas bochechas.
— João... é... — Ele coça a cabeça. — É João…
— É um nome difícil? — indago.
— Não, eu... — se endireita, posicionamento corretamente os ombros,
parecendo irritado com sua falta de jeito. — É João Guilherme, meu nome é
João Guilherme!
Suspira aliviado, quase agradecido por falar o próprio nome.
— Hummm... João Guilherme — saboreio o nome na língua. Difícil
gemer tudo isso, preciso de um apelido... não que eu vá pra cama com ele,
mas é só para o caso de emergências. — Vou te chamar de Gui.
— Meus amigos me chamam de Joca.
Jogo meu cabelo para o lado, piscando adoravelmente.
— Eu não sou sua amiga... — desço meus olhos por ele, gostando do
que vejo. Manu me daria uma brecha na aposta por hoje? É pecado
desperdiçar tudo isso. — Além disso, prefiro Gui… soa bem melhor, não
acha?
— Eu... eu gosto, quer dizer, gostei, eu...
— Então pronto — o livro do sofrimento de organizar suas palavras. —
É um prazer te conhecer, Gui. — Prolongo a pronúncia das palavras.
— P-prazer? — se engasga.
— Se quiser deixar o prazer pra depois, tudo bem por mim — provoco e
seus queridos olhos azuis faltam pular no meu colo.
— O quê?!
— É uma brincadeira. — Ou não.
— Ah... — Ele encara o chão.
— Gostou do piso? — brinco.
— Quê? — Gui continua olhando o porcelanato.
— Está encarando tanto o chão, gostou do piso?
Seguro a risada. E as pernas. Eu tenho tesão em desajeitados, ok? É
meu mal na terra.
— Eu... não. — Suspira agoniado. — Eu só... eu estou com um pouco
de vergonha agora.
Jura? Nem tinha notado…
— De mim? — acho graça e o pãozinho de mel assente. — Por quê?
— Porque você é bonita demais.
Arqueio a sobrancelha.
— Obrigada..., mas se minha beleza te deixa com vergonha, eu posso
cobrir meu rosto assim, olha. — Escondo meu rosto com as mãos, mas
separo os dedos para conseguir ver sua reação. É simplesmente fascinante
lidar com homens que querem explodir só de ficarem cara a cara com você.
Isso faz um bem danado à autoestima.
Se não acredita em mim, teste. Toda mulher deveria ter o seu tímido.
Gui sobe o olhar para ver o que faço e quem acaba tímida sou eu. Se é
bonito de boca fechada, sorrindo é um pocinho de pecado.
Como dentes podem ser tão atraentes?
— Melhorou? — averiguo.
— Eu sou ridículo, me desculpe. — Ele me pega de surpresa ao segurar
meu pulso e livrar meu rosto das minhas mãos. Não sei se percebe, mas
continua me segurando enquanto fala, prendendo meus braços à lateral do
meu corpo. Que mãos calejadas. — Não sou bom em conversar com
mulheres… ou com qualquer pessoa.
— Eu duvido muito disso... você está indo bem.
Eu estou quase me abanando. Se for melhor, vou me livrar das minhas
roupas bem aqui.
— Verdade? — Gui dá um passo mais perto e engulo a saliva ao sentir o
aroma doce e levemente cítrico do seu perfume. É como inspirar o cheiro de
um favo de mel.
Tímido, gostoso e cheiroso? Universo, você acertou dessa vez.
— Verdade — sussurro já fraca das ideias. Estou sem sexo há duas
semanas, deve ser por isso.
— É a primeira vez que escuto que estou falando bem com mulheres.
— Fico feliz em ser a sua primeira... — provoco só para elevar o tom
rubro das suas maçãs. São uma graça! O quanto eu posso provocar até ele
começar a ter febre?
Eu devo fazer um agradecimento especial ao pessoal do RH por
contratá-lo. A última vez que tivemos um funcionário bonito a bordo, ele
era um babaca completo. Foi meu ex-namorado casado… posso dizer com
propriedade que era um babaca.
É isso que acontece quando sagitarianas resolvem se apegar... o
universo entra em desequilíbrio. Nós fomos feitas para nos apaixonarmos
rápido, mas enjoarmos na mesma velocidade. É tipo aquela vontade absurda
de comer um doce, então você decide fazer um brigadeiro, mas percebe que
só de lamber a colher com resto de leite condensado já saciaria sua vontade.
Troque colher por um pênis e o exemplo fica bem claro.
— Você diz coisas que tem muito duplo sentido, sabia? — Gui abaixa a
cabeça. Ele vai ter torcicolo desse jeito.
— Eu só sou responsável pelo que falo e não pelo que você entende…
— Pisco.
— Então acho que minha mente precisa urgentemente de uma limpeza
pesada — João Guilherme solta uma risada nervosa.
Desço os olhos uma vez mais para meu pulso que ele ainda segura.
Franzo o cenho em dúvida. Ele é lerdo ou sonso? Há uma diferença. Mas
não me importo, estou gostando das suas mãos em mim. Embora elas
poderiam muito bem-estar envolta do meu pescoço ao invés do pulso...
Gui nota para onde estou olhando e me solta rapidamente, surpreso.
Por hora, vou acreditar que ele é lerdo.
Não me decepcione, querido.
Por que eu estava segurando a garota? Ela vai pensar que sou um
pervertido. Mas se eu pedir desculpa, vai me achar um pastel.
Pensa, João Guilherme, usa seu cérebro! Na primeira vez que uma
garota como ela vem falar com você, vai ficar gaguejando e engolindo a
própria língua?
Fecho os olhos e respiro fundo.
Eu namorei por anos, não é possível que não tenha aprendido nada
sobre como agir com o sexo feminino.
Deixe-me recapitular, Olívia não gostava quando eu falava do meu
trabalho, então vou manter o assunto longe dele. Ela também não gostava
quando eu falava dos meus gostos pessoais, então é melhor não falar de
animes ou mangás... com ela eu basicamente ficava calado, ouvia e sorria
quando achava que devia.
A Siri tinha mais personalidade dentro desse relacionamento do que eu.
— Posso saber por que você está com as pálpebras fechadas, mas seus
olhos estão se movendo como se estivesse lendo legendas que passam
rápido demais? — A voz dela me faz abrir os olhos.
Parabéns, João Guilherme, você definitivamente é um esquisitão.
— Estou pensando no que falar, não quero dizer bobagens.
— Por que a gente não se senta? Vai ser mais confortável conversar em
uma das mesas, esses sapatos estão me matando. — Indica seu pé preso
dentro daqueles sapatos com a ponta fina, que eu não faço ideia de como
elas conseguem encaixar os dedos.
— C-claro... claro que sim. — Se possível, meu rosto fica ainda mais
quente. — Desculpe minha indelicadeza, não reparei que você estava de
salto.
Burro, burro, burro!
Como pude deixar passar um detalhe como esse? Minha mãe ficaria
horrorizada com minha falta de cuidado. Mas ela também ficaria
horrorizada se soubesse onde estou, então estou fodido de qualquer forma.
Corro na frente, puxando a cadeira para que Pérola se sente.
Ela observa meu gesto por um tempo, com as sobrancelhas unidas. O
que fiz de errado agora? Será que é muito machista puxar a cadeira? Eu
confesso que estou desatualizado das novas regras. Saco, agora ela deve me
achar um babaca!
Estou prestes a empurrar a cadeira de volta, quando ela se senta.
— Obrigada... — Segura a risada. É... geralmente eu causo risos nas
mulheres, mas isso definitivamente não é algo bom. Seria legal se elas
rissem comigo e não de mim. — Não vai se sentar?
— Ah... vou, claro — Me jogo sem jeito ao lado, tamborilando os dedos
ritmadamente sobre os joelhos. O que eu falo agora? Foi mais fácil quando
falei com Olívia a primeira vez, estávamos no retiro da igreja e eu sabia que
teríamos assunto em comum. Agora em um cruzeiro erótico, vou falar de
quê? Sexo? Só se for pra contar do quanto sou ruim nele.
Mas eu posso contar o quanto o Igor parecia mandar bem.
— Já se decidiu sobre o que falar? — Pérola coloca as mãos sobre as
minhas, interrompendo a dança dos meus dedos. Misericórdia que mão
gelada!
— Você é fria pra caramba, hein! Morreu e esqueceram de te enterrar?
— solto sem pensar, esbugalhando os olhos em seguida. Pérola gargalha. —
Eu acho que vou ali pular no mar, com licença.
Começo a me levantar, mas ela segura a bainha do meu terno, enquanto
coloca a garganta para fora de tanto rir.
Minha vontade é de ir procurar Atlântida, mas para não parecer mais
ridículo, apenas abaixo meu rosto para esconder as bochechas flamejantes.
Não é rosácea, é esquisitice saindo pelos poros!
— Você não é o primeiro cara a dizer que sou fria. — Ergue meu rosto
com a ponta do dedo. — Mas é o primeiro a dizer isso de um jeito fofo e
que não me deixa irritada.
— Eu não devia ter dito isso, me perdoe, é que falei a primeira coisa
que veio na minha cabeça.
— A primeira coisa que veio na sua cabeça quando me viu foi que eu
sou fria?
— Não, isso foi quando você me tocou. Quando eu te olhei, não
consegui pensar em nada porque meu cérebro estava em curto-circuito.
O sorriso bonito se alarga. Não é um sorriso meigo que estou
acostumado a ver, é quase o sorriso safado de JP. Estranho e assustador.
Mas nela é charmoso.
— Não veio nada sobre minha aparência nos seus pensamentos?
— Nada que minha mãe já não tenha me proibido de dizer às mulheres.
— Sua mãe parece ter criado um bom homem.
— Ela tentou. — Encolho os ombros.
— E por quantos anos exatamente ela tentou? — Pérola se recosta
contra a cadeira, cruzando suas pernas. Meus olhos são puxados
magneticamente para elas, mas os obrigo a não descer. Não quero que pense
que sou um tarado.
Geralmente eu não cedo a nenhum instinto do meu corpo,
principalmente quando se tratava de outras mulheres que não fossem minha
noiva, mas é difícil não reparar em Pérola. Ela é aquele tipo de mulher que
não apenas é bonita, como sabe que é. Justamente o tipo que eu sempre
mantive distância, porque tinha certeza das minhas chances nulas.
Mulheres assim não se envolvem com homens como eu. São areia
demais pro meu caminhãozinho… ou melhor, pra minha charrete.
— Vinte e cinco anos — respondo à sua pergunta.
— Hummm... — Seus lábios formam um biquinho, me avaliando. —
Pelo seu jeito eu daria menos, mas pela sua aparência, apostaria um pouco
mais.
— Pareço velho? — Será que ela notou que tenho alguns fios brancos
no cabelo? Eu realmente os detesto, mas parei de arrancar quando JP me
falou que nascem dois no lugar.
— Não, parece apenas maduro — Os olhos dela descem do meu rosto
para o meu corpo e instantaneamente comprimo o abdômen. — Parece um
homem que teve bastante tempo para gastar na academia.
Ainda dá pra notar que malho? Graças à Deus. Olívia não conseguiu
destruir o meu shape depois de me afundar em autopiedade. Ela só me deu
um peso a mais na cabeça, capaz que ajude no equilíbrio dos agachamentos.
— Você meio que tem que ficar forte quando tudo que sai da sua boca é
passível de levar uma surra na escola.
— Espero que tenha conseguido evitar muitas delas.
— Não tanto quanto gostaria. — Na verdade, contando que comecei a
ficar forte depois que saí da escola, eu não evitei nenhuma. — Mas... e
quanto a você? Quantos anos tem?
— Essa é a primeira coisa que sua mãe deveria ter te ensinado a não
perguntar a uma mulher adulta. — Pérola rebate e me dou conta da minha
gafe.
— Eu... me desculpa, não quis ser indelicado, é só que... —
Sinceramente, se pessoas fossem números e feitas de pixels, seriam muito
mais fáceis de lidar.
— Tenho vinte e sete — Pérola revela em meio a um sorriso
provocador. — Eu só queria te torturar um pouquinho, não tenho problemas
com a minha idade.
Vinte e sete? Eu daria uns vinte e três a ela brincando. Talvez pela
aparência sim, mas com certeza por seu jeito. Como Pérola tem vinte e sete
e ainda não é amargurada com a vida?
E espera…
Ela é mais velha?
Agora mesmo que não tenho chance. Não que eu tenha chegado a
cogitar que teria alguma chance antes, mas agora elas se tornaram
negativas. O que uma mulher dessa iria querer com um cara feito eu?
No máximo saber como conectar a impressora ao computador.
— Você está com essa cara porque me achou velha demais, do tipo que
toma mingau de aveia antes de dormir, ou por que pensou que eu fosse bem
mais nova por ser uma grande gostosa? — Ela se inclina para frente com
gestos elegantes, para sussurrar próximo ao meu ouvido. — Uma dica, diga
a segunda opção.
Seu hálito é alcoólico. Do tipo, um sopro, um pouco de fogo e é
incêndio na certa. Mas está misturado com algo como chocolate e
amendoim, o que deixa estranhamente... atraente? Meu tipo agora são
alcoólatras viciadas em glicose?
Contando que seu tipo já foi mulheres com fetiche em assistentes do
noivo, esse até que está bom — Shikamaru debocha.
Por que eu sou zoado até pela minha voz mental, é algo que ainda vou
descobrir...
— É uma terceira opção.
Pérola afasta a boca da minha orelha apenas para poder encarar meus
olhos. Minha Nossa Senhora da Abadia, ela está perto demais. A última
vez que fiquei tão perto assim de outra mulher que não era a Olívia, foi da
minha médica, que precisou me aplicar uma injeção de adrenalina por causa
da minha alergia a uva. E ela chegou tão perto porque eu estava me
debatendo na cadeira pelo medo de agulhas.
Acho que preciso dar um desconto à minha noiva por ter me colocado
um par de chifres. Meu assistente deveria ao menos aguentar uma humilde
agulha. Considerando que o pênis dele é da finura de uma, então ela
realmente tinha motivos para gostar dele. Olívia vivia reclamando do
tamanho do meu.
— Gui! — Pisco assustado, vendo Pérola estalar os dedos na minha
frente.
— Te deixei falando sozinha, não é?
Quando as pessoas não querem ouvir o que você tem a dizer, meio que
se aprende a falar consigo mesmo. O problema é que isso se torna um
hábito difícil de mudar.
— Um pouco — ela segura a risada.
— Desculpa, o que estávamos falando?
— Você disse que tinha uma terceira opção.
— Ah, isso... eu fiquei chocado com a sua idade porque agora não vou
ter chance com você.
Sorrio.
E desfaço o sorriso.
Meu Deus, o que eu acabei de falar?
— Eu... eu não quis dizer isso. — Nego com as mãos e com a cabeça ao
mesmo tempo. A vida deveria ter a opção “apagar mensagem para todos”.
— Então você acha que tem chance? — seus olhos estreitam e algo me
diz que ela está brincando comigo.
— Não, na verdade eu nunca achei que tive, é só que você sendo mais
velha, não ficaria com um cara mais novo.
— Nunca ouviu falar em maria-mucilon?
— O quê? — Franzo o cenho. Mucilon? Isso não é coisa de bebê? —
Devo chamar a polícia?
Pérola explode em uma risada, segurando nas minhas pernas enquanto
inclina o corpo para frente. Seu decote revelado pelos botões abertos da
camisa fica basicamente no meu rosto. Os seios dela são pequenos, bem
diferente dos de Olívia, mas são incrivelmente atraentes. Nos animes e
mangás as mulheres costumam ter essa parte da anatomia muito avantajada,
então nunca pensei que pudesse me sentir atraído por alguma mulher que
não tivesse.
Estava errado. Esses animes também estão errados. Isso é atraente até
demais.
Se recomponha, Joca! Você é um cavalheiro, não o pervertido do João
Pedro!
— Você é só dois anos mais novo que eu e é maior de idade, nenhum
crime aqui — Pérola enxuga os olhos após a risada.
— É... nenhum crime. — Espera... isso quer dizer que... Arregalo os
olhos. — Eu tenho uma chance com você?
— Por que parece tão chocado?
— Porque em dez minutos de conversa eu já fui indiscreto, indelicado e
confuso.
Pérola leva o indicador até meu queixo, erguendo meu rosto. Já é a
segunda vez que faz isso. Mandona.
— Você é tímido.
— Deu pra notar, foi? — ironizo.
— E é engraçado — complementa ela. — É uma mistura muito
perigosa, sabia?
— É? — engulo em seco, porque sua unha começa a desenhar meu
maxilar e os lábios dela são contornados por sua língua. Nossa, a língua
dela é tão rosa. Mas não são todas, João Guilherme? Que tipo de
observação é essa?
— Aham... — sua resposta é arrastada, assim como seu toque que desce
para o meu pescoço. Minha respiração trava na garganta quando sua unha
contorna meu pomo de Adão em movimentos circulares. Isso é… bom? —
E sabe por que é perigosa?
Nego com a cabeça, surpreso demais para conseguir articular palavras
coerentes.
Nenhuma mulher agiu comigo assim até hoje. Eu fui criado em um
ambiente extremamente católico e rigoroso, as meninas não chegavam em
nós, isso sempre nos foi passado como papel do homem. Olívia pegou na
minha mão somente no nosso terceiro encontro e o pai dela estava do lado.
Isso é novo pra mim. E incrivelmente reconfortante, já que tomar
iniciativa não é um atributo que eu domine.
— Porque homens como você, vão nos fazendo rir... nos fazendo rir...
nos fazendo rir... até que estejam entre nossas pernas, mostrando que o tom
rosado das bochechas eram só um prelúdio da cor que deixariam na nossa
pele com as mãos.
Minha. Nossa. Senhora.
Se eu for deixar a pele dela da cor que está minha cara agora, ela vai me
denunciar para a polícia por agressão. Eu acho que estou começando a
adotar o tom púrpura.
Pérola solta uma risadinha baixa e novamente o aroma de álcool
misturado à chocolate me faz querer fechar os olhos e apreciar.
— Fique tranquilo, foi apenas uma explicação. Não estou te convidando
para a minha cama — ela volta a se recostar em sua cadeira. — Ainda.
Engasgo com a saliva.
Merda, a mulher me diz que pode ser que me convide para sua cama e
eu tusso o pulmão fora? Eu deixaria JP dar na minha cara agora.
— Tá tudo bem? — Pérola bate nas minhas costas, com um pouco de
força até demais. Ela quer me desengasgar ou deslocar meus órgãos?
— Tudo... — digo rouco, tentando me recompor. — Eu só... só me
engasguei com a saliva.
— Porque eu disse para você ficar tranquilo que não estava te
convidando para minha cama, ou porque disse “ainda”?
— Os dois?
As sobrancelhas dela se erguem.
— Qual você prefere? A primeira ou segunda opção?
— Acho que preciso beber um pouco para saber… — Rio de puro
desespero.
— Não, você já sabe — rebate com um estalo da língua. — Precisa do
álcool apenas para criar coragem de falar.
— O álcool te dá coragem? — só pode ser isso para ela me dizer essas
coisas e seu rosto não esboçar nenhum sinal de timidez. As pessoas não
costumam falar assim tão abertamente... como se não se importassem com a
opinião alheia.
— Não preciso de álcool para dizer o que tenho vontade. Eu bebo
porque gosto.
— Até parece! — Bufo uma risada.
— Quer a prova? — a voz dela sai divertida.
— O que? Vai virar uma garrafa na boca aqui na minha frente para
provar? — brinco.
— Por aí.
— Eu estava brincando. — Arregalo os olhos. Ela não me parece
alguém que aguentaria muitas doses. Pérola é alta, mas é magrinha, o álcool
subiria para a cabeça dela em pouco tempo.
— Mas eu não. Você duvidou de mim e eu detesto que duvidem da
minha palavra.
— Eu sinto muito... eu...
— Fique tranquilo, Honey... eu gosto de desafios. E gosto que me
incitem, isso torna tudo mais divertido.
Honey? Incitar?
Pisco aturdido, sem saber o que falar. Mas não é preciso, porque tão
logo fala, Pérola vai atrás de uma garrafa no bar e volta com um Velho
Barreiro, o colocando sobre nossa mesa sem qualquer delicadeza. Com ele,
também há dois copos de shot.
Ela dobra seu corpo até ficar com o rosto na altura do meu, seu decote
completamente exposto caso meus olhos ousem se mover para baixo um
centímetro sequer. Minhas calças parecem odiosamente apertadas agora.
Que meu pênis não fique duro, pelo amor de Deus. Se ela vir o tamanho,
vai fugir para o Alaska.
— Você vai descobrir, que é uma insanidade desafiar uma garota de
sagitário. Mas também vai descobrir, que gosta muito de coisas insanas.
É o último aviso que ela dá, antes de abrir a garrafa e encher os dois
copos de shot.
Eu devo beber? Devo continuar falando com ela?
Eu acabei de terminar um relacionamento. Isso é certo?
Suor escorre com a minha dúvida martelando.
Mas talvez uma dose de insanidade seja exatamente o que eu esteja
precisando.
Se ela vier acompanhada de um shot de cachaça, tudo bem. Não é como
se eu já não tivesse levado coisas baratas à boca.
Ex-noivas traíras são uma boa prova disso.
Tratei Olívia como uma joia rara, mas ela se mostrou a bijuteria mais
fajuta de todas. Talvez esteja na hora de lidar com uma joia de verdade.
Pérolas parecem perfeitas para começar.

Viro a sexta dose, sentindo a garganta queimar com o líquido quente.


Uma gota fujona escorre pelo canto dos meus lábios, se alojando entre meus
seios. Não me dou ao trabalho de me secar.
Porque estou ocupada secando o homem na minha frente, que tem se
mostrado um concorrente à altura para beber. A maioria dos caras com
quem saí, se gabavam de serem fortes para bebida, mas bastava três doses
de cachaça para miarem feito gatinhos assustados.
Gui além de beber todas as doses que ofereço, não demonstra sinais de
embriaguez além das bochechas rosadas e um sorriso mais solto.
Que droga, eles tinham que contratar alguém tão irresistível aos meus
padrões? Ele cora, mas tem a mente suja. É tímido, mas duro na queda com
a bebida, como se fosse algum devasso que frequenta baladas todos os dias.
É sério, mas engraçado sem forçar.
Eu já entrei perdendo nessa jogada. Preciso de alguma vantagem.
Apoio o copo com força na mesa de vidro, sem qualquer preocupação
em ser vista por supervisores. A essa altura, devem estar todos mais
bêbados que eu, se atracando em algum canto escuro do convés ou na sala
de máquinas.
Sara com certeza deve estar se divertindo com toda a movimentação.
— Aguenta mais um? — desafio.
— Eu nem mesmo comecei a ficar alegre — Gui sorri de lado, uma
mecha do cabelo caindo sobre o olho.
Não, Honey, você não ficou alegre, ficou safado. O álcool tem efeito
diverso em cada pessoa. Em mim, gera criatividade e disposição. Nele, pela
forma como agora me olha descaradamente, coisa que há meia hora estaria
gaguejando e corando, gera coragem e libido.
Interessante.
Eu aposto que ele ainda conseguiria fazer o “4” se eu o desafiasse. E eu
garanto que ainda conseguiria fazer de quatro caso ele me convidasse.
— Então serve mais uma dose — indico os copos com o queixo, vendo
se está blefando.
— Antes disso... deixa eu... — Gui se inclina sobre mim com o cenho
franzido, deixando minhas costas prensadas contra o encosto da cadeira. O
que ele vai fazer?
Com o polegar, recolhe o líquido de quase todo o percurso que escorreu,
parando acima dos meus seios. Desço os olhos em expectativa e até mesmo
travo a respiração, esperando que ele vá descer mais a mão…, mas não o
faz. João Guilherme não me toca intimamente, apenas chega perto o
bastante para me deixar querendo mais e se afasta, me obrigando a libertar a
respiração em uma lufada de frustração.
Garoto, não faça isso. Não me instigue. Eu disse que amo desafios.
Ele volta para sua cadeira como se não tivesse acabado de me deixar
ofegante.
Inocente. Ele é malditamente inocente.
Ou um grande ator…
Fico bons minutos tentando decifrá-lo, o vendo encarar pela quarta vez
os coletes salva-vidas dispostos na parede ao fundo, como se a qualquer
momento Sara fosse anunciar nosso iminente naufrágio.
Eu fico imaginando como seria o anúncio daquela safada. “Oi, aqui é a
Sara, sua comissária de bordo particular. Quem não liberou a entrada
traseira ainda, se adiante, essa será sua última oportunidade. Nos vemos
no inferno, marujos.”
— Sua primeira vez em um navio? — indago, limpando a garganta.
— É tão óbvio?
— Você não para de olhar os coletes… sabe, não temos icebergs no
Brasil.
Gui gargalha, penteando os cabelos para trás. Ele parece incomodado
com os fios. Eu também, assim me escondem seu rostinho pecaminoso.
— Eu estou realmente nervoso — confessa. — Mas você está bem
tranquila. Trabalha aqui há muito tempo?
— Cinco anos… e você, trabalha com os copos? — indico a mulher
ainda agarrada ao seu.
João Guilherme cora, negando.
— Computadores. Trabalho com computadores.
Hum, área de TI. Geralmente eles não saem muito das zonas de controle
do navio, raramente se juntam a nós. Deve ser por isso que não o vi nas
reuniões de pessoal.
— Bom, fique tranquilo. Suas três semanas no navio serão mais pacatas
do que você gostaria.
— Eu duvido muito disso — bufa sarcasticamente, analisando as
pessoas em volta.
— Puritano? — Arqueio a sobrancelha. Gosto dos tímidos, não dos
tradicionais conservadores.
— Eu diria que estou mais para ignorante a essa situação. Nunca estive
em nada parecido com isso aqui.
— Você se acostuma. — Dou de ombros.
— Mas e você? — ele parece ansioso para mudar de assunto. —
Trabalha com os copos?
— Não, sou massagista tântrica. — Na verdade, sou terapeuta tântrica,
mas ninguém entende quando falo assim.
É agora que eu descubro se ele é mesmo puritano ou não.
Estou cruzando os dedinhos dos pés para que não.
Vamos, Honey, não seja chato.
— Que maravilha, eu estou precisando mesmo disso — diz animado,
enquanto estala a coluna.
— É mesmo? — Estou em choque. Eu não esperava esse entusiasmo.
— É… — Suas sobrancelhas se unem, mas não parece nem um pouco
avesso a minha profissão.
Ponto para você, querido. Vou precisar anotar quantos já ganhou.
— Bom, então você está convidado para uma das minhas sessões. Vou
adorar te receber — viro mais uma dose, escondendo o sorriso. Você não
decepcionou em nada até agora. Se falar que é vascaíno, talvez eu te peça
em casamento.
— Você falou sério sobre gostar do sabor? — Joca inclina o rosto para a
garrafa com uma careta. Solto uma risada. Todos os homens com quem já
saí ficaram chocados com meu gosto peculiar para bebida. Nenhum deles
descobriu a real razão para eu gostar particularmente dessa. Não é como se
eles merecem saber da minha vida...
— Gosto de coisas fortes, amargas e quentes — o observo sob os cílios.
Isso sempre funciona.
Como esperado, a mente dele trabalha como a de um aluno da quinta
série. E sei disso porque o tom de roxo começa a tomar espaço no seu lindo
rostinho. Ponto pra mim.
— Prefiro Gin. — Tosse disfarçando.
— Socialmente bonito para pouco efeito... não me agrada muito —
dispenso.
— Talvez você tenha apenas tomado de uma marca ruim.
— Marca ruim? — gargalho, jogando o pescoço para trás. — Olha, o
Gin mais caro que já tomei custou trinta reais, então marca não é
exatamente algo que eu estava preocupada.
— Pois então faço questão que tome um Gin de boa qualidade comigo.
Nada mais justo depois que também me ofereceu uma bebida.
Ele está me convidando para um encontro? Pelo menos esse ofereceu
uma bebida antes do sexo, é um ótimo avanço. Apesar que eu não recusaria
o sexo primeiro… sendo sincera, eu até insistiria por essa ordem dos
fatores.
Os últimos caras com quem tive um encontro antes da cama, foram tão
insuportáveis, que eu brochei para qualquer atividade sexual. É melhor
mantê-los de boca fechada o quanto puder.
— Temos três semanas inteiras para isso, Honey. É tempo suficiente
para você me fazer gostar de Gin. — Principalmente se derramar em cima
de si próprio e me deixar fazer um body shot.
Balanço a cabeça. Se preserva, Pérola. Se preserva!
O DJ troca de música repentinamente e me ergo da cadeira em um pulo.
É melhor gastar um pouco de energia para diminuir esse fogo no rabo.
— Está fugindo? — João Guilherme me direciona os olhinhos pidões de
cachorro abandonado. Sorrio ferina.
— Eu só fujo quando tenho certeza de que serei perseguida — estendo a
mão. — Como acho que você ainda ficaria sentado me vendo correr, estou
apenas te convidando para dançar.
— Não vai mais beber? — ele parece se assustar com a menção à dança.
Viro meu copo e o dele na boca, o deixando perplexo.
— Satisfeito? — Rio travessa da sua cara de espanto. — Agora vamos
dançar... estamos parecendo dois cornos sentados no bar enchendo a cara.
Seu rosto se contorce em uma careta desgostosa, que logo é disfarçada
com um semblante tímido e preocupado.
— Eu não sou bom dançando essas músicas.
— Não sei se notou, mas já estão todos bêbados o suficiente para
ligarem se você errar um passo. — Minhas palavras não surtem muito
efeito, já que Gui passa nervosamente as mãos por seu uniforme.
— Você não quer tirar esse terno? — Começo a empurrar o tecido dos
seus ombros. — Sabe, não precisa usá-lo agora.
— Mas, e se alguém pegar?
— Essa coisa brega? — desdenho, estalando a língua. — Não se
preocupe, ninguém vai querer.
Ele abre a boca prestes a dizer algo, mas desiste no meio do caminho.
Esse homem tem que parar de ser tão contido. Ou será que sou eu que
preciso criar um filtro entre a boca e o cérebro?
Fica aí o questionamento, universo.
Saio arrastando meu colega de trabalho para a pista, achando graça da
forma como ele se encolhe e enrubesce ao ver alguns casais se esfregando
sem qualquer discrição. No entanto, ainda chocado, ele simplesmente não
desvia os olhos.
Hum… você gosta de observar, Honey? Confesso que não é minha parte
preferida, mas ainda podemos brincar com isso.
Fico às suas costas, o guiando para a parte mais vazia da pista. Sou uns
dois centímetros mais alta que ele, o que não me incomoda nem um pouco.
O que quero dele teria de me abaixar de qualquer forma para alcançar.
Além disso, na horizontal a altura não importa. É tudo questão de encontrar
os ângulos certos. Se não o encontra deitado, então fique de pé. Se não
resolver, fique de ponta cabeça. Simples e fácil.
Apoio as mãos nos ombros largos, aproximando a boca da sua orelha.
— Achou algo interessante? — murmuro, fazendo círculos nos
músculos enrijecidos dos seus ombros. Se há algo que aprendi ao longo da
minha profissão, é que movimentos circulares são um sucesso em qualquer
zona do corpo. Contornando uma língua, um pomo de Adão, um mamilo,
um umbigo... nossa, não deveriam negligenciar essa parte. Tão perto e ao
mesmo tempo tão longe do paraíso... é instigante, agonizante,
transcendental. Sim, umbigos são mágicos!
— Não — Gui disfarça, parando de observar um casal se beijando. Isso
me lembra adolescentes super hormonais vendo uma Playboy pela primeira
vez. Ele não pode ser tão inocente para um homem dessa idade. A menos
que tenha sido criado em uma redoma de proteção contra a putaria do
mundo. — Aqui tá um pouco quente, não é?
Ele abana o rosto, embora eu saiba que esse calor vem de outras partes.
— Claro que está. — Ironizo. — É o Rio de Janeiro.
— É... deve ser por isso que estou quase respirando água ao invés de
beber.
— É melhor do que respirar poluição. — Alfineto de propósito. Esse
sotaque paulista não me engana. E principalmente, esse sotaque do interior.
Ele puxando o “r” é uma delícia à parte.
— São Paulo não é só isso. — Como era de se esperar, defende seu
estado. Típico.
— Tudo bem, não vamos entrar em discussão de qual estado é melhor.
— Até porque o Rio ganharia de lavada. Seria vergonhoso.
Evoque Prata [10]começa a tocar nos alto-falantes e a maioria das
pessoas fica perdida pensando no que fazer com os braços e pernas para
fazer a coreografia. A era dancinhas do TikTok não é tão famosa para a faixa
etária do navio. Não somos velhos, mas não somos a geração Z.
Quem dera fosse. Faltam 3 anos para fazer trinta e ainda tenho medo
de engravidar na adolescência. Bom, quando foi minha vez de ser
adolescente, eu tive que ser adulta. Agora que sou adulta, eu finjo ser
adolescente. Equilíbrio!
— Vem dançar comigo — puxo o tecido da camisa social que ele
mantém fechada até o pescoço, notando que ela já está pregada de suor. Era
só o que me faltava, um homem suado... mais algum fetiche a adicionar,
universo? Eu não estou reclamando, mas está ficando óbvio demais!
Se não fosse ridículo, eu diria que Manuela pagou o pãozinho de mel
aqui para me tentar.
— Eu não sei dançar essas coisas — repete agoniado, mordiscando o
lábio inferior.
Que merda, para de ser fofo antes que eu te jogue na parede mais
próxima.
— É só questão de prática… vamos, eu te ajudo.
— Eu sou mais da teoria. — Cruza os braços emburrado.
— Teoria sem prática é só falatório, Honey. — Bato os pés no chão.
— Por que está me chamando de Honey? — Estreita as grossas
sobrancelhas.
— Porque você é doce como mel.
— Você não sabe que gosto eu tenho. — Um biquinho de birra se forma
na sua expressão.
Meus olhos caem para sua boca, notando uma pintinha embaixo do
lábio inferior. Ah, que cacete… é fofo. Sexy e fofo. Posso morder?
— Mas eu tenho imaginação. Às vezes é o bastante... — estreito os
olhos, inclinando a cabeça para o lado. — Por exemplo, olhe para mim,
qual sabor vem à sua mente?
— Álcool, chocolate e amendoim — diz instantaneamente.
Arqueio a sobrancelha.
— Uau... — Solto uma risada. — Para quem também não sabe meu
gosto, você foi muito específico.
— É que seu hálito tem aroma de álcool, chocolate e amendoim.
Ele é observador e olfativo. Querido, estou te querendo na minha cama
para intuitos didáticos. Pesquisa de campo.
— O álcool você sabe de onde veio, o chocolate e amendoim são dos
M&M’s que eu estava comendo antes — esclareço.
— É assim que você controla a embriaguez? Com doces? — João
Guilherme passa a mão em meu ombro, tirando dali uma mecha de cabelo
que se desprendeu do coque. Só tem um problema, meus ombros são
sensíveis. Não consigo evitar o calafrio. — Está com frio?
Ele chega mais para perto, deslizando as mãos para cima e para baixo
nos meus braços, arrepiando os pelinhos da região. Procuro em seus olhos
qualquer sinal de que sabe exatamente o que está fazendo, mas é tudo tão
automático e apenas cuidadoso, que minha mente quer explodir. Eu deveria
ter menos apreço por coisas que não entendo, porque estou quase sentando
esse cara em um divã e perguntando tudo que quero saber. Eu costumo ler
rapidamente os homens, eles são fáceis demais, mas este aqui... misterioso
em níveis preocupantes para minha curiosidade.
Antes que eu possa responder à pergunta dele, a voz de Sara ressoa pela
primeira vez no navio. Sara... a inteligência artificial que eu aposto o
piercing no meu mamilo que é uma mulher de verdade, que gosta de brincar
com os passageiros.
Os bipes dos passageiros começam a vibrar e acendem as luzes cor-de-
rosa que eu já conheço muito bem. Meu estômago agita com a expectativa.
“Oi, aqui é a Sara, sua comissária de bordo particular. Seus bipes
acenderam em rosa chiclete, e para combinar com esse docinho, dê um
beijo apaixonado em seu parceiro ou parceira para iniciarmos essa
viagem carregados da energia do amor. Ah, e não se esqueça, selinhos
não são beijos de verdade, Marujos. Línguas foram feitas para serem
usadas.”
Ponto para você, Sara. Eu já disse que amo essa querida? Pois eu amo.
João Guilherme fica estático, seu corpo não se movendo nem mesmo
para respirar.
— Nós não somos um casal — começo dizendo e ele dá um passo para
trás.
— É... claro, eu não pensei... quer dizer, não achei que a gente fosse…
— Mas isso não impede que a gente participe, não é? — o interrompo
antes que se precipite. Ele tem consciência do quanto fica sexy
balbuciando? Se mover a língua entre as pernas de uma mulher assim como
fala rápido quando embaraçado, o paraíso chega rápido demais à Terra.
— É? — Seus olhos quase soltam faísca. — A gente pode? Quer dizer...
— Se a gente pode se beijar? — Dou de ombros indiferente, mas o que
queria mesmo era puxar a lapela dessa camisa engomadinha demais até vê-
la toda amarrotada e desalinhada. E de preferência jogada no chão do meu
quarto. — Por que não?
— Porque a gente não se conhece…
Seguro a risada.
— Eu só preciso de uma informação. Você é de que signo?
— Não faço ideia, mas eu nasci dia cinco de janeiro.
Ah, merda.
— Capricorniano, mas vou ignorar essa informação e passar para as
outras que tenho de você — Não podia ser outro signo? Pelo menos não é
de escorpião, Pérola. Veja o lado positivo. — Eu sei que você trabalha com
computadores, tem medo do navio, fica nervoso com mulheres, cora quando
pensa algo malicioso, gosta de observar as pessoas, aguenta bebidas
fortes… olha, é bem mais do que muitas pessoas sabem umas das outras
antes de se casarem. E eu não estou te pedindo em casamento…
— É, tem muita gente não querendo se casar comigo… — ele coça a
nuca e franzo o cenho.
— Como?
— Nada não — pigarreia. — Mas então… beijo, hein?
— Pois é…— Solto uma risada, negando com a cabeça. — Essa Sara…
— Bom, ela mandou, não é? — o tom de voz dele fica mais grave e
seus olhos são atraídos diretamente para meus lábios.
— Claro... entrar na brincadeira... não é legal ser do contra. — Dou um
passo mais perto, seguido de outro e um último para apoiar minhas mãos
em seu peitoral.
Preciso segurar os olhos na órbita para não revirarem. Essa sensação
são pelos no peito? O que eu fiz de bom nessa vida para ganhar isso?
Homens, não tirem seus pelos do peito, eu imploro! Só tirem do saco, ali é
necessário.
— A gente ia parecer estranho se não participasse… você tem razão —
ele respira com dificuldade, mas não move um centímetro sequer para me
beijar. Mesmo que seu peitoral esteja se movendo depressa da respiração
irregular e seus olhos não saiam da minha boca, sei que João Guilherme não
vai tomar nenhuma atitude. Tudo bem, eu faço isso por nós dois.
Espalmo as mãos por seu peito, contraindo os dedos para sentir os vales
e montes, subindo até agarrar o colarinho da camisa e o puxar para mim,
trazendo sua boca de encontro à minha.
Pela surpresa, não apenas os lábios se encostam, como nossos dentes
colidem dolorosamente. João Guilherme permanece de olhos abertos e
arregalados, com os lábios pregados aos meus.
— Lembra do que ela disse? — Converso com nossos lábios se tocando.
— Selinhos não são beijos.
— Então eu posso usar a língua?
Solto uma risada, brincando com a minha em seu lábio inferior.
— Você costuma usar a língua quando beija?
— Depois do terceiro encontro.
— Então finja que estamos nele, Honey.
Seguro as mãos que ele mantém ao lado do próprio corpo e as coloco na
minha cintura. Não preciso fazer mais nada, depois que o levo para o rumo
certo, seus dedos se afundam na pele de imediato.
Um barco não precisa saber o caminho para navegar, precisa apenas de
um capitão que saiba bem como usar uma bússola. Tudo que o barco
precisa é potência. E, puta merda, se isso que estou sentindo sob suas calças
for mesmo real, potência não falta aqui.
— Feche os olhos — sussurro em comando e passo a mão sobre seu
rosto, o fazendo fechar as pálpebras. — Ótimo... você está pronto.
— Estou.
Não é uma pergunta.
E se fosse, não haveria tempo para resposta.
Ele me mostra que tem língua.
E que língua... ele está tentando chegar à minha garganta?
Honey, vá com calma. Eu já fiz endoscopia esse ano!
 
Eu estou beijando.
Estou beijando outra mulher, depois de oito anos provando da mesma
boca.
É diferente. E estressante. E bom. E aterrorizante.
Será que eu beijo bem? Não tenho como saber, só beijei duas mulheres
na vida. A primeira foi no meu primeiro beijo, com 14 anos, nos fundos da
igreja. A segunda foi Olívia. Nunca pensei que fosse passar dessa
quantidade.
Já posso me considerar um pegador?
— Vai mais devagar. — Pérola sussurra contra minha boca, segurando
meu queixo possessivamente. — Eu estou aqui, não vou sair do lugar.
— Assim? — Movo a língua em câmera lenta. Eu nunca sei o que fazer
com ela. Minha mãe não me deixou ver novelas até fazer 16 anos. E eu
tinha vergonha demais de treinar com gelo igual João Pedro fazia.
— Não, agora parece que está com preguiça de me beijar. — Merda, eu
sabia que era ruim. — Me deixa te guiar.
— Mas não é o homem que deve guiar? — me ensinaram errado a vida
toda?
— Estamos no século XXI. Apenas cale a boca e se deixe ser beijado,
querido.
Assinto com a cabeça, esperando que ela faça milagres. É o cúmulo um
homem de vinte e cinco anos não saber beijar direito. Aposto que meu
assistente beijava bem. Quem sabe um dia eu peça dicas a ele…
Pérola não deixa margem para meus pensamentos flutuantes. Ela segura
meu rosto com as duas mãos, me fazendo inclinar um pouco para a direita,
enquanto ela faz o mesmo com o próprio. O que toca primeiro meus lábios
não são os dela, e sim a ponta de sua língua, levemente gelada da brisa que
começa a entrar no salão pelas laterais do navio. Ela contorna o formato da
minha boca, empurrando sua língua contra a abertura. Deixo que ela passe e
me mantenho inerte, deixando-a ditar o caminho. Pérola não procura minha
língua, apenas conduz a sua pelo interior do meu lábio superior, deslizando
devagar pela ponta dos meus dentes, para só então circular a minha, a
convidando para se juntar.
Pai amado, é como um jogador de CS[11] vagueando o mapa para plantar
a bomba, e quando a minha língua se junta a dela, é como ver essa bomba
explodir.
Ela não me deixa tomar a dianteira, apenas enreda minha carne, a
envolvendo como uma dança de salão, onde uma única mão na base da
coluna é capaz de guiar todo o restante do corpo. Eu deveria sentir meu ego
masculino ferido, mas a verdade é que isso está me deixando excitado.
Isso me torna um frangote? Espero que não, porque até que é bom ser
mandado. É melhor do que ser ignorado.
— Eu te guiar não significa que você deve ficar parado — ela belisca
minha bochecha… da bunda. Epa! — Vamos lá, Gui, me mostre que é
obediente…
Misericórdia.
Tomo uma longa inspiração, esperando que a oxigenação no meu
cérebro me dê um bom desempenho. Mantenho o comando com ela, como
se jogasse damas e o movimento de Pérola fosse o direto inverso do meu.
Se sua língua vai para a direita, a minha contorna na outra direção. Se seus
lábios vão para cima, os meus vão para baixo. Caminhos diferentes, mas de
encontro um ao outro. Ela indo, eu vindo.
— Assim? — averiguo meu progresso. Gosto de incentivos verbais, não
funciono na indireta.
— Você está chegando lá…
Abro uma pequena fresta dos olhos, observando os casais em volta. A
maioria já parou de se beijar.
— Somos os únicos beijando — aviso prendendo seu lábio no meu. Ela
geme antes de responder.
— A gente tem tempo bônus pelo treinamento inicial. — Pérola se
agarra ao meu colarinho para não me deixar escapar. Ela acha que eu sou
burro? Que dia na minha vida vou ter novamente uma mulher como ela me
dando uma chance? Eu nem sei se estou de fato acordado.
Isso pode muito bem ser um sonho. Se ela aparecer vestida de Temari,
[12]
vou ter certeza de que é um.
Seguro mais firme na sua cintura quando chupa minha língua como se
ela fosse um pirulito. Ninguém nunca tinha chupado minha língua.
Porra… isso é bonzão.
Acho que estou ficando duro.
Merda, o Goku vai virar super Saiyanjin[13].
— Sabe o negócio de ir devagar? — ela questiona ofegante.
— Sei.
— Esquece.
Pérola morde meu lábio um pouco mais forte e me surpreendo quando a
sensação de dor faz minhas bolas arderem. Ok, isso é novidade. Eu achei
que preferia as coisas mais leves. Será que é pecado? O máximo que já me
confessei para o padre no quesito sexual foi por bater uma punheta
pensando na tia da cantina da igreja. Orei vinte Pai Nosso e trinta Ave
Maria. Se eu disser que gostei de ser machucado, vou ser excomungado.
Sou surpreendido quando ela segura minhas mãos e as abaixa até seu
quadril, quase tocando sua bunda. Tropeço para trás, sem tempo de conferir
se esbarrei em alguém. A próxima coisa que sinto é a parede.
Eu fui jogado como uma lagartixa.
Por uma mulher.
Que eu sequer conheço.
E eu gostei muito disso.
Padre, sinto muito, mas eu me confesso depois.
Pérola envolve meu cabelo nas mãos, o afastando das nossas bocas e
nos impedindo de engolir fios indesejados.
— Segure minha perna — ela instrui.
— Qual delas? — ofego.
— Eu tenho duas, fique à vontade. — A mulher responde rapidamente e
volta para minha boca de forma faminta, enquanto incerto, seguro sua perna
direita e a encaixo em meu quadril.
Péssima ideia. Agora ela vai saber que estou duro. E do tamanho dessa
coisa. Será que operação de fimose diminui o tamanho do pau? Eu deveria
tentar.
— Minha nossa senhora... isso é você? — sussurra surpresa, se
afastando da minha boca.
E lá vamos nós de novo com a saga do pênis desproporcional. Eu estou
começando a ficar complexado.
— É... infel...
— Me lembre de acordar amanhã ao nascer do sol para aplaudir o
Universo.
Pérola gargalha, não só me beijando ainda mais profundamente, como
se esfregando em mim.
Gozar sem nem ter fodido ainda é vergonhoso, Joca. Se controla em
nome de jesus.
Seguro com força a coxa de Pérola, tentando manter a sanidade. Ela não
tem as pernas grossas, são esguias e finas, mas consigo sentir o torneado
dos seus músculos. Ela com certeza se exercita, mas não diria que é
musculação.
Deixo meu pensamento me levar para qualquer canto que não seja eu
gozando nas próprias calças. Faz tempo que eu não dou um alívio ao meu
saco. E ele está quase libertando a raposa de nove caudas[14] de tanta tensão
acumulada.
Quando Pérola começa a ficar expert demais em encontrar os ângulos
corretos enquanto rebola, a viro contra a parede, invertendo nossas
posições. Ela precisa parar antes que as coisas fiquem verdadeiramente
impossíveis de controlar.
— Para, pelo amor de Deus — ofego, encostando minha testa à sua.
Ela ri, descendo as unhas por minhas costas, me obrigando a arqueá-las.
Inferno, eu não sabia que era sensível em tantas partes corpo.
— Isso está ruim? — indaga.
— Não. Está bom demais — minha fala não passa de uma lamúria.
— E por que quer parar?
— Porque não quero que pense que estou apenas querendo te levar para
a cama.
— Por que não? — Sorri lateralmente. — É exatamente o que eu espero
que faça…
Meus olhos saltam.
— Você quer que eu te leve para a cama? Mas… a gente só se conhece
há poucas horas.
— Vamos transar, não nos casar… — Seus olhos descem para o meu
pau. Minhas bochechas esquentam. — E o que eu vi, já é o bastante para
querer você embaixo de mim.
— Embaixo? — Franzo o cenho. — Não quer dizer em cima?
Pérola umedece os lábios, os aproximando da minha orelha, onde ela
brinca com a língua sobre a cartilagem. Ui, que cosquinha gostosa…
— Eu gosto de montar, Honey. Estar por baixo não faz parte da minha
cartilha.
Engulo a saliva que se acumula e apoio uma mão na parede em frente
para me segurar.
— Eu… eu não sei o que dizer, eu…
— Então não diga, só obedeça. — Pérola se afasta, me oferecendo sua
mão. Eu a seguro por instinto e ela entrelaça nossos dedos, com a ponta de
um deles acariciando minha palma, enviando uma mensagem subliminar
para meu cérebro.
— Para onde estamos indo? — Solto uma risada quando Pérola me
puxa para a saída do salão. Minha vontade é de gargalhar. Não sei se pelas
doses de bebida, se pela adrenalina, ou se simplesmente por estar me
divertindo depois de dias afundado em lamentações.
— Não sei, só quero achar um lugar a sós. Você se importa? — Seu
rosto gira na minha direção com um sorriso cheio de dentes, seu cabelo
caindo do coque agora desfeito, sendo jogado pela brisa gelada, e um olhar
travesso que me hipnotiza.
Minha nossa, que mulher linda.
Pérola pode ser mais velha que eu, mas é como estar com uma
adolescente descobrindo o quanto a vida é divertida. Nunca fui esse
adolescente, mas imagino que a sensação seja exatamente essa que estou
sentindo agora.
— Ainda vai me beijar? — pergunto antes que a vergonha me impeça.
— Vou fazer mais que isso — seu olhar de garota inconsequente faz
meu coração acelerar.
— Então não me importo. Apenas me leve.
Pérola não espera mais nada, nos guiando para um caminho que não
conheço. E que não me incomodo em saber. Porra, não me importo.
Apenas sigo o canto da sereia.
Talvez agora eu entenda os marinheiros. Eles podem até se afogar, mas
a viagem até as profundezas vale a pena pela sensação de viver
perigosamente por breves instantes.

Tateio a parede atrás de mim, tentando encontrar a porta da minha


cabine. Eu poderia interromper o beijo e fazer isso de forma rápida, mas o
Gui finalmente pegou o ritmo do beijo, não quero parar e ter que começar
tudo de novo.
Só a caminho daqui, ele quase enfiou a língua na minha garganta três
vezes. Acho que foi o pior beijo da minha vida, mas o cara com a maior
disposição em melhorar que encontrei em anos. O entusiasmo dele é
excitante. Mesmo que pareça um tatu procurando formigas na minha boca.
Finalmente acho a maçaneta e nos coloco para dentro do quarto,
fechando a porta com o pé. A luz está apagada, então Manuela com certeza
não está aqui. Seu medo a impede de ficar em um quarto escuro sozinha.
Começo a desfazer os botões da camisa de João Guilherme, usando um
bom estoque da minha paciência para não estourar a costura de todos de
uma só vez. Geralmente eu gosto de cozinhar as coisas, levar lentamente,
mas minha amiga não vai demorar a chegar. E eu preciso descobrir se o que
sinto sob as calças dele de fato é real.
Já transei com caras bem-dotados, mas isso está além de todos eles.
Eu sei que a maioria das pessoas diz que tamanho não importa, e bom…
realmente o que conta é o trabalho feito, mas isso não quer dizer que
tamanho não seja documento.
É documento sim!
Tente esfumar o blush nas bochechas com um pincel de olhos… vai dar
certo, mas você vai levar muito mais tempo para obter um resultado
gratificante. É questão de lógica.
Desfaço o último botão, tirando a camisa de dentro das calças sociais.
Muito engomadinho, Honey. Já não te disseram que é egoísta esconder
tesouros só para você?
Quando estou prestes a empurrar o tecido pelos ombros dele, Gui segura
minhas mãos, separando os lábios dos meus.
— Você tem certeza disso? Não quero que se sinta pressionada, quer
dizer… se quiser parar agora, eu…
Sorrio lateralmente, lambendo seu lábio para o interromper. Os olhos
azuis saltam praticamente nas minhas mãos.
— É muito atencioso da sua parte perguntar, mas quando sou eu que
estou tentando arrancar a sua roupa, esse questionamento fica por minha
parte. — O observo com atenção, tentando entender o que se passa na sua
mente. — Você tem certeza que quer isso? Nós podemos parar agora.
Ele tosse uma risada, corando.
— Eu seria o primeiro homem a dizer isso a você.
— De fato… — concordo. — Mas ser diferente dos homens com quem
já me envolvi não é lá uma coisa muito ruim.
Ele pensa por alguns segundos, suspirando ao final.
— Eu não quero parar.
— Mas? — prevejo uma contradição.
— Mas… eu não sei se devo continuar.
— Por quê? — estreito os olhos.
— Eu nunca fiz isso.
Pisco.
— Sexo? — quase grito.
— Não! — Nega com as mãos no ar. — Entendo que possa ter pensado
isso, mas eu não sou virgem. Só nunca fiz sexo no primeiro encontro.
— Isso não é um encontro, então tudo bem. — Dou de ombros.
— Você faz as coisas parecerem tão fáceis… — João Guilherme me
avalia como se buscasse respostas às suas perguntas internas.
— E é. — Desdenho. — Eu não complico nada na minha vida. Se eu
quero e a lei não impede, então eu faço.
— Deve ser bom ter essa liberdade — seu olhar desfocado me impele a
pensar que sua mente está cheia de pensamentos demais.
— O que te prende? — o faço me encarar, puxando seu rosto para mim.
Foca em mim, Honey.
— O mundo.
Arqueio a sobrancelha. Muito vago.
— O mundo é grande demais para ser uma prisão, Honey. — Nego com
a cabeça, penteado seu cabelo para longe do seu rosto. — O que nos prende
de verdade é a nossa forma de o enxergar. Se pensar que ele é infinito e
abundante, então o será. Mas se pensar no mundo como uma lista de regras
e dogmas, então ele fica do tamanho de um globo de neve.
— Eu não conheço muito do mundo para ter uma visão ampla.
— E é exatamente por isso que deveria vê-lo como infinito. — Respiro
fundo, me sentando na cama e o puxando para se acomodar junto comigo.
Seguro suas mãos antes de começar a falar. — Nós pensamos no oceano
como algo gigantesco, porque até mesmo hoje, não o conhecemos por
completo. O fato de não conhecermos algo a fundo, só o torna ainda maior.
A certeza é a única coisa capaz de limitar nossa visão. Se conhece e sabe
tudo, então não há mais nada a ver.
As grossas sobrancelhas se comprimem à minha fala. Que foi? Pérola
também é cultura, baby.
— Eu nunca tinha pensado assim.
— A maioria das pessoas não pensa. — Rio. — Mas deveriam.
— Sua forma de ver a vida é bonita, Calypso.
— Calypso?! — Ih, gente… sei cantar não. — Por acaso espera que eu
comece a dançar cavalo manco? Porque vou te avisando, se for um fetiche
seu, eu não sei jogar os cabelos sem minha pressão cair.
— Não! Não é… — Gui gargalha alto e o som vai parar no meio das
minhas pernas. Que risada afrodisíaca, garoto! — É… ai, calma — ele se
vira para rir de mim à vontade e espero pacientemente devolver o palhacito
que engoliu.
— Fico feliz em saber que te divirto — começo eu mesma a querer rir.
— Desculpe, é só que realmente eu não esperava que você fosse levar
para esse lado — Joca enxuga os olhos, se recompondo. — A Calypso a
qual me referi, é da mitologia grega. Alguns acreditam que ela era uma
sereia. Por isso te chamei assim… você parece uma sereia.
— Escamas e cheiro de peixe? — provoco, mesmo sentindo um arrepio
com essa comparação. A tatuagem na minha pele parece esquentar.
— Bela e hipnotizante.
Engulo a saliva. Ponto para você, Honey.
— Então posso presumir que você se deixaria ser enganado por mim e
pularia do barco em direção ao fundo do oceano? — Fico sobre os joelhos
no colchão, apenas para engatinhar e me encaixar no colo de João
Guilherme, uma perna de cada lado do seu quadril. Ele me recebe com as
mãos na minha cintura e um olhar pesado na direção da minha boca.
Umedeço os lábios, sentindo falta do sabor adocicados dos seus.
— Eu não me deixaria ser enganado — ele sussurra suavemente,
aproximando a boca da minha.
— Não? — o canto dos meus lábios sobe desafiador.
— Não. Eu pularia de bom grado e consciente.
Fecho a mão sobre seu ombro, meus músculos internos se contraindo
duramente.
— Posso considerar esse oceano como uma metáfora e entender minha
cama como um?
Suas bochechas coram, mas suas mãos descem para meu quadril. Meus
batimentos cardíacos aceleram.
— Se entender que quero dormir com você essa noite, então sim.
Prendo o sorriso entre os dentes.
— Tem certeza que quer dormir? — provoco, apenas para elevar o tom
de suas bochechas. — Eu pensei em coisas mais divertidas.
— Você entendeu o que quis dizer… — seu rosto se curva
envergonhado e prendo meus dedos nos cabelos da sua nuca, aproximando
a boca de sua orelha.
— Entendi que quer me ter te montando… subindo e descendo, lento e
fundo… acertei?
Sinto seu peitoral inflar contra mim e seu rosto ergue ao meu chocado e
sedento ao mesmo tempo.
Vou considerar isso como um sim.
— Me levanta — ordeno, encarando seus olhos seriamente.
A partir daqui, a brincadeira se encerra, Honey.
Vamos jogar como gente grande.
João Guilherme hesita, mas se levanta da cama comigo encaixada em
seu quadril. Suas mãos apoiam minhas coxas e o toque possessivo arrepia
minha pele.
— Se livre das suas calças — comando.
Ele franze o cenho.
— Se eu te soltar, você vai cair.
Solto uma risada baixa e irônica.
— Vai ser preciso muito mais do que a gravidade para que eu te solte,
Honey. — Para comprovar, estreito o aperto das minhas pernas ao seu redor.
— Faça o que mandei. Agora.
Seus olhos saltam brevemente, mas a mão que estava em mim, logo
passa a trabalhar desajeitadamente no zíper da sua calça.
Obediente… eu gosto.
Escuto o baque seco do tecido no chão e sorrio satisfeita, acariciando o
couro cabeludo de João Guilherme com as unhas. Ele ronrona como um
gatinho manhoso.
— O que faço agora? — sua pergunta é exitosa, mas interessada.
— Ainda está de boxer…
Ele nega com a cabeça.
— Melhor apagar a luz primeiro.
— Por quê?
— Se você vir o tamanho, vai desistir.
— Minha mãe criou uma guerreira, não uma covarde. — Pisco.
— Parece maior do que é de fato, ok? — ele parece agoniado.
Seguro a risada. Não me faça rir agora, cacete!
— Espero sinceramente que seja do tamanho que parece. Mas se te
deixa mais calmo… — desligo a luz do quarto, restando apenas a escassa
iluminação que entra pela janela.
Ele engole a seco, se livrando da peça, restando apenas a camisa presa
em seus ombros. Tão logo a boxer toca o chão, sinto o impacto da sua
glande contra minha bunda. É preciso controle para que meus olhos não se
esbugalhem…
Gente, será que cabe?
Bom, é aquele ditado: com gel e jeito, não existe buraco estreito.
Limpo a garganta, disfarçando o choque momentâneo.
— Vai correr? — ele pergunta quase conformado.
— Pensei na possibilidade, mas vai saber quando terei a chance de
provar algo assim de novo… — Jogo os ombros. — É uma oportunidade
única na vida.
— Você é doida? — pergunta divertido.
— Não pouco a ponto de ser chata e nem muito a ponto de precisar de
camisa de força. Acha que aguenta?
— Se você aguentar, eu aguento.
— Fechado.
Solto as pernas de seu quadril de repente, me aproveitando da sua
letargia para o empurrar sobre minha cama. Gui cai quicando no colchão e
não me demoro a me juntar, posicionando-me sobre suas pernas, face a face
com a ereção que me faz engolir a saliva pela segunda vez.
Querido, que pau de respeito.
Umedeço os lábios, o analisando. Sem pelos. Rosado. E o mais
importante: cheio de veias saltadas.
Se houvesse um concurso de pênis, esse ganharia sem esforço. E se ele
não brochasse, eu diria: que lindinho.
Foco, Pérola.
— Eu queria ter tempo de brincar com ele, mas nós seremos
interrompidos em breve — converso com João Guilherme, mas minha
atenção ainda está na glande avermelhada e brilhante. A saliva se acumula
na minha boca.
Eu sei que algumas mulheres fazem boquete única e exclusivamente
para agradar os parceiros, mas eu poderia passar o dia com o pau na boca.
Ok, o dia é exagero, mas eu realmente gosto de ter minha boca bem
preenchida. E João Guilherme a preencheria tanto.
Choramingo, forçando meus olhos a se erguerem para o rosto dele.
Se eu achava que estava sofrendo, então posso dizer que Gui está sendo
torturado. Sua respiração presa na garganta, mãos agarrando o edredom e
lábio entre os dentes me dizem que seu controle está por um fio. Um fio
frágil e prestes a arrebentar.
— Tudo bem? — sorrio viperina, descendo meu rosto de propósito para
mais perto, até que a glande toque suavemente meu lábio inferior. João
Guilherme arqueja.
— Não — a voz estrangulada faz meu clitóris arder.
Merda, eu queria muito ter tempo de aproveitar a brincadeira por
completo, mas isso vai ter que ser rápido. Pensando em quanto tempo
Manuela levará para entrar nesse quarto, me apresso em subir o restante do
caminho em seu corpo; mas não sem antes deixar um singelo selinho na
glande inchada.
Cheiroso. Ele é cheiroso.
Quando nossos rostos estão frente a frente, me abaixo para beijar seus
lábios. Ele suspira, soltando a respiração até então presa, se apossando da
minha cintura.
A posição faz com que seu membro se recoste contra minha bunda e me
movo até que a ponta resvale contra minha entrada coberta pela roupa.
— Embaixo do travesseiro — sussurro, passando os beijos para seu
pescoço. Ele está suado, mas mesmo sua pele adotando um sabor salgado, o
aroma cítrico entorpece.
— O que tem embaixo do travesseiro?
— Camisinha — murmuro de qualquer jeito, voltando ao meu trabalho.
Meus dentes não se aguentam sem arranhar a pele tenra.
— Você guarda camisinha embaixo do travesseiro?
— Você não? — É bem mais prático de que uma gaveta.
João Guilherme não responde minha pergunta, mas acata minha ordem,
pegando o plástico e o rasgando nos dentes. Chego o quadril para frente, o
deixando desenrolar o látex por sua extensão. Espero que caiba.
— Pronto… — diz baixinho e quase incerto. Ergo o rosto do seu
pescoço para o analisar. Tímido. Ele está com vergonha, mas não consigo
imaginar do quê. Esse deveria ser o último homem a se sentir constrangido
da sua nudez. Se eu tivesse um pau desse, nem falaria com qualquer pessoa.
— Você ainda está com vergonha de mim? — Sento sobre os gominhos
da sua barriga, evitando seu amiguinho encapuzado. Preciso de João
Guilherme falando e ele não organiza palavras nem comigo segurando sua
mão, que dirá sentando sobre seu pau.
— Eu tô pelado e você tá vestida, é meio difícil não ficar tímido.
— Isso é fácil de resolver.
— É? Como?
— Eu fico nua, ora. — Desfaço os botões da camisa e solto o gancho do
sutiã, o deixando cair sobre o peitoral de Gui. Os olhos dele saltam para
meus seios como ímã. Bom, contando que eu tenho um brinquinho no
direito, é bem lógico.
— Você… quer dizer, você tem… meu Deus, você tem um…
— Um piercing no mamilo — solto uma risada. — Nunca tinha visto
um?
— Não em uma pessoa que estivesse de frente para mim de verdade. —
Ele encara interessado e quase consigo sentir o cheiro da sua curiosidade.
— Pode tocar.
Seus olhos se erguem para meu rosto assustados.
— Mesmo?
Reprimo um gemido. Fofinho…
— Eu pretendo sentar em você o máximo que conseguir até alguém nos
interromper, então acredite, você pode tocar.
João Guilherme ergue as mãos indeciso, parando à milímetros de
distância do ponto que se estica em expectativa. Suspiro, segurando seu
pulso e pressionando a mão no meu seio.
— Misericórdia. — A mão dele permanece estática.
— Eu posso tirar a calça ou você vai explodir?
— A calça eu sobrevivo, vou de arrasta pra cima se você tirar a
calcinha.
— Eu chego ela pro ladinho — resolvo o problema com um jogar de
ombros. — Mas você não sabe o que está perdendo.
Você vai perder minha tatuagem, querido. Bom, mas contando que ele
ainda não comentou sobra a sereia na minha costela, sua visão está escassa
nessa escuridão.
Faço contorcionismo para me livrar da calça e cumpro a palavra de
manter a calcinha, apenas a empurrando para a lateral.
— Eu vou sentar em você — encaro o relógio na parede. Temos cinco
minutos até que o turno se encerre e Manuela volte.
— Quanto? — ele finalmente para de admirar meus mamilos.
— Como assim quanto? Você espera que eu conte as sentadas? Virou
olimpíada de matemática?
— Não — Ri sem graça. — Até que parte do… do meu… você sabe…
até que parte vai…
— Se quer saber se vou sentar em tudo isso, a resposta é sim. E que o
universo me ajude.
— Mas vai bater no seu útero — ele arregala os olhos quando me
posiciono por cima e guio seu membro até minha entrada.
— Amém, que assim seja.
Ele não tem tempo hábil de processar minha resposta, porque tão logo
termino de falar, desço por sua ereção sem qualquer senso de cuidado. Eu
sento como alguém que chega do trabalho cansada e se joga no sofá. O
problema é que nesse sofá, a mola solta é de revirar os olhos.
Eu até tento controlar o gritinho, mas ele escapa da minha boca ao me
sentar por completo.
Eu. Nunca. Estive. Tão. Preenchida. Em. Toda. A. Minha. Vida.
Casa comigo?
Penso em verbalizar meu pensamento, mais o gemido sôfrego de João
Guilherme me impede. Apoio as mãos no seu peitoral, franzindo o cenho.
Isso que estou sentindo não é… não é a camisinha cheia, certo?
Quando o gemido dele dura mais tempo do que uma simples sensação
de prazer e começa a se parecer com um orgasmo, abro a boca em choque.
— Não acredito… já?
— Eu posso explicar — Ergue as mãos.
— É bom mesmo alguém explicar o que está acontecendo no meu
quarto! — A voz de Manuela me faz gelar assim que as luzes são acesas.
— Joca? O que você tá fazendo aqui? — Mas é essa segunda voz,
masculina, que me faz pular para o outro lado da cama para me cobrir.
Só esqueço de um pequeno detalhe.
Tirar o pau de dentro antes.
Tudo que escuto depois é o grito lancinante de João Guilherme.
— Você quebrou meu pau!
Ai, merda…
 
Quebraram meu pau.
É isso.
Agora além de grande, ele é torto.
Pra sentar vai ter que ser como um parafuso, rodando.
Eu deveria estar vermelho pelos três pares de olhos assustados sobre
meu pênis envolvido em uma camisinha, mas o calor no meu rosto é
oriundo da pior dor que já senti.
Chifre é o caralho, isso não é nada perto de ter o pau praticamente
partido ao meio.
Pérola tem uma vagina ou um alicate de ferro? Porque no pulo, ao invés
do meu pau sair como era de direito, ficou preso ali dentro até não ter outra
opção. Que aperto dos infernos!
— Meu pau quebrou, quebraram meu pau, partiu em dois, virou pecinha
de quebra-cabeça, dá pra jogar Tetris! — seguro o flagelado e fraturado
membro, rolando na cama.
— Pau não tem osso pra quebrar — Pérola tenta me reconfortar e a
encaro com as veias da testa saltando.
— O meu não tem mesmo, porque você acaba de quebrar!
Ela sorri amarelo, mantendo o cobertor sobre seu corpo.
O que me faz lembrar… o que pela misericórdia JP está fazendo aqui?
— Corinthiano das cantadas ruins? — Pérola indaga depois de um
momento virada para ele.
Espera, eles se conhecem?
— Primeiro, que você disse Corinthiano com um tom muito debochado;
e segundo, que minhas cantadas são ótimas.
— Tão ótimas que não é você nu na minha cama — ela rebate.
— Graças a Deus e para o bem do meu pau — ele gargalha e ela ergue o
dedo do meio.
— Será que alguém pode me explicar o que tá acontecendo aqui? — A
garota baixinha grita e quando foco em seu rosto, meus olhos pulam fora da
cara.
Automaticamente encaro JP, que assente com um suspiro.
Essa é…
É a garota que…
A garota que o envergonhou no ensino médio.
O que ela faz aqui?
— Há uma explicação — Pérola responde a mesma coisa que Olívia
falou para mim quando a peguei na cama com o Igor. Estou esperando essa
explicação até hoje.
— Qual? A que você quebrou o celibato e perdeu a aposta? — A garota
gargalha, entendendo a mão. — Pode me passar meu dinheiro.
Celibato? Aposta? Dinheiro?
Me enfiaram em uma comédia romântica da Sessão da Tarde?
Ou melhor, da Tela Quente. Sessão da tarde não contém cenas com
paus. Principalmente não um quebrado.
— Mas eu nem gozei, não conta! — Pérola se defende, mas me joga aos
leões. Nem Judas...
— Você não fez a garota gozar? — JP põe a mão na cintura e balança a
cabeça.
— Você chegou antes que eu tivesse a chance.
— Ah, querido, me desculpa, mas você já tinha gozado antes de eles
aparecerem. Sejamos justos — Pérola me desmente.
Coloco o indicador sobre os lábios.
— Shhhh, eles não precisam saber desse detalhe.
— Ah, foi mal — ela cobre a boca como se fosse engolir as palavras
que já proferiu. Não adianta, já deu repertório para o JP me azucrinar para o
resto da vida.
E quem pode culpá-lo?
Eu gozei com uma sentada!
O chifre foi menos vergonhoso.
Eu queria poder fingir desmaio, mas não consigo parar de gemer de dor.
— Não tenta escapar, a nossa aposta foi que você não transaria por duas
semanas. Se o pau entrou, já era.
— Ah, entrar com certeza entrou, você já viu o tamanho daquilo? — JP
não ajuda.
— Como você sabe o tamanho? — Pérola gira o pescoço mais rápido do
que a garota do exorcista. — Ele tá cobrindo…
Merda, JP. Inventa qualquer coisa, mas não diz que somos noivos. O
que ela vai pensar de mim? Que sou um traidor com ejaculação precoce? É
demais para a minha surrada dignidade.
— O que importa como ele viu? — Manuela fecha a porta atrás de nós.
— Você deveria ter trancado, se algum supervisor visse você com um
passageiro, ia ser demitida.
— Mas ele trabalha aqui! — Pérola aponta o dedo na minha direção.
— Trabalha? — JP indaga.
— Trabalho? — Repito seguido de um gemido esganiçado. Eu preciso
de analgésico!
— Não trabalha? — Pérola arregala os olhos, que quase caem quando
eu nego com a cabeça. — Mas você estava recolhendo os copos!
— Porque eu estava envergonhado e sem jeito e precisava me ocupar de
alguma forma.
— Mas e a roupa de garçom?
Fecho a cara.
— Era minha roupa de… de festa. — Não é mentira, de certa forma.
— Mas… — ela balbucia, negando com a cabeça. — Mas você disse
que trabalhava com os computadores do navio.
— Não. — Estalo a língua em negativa. — Eu disse que trabalhava com
computadores, não disse nada sobre ser do navio.
— Puta que pariu! — Pérola cobre o rosto com as mãos, se pondo de pé
na cama, ficando apenas de calcinha para todo mundo ver. Agora ela deve
estar me agradecendo por eu ter insistido para manter a peça.
— As tetas, Cheetos! — Manuela joga a camisa dela que estava no chão
e Pérola se cobre, sequer se abalando por ter ficado nua na frente do meu
amigo. Com o corpo que ela tem, eu também não me abalaria.
— Você é um tripulante? — ela grita na minha direção como se eu
tivesse chutado seu cachorrinho.
— Sou, mas por que o grito? — eu quem deveria estar gritando. Isso tá
doendo, alguém me arruma um médico? Ortopedista ou urologista? Eis a
questão.
— Porque todos os tripulantes são comprometidos! — Ela atira um
travesseiro em mim, bem em cima de onde seguro meu fraturado membro.
— Ai, minha nossa senhora, José, reis magos, ovelhas incluídas! —
grito de dor, a lágrima escorrendo.
— Ih, se fodeu — JP gargalha apontando pra mim e só não quebro a sua
cara porque não consigo me levantar.
— Amiga, eu acho melhor dar um gelo pra ele colocar, tá começando a
ficar roxo… — A baixinha encara descaradamente meu pênis. — Porra…
eu também perderia a aposta. Posso até te dar um desconto.
— Cala a boca, Manuela! Não percebe que eu me envolvi de novo com
um cara comprometido?!
JP está certo. Fodeu. E como assim de novo?
— Eita, é mesmo — a amiga faz careta.
É. É mesmo, mesmo.
Abro a boca para explicar que tudo não passa de um mal-entendido, mas
mal consigo puxar o ar e a mão de João Pedro me sufoca. Arregalo os
olhos.
Como ele chegou até mim tão rápido?
— Ele é comprometido comigo! — o ninja desertor piora a situação.
— Como é? — as duas gritam.
Livro minha boca das mãos imundas com um safanão, pronto para
desmentir.
— Elas trabalham aqui, idiota. Se contar a verdade, vamos ser expulsos
— ele cochicha na minha orelha.
— O que vocês estão sussurrando aí? — Pérola se aproxima e seguro
mais protetoramente meu pinto. Ela já o danificou o suficiente.
— Escuta, eu sou o noivo dele — JP estala uma bitoca no meu pescoço
para comprovar e seguro o palavrão. Precisava disso? E precisava ser um
beijo babado?
— Você? — Pérola o encara com desdém.
— Por que não acredita? — JP se ofende.
— Achei que Gui tinha um gosto melhor, só isso — ela provoca com
um sorrisinho.
— Como vocês se conhecem? — eu estou mais confuso que as senhoras
da igreja em Dia das Bruxas.
— Ele me jogou uma cantada barata na festa.
— Faz sentido — assinto. É típico dele.
— Caraca, então os nerds da escola eram mesmo secretamente
apaixonados um pelo outro? — Manuela coloca a mão sobre o coração. —
Para ser sincera, sempre desconfiei.
Ei… espera! Mas eu não sou apaixonado por esse porco!
JP resmunga alguns palavrões para a garota. O que me faz lembrar
que… ele a odeia.
— O que estava fazendo com ela? — interrogo.
— Te garanto que não estava quebrando meu pau como você.
— Eu pisei com o salto no pé dele e pedi pra vir até meu quarto pra eu
fazer um curativo. — Manuela explica entediada.
Comprimo as sobrancelhas, olhando para o pé de João Pedro.
—Credo, isso tá feio — faço uma careta de nojo.
— Seu pau também não tá bonito não, queridão. — Ele estapeia minha
cabeça. Se fôssemos mesmo noivos, eu ia processar ele por agressão.
— Não era melhor levar pra enfermaria? — Pérola questiona a amiga.
— Claro que não! Se eles descobrem que machuquei um passageiro,
sou demitida.
— Você disse que era porque a enfermaria estava fechada! — JP se
irrita.
— É, disse — Manuela ri. — Mas eu menti.
— Você não mudou nada — meu amigo cruza os braços emburrado.
— E eu? — Ergo a mão. — Eu preciso de atendimento médico.
— Você precisa é de vergonha na cara! — Pérola me alfineta. — Por
que não contou que tinha noivo?
Quase me encolho na cama em posição fetal.
— Porque eu esqueci — não é mentira.
— Valeu pela consideração, bombonzinho — JP me acotovela. Manuela
me emprestaria o salto para eu furar o outro pé dele?
— Como você esquece que é noivo, pirulito do cabo torto? — a
baixinha desconfia. Pirulito do cabo torto é sua reputação, cobra. Essa
garota infernizou meio colégio. Até eu tenho pesadelos com ela.
— É que a gente brigou, valentona — João Pedro não perde a chance de
implicar com ela.
— Por que brigaram? — Pérola exige saber.
Mas será possível? Elas querem mais detalhes do que meu computador
quando esqueço uma senha. Agorinha vão perguntar o nome do meu
primeiro cachorro. E a resposta é Mário. Não, não o que te comeu atrás do
armário, o Mário do jogo.
Até meu cachorro já sofreu bullying.
— A gente brigou porque ele não sabe transar — JP responde e eu me
engasgo com a saliva.
— Tudo bem, eu percebi que ele não leva jeito pra coisa, mas isso não é
motivo para briga! — Pérola tenta me defender, mas eu estou quase me
sentindo mais ofendido. — Você não poderia ter ensinado?
— Escuta, nós vamos nos casar e o sexo é péssimo. Então eu propus
esse cruzeiro para que a gente pudesse desenvolver esse lado da relação,
ficar com outras pessoas para se descobrir, mas ele tem a mente fechada
demais. — JP explica e eu começo a planejar seu assassinato. — Quando eu
disse que não poderíamos nos casar sem um sexo bom, ele ficou bravo e
saiu.
Faço careta para a história. Que tipo de coisa se passa na mente desse
pervertido? Quem deixaria de se casar só porque o sexo não combina?
“Sua noiva” — Shikamaru me lembra.
Bom ponto.
— Ou talvez ele não se sinta confortável com você, porque claramente
você não o apoia — ela rebate. — Custava ter paciência?
“Fatality”.
Isso, Pérola! Acaba com ele!
— Escuta, eu já tentei ensinar, mas não sou bom professor. Só sou bom
fazendo — ele pisca e empurro seu corpo discretamente. Para de cantar ela
na minha frente, idiota. Nós somos noivos!
Quer dizer… ah, eu tô confuso.
— Então eu ensino! — ela sorri gentil para mim.
— Ensina? — indago surpreso.
— Considerando, é claro, que o relacionamento de vocês é aberto.
— É aberto! — João Pedro assente com força. — Se tem uma coisa que
nosso relacionamento é, é aberto. Quase arregaçado.
— Já deu pra entender — murmuro entredentes.
— Então pronto, eu te ensino a transar — ela fala como se estivesse
propondo me ensinar a fazer um bolo. Se fosse bolo, eu me sairia bem. Mas
sexo, talvez eu realmente precise de aulas.
Quem goza com uma sentada?
Mas também, em minha defesa, ela só podia tá tentando cavar petróleo
dentro de si usando meu pau. Pérola não tem dó do próprio útero?
— Você vai ensinar ele a troco de quê? — JP desconfia como sempre.
— De dinheiro que não é — ela gargalha. Não deveria ficar ofendida?
Essa mulher tem uma paciência admirável. Eu já teria mandado ele a
merda. — A minha recompensa vai ser você quebrando a cara e vendo o
quanto seu noivo pode ser bom de cama… mas eu não garanto que ele vai
querer continuar com um cara que não o apoia depois disso.
Diabólica.
Ela muda de humor muito rápido.
Estou ficando zonzo.
Talvez seja pela dor.
— Fechado — JP estende a mão para ela. — Você tem três semanas
para fazer dele um prodígio para filmes pornô.
Pérola faz careta.
— Aquilo ali é um lixo mentiroso. Eu vou fazer do Gui um cara bom na
cama de verdade.
— Gente, eu ainda tô aqui! — Ergo a mão só para lembrar da minha
existência.
— Cala a boca, mané. Estou te conseguindo sexo — João Pedro me dá
um peteleco na testa.
Arqueio a sobrancelha. Ele fala como se me estivesse me comprando
pão.
— Mas o que a Pérola ganha se ela ensinar o senhor pinto roxo ali a
transar? — Manuela logo busca uma vantagem.
Oh mulherzinha endiabrada.
— O que ela quiser — JP desafia.
— Você é corajoso ou imprudente? — Pérola o avalia. — Porque
acredite, eu vou conseguir… sou uma excelente professora.
— Se você realizar esse milagre, pode pedir até um navio de presente
— ele sorri malicioso e eu penso em retrucar, mas a fisgada no meu pau me
impede de prosseguir.
Pérola aperta a mão dele.
— Que comece a operação “SOS nerd a bordo”! — Manuela nomeia
com deboche.
— Gente! — Levanto a mão. — Adorei o nome, super criativo, mas…
será que alguém pode me arranjar uma morfina?!
— Ah, meu Deus. — Pérola corre para o meu lado. — Eu tinha
esquecido que te fraturei. O que a gente faz agora?
— Procura no Google — JP e Manuela respondem ao mesmo tempo e
se encaram com faíscas escapando pelos olhos.
Pérola corre pelo quarto procurando algo, quando finalmente ergue um
celular.
— Eu procuro como?
— Como desentortar um pinto? — JP sugere.
— Como engessar um pênis? — Manuela dá uma ideia ainda pior.
— Como tratar uma torção peniana! — grito em busca de me salvar.
— Deixa pra lá, eu pesquisei “o que fazer quando se quebra o pau na
sentada”.
Arregalo os olhos.
— E achou o quê? — pergunto com medo.
Pérola faz uma cara de pena.
— Você vai ter que se abster de usar seu pinto por duas semanas. Isso, é
claro, considerando que você não precise de cirurgia.
— COMO É?! — o grito poderia ter vindo de mim, mas veio de JP. —
Vão ter que cortar o pau dele fora?
Acho que estou perdendo as vistas.
Tá tudo girando.
— Não, fica calmo — Pérola tenta tranquilizar. Calmo como? É o meu
pênis em jogo. E se eu não conseguir nem urinar mais? — A cirurgia só é
necessária em caso de ruptura dos tecidos. Nesse caso eles vão fazer a
regeneração na cirurgia. — Ergue o rosto feliz do celular. — Viu, nada de
amputação.
Ah, claro, que felicidade. Só vão ter que abrir meu pinto pra fazer isso,
mas graças a Deus vão mantê-lo pregado ao meu corpo… ela é doida de tá
calma?!
— E como a gente sabe se rompeu? — Manuela chega perto para
analisar meu pênis. Nunca tantas pessoas o viram na vida.
— Aqui tá dizendo que o impacto vai ter gerado um som de estalo, vai
ter muita dor, hematoma, curvatura anormal e em alguns casos, inchaço nas
bolas.
— Deixa eu ver se estão inchadas — Manuela sai metendo a mão entre
minhas pernas e me encolho para afastar.
— Deixa que eu mesmo olho! — Já estou sendo humilhado o suficiente.
Pelo menos estou depilado…
Curvo o tronco para frente, olhando minhas partes. Se eu não estivesse
com tanta dor, iria querer morrer de vergonha.
— Não estão inchadas — constato aliviado.
— E a curvatura? — Pérola enfia a cara no meio. Ela segura meu pênis
com a ponta dos dedos, se demorando em avaliar. — Quando eu olhei antes
do incidente, ele já era um pouco virado para a esquerda… não parece que
mudou muito. Mas isso seu noivo vai saber mais.
Ela procura uma resposta de JP, que cora pela primeira vez. Alguém me
mata.
— Acho que tá normal sim — ele assente desviando o olhar.
— Mas tá meio inchado, gente… eu sei que pintos podem ser grossos,
mas tá estranho — A baixinha acaba com meu alívio.
— Claro que tá inchado, eu virei o pau do cara, Manuela! — Pérola
acha graça, me dando a certeza de que não bate bem da cabeça. Ela sabe o
que é ficar nervosa ou assustada? Por acaso já se estressou alguma vez na
vida?
— Aqui tá falando que se for caso cirúrgico e não tratar, você pode ficar
com o pau torto ou brocha — JP comenta, olhando de esguelha o celular de
Pérola.
— Pelo amor de Deus, alguém me leva na enfermaria! — Eu quero a
minha mãe.
— Tá, vamos logo antes que ele comece a chorar como um bebezão —
Manuela revira os olhos.
— E por que quando foi meu pé, você não me levou? — JP cruza os
braços, mancando ao me ajudar a levantar da cama.
— Porque era o seu pé, nem precisa tanto dele assim. — Ela desdenha.
— Agora se quiser que eu te machuque mais seriamente para merecer um
atendimento na enfermaria, eu posso providenciar um chute no seu saco.
— Gente, brigar não vai resolver nada — Pérola sorri docemente.
— Tá bom, Buda ambulante, agora me ajuda a levar esse fraturado pra
enfermaria — JP revira os olhos.
— Adorei o apelido — Pérola bate palmas, nem um pouco parecida
com a mulher mandona que me ordenou a arrancar as calças.
É certeza. Ela tem um parafuso a menos.

Em todos esses anos de indústria vital, isso nunca tinha me acontecido.


A frase de Pica-Pau não sai da minha cabeça desde que chegamos na
enfermaria do navio.
— Como isso aconteceu? — A enfermeira encara o membro inchado e
mole de Joca com pesar. Uma coisa que sempre achei feia: pinto mole. É
uma coisa sem vida, sem força, molenga e capenga.
— Ele errou na sentada — aponto para o Corinthiano, mentindo
descaradamente. Ele arregala os olhos.
— Mas eu não sou o passivo!
— Foi isso mesmo, Doutora! — Gui reforça minha mentira com um
sorriso satisfeito. — Foi ele que sentou e sentou errado. Porque ele ama
sentar, é ele que sempre senta, esse homem é viciado em sentar!
— Querido… — Limpo a garganta. — Eu acho que a mulher já
entendeu.
— Eu vou torcer seu pau assim que ele ficar bom, filho da… — JP
resmunga.
— Não xinga sua sogra, bombonzinho — Gui o interrompe, sorrindo
demais para alguém com o pênis torcido.
Eu achei que o passivo fosse ele. Bom, eles sempre podem ser flex.
— Interessa como aconteceu? — Manuela se intromete já sem
paciência.
— Interessa para eu avaliar a gravidade. Nós não temos como realizar
exames complexos de imagem aqui no navio.
— Porra, por que você foi sentar errado? — Manu grita com o
Corinthiano, que começa a ficar vermelho de raiva. Ela lembra que fui eu
que causei a torção, certo? Por culpa dela, diga-se de passagem. Ninguém
mandou me assustar enquanto eu estava no meio do sexo. Tranquei até a
alma, que dirá a…
— Será que a senhora pode me dizer o que fazer? — Gui interrompe
meu pensamento. — Isso aqui tá doendo muito.
— Olha… — a mulher segura o pênis dele, tentando virar de um lado
para o outro, tipo quando a gente bate o dedinho do pé na quina da mesa e
mexe para ver se não quebrou. — Não parece que houve rompimento dos
tecidos, mas isso só posso ter certeza com alguns dias a depender da
situação que isso ficar.
— Então eu vou ficar com o pinto doendo?
— Não, eu vou te dar um anti-inflamatório e um analgésico… no mais,
você vai colocar gelo no local e se abster de relações sexuais por pelo
menos duas semanas.
— Já era as aulas — JP nega com a cabeça, suspirando deprimido. Ele
realmente deve querer fazer a relação ir para frente com o Gui, se está tão
chateado assim.
— Transar não é só penetração e definitivamente um pênis não é
material indispensável — o tranquilizo com tapinhas nas costas. Não gosto
dele, mas gostei do seu noivo o suficiente para ajudar. — Minhas aulas
continuam de pé.
— Você é estranha — ele resmunga.
— Obrigada, Corinthiano das cantadas ruins.
— Pode manter o Corinthiano, mas será que dá para tirar a parte das
cantas ruins?
— Claro que não — sorrio para a revirada de olhos exagerada.
— A título de informação, você torce para que time? — ele cruza os
braços.
— Vasco — digo orgulhosa.
— Só podia…
— O que disse? — estreito os olhos.
— Nada não, linda.
Linda?
Não gosto dele!
— Pronto, agora você já pode ir para sua cabine… — a enfermeira
ajuda Gui a se levantar e fecha a cara ao ficar de frente para JP. — E você,
tenha um pouco mais de cuidado na hora de sentar no seu parceiro.
Principalmente com um pênis desse tamanho!
Abaixo o rosto, segurando a risada.
Eu sei que não deveria rir, até porque a culpa é minha, mas deixar os
outros se foderem no seu lugar é bem divertido. Principalmente quando essa
pessoa torce para o Corinthians.
— Sim senhora — ele murmura engasgado.
— Alguém pode segurar o gelo aqui pra mim um minuto? — Gui
estende o saquinho.
— Ah, não! — Manuela bate os pés para fora da sala. — Carregar gelo
de saco é demais pra mim! Me poupe!
— Mas e o meu pé? — João Pedro aponta para o rasgo que Manuela fez
com o salto.
— Enfia na bunda! — Ela grita do corredor.
— Foi enfiando na bunda que ele começou o problema — a enfermeira
repreende.
— Eu vou me jogar do navio e espero muito que um tubarão me engula
— ele segue caminho para fora nem se dando ao trabalho de ajudar o noivo
avariado.
Péssimo. Ele é péssimo.
— Vem, Gui. Eu te ajudo — Seguro na lateral do seu corpo, o ajudando
a caminhar. Ele parece uma galinha choca, mas vou poupá-lo desse
comentário.
— Como consegue ficar tranquila em situações desesperadoras? — ele
me indaga quando cruzamos o corredor.
Jogo os ombros.
— Se a situação já é por si só desesperadora, por que vou adicionar meu
desespero a equação? Eu só tenho dois caminhos, contribuir com a
desordem ou ser um ponto de equilíbrio. — Estalo um beijo na sua
bochecha. — Prefiro ser a segunda opção.
Gui se vira para mim surpreso com meu ato, corando instantaneamente.
E me presenteando com o primeiro sorriso desde que entortei seu pênis.
Fofinho!
 
— Por favor, João Pedro!
— Eu não vou ficar estudando sua rola não, já me basta a enfermeira ter
me dado um sermão sobre como sentar. — Ele continua arrumando seu
cabelo para irmos tomar café da manhã. Como se eu pudesse pensar em
comer, correndo o risco de precisar de uma cirurgia peniana.
— Eu só preciso que você veja se tem algum hematoma na parte de
baixo… não consigo ver essa região.
— Então faz como qualquer pessoa normal e usa a câmera do celular.
— Pessoa normal? — arqueio a sobrancelha. — Por acaso você fica
admirando seu pau pelo celular?
— Claro, você nunca fez isso? — ele veste uma bermuda laranjada, por
cima da sunga azul. Está querendo combinar com as cores do navio?
— Não, eu nunca fui obcecado com meu pênis a ponto de ficar tirando
foto dele.
— Eu não tiro foto, só dou uma conferida no garoto de vez em quando.
— Por favor… — pisco os olhos esperando que isso amoleça o coração
de pedra do meu amigo, mas ele só joga seu celular em cima de mim.
— Usa aí.
Faço careta.
— Eu não, ele já viu seu pau.
— E daí? Por acaso até o celular tem que ser monogâmico?
— Seria muito bom que fosse.
— Ah, meu saco mesmo! — bate as mãos na lateral do corpo, pegando
minha toalha. Eu penso em perguntar pra quê, mas logo JP enrola o pano na
sua mão para segurar meu pênis.
— Eu sou limpo, seu idiota! — Bato na sua nuca. — Você deveria usar
luvas para pegar no seu.
— Limpo ou sujo, não é minha rola aqui. Não preciso acostumar a
minha mão a segurar um negócio desse tamanho, pra depois ela sentir falta
quando segurar cinco centímetros a menos.
— Oito — corrijo. — São oito centímetros de diferença.
— A gente tem que medir de novo depois disso aqui. Com certeza você
deve ter perdido uns dois centímetros de rola.
— Deus te ouça — digo sonhador.
Meu amigo resmunga algo como “enquanto uns sonham, outros
desprezam”.
— Sem hematomas aqui — ele solta de qualquer jeito e mordo a língua
para não gritar.
— Tá doendo, porra!
— Deixa de ser fresco e levanta logo dessa cama. Eu tenho que curtir o
navio e você tem que tomar algumas aulas sexuais.
— Posso pelo menos tomar café da manhã antes de você falar de sexo?
João Pedro abre a porta, virando-se para trás com um sorriso de lobo.
Eca.
— Você tem sorte de não ter sido o café da manhã, bombonzinho.
Abro a boca para mandá-lo a merda, quando vejo passageiros no
corredor, rindo do que ele falou.
— Você me paga! — gesticulo com a boca.
— Estamos quites agora — o maldito pisca um dos olhos.
— É o que veremos — esfrego uma mão à outra.
Virou minha missão pessoal fazer o JP passar mais vergonha do que eu
nessa viagem.
Se é que é possível com um pau avariado.

O restaurante do navio ainda está particularmente vazio dado o horário


cedo demais, mas o cheiro de manteiga derretida e café fresco toma o
ambiente me dando água na boca. Eu realmente estou com fome; não me
alimento desde ontem.
Para ser sincero, não como nada descente há mais de uma semana.
É bom que eu recupere minha saúde física, porque a mental já estou
desistindo.
— Puta merda, tem doce de leite. Não me deixa comer! — João Pedro
encara a enorme compota no buffet, quase babando em cima do doce.
Só há uma coisa que faz esse rato de academia furar a dieta. E isso é
uma boa colherada de doce de leite. Se esse fosse em barra, com certeza já
estaria em seu estômago.
A mãe de JP é de Sampa como a minha, mas seu pai é do interior de
Minas Gerais, mais especificamente de Montes Claros, e acabou nos
viciando na culinária mineira. Seu Gustavo me estragou para todos os
outros pães de queijo.
— Come, você não vai perder um gomo do abdômen só por uma colher.
— O problema é que eu não vou comer só uma colher. É doce de leite!
— Não fica passando vontade, você sabe que se privar de comer, só vai
te fazer comer mais depois. E aí você vai ficar mais chateado. Eu te
controlo se ver que está exagerando, pode confiar. — Aponto para o doce.
— Come.
— Dá licença! — nós dois somos empurrados da fila e quase caio em
cima da senhora na nossa frente. Quem foi a delicada que…
Suspiro quando vejo Manuela.
— O que foi, Valentona? Já vai começar cedo? — JP cruza os braços e
se esquece até mesmo do doce.
A baixinha joga os cabelos lisos para trás, o encarando de queixo
erguido… muito erguido, porque a mesma proporção que ela tem de
maldade, tem de falta de estatura.
— O doce está aí para ser comido, não olhado, então se vai ficar só
encarando, sai da frente!
Arregalo os olhos. Quanto ódio para essa hora da manhã.
— Não liga não, é que ela fica estressada quando tá com fome — Pérola
se faz aparecer atrás dela e acabo sorrindo assim que vejo seu rosto.
Ao contrário da amiga, ela parece uma criança em dia de aniversário,
com alegria saindo pelos poros.
— Oi, Honey — ela estende os braços e me toma em um abraço,
seguido de dois beijos na bochecha. Seu sorriso só some quando ela se vira
para JP. — Oi, Corinthiano.
— Fala, Vascaína.
— Oi… — penso em dar um beijo na sua bochecha, mas a vergonha
não me deixa. Ela pode me achar atrevido demais.
— Pronto para sua primeira aula? — Ela joga o quadril contra o meu,
sequer se importando que estou prestes a me encolher de tanta vergonha. Eu
nunca vou esquecer que gozei com uma sentada.
— Depende… — comprimo os lábios. — O que você tem em mente?
Pérola solta uma risada, ajeitando o lenço em seu pescoço.
— Eu tenho duas sessões de tantra em grupo agora à tarde, então
aproveite o navio enquanto isso…, mas de noite você será meu aluno.
— Aluno? — engulo em seco. — E o que eu vou aprender
especificamente?
— Anatomia — sua mão aperta meu ombro, descendo para meus
braços. Pelo amor de Deus, que eu não fique excitado com isso, porque se
meu pau endurecer, eu vou gritar de dor.
— Eu posso ir junto? — JP ergue a mão.
— Não! — Manuela responde por mim, levando uma colherada de doce
de leite à boca. Agora mesmo que JP explode.
— Eu não perguntei nada a você.
— Não sou movida a pergunta.
— É movida a quê? Humilhação? — eles ficam cara a cara discutindo,
enquanto Pérola e eu assistimos.
— Não tenho culpa que você se humilha sozinho.
— Sozinho? — ele arregala os olhos.
— Gente, vou ter indigestão com essa briga — Pérola se enfia entre
eles. — Eu nem tive tempo de fazer minha meditação, então não
desalinhem os meus chakras!
— Ela comeu meu doce! — JP faz birra.
— Tem mais aqui, criança! — Pérola enche uma colher do doce,
enfiando na boca dele sem qualquer delicadeza. — Satisfeito?
Ele puxa a colher da boca com uma tosse e os olhos lacrimejando.
— Agora eu sei por que vocês choram quando o pau vai na garganta —
ele sai de perto tossindo a alma fora.
Seguro a risada.
Bem-feito, seu cretino.
— A gente se vê às 18 horas na minha cabine, Honey — Pérola estica o
pescoço na minha direção, oferecendo sua bochecha para ser beijada. Pisco
indeciso. — Vai me dar meus beijos de despedida ou eu vou ter que
implorar?
— Ah… claro. Claro que vou. — Eu umedeço os lábios? Deixo eles
secos? Beijo com a boca ou só encosto a bochecha? Antes que me decida,
Pérola segura minha cabeça e me puxa de encontro ao seu rosto. Estalo o
beijo sentindo o calor subir no meu pescoço e depois repito o gesto em sua
outra bochecha. Até que é bom aqui serem dois beijos.
Ela se afasta sorrindo, aproximando a boca da minha orelha para
sussurrar:
— Tudo bem com seu amigão? — Nós dois olhamos para baixo.
— Uhum…
— Desejo uma boa recuperação.
Abro a boca para agradecer, mas Manuela me interrompe.
— Tchau, Nerd! — Bate na minha nuca e sai arrastando Pérola para fora
do restaurante.
Garota má!

Ah, realmente há algo de especial em aproveitar a proa de um navio. O


espaço está cheio de espreguiçadeiras vazias e o sol da manhã ainda não tão
forte esquenta o que o vento resfria. O parque aquático do navio é composto
por três piscinas; uma aquecida, outra gelada e uma terceira de onde
despencam os malucos por toboágua. Esta coisa gigantesca tem três níveis
de altura e eu posso dizer com certeza que não quero me aventurar nem no
mais baixo.
Escolho a espreguiçadeira mais próxima do parapeito do navio,
apreciando o quebrar de ondas baixas. É bonito ver o barco rasgando
caminho pela água… só não estou ansioso para olhar esse oceano de noite.
Aquela música de filme de tubarão vai vir automaticamente na cabeça.
Deito com cuidado e com as pernas abertas, fazendo careta ao sentir a
fisgada no meio delas. Preciso me lembrar de nunca mais deixar uma
mulher por cima. Isso é um perigo! Elas não têm noção da força da própria
vagina.
— Ah, paz e tranquilidade… é disso que eu realmente preciso — Abro
o volume I de East Blue[15], ansioso por relembrar a formação dos Chapéus
de Palha. Depois de Naruto, One Piece [16]é meu mangá favorito. Eu
demorei a dar uma chance porque ele era hypado demais e eu tinha receio
que fosse só mais uma modinha, mas assim como foi com Naruto, o hype é
merecido.
Estou na parte em que Zoro perde para Mihawk usando apenas uma
faca de cortar pão, quando recebo um banho de algum infeliz excomungado
que pula na piscina próxima a mim. Encaro as páginas do meu livro
molhadas e a veia na minha testa começa a saltar. Viro para trás com a
intenção de repreender a pessoa sem educação, mas quando vejo ser João
Pedro o causador do dilúvio, percebo que é melhor atirar uma
espreguiçadeira em cima.
— Seu filhote de satanás com belzebu, você molhou meu mangá! —
Levanto da cadeira de qualquer jeito, lembrando tarde demais da minha
área erógena afetada.
— Quem tá na praia é pra se molhar — ele boia na água com as mãos
atrás da cabeça.
— Primeiro, que eu não estou na praia. E segundo, que o ditado é: quem
tá na chuva é pra se molhar.
— Fala com a minha mão, fala — ele imita uma boca com a mão e faço
uma nota mental de agradecer Manuela pelo pisão que deu nele. Na
próxima, ela pode pisar na língua pra ver se me irrita menos.
— Não tem nada melhor pra fazer do que me azucrinar?
— Tenho, mas eu gosto de encher seu saco. — JP mergulha e emerge na
borda próximo de mim. — Além disso, eu sou um noivo carinhoso e
atencioso.
Mãos agarram meu tornozelo. Arregalo os olhos.
— Você não é louco de fazer isso! — encaro em pânico meu livro nas
mãos.
— Sim, eu sou.
Sim, ele é.
A única coisa que dá tempo de fazer antes de JP me puxar para dentro
da água, é jogar para o alto o meu livro, na busca que ele não se molhe.
É inútil, entretanto, porque enquanto eu engulo a água da piscina, meu
mangá vai parar diretamente fora do navio.
Já começo a xingar JP dentro d’água.
— Meu mangá! — tusso água fora, o empurrando para longe.
— Ele foi viver seu live action.
Fecho a cara.
— E minha roupa?
— Lava e seca.
— E meu… — não, não tem mais nada a se prejudicar. Respiro fundo,
contando de dez a um. Minha psicóloga me ensinou a contar imaginando
que estou descendo degraus. Só se for pra visitar o JP no inferno. — Você
podia ter pedido para que eu entrasse na água.
— Você entraria? — Ele balança a cabeça como um labrador para tirar o
excesso d’água.
— Não.
— Então não faria sentido pedir.
Abro a boca para contestar, mas não tenho argumentos contra essa
lógica. Arranco a camisa pela cabeça e mantenho o short que vestia. Meu
pinto ainda tá inchado demais para andar de sunga por aí. Vão pensar que
enfiei um Rexona nas calças.
— Vejo que seu humor melhorou muito desde que embarcamos… se
fossem dois dias atrás, você já teria tentado me afogar por derramar uma
gota sequer nos seus livros.
Escoro a nuca na borda, aproximando as costas de uma saída de água da
hidromassagem.
— Estou tentando ser mais leve.
Mentira, eu só não estou em condições de uma luta física agora.
Coço os olhos, sentindo as lentes dançarem no meu olho. Isso vai arder
minha alma mais tarde por causa do cloro.
— Por acaso essa leveza tem a ver com uma certa vascaína exotérica?
O observo de esguelha, vendo seu sorrisinho provocador.
Bufo uma risada.
— Nem eu me apaixono em uma noite, não se preocupe. — Nego com a
cabeça, apoiando os braços na borda e admirando o horizonte. Isso é um
pouco melancólico. — Meu coração ainda está ocupado por outra mulher.
— Ah, fala sério! — Ergue as mãos para o ar. — Não é possível que
você conhece uma mulher que até quebra teu pau na sentada e vai ficar
pensando na outra que te meteu uma galhada.
— Meus sentimentos não são resolvidos com sexo… principalmente
não um em que eu durei dois segundos.
— Vergonhoso isso, gosto nem de lembrar que dá vergonha por você.
Reviro os olhos.
— É sério… não dá pra arrancar a Olívia do meu coração de uma hora
para outra.
— Uma hora para outra? Ela te traiu!
— Eu sei, não precisa repetir isso a cada cinco minutos.
— Precisa quando você não se lembra o suficiente.
— Você acha mesmo que não me lembro de ver a mulher que eu amo,
transando com meu assistente na nossa cama, no apartamento que comprei
e decorei para ser nosso lar?! — explodo, ofegando de puro sentimento
contido tempo demais. Estou cansado dele falando sobre isso como se fosse
algo engraçado. A verdade é que não é.
Eu tento rir disso, tentei achar o lado cômico, o lado positivo, mas tudo
que eu vejo, é um investimento de anos em uma relação que acabou da
forma mais desrespeitosa que existe. Tudo que eu vejo, é o rompimento de
tudo que eu planejei e cuidei durante muito tempo. É como você plantar
uma semente, cultivá-la, aguá-la e levá-la para tomar sol e quando
finalmente ela está pronta para florescer, alguém ir lá e arrancar suas raízes
fora.
João Pedro dá um passo para trás, um tanto surpreso com meu
rompante.
— Foi mal, irmão. — Ele toca meu ombro. — Eu só tô tentando te fazer
enxergar que foi melhor assim.
— Será? — inclino o rosto. — Será que aquela vez não tinha sido o
único deslize que ela deu e que talvez quando nos casássemos, tudo iria
voltar a ser como antes? Talvez não fosse melhor que eu não a tivesse
flagrado?
Só percebo que falei o que estava escondendo até de mim mesmo
quando JP me encara seriamente preocupado. Do tipo sério e adulto.
Pra ele tá chocado comigo, é porque falei muita merda. Mas foda-se, é
exatamente isso que eu sinto; que o erro foi meu de chegar adiantado aquele
dia em casa.
— João Guilherme… — meu amigo limpa a garganta, olhando para os
lados como se buscasse as palavras certas. — Eu não consigo entender
como você pode pensar isso. É claro que aquela não foi a primeira vez,
ninguém é tão audacioso assim na primeira vez que vai trair. E mesmo que
fosse, mudaria algo saber que tinha sido a primeira?
Brinco com meus dedos, abaixando o rosto para assentir.
— Mudaria — respondo com vergonha. Mas com verdade.
— Ela ainda seria uma traidora.
— Podia ser apenas um erro.
— Erro é quando a gente acaba sendo grosseiro em um dia cansativo,
traição é apenas traição… uma escolha.
— A gente começou a namorar muito cedo… — Encolho os ombros. —
Ela podia apenas estar querendo ter certeza se o casamento era a escolha
certa.
— Pela forma como você a encontrou, acho que a conclusão que chegou
é a de que não era a escolha certa. E você deveria ter essa mesma
conclusão.
— Nós podíamos ser felizes, João Pedro. Eu sei disso — suspiro
cansado. E chateado. E culpado por ter ficado com outra mulher tão logo
terminei meu noivado. Isso também foi uma traição, não é? Acho que sim.
— Por acaso você foi feliz com ela alguma vez durante esses oito anos?
Mas eu digo feliz mesmo, do tipo de felicidade que não cabe dentro do
peito? Olívia já te fez querer gritar para o mundo que a amava?
Franzo o cenho, tentando me lembrar de alguma vez que senti isso.
Com certeza deve ter tido uma ocasião assim durante nosso relacionamento.
Ao menos deveria ter, eu só não consigo me recordar agora.
— Eu sou mais contido, não explodo em emoções.
— Meu ovo! — ele joga água na minha cara. — Você chorou como um
bezerro desmamado na morte do Asuma[17] e quer dizer pra mim que é mais
contido? Você me acordou de madrugada soluçando!
— É diferente… — cruzo os braços. — Aquilo foi realmente triste.
— Você consegue sentir nessa intensidade por um personagem de
anime, mas não consegue explodir de felicidade pela sua noiva? A conta
não bate.
Comprimo as sobrancelhas. Isso até que faz sentido.
— Mas se eu não fosse feliz com ela, por que iria querer me casar?
— Essa é uma pergunta que apenas você tem as respostas — ele dá
tapinhas nos meus ombros. Algumas pessoas começam a chegar no convés
e a entrar na piscina, então abaixamos o tom da conversa. — Mas se quer
um palpite, eu acho apenas que vocês dois eram convenientes um para o
outro.
— Convenientes? — fico ofendido. — Eu nunca usei a Olívia.
— Não é nesse sentido — ele faz uma careta. — É que você sempre foi
um cara romântico, louco para amar alguém, e quando uma garota te deu a
oportunidade de fazer isso, você amou pela vontade que tinha de expurgar
esse sentimento e não porque Olívia o conquistou por merecimento.
Abro a boca.
JP está sendo dublado?
Essa coisa poética e coerente saiu mesmo da boca dele?
— Porra, eu vou escrever um livro — ele se gaba quando percebe o que
falou. Assinto. Agora é ele mesmo. Ufa, achei que tinha trocado de mente
com alguém normal.
— Tava bonito até você ter aberto a boca de novo.
— Não posso parecer tão inteligente… as mulheres não resistiriam.
— Claro — rio ironicamente.
— Mas você sabe que posso estar certo.
— Faria sentido para eu estar com ela, mas não explicaria o porquê
Olívia estava comigo.
— Não é óbvio? — ele debocha. — Você fazia tudo que ela queria, a
escutava, entendia seus problemas, realizava seus maiores desejos, era
romântico, cavalheiro, se vestia como ela queria, falava como ela queria
que falasse, até comia o que ela gostava de comer… tudo isso sem esperar
nada em troca, nem reciprocidade. Era bom demais para ela não ficar.
— Então por que ela me traiu? — meus olhos ardem. É apenas o reflexo
do meu coração. Porque mesmo que JP tenha razão e Olívia e eu nunca
tenhamos sido felizes ou nos amado de verdade, é inegável que existiu
carinho e comprometimento o suficiente para levar essa relação por oito
anos.
Ao menos foi assim para mim.
— Ela te traiu porque não vale nada, essa é a resposta que eu queria dar.
Mas como você quer alguma justificativa para o que ela fez, então Olívia te
traiu porque não tinha vivido o suficiente e queria experimentar outras
rolas… quer dizer, outras experiências.
— Vai se foder! — afundo a cabeça dele na água.
Quanto tempo será que posso manter assim até ele começar a
desfalecer?
 
 
— Respirem fundo, sentindo a respiração do parceiro às suas costas, e
tentem sincronizá-la com a sua própria. — Instruo os tripulantes na segunda
sessão de tantra do dia. A primeira foi interrompida no meio pela discussão
de um casal. Eu estava na parte de conexão de olhares e o homem não
parava de espirrar por causa do meu aromatizador de lavanda, o que deixou
sua esposa irritada a ponto de gritar no meio da sessão.
Isso assustou os casais concentrados e quebrou a linha de conexão que
eu tinha conseguido estabelecer entre os parceiros até aquele momento.
Recomendei para eles terapia de casal, antialérgico e meditação para
controle da raiva.
— Encostem as cabeças uma na outra, deixem que a coluna fique ereta
e apoiem-se em seus parceiros. Sintam a confiança mútua ao sustentar o
peso e a reciprocidade ao ser sustentado.
— Você é mais pesado que eu, joga menos o corpo! — Uma mulher
reclama com o marido.
— É você que é muito baixa e não dá apoio para minha cabeça — ele
rebate.
Sempre tem um casal difícil e complicado que torna meu trabalho
interessante. Eu gosto de pegar os que não trocam nem mais um singelo
olhar e trabalhar sua conexão até que saiam daqui já planejando a próxima
vida juntos.
Por isso quis ajudar o Gui. Dá pra ver que ele e o Corintiano tem uma
ligação, só está perdida pela timidez dele e a falta de iniciativa do seu
noivo. Eu posso consertar isso. E definitivamente não apenas no quesito
sexual. Reparei que os dois sequer seguram as mãos, não trocam olhares
cúmplices… vou arrastá-los para uma sessão de tantra nem que para isso eu
mude de nome.
— Casal — agacho na frente dos dois, sorrindo pacientemente. — Não
importa que suas cabeças não se encontrem pela diferença de altura. Vocês
podem se apoiar com a base da coluna e mudar o ângulo ao qual estão
sentados. Licença… — peço para tocar a mulher na base da coluna e a
deixar em um ângulo mais inclinado, exercendo mais força e pressão contra
o homem. — Fique assim e o senhor mantenha as suas costas bem eretas,
para exercer a menor pressão contra ela.
Os dois ficam nas posições que instrui, encontrando o equilíbrio apesar
da diferença.
— Melhor? — averiguo.
— Muito… sinto como se ela nunca fosse me deixar cair — ele gira o
pescoço para retribuir a esposa com um sorriso.
— E eu me sinto confortável, sem peso… ele está me deixando leve —
ela não só recebe o sorriso como o presenteia com outro igual.
Eu sou demais! Talvez eu devesse trabalhar como negociadora em
sequestros. Mas eu acho que deixaria o sequestrador estressado se
começasse a falar sobre alinhamento dos chakras.
Termino minha aula sem nenhum casal se matando, muitos com cara de
que vão direto para as cabines testar a conexão recém adquirida e eu sigo
para minha segunda missão do dia.
Ensinar um pouco de anatomia para o Gui.
De nada vai adiantar passar conhecimentos avançados se ele não souber
o básico.
Mando uma mensagem para saber onde ele está, no número que ele me
passou ontem depois de sair da enfermaria. Eu não confiei naqueles dois
para se lembrarem dos horários do anti-inflamatório que ele precisa tomar.
Tenho que fazer alguma coisa já que a responsável fui eu.
Eu: Honey, estou pronta.
Gui: Para o quê? (Eu acho que é para a nossa primeira aula, mas você
é uma caixinha de surpresa).
Sorrio para a tela do celular, erguendo uma sobrancelha. Quer dizer
então que ele é mais aberto e engraçadinho pelo celular? Querido, depois de
passar pelas minhas mãos, você não vai precisar se esconder atrás de uma
tela para falar o que quiser.
Eu: esperto da sua parte conferir minhas intenções, mas dessa vez você
está certo. Estou pronta para nossa primeira aula… onde posso buscar
você?
Gui: estou na piscina aquecida, mas eu posso te encontrar onde você
estiver.
Eu: estou perto daí, não se preocupe. Além disso, quero conversar com
você e o Corintiano para excluir qualquer dúvida sobre meus limites.
Gui: limites?
Eu: exatamente. As pulseiras ainda não foram liberadas, então não sei
até que ponto posso ir com você.
Gui: pulseiras?
Rio a caminho das piscinas.
Eu: você precisa se informar mais se quiser sobreviver aqui, Honey.
Saio do aplicativo de mensagens sabendo que ele vai continuar me
enchendo de perguntas. Comece a buscar as respostas, querido. Só
perguntas não vão te levar a lugar nenhum se sempre depender dos outros
para respondê-las.
Fico na ponta dos pés para encontrá-los, achando os dois sentados na
borda da piscina tomando drinks. JP bebe uma caneca de cerveja, enquanto
Gui parece tomar uma taça de Gin com frutas.
Minha boca retorce em uma careta.
— Você falou sério sobre gostar de Gin. — Ele sobe o olhar para mim
um tanto assustado, engolindo à força o líquido na boca.
— Oi…. — Seu sorriso tímido me deixa ansiosa para começar. O que
me lembra de uma coisa.
— Corinthiano, preciso falar com você.
— Eu já sei tudo que preciso saber sobre sexo, mas agradeço que tenha
se interessado por mim — ao contrário do noivo, seu sorriso é convencido.
Não gosto dele!
— É uma pena que saiba tudo, isso mostra que não está apto a aprender
coisas novas — esboço meu melhor sorriso debochado. Eu sou um doce,
mas só com quem merece. — De qualquer forma, o que quero falar com
você é outra coisa.
— Fala, Vascaína — cruza os braços sobre o peito, como se eu não
soubesse que faz isso só para mostrar os músculos.
Sim, eu sei que você é gostoso, mas ainda não é meu tipo, então desista.
Olho em volta para ver se não serei flagrada por algum supervisor
chato, mas só encontro a senhora Fátima, que não implica com nada que
façamos, desde que não baguncemos a sua cozinha.
Sento na beirada da piscina, cruzando as pernas para não molhá-las.
— Eu preciso saber quais são meus limites com seu noivo.
— Limites? — JP procura respostas no rosto de Gui, que joga os
ombros mais perdido ainda. Suspiro. Por que homens são tão lerdos?
— Eu sei que você não se importa que eu transe com ele, isso ficou bem
claro quando não surtou ao nos ver na cama, mas eu quero saber se você
tem alguma restrição por algo mais íntimo.
— Mais íntimo que sexo? O que poderia ser isso, vai sugar a alma dele?
— Gargalha alto, batendo a mão na que Joca levanta para bater nele.
— Um beijo pode ser bem mais íntimo do que sexo. Um abraço pode
ser muito mais intenso que um orgasmo. Uma massagem pode te fazer
sentir mais que um boquete… e por aí vai.
— Papo furado! — desdenha. — Mas tudo bem, pode fazer todo que
quiser com ele.
— Ei! — Gui ergue a mão. — Depende do tudo.
— Fique tranquilo, querido. Eu só perguntei os limites dele para não
prejudicar nada na relação de vocês, afinal estou aqui para ajudar. Os seus
limites nós vamos conversar a sós.
— Você tem carta branca, Vascaína. Só me devolva ele inteiro e sem
mais avarias — ele indica o meio das pernas do noivo.
Reviro os olhos.
— Isso foi um incidente. Não se repetirá.
— Graças a Deus — Gui agradece.
Estou pronta para me levantar, quando os bipes dos passageiros vibram
e acendem uma luz azul celeste. Em poucos segundos a voz de Sara ecoa
pelo navio. Mordo o lábio já sabendo o que vem a seguir. Por acaso ela
escutou minha conversa? Só assim para acertar tão em cheio.
“Oi, aqui é a Sara, sua comissária de bordo particular. No nosso
primeiro dia oficial de Cruzeiro, não pode faltar harmonia e conexão. E
o que proporciona mais isso, do que um longo abraço apertado em seu
parceiro? Vocês têm dois minutos inteiros para puxar seu amor para si
e aproveitar desse aconchego. Não sejam tímidos, se amassem!”.
Viro para o casal com um sorriso esperançoso, que morre quando noto
suas expressões desesperadas. Gente, ela pediu um abraço, não uma
punheta coletiva.
— Estão esperando o quê? Se abracem!
Os dois se encaram como se conversassem pelo olhar e entram por
completo na piscina, se aproximando com os braços estendidos. Eles tocam
os ombros um do outro, com tapinhas. Franzo o cenho.
— Acho que eu abraçaria meu ex babaca mais próximo que isso —
provoco.
— É… precisa mesmo disso? — Gui começa a adotar um tom de
vermelho preocupante.
— Se vocês não conseguem se abraçar, como querem transar
loucamente?
O Corinthiano começa a tossir o pulmão fora.
— Vamos acabar logo com isso, pelo amor de Deus — diz com a voz
estrangulada.
— É… — João Guilherme dá mais dois passos para frente, seguindo
dos passos do seu noivo. Os peitorais definidos se encontram e eles olham
para o lado, mantendo distância de seus rostos.
— Colem a testa uma na outra — estico o pescoço para ver melhor. —
Assim vão poder conectar os olhares. Acreditem, é muito bom fazer isso
com a pessoa que ama.
— Você me paga — Gui sussurra.
— Eu me pago também, não se preocupe — JP responde ficando
vermelho como o noivo.
Não entendo suas frases, mas deve ser uma piada interna. O importante
é que estão tímidos um com o outro. Fofinhos!
— Vamos! — Bato palmas e eles unem as testas, se encarando a
milímetros de distância. É impressão minha ou estão quase engolindo os
lábios para não se tocarem?
Casalzinho difícil! Mas não me conhecem, eu sou expert em gerar
conexão. Alheia, porque a minha que é bom está mais precária que minha
conta bancária.
— Um selinho? — incentivo.
— A Sara falou abraço! — os dois dispensam quase aos gritos.
— Ok! — Ergo os braços me rendendo.
São obedientes, então. Não vou julgar.
Os casais começam a se separar e os dois se empurram quase a ponto de
pararem em lados opostos da piscina.
— Acabou, né? — JP coça a nuca.
— Foi ótimo, nossa… — Gui limpa a garganta, molhando o rosto
pintado de tinta vermelho-constrangimento.
— Sempre bom abraçar meu bombonzinho…, mas pode levar ele agora
Pérola. — JP olha em volta. — Antes que essa comissária maluca invente
mais alguma coisa.
Gui pula para fora da piscina sem mais delongas, se enxugando com a
toalha sem nenhuma delicadeza. Isso vai deixar sua pele ressecada, Honey.
— Vamos? — ele me chama ansioso.
— Tá tudo bem? — averiguo. — Você sempre pode desistir disso…
— Nem se eu fosse burro. Vamos.
Arregalo os olhos quando ele segura minha mão e sai me puxando para
longe da proa do navio.
Nunca vi alguém tão predisposto a aprender… mais um ponto para
você, querido.
E contando…

— O que, pela misericórdia, você tá fazendo com um pênis de borracha


nas mãos? — os olhos azuis piscina saltam para fora.
Intercalo o olhar entre Gui e Kleber — o dito cujo.
— Vou te dar uma aula de anatomia.
— Eu sei como é um pênis, tenho um caso tenha se esquecido… meio
quebrado, mas isso é culpa sua.
— Eu já pedi desculpa. — Credo, será que nunca vão esquecer esse
meu pequeno deslize? Nunca sentaram errado?!
— E eu já te desculpei. Mas não preciso de aulas para algo que vi minha
vida toda.
— O fato de ter um, não quer dizer que saiba o que fazer com ele.
— Eu te garanto que sei. — Ele cruza os braços emburrado.
— Eu te garanto que não sabe. — Cruzo os meus para não ficar para
trás.
— Pérola!
— João Guilherme!
Ele respira fundo e eu mantenho minha expressão impenetrável. Isso
não é discutível, vamos começar pelo básico.
— O que eu preciso saber que já não saiba? — o biquinho que ele faz
para se render me dá vontade de apertar suas bochechas. Fofinho da Pérola.
Bato palminhas animada. Eu sabia que ele ia ceder. João Guilherme é
obediente, mesmo que resmungão.
— Olha para o Kleber.
— Quem é Kleber? — ele procura alguém pela minha cabine.
— O pinto — Aponto para a borracha colorida. É legal, cada parte dele
tem uma cor, acho que é tipo para você se desafiar a ir para a cor seguinte
como num jogo.
— O pinto chama Kleber?
— Prefere outro nome?
— Eu preferia não brincar com o Kleber.
— Ele não morde — chego Kleber perto dele e Gui dá um passo para
trás.
— Mas fode. Esse é o problema.
— Não vou usá-lo em você. É apenas um demonstrativo.
É, realmente ele é o ativo da relação… quem diria.
Gui respira fundo, balançando a cabeça.
— Minha vó bem me disse que eu veria coisas nessa vida, eu só não
imaginava que seria um pinto chamado Kleber.
— Para de resmungar e se senta.
— No Kleber? — ele grita.
— Na cama, querido. Na cama.
Minha resposta parece tirar um Titanic das costas dele.
Joca senta no meu colchão e logo as imagens da noite passada vem a
minha mente. Nossa conversa antes do desastre foi boa. E estávamos
chegando em um denominador em comum com a parte do beijo. É… ele vai
aprender rápido.
Agacho na sua frente, estendendo Kleber para ele segurar.
— Pega.
— Não.
— Por que não?
— Essa coisa me assusta.
— O seu é maior — Arqueio a sobrancelha.
— Não é não.
— Querido, eu já sentei nele, é maior.
— Não dá pra você me ensinar com isso longe?
Comprimo as sobrancelhas. Quando ele vai transar com o Corinthiano,
é tão tímido assim? Tá explicado o porquê dos problemas sexuais do casal.
— É só um pau de mentira, segura logo.
— Eu nunca peguei em um de mentira. — O rosto dele vai explodir, eu
tenho certeza disso.
— Prefere que eu chame o JP aqui e aí você segura um de verdade?
— Me dá o Kleber! — Ele arranca o pinto da minha mão na velocidade
da luz.
— Ok, então… — limpo a garganta. — Me mostre onde fica a glande.
— Eu sei onde fica — se ofende.
— Honey… — Seguro seu rosto para não desviar os olhos dos meus. —
Eu sou paciente, mas nem Buda aguenta ensinar alguém tão teimoso. Só me
obedece e mostra onde fica.
— Mandona — continua resmungando, mas pelo menos me mostra o
lugar certo.
— Bom, agora me mostra onde fica o prepúcio.
— Eu me sinto numa aula da quinta série — ele aponta indignado para
o lugar certo.
— Agora o corpo…
— Se meus joelhos ficarem esfolados de tanto rezar pra pagar meus
pecados do dia, você vai passar pomada!
— Eu coloquei gelo do seu pau ontem, o que é uma pomada no joelho?
— provoco só para ver ele se encolhendo.
— Você parece boazinha, mas é má.
— Foi você mesmo que disse que sou uma sereia, não é? Elas são
lindas, mas ainda te arrastam para o fundo do mar.
— Aqui… — Ele indica a extensão da borracha colorida. — E aqui é a
base. Mais alguma coisa?
Estreito os olhos.
— Onde fica o períneo?
— O quê? Tenho isso no pau? — Ele vira o Kleber de ponta cabeça,
tentando achar onde fica.
— Ah há! Te peguei! — Aponto o dedo para seu rosto. — Não dá pra
achar o períneo no Kleber, então você não sabe tudo sobre seu corpo.
— Então onde fica o períneo?
— Abaixo das suas bolas.
— Embaixo das minhas bolas tem outro nome, e na minha terra não é
períneo — ele ri sem graça, coçando os olhos. Eu tenho que lembrar de
perguntar sobre essa coceira desenfreada.
— Não é o ânus.
— Não tenho mais nada abaixo das minhas bolas do que o ânus.
— Tem o períneo! — Ele está tentando em estressar?
— Só tem pele! — Ele também tá ficando estressado?
— Que é o períneo, caralho!
— Ah… — Abre a boca em choque. — Sabia não.
Penso em brigar por ele ter teimado comigo, mas a carinha fofa dele me
desmonta.
Por que eu tinha que ter essa fraqueza por homens assim? Ainda vou me
foder na vida por isso.
Em vez de brigar, dou tapinhas no seu rosto.
— Viu como você sempre tem algo para aprender?
— Mas por que eu preciso saber o nome de um pedaço de pele?
— Porque esse pedaço de pele, cobre exatamente o lugar onde sua
próstata fica. Quer que eu te mostre?
Ele dá três pulos na cama para longe de mim.
— Você não vai botar dedo na minha próstata, eu já tô me conformando
com esse exame aos quarenta anos, agora não!
Olho para cima, contando até dez. Ele vai desalinhar meus chakras e vai
dar um trabalhão pra alinhar de novo.
— Querido… — chamo pacientemente. — Eu não vou enfiar o dedo na
sua bunda e procurar sua próstata, eu vou tocar seu períneo e te mostrar que
sua maior fonte de prazer pode estar ali nessa região que você desconhecia.
— Promete? — ele estica o dedo mindinho.
— Prometo o quê?
— Que não vai botar o dedo na minha bunda.
Meu queixo despenca.
— Você vai usar algo tão sério como a promessa de dedinho para
garantir que eu não enfie o dedo na sua bunda?
— Aham.
— Ok — Dou de ombros. — Se te conforta... — Prendo meu dedo
mindinho ao dele. — Agora abaixa as calças.
— Assim, do nada? — seu rosto pega fogo.
— Quer que eu te pague um jantar antes? — brinco.
— Não, eu pagaria o jantar.
— Que cavalheiro… — Levo a mão ao coração falsamente. — Agora
abaixa as calças.
— Eu tenho a leve impressão de que você gosta de mandar — como
sempre resmungando, mas também me obedecendo. Ele abaixa sua
bermuda até os joelhos.
— Não é impressão, eu gosto de mandar. — Fico de pé, cruzando os
braços. — Agora deita.
Pela primeira vez, ele não contesta antes de me obedecer.
— Vou ficar em cima de você — aviso.
— Foi assim que meus problemas começaram — ele comenta rindo e
bato no seu peito.
— Pare de me zoar, isso não é nada educado de ser fazer com sua
professora particular.
João Guilherme segura minha cintura quando me sento sobre suas
coxas.
— Minhas professoras não faziam o que você está fazendo agora.
— Ainda bem, ou estariam presas — gargalho, apoiando as mãos sobre
a base da sua barriga. Ele tem um “v” incrível descendo para o monstro do
lago Ness que aguarda dentro das cuecas. Quem diria que essa carinha fofa
tem tudo isso de equipamento…— Posso?
Escorro as unhas para baixo, chegando no cós da sua sunga. Preferi
deixá-lo com o tecido protegendo para que seu amiguinho machucado não
se mova muito durante a aula.
— Eu tenho escolha? — ele brinca.
— Sempre. Eu paro agora se quiser.
Joca franze o cenho, se perdendo em pensamentos por alguns segundos.
— Eu deveria não querer — comenta depois de um lapso de silêncio. —
Mas eu quero. Não importa, eu quero.
O quê?
Não deveria querer?
Não importa?
Ele quer?
Gui está me deixando mais confusa e curiosa a cada segundo. Isso não é
nem um pouco seguro. Eu fico realmente empenhada quando algo me
chama tanta atenção e ele está prendendo a minha em cárcere privado.
— Feche os olhos.
Ele abaixa as pálpebras sem questionar o motivo. Pelo menos ainda
confia em mim mesmo depois do incidente de ontem à noite.
Abaixo meu tronco sobre seu corpo, até meu rosto estar a centímetros
de sua orelha. Tão logo minha respiração colide contra sua pele, Gui
estremece sob mim. Solto uma risada baixa.
— Você é muito sensível ao toque.
— Isso é ruim? — a voz dele não passa de um murmúrio sussurrado.
Gosto de como soa. Baixo e grave.
— Depende. — Massageio seu couro cabeludo com a ponta das unhas.
Ele ronrona. — É bom porque você sente mais intensamente e absorve o
prazer. E é ruim porque…
— Porque eu gozo rápido — completa por mim.
— É… — não nego. — Mas é tudo uma questão de controle.
— Não costuma ser assim, sabe… — ele faz círculos distraidamente na
base da minha coluna e seguro meus olhos na órbita para que não se
revirem. Esse homem pode não saber o que está fazendo na maior parte do
tempo, mas quando acerta, acerta bem no ponto G. Puta merda.
Foco, Pérola.
— O que quer dizer? — incentivo o diálogo aberto.
— Eu costumo demorar bastante para atingir um orgasmo, e na verdade,
não costumo ter um sempre. — Me confidencia ainda brincando de fazer
desenhos abstratos pela linha da minha coluna. — Sei que todo cara que
tem um incidente como o meu vai contar essa mesma história, mas é a
verdade. Essa foi a primeira vez que eu gozei tão rápido.
Volto a me sentar, apoiando as mãos em seu peitoral, brincando os
pelinhos dali. Eles são adoráveis. E sexy.
João Guilherme tem o rosto manchado de vermelho sangue, mas não
tenta desviar do meu contato visual.
— Por que você acha que foi rápido? A bebida?
— Não… é só que… — ele comprime os lábios, agora sim desviando
dos meus olhos. — É que você sentou em tudo… tipo, tudo mesmo. Tudo
pra caralho.
Mordo o interior da boca para conter a gargalhada.
— Então eu fui a primeira corajosa?
— Quer dizer a primeira inconsequente, não é?
Dou de ombros, jogando uma piscadela.
— Eu gosto de grandes conteúdos, não me julgue.
— Eu não julgo, mas fiquei chocado.
— Talvez você seja mais sensível na base do que na glande, o que seria
algo interessante, já que a maioria dos homens tem mais sensibilidade na
ponta.
— Bom, se há alguma parte mais sensível do que a outra eu nunca tive
como comparar até a noite passada.
— Então vou te mostrar uma que com certeza é mais sensível. Não se
preocupe, vou manter minha promessa.
— Tá bom — ele se prepara com uma longa respiração, voltando a
fechar seus olhos. Me apoio sobre os joelhos. — Separe um pouco as
pernas.
Ele obedece instantaneamente e preciso engolir a seco e me lembrar que
hoje é apenas uma demonstração de anatomia. Preciso ir com calma se
quiser algum resultado com ele.
Desço meu copo até sentar um pouco acima de seus joelhos e escorro
minhas mãos desde seu peito, passando por seu umbigo, deslizando pela
extensão da sua semi ereção, até interromper meu toque ao final de suas
bolas, sobre o tecido da boxer. Percebo que trava sua respiração e o
movimento faz os gominhos do seu abdômen mais proeminentes.
Santa das calcinhas molhadas, que homem gostoso.
Balanço a cabeça, voltando ao meu foco.
— Fique tranquilo… confie em mim — faço um carinho suave ao redor
da sua virilha, até que ele tenha voltado a respirar calmamente. Ao obter
meu objetivo, inverto minha palma para que meus dedos fiquem para baixo,
permitindo que apenas o indicador desça até seu períneo. Joca fica tenso,
mas ainda respira decentemente.
Meu dedo exerce uma pequena pressão a princípio, apenas para que ele
saiba onde o toco. Quando seus músculos abdominais relaxam, minha
pressão aumenta, empurrando em pequenos círculos, sem desviar demais do
ponto em questão.
O peito de Gui sobe e desce mais depressa, mas dessa vez não é de
tensão e sim de prazer. Sei disso por ver seus dedos agarrando o lençol da
cama, seus lábios presos entre os dentes e o pescoço jogado para trás,
revelando o pomo de Adão quase perfurando a pele.
Merda… acho que vou precisar trocar a calcinha.
— Isso é bom, Honey?
— Meu conceito de bom acabou de mudar.
Fecho os olhos por breves instantes para apreciar essa voz rouca
carregada de desejo e me curvo de volta à sua orelha, não interrompendo
meu toque, apenas o deixando ainda mais firme e preciso.
— Bem-vindo às maravilhas de conhecer o próprio corpo, querido.
 
 
— Como foi seu primeiro dia de TSI? — JP pergunta depois de encher a
boca com o ravioli que pegou no buffet. Eu o encontrei com olhos
arregalados na sauna do navio depois que saí da cabine de Pérola.
— TSI? — Bebo uma taça do meu Gin. Não é aromatizado como eu
gosto, mas poderia ser pior.
— Treinamento sexual intensivo — explica a sigla.
E quase cuspo o líquido, forçando garganta abaixo para não transformar
a cara dele em uma grande lambança.
— Fala baixo que alguém pode ouvir — tusso para recuperar a voz.
— Não sei se percebeu, mas a coisa que mais se fala aqui é sexo.
Ninguém vai ficar chocado, principalmente com ela sendo massagista
tântrica.
— O que ela ser massagista tem a ver com sexo? Para de ser um tarado.
— Por acaso você sabe o que é uma massagista tântrica?
— Não é tipo um quiropata? — levo uma colher à boca do meu
espaguete à carbonara.
— Eu não sei que tipo de quiropata você tem frequentado, mas com
certeza os que eu já fui não trabalham assim.
— Não entendi. — Balanço a cabeça.
— O tantra é voltado para a área sexual, jumento!
— Tipo final feliz? — Arregalo os olhos.
— Não sei direito porque nunca fui a uma sessão assim, mas parece que
não é o sexo básico que a gente faz, essa galera basicamente faz a pessoa
sentir prazer sem seguir o óbvio.
— O óbvio?
— É, Joca… é toda uma parada de sentir intensamente seu corpo, sei lá!
Eu nunca fui, sei por alto.
— Aaah… — assinto, me lembrando exatamente do que Pérola me fez
sentir tocando meu… como é mesmo o nome? Perino? Perine? Períneo!
Isso! Mas espera… — Meu Deus, quando a Pérola me contou que era
massagista tântrica, eu disse que estava precisando muito disso e ela me
convidou para uma sessão. Eu achei que era para estralar minhas costas!
JP bate as mãos na mesa enquanto ri, atraindo atenção para nós. Abaixo
a cabeça com vergonha.
— Tá explicado porque saiu com o pau torto. Basicamente falou que
precisava urgentemente de um orgasmo libertador.
— Por que ao invés de ficar rindo de mim, não me conta por que estava
tão assustado quando te encontrei na sauna? — mudo de assunto e ele muda
de humor. Agora quem está ficando vermelho não sou eu.
— Não sei se quero falar sobre isso.
— Por que não? — ok, agora eu fiquei curioso.
— Porque você vai rir de mim.
— Eu rio de você o tempo todo, ainda que internamente.
— Obrigado pela parte que me toca — ele me oferece o dedo do meio.
Quase um príncipe, esse filhote de eguinha pocotó.
— Fala logo! — Roubo o garfo dele para que não consiga comer. —
Você me mandou mensagem para te encontrar urgentemente na sauna, eu
tive que sair da minha aula com a Pérola mais cedo e só te achei com os
olhos esbugalhados enquanto um casal saía da sauna. O que aconteceu lá
dentro?
— Meconvidaramparaumménage.
— Como é que é? Fala direito.
— Mechamaramparaumsexoatrês.
Respiro fundo.
— João Pedro Valadares, fala devagar porra!
— Eu fui convidado para um ménage, caralho! — ele fala devagar. Mas
alto. Muito alto.
Todos os rostos no restaurante se viram na nossa direção, enquanto nos
encaramos estáticos e de olhos saltados. Me sinto como um episódio
especial de Dragon Ball, com todos querendo me assistir.
O que o Goku faria em uma situação dessa? — Shikamaru, meu eu
interior indaga.
O Goku eu não sei, mas a Chichi desceria o cacete.
E é exatamente o que eu faço.
Estapeio a cara de JP, que vira o rosto mais pelo susto do que pela força.
Ele é um inconveniente, mas ainda é meu amigo. O tapa não chega a fazer
barulho, mas as pessoas ficam ainda mais chocadas. Acho que preciso falar
alguma coisa.
Levanto da cadeira fingindo uma expressão ofendida.
— Seu… cachorro! — coloco a mão no peito, segurando a risada para a
cara que JP me olha. É melhor eu rir mesmo, porque pode ser a última vez.
Ele vai me matar.
— Você me bateu — ele gesticula os lábios para que só eu veja.
— Entra na onda.
— Eu vou entrar é na porrada, seu filho da mãe.
— Nem doeu, entra no teatro pra disfarçar, pelo amor de Deus.
— E eu faço o quê?
— Me pede desculpas, ora. Você é meu noivo e foi chamado pra um
ménage.
— Mas eu nem fui! — ele fala alto e ouço alguns caras concordando,
enquanto as esposas batem neles. É, isso serve.
— Você vai dormir no sofá hoje! — viro de costas, agarrando a camisa
dele. — Faz a Kátia e me segue.
João Pedro fica de pé, me pedindo desculpa até saímos do restaurante.
Quando saímos, ele me dá um tapa na cara.
O encaro em choque.
— Você me bateu!
— Eu retribuí — resmunga enquanto esfrega a bochecha que golpeei.
— Vou te denunciar por violência doméstica.
— Nós não somos noivos, Joca.
— Ah é… — assinto. — Verdade.
— Você tinha que criar essa cena toda?
— Você gritou pra todo mundo que foi chamado pra um ménage, eu
fiquei nervoso sem saber o que fazer.
— E decidiu por me bater? Que abusivo.
— Eu deveria ter quebrado sua cara desde que fiquei sabendo desse
cruzeiro, o tapa só veio atrasado.
— Foda-se, agora todo mundo acha que sou pau mandado — ele cruza
os braços emburrado.
— E não se esqueça que a enfermeira acha que você senta errado.
Saio correndo quando JP tira seu tênis para jogar em mim.
Que agressivo!

— Espera, deixa eu ver se entendi… você recusou mesmo um ménage?


João Pedro me perseguiu pelos corredores do navio com o sapato nas
mãos até conseguir acertá-lo na minha orelha, o que me fez arrancar meus
chinelos e dar na nuca dele até escutar o som idêntico ao que eu escutava
quando criança e minha mãe me batia na bunda com suas havaianas de
florzinha.
Só paramos quando fomos repreendidos por uma comissária de bordo
que nos mandou arrumar uma cama… a gente estava querendo se matar,
não transar. Qual o conceito de preliminares que esse povo tem?
Depois de um banho — meu, é claro, já que o porco do meu amigo tem
alergia à água e sabonete — ele retomou sua história na sauna.
— É isso mesmo. Eu recusei.
— Por quê? — pergunto enquanto corto as unhas dos pés, os escorando
no parapeito da varanda do quarto. Nessas horas um alongamento faz
falta…
— Promete que não vai me zoar? — ele rouba o cortador de unha da
minha mão para cortar suas garras… que nojo, isso vai para o lixo depois.
— Claro que não, você zomba de mim noventa por cento do tempo. Por
que eu iria te poupar?
— Não custava tentar — JP suspira, forçando meu cortador na pedra
que ele chama de unha.
— Fala logo. E cuidado pra essa unha não voar na minha cara!
— Não vai, cacete! — Bufa irritado. — E eu recusei porque fiquei
com… fiquei com… com medo.
Giro o pescoço incrédulo.
— Medo?
— E vergonha.
— Você? — gargalho alto, batendo palma. Pareci até a Pérola agora.
— É sério, porra!
Estreito os olhos. Ele pensa que engana quem?
— Mas você já fez ménage antes… não fez?
João Pedro vira o rosto, assobiando.
— Não acredito! — Levanto da cadeira. — Você não fez!
— Não…
— Mas não era você que se gabava de ser o transante?
— Pelo menos eu não tenho chifre!
— Não mete meu chifre no meio. Estamos falando da sua hipocrisia.
— Não fui hipócrita — ele fecha a cara. — Eu posso ter sido babaca,
insensível e imaturo, mas hipócrita não.
Essa serpente mentirosa…
— Claro que foi! Quando espalharam no Twitter que eu tinha
desmaiado depois de me convidarem pra um ménage, você até retuitou e
zombou de mim por dois meses!
— Pelo desmaio, não pela recusa. — Ele ri olhando pra cima, como se
recordasse da cena. — Pelo menos eu não desmaiei.
— Por pouco, porque quando eu entrei na sauna, você estava branco
feito papel.
— Era o calor.
— Meus ovos que era pelo calor.
— Tá, caralho! — Ele faz bico. JP odeia ser contrariado, principalmente
quando está errado. — Eu não soube reagir, achei que eu iria aceitar uma
proposta como essa no primeiro segundo, mas…
Ele interrompe, encarando o mar obscuro, iluminado apenas pelas luzes
do navio, dado a hora da noite.
— Mas… — incentivo. Estou curioso.
— Mas eu acho que não gosto de dividir. Ou de ser dividido.
— Você tem me dividido desde que embarcamos — provoco.
— Eu até te daria de presente, bombonzinho.
— Quanto amor — debocho, voltando a me sentar na cadeira.
Apenas uma coisa nessa história não bate com o que conheço do meu
amigo.
— Se você não gosta de dividir, por que nunca começou uma relação
séria com alguém?
João Pedro fica visivelmente tenso.
— Porque eu prefiro sair por cima. Termino antes que eu comece a me
apaixonar e me foda logo em seguida.
— Nem todo relacionamento termina em sofrimento, sabia?
— Ah, não? — ele ri ironicamente, arqueando as sobrancelhas na minha
direção. — O seu acabou como?
— Em um cruzeiro erótico, com uma massagista tântrica me dando
aulas de sexo.
Até eu me surpreendo quando isso sai da minha boca. Mas parece ter
feito total sentido para meu amigo.
— Ok, acho que vou arrumar uma noiva e mandar ela me trair.
Bufo uma risada, escolhendo levar na brincadeira.
Chorar não adianta mesmo…
— Arrume uma noiva, mas porque gosta dela e porque ela gosta de
você. E torça, muito mesmo, para que ela não te traia. Isso machuca, JP.
— Eu sei… — Ele me fita um tanto sem jeito. — Eu brinco com você
para descontrair, mas eu sei que isso ainda mexe com você.
— Não faz nem duas semanas. E eu estaria casado agora.
— Eu sei… — ele aperta meu ombro, voltando a cortar suas unhas em
seguida. — Mas por enquanto, vou ficar sozinho. Não quero amar alguém e
depois me decepcionar… de novo.
— De novo? — comprimo as sobrancelhas. — Está falando da
Manuela?
Basta eu falar no nome dela, para a cara dele se retorcer em uma careta
e seus dedos apertarem o cortador de unha com uma força desnecessária,
que faz um pedaço pontudo de unha voar com violência.
Para dentro do meu olho.
— Ai! — grito, sem saber se fecho os olhos, se abro os olhos, se
arranco os olhos. — Ai, entrou, entrou!
— Entrou o quê? — JP segura meus ombros para me acalmar, mas não
paro de pular desesperado.
— Entrou, porra, entrou!
— Entrou o quê e onde? — a voz dele começa a ficar assustada e me
vira de costas, pegando na minha bunda.
— Aí não, palhaço! Meu olho!
— Aaaah… — respira aliviado.
— Ah, nada, você rasgou minha lente!
Corro para o banheiro, com os olhos já pingando lágrimas no rosto.
— Como assim rasguei sua lente? — JP me encara pelo espelho e
arregalo os olhos ao ver os meus. — Eita, caralho, eu rasguei foi teu
olho…, mas como?
— Com essa navalha que tu chama de unha. Sai de perto de mim! —
Empurro ele para fora do banheiro, jogando meio litro da solução de limpar
a lente dentro dos meus olhos. — Se eu ficar cego desse olho, vou usar você
de cão guia!
— Se você ficar cego desse olho, ainda vai ter o outro pra enxergar…
eu só danifiquei sua retina, não seu cérebro, então use.
Respiro fundo.
Deus, se eu mandar uma alma para o inferno, o senhor me dá um
desconto por ajudar na superpopulação do céu?
Acho que não né…
Abro a porta do banheiro depois de minutos morrendo de dor. Eu já não
tenho um olho, tenho uma bola de boliche na cara de tão inchado. JP
assobia quando me vê.
— Vamos na enfermaria — digo entredentes.
— Vou falar que bati o pau na sua cara — ele avisa. — Preciso
recuperar minha dignidade com a enfermeira.
Será que um cortador de unha corta uma artéria?
Pisco, afastando o pensamento.
Sou muito claustrofóbico para ir pra cadeia.

Em toda a minha vida, fui o filho exemplar, nunca quebrei um osso do


corpo, minha mãe nunca foi chamada na diretoria da escolha… ao menos
não por culpa minha, apenas quando eu apanhava. O que quero dizer é, em
toda a minha vida, nunca me meti em confusões.
Enquanto os pais dos outros estavam preocupados que seus filhos
usassem drogas ou bebessem em lugares ermos, os meus estavam
preocupados com o fato de eu não sair de casa e apenas ficar na frente de
um computador. O medo deles era uma miopia severa e algum transtorno
psicológico por isolamento social.
Mesmo quando comecei a namorar com Olívia, nós não tínhamos
autorização para nos vermos sozinhos, então nossos encontros eram no
grupo de jovens da igreja ou quando o pai dela deixava que eu ficasse na
sala assistindo um filme em um domingo supervisionado.
Até me formar na faculdade, eu realmente não interagia com muitas
pessoas.
Foi só quando entrei para a empresa que trabalho hoje, conhecendo
pessoas com os mesmos gostos que eu, que passei a ter um pouco de vida
social.
Eu não conto as saídas com amigos da Olívia como interação social,
porque sempre que eu abria a boca, ela me olhava enfezada para que eu não
entrasse em assuntos constrangedores.
Os tais assuntos eram tudo que dizia respeito a mim, o meu trabalho ou
meus gostos pessoais. Então eu chegava calado, pagava a conta e ia embora
calado.
Meus pais nunca, em hipótese alguma, imaginariam que eu estaria
envolvido em tantos problemas em apenas dois dias.
— A sua sorte é que você estava de lente, então a unha não chegou a
entrar em contato com sua retina.
João Pedro tentou contar a sua história pervertida, mas a mulher o
desmascarou ao mostrar que só algo cortante faria esse estrago nas minhas
lentes.
— Então não danificou meu olho?
— Não. Vai ficar irritado pelo rasgo da lente e por termos tido um
trabalhinho para tirá-la, mas é só descansar os olhos por toda a noite e
pingar esse colírio para hidratar.
Respiro aliviado.
— E é bom que você use óculos por esses dias, evite as lentes. Você
parece ter um pouco de alergia.
— Eu tenho — encolho os ombros. — E os meus óculos não estão com
o meu grau atual, serve?
— É melhor do que nada, providencie um atualizado quando acabar a
viagem.
— Tudo bem — levanto da cadeira, tentando manter o olho direito
fechado.
— E você — ela se aproxima de JP a passos lentos, colocando o dedo
sobre o peito dele. — Pare de tentar matar seu noivo.
— Pode deixar — ele engole a saliva duramente, claramente assustado
com a mulher.
João Pedro pode parecer durão, mas se tem uma coisa que ele tem
medo, essa coisa é mulher.
Não julgo, eu também tenho.
 
 
 
Aummm… Aummm… Aummm…
Inspiro o ar gelado das cinco e meia da manhã, aproveitando o
convés vazio e silencioso. Eu poderia fazer minha meditação matinal na
cabine, mas Manuela ronca como um porco sendo assassinado e não há ser
espiritualizado que consiga se concentrar.
Todos os dias pela manhã, acordo às cinco horas e venho assistir ao
nascer do sol na proa do navio. Esse hábito de acordar cedo veio do meu
pai. Não sei como ele conseguia, mas mesmo chegando bêbado de
madrugada em casa, todos os dias bem cedinho, ele ia até meu quarto, abria
as cortinas que mamãe mantinha fechada para me proteger do vento frio e
me chamava para gente se sentar na varanda e ver o dia nascendo.
Eu encostava a cabeça no seu ombro, sentindo o cheiro alcoólico do
Velho Barreiro e simplesmente ficava quietinha e em silêncio, o ouvindo
contar histórias sobre como a lua dava lugar ao sol. Em todas as manhãs, a
história mudava. Papai era um homem verdadeiramente criativo.
Lembro de mamãe dizer que ele era um ótimo escritor antes de se
perder no álcool.
Depois que ele faleceu, uma semana antes de eu completar quinze
anos, meus olhos se abriam sozinhos às cinco horas da manhã e eu seguia
até a varanda, observando o dia chegar. Certa vez, quando eu já tinha
começado a esquecer do seu cheiro, pedi para um vizinho maior de idade
me comprar a cachaça que ele tomava. Ele me fez garantir que eu não
beberia e eu obedeci. Apenas abri a garrafa, me sentei no azulejo de pernas
cruzadas e inspirei o aroma com os olhos fechados. Foi o mais perto que
consegui me sentir do meu pai.
Mamãe quebrou essa garrafa três semanas depois, quando a
encontrou debaixo da minha cama. Ela não acreditou que eu a mantinha
para lembrar do papai.
Hoje eu a entendo. De verdade.
— Cheetos? — Manu se senta do meu lado, me abraçando na
lateral. — Tudo bem?
— Tudo — limpo a garganta pelo tempo em silêncio. — O que faz
acordada tão cedo?
— Tive um pesadelo — ela sorri sem graça. — E ainda estava
escuro, então vim te procurar.
Suspiro, a apertando contra mim.
— Seu irmão? — pergunto sobre o pesadelo.
— Uhum… o mesmo sonho.
Assinto, esfregando seus braços.
— Queria poder tirar esse sonho de você.
— Eu também… — Manu se aconchega a mim, deitando a cabeça
nas minhas pernas. — Posso dormir aqui enquanto você medita?
— Claro. Vou proteger seu sonho, não se preocupe — acaricio seus
cabelos, embalando o sono da minha amiga, esperando que ela sinta a
mesma proteção que eu sentia quando papai ficava do meu lado.
Porque mesmo não se parecendo com um herói e sempre estragando
tudo ao final do dia, era do lado dele que eu me sentia a garota mais segura
e amada do mundo.
Olho para o céu, sorrindo.
— Sinto saudades, papai. Mas mesmo que seja duro dizer isso, eu
fico feliz que tenha ido antes de se machucar ainda mais. Espero que onde
quer que esteja, você ainda assista o nascer do dia.
Deixo Manu dormir no meu colo por cerca de uma hora, até minhas
pernas terem perdido todo o tato. Ela precisou me ajudar a ficar em pé
enquanto o sangue voltava para o lugar. Chegamos um pouco atrasadas para
bater nosso ponto, mas nada fora do normal.
Atrasar é o meu natural, mesmo acordando antes de todo mundo.
— Vai encontrar o seu aprendiz hoje? — ela quer saber enquanto
amarra o lenço do uniforme no braço. Manu não suporta coisas em seu
pescoço, então os supervisores a autorizaram usar assim.
— Não sei. Ontem ele teve que sair correndo do quarto para ir
socorrer o Corinthiano.
— Socorrer do quê?
— Não sei, não quis me intrometer.
— O que ensinou pra ele?
— Partes do corpo.
— Especificamente… — Ela sorri maliciosa.
— O períneo.
— Ah, esse querido — gargalha. — Os homens não conhecem o
próprio pedacinho de felicidade… tá explicado por que eles não acham o
clitóris.
— É mais fácil acharem uma verruga no meio das próprias costas
do que esse pontinho injustiçado.
— E qual vai ser o próximo passo? Por acaso o nerd 2 vai se juntar
a vocês?
Seguro meu queixo, estreitando os olhos na sua direção. Manuela
está curiosa demais com isso, geralmente ela só se interessaria por histórias
escabrosas para que possa rir madrugada adentro.
— Por que a pergunta? Por acaso você gostava do Corinthiano na
escola? — fiquei realmente surpresa por eles terem estudado juntos. Manu
morou em São Paulo com a mãe até o primeiro ano do ensino médio,
quando tudo ocorreu e ela se mudou para Rio, onde seu pai morava.
Manuela gargalha.
— Eu? Gostando dele? Me poupa, Cheetos.
— Ele é bem seu tipo, se parar pra pensar… abusado, engraçadinho,
atrevido, ego inflado… e com certeza leria todos os seus quadrinhos com
você.
— Eu dei um fora nele no ensino médio — ela comenta baixo,
admirando as próprias unhas.
— Sério? — eu sabia que tinha algo mais na história dos dois para
explodirem feito bombinhas quando se encontram. — Conta mais.
Estranhamente, minha melhor amiga fica evasiva, dando poucos
detalhes das coisas. Manuela fala pelos cotovelos, se está se esquivando, é
porque tem mais segredos nessa história do que ela está querendo me
contar.
— Eu mandei um bilhete para o cara que eu gostava e por acidente
parou na mesa do João Pedro… ele pensou que fosse para ele, me pediu em
namoro na frente da escola e eu tive que dar um fora nele.
— Teve?
— Eu quis, quis dar uma fora nele.
Ela coloca uma mecha do cabelo atrás da orelha.
Mentirosa.
Manuela sempre coloca o cabelo para trás da orelha quando mente.
— Na frente da escola toda, quer dizer que também foi na frente
do… — deixo a frase morrer no ar, porque sei que não gosta desse assunto.
— É. Dele também.
Suspiro. Faz um pouco de sentido agora. Mas não vou forçá-la a me
contar sobre esse passado.
— Vamos comer então, Mônica — descontraio, beijando suas
bochechas fofas.
— Magali! Eu sou a Magali!
Ela me segue resmungando e fico mais aliviada.
Se está estressada e pulando feito bombinha de festa junina, é
porque o passado saiu rapidamente da sua memória.

Ao contrário do que esperava, não encontro com Joca no


restaurante. Ele deve ter acordado mais tarde. Bom, se colocou em prática o
que ensinei com o noivo, então é capaz que tenham passado a noite
acordados.
Eu realmente sou uma ótima professora.
Sorrio para a passageira depois de retirar sua venda e terminar a
terapia de tantra. Algumas vezes, quando noto uma pessoa muito fechada
para si própria, eu ofereço a terapia para que ela se conecte e destrave
algumas crenças limitantes. A terapia consiste basicamente em privá-la de
sua visão para que se concentre unicamente consigo mesma e se desprenda
da minha figura, e através do toque carinhoso e respeitoso, possa voltar a se
sentir um com seu corpo, seus sentimentos e suas memórias.
É uma experiência intensa, os carinhos, embora simples, são
significativos quando passamos tempo demais sendo duros com nós
mesmos. As pessoas costumam ignorar a importância do toque, de sentirem
sua pele, seus pelos, suas cicatrizes e cada minúscula parte de si. Esse
primeiro toque pode vir de mim nesse momento da terapia, mas tão logo
percebem como tudo muda, quando se percebe que a alma não está perdida
em um corpo vazio e sim em um corpo pronto para ter uma vida vibrante,
ele se faz desejoso e necessário.
Sou a ferramenta, mas o poder maior, cada um já tem.
A passageira enxuga seu rosto das lágrimas e me abraça apertado,
me dando a certeza de que estou no caminho certo.
Eu sempre tive um sonho, desde pequenininha, que era fazer o dia
das pessoas melhores. Na época, eu não sabia como podia fazer isso. Mas a
cada pessoa, principalmente, a cada mulher, que sai da minha sessão se
amando um pouco mais, meu coração é preenchido de uma sensação de
dever cumprido.
E talvez um pouco de culpa, porque a mulher que mais quis ajudar,
não é fácil de aceitar ajuda.
De qualquer forma, um dia consigo que minha mãe vá nem que seja
a um psicólogo.
— Obrigada, Pérola.
Nego com a cabeça.
— Não agradeça. Apenas não deixe de ser carinhosa consigo
mesma. O que eu fiz aqui, foi simplesmente um carinho que você pode dar
a si mesma todos os dias. Acaricie seu rosto, seus braços, suas pernas…
tome ciência de quanto amor seu corpo pode te retribuir.
Ela conversa comigo mais alguns momentos sobre a relação que
tem com a esposa e sai da minha sala enquanto me preparo para meu
horário de almoço.
Nem me dou ao trabalho de procurar Manuela porque suas aulas
terminam depois das minhas, principalmente quando ela tem pesadelos e
precisa espairecer.
Atravesso o corredor onde ficam as salas de polidance, yoga e a
academia, sonhando com a possibilidade de ter bife acebolado com
pimentão no buffet.
— E aí, Pérola… — Marcelo, um dos caras do TI, vem na direção
oposta a minha, me cumprimentando.
Nós nunca tivemos oportunidade de conversar de verdade, mas
sempre nos esbarramos nos corredores, então acabamos aprendendo o nome
um do outro. Ele parece ser legal, então sempre lhe ofereço um sorriso
simpático.
— Oi, Marcelo — aceno com os dedos, com a intenção de continuar
meu caminho como sempre. No entanto, meu plano é interrompido por uma
mão no meu pulso. A mão dele.
Arqueio uma sobrancelha, descendo o olhar.
— Precisa de algo? — meu tom já não é amistoso.
— Não, na verdade é mais sobre você — ele solta meu pulso para
segurar na minha cintura.
Tá querendo perder a mão, filho? Por acaso eu sou corrimão pra
sair me segurando?
— Não entendi… — para bom entendedor, esse tom ríspido seria o
suficiente, mas ele não capta o sinal de risco de morte.
Eu gosto de toque, para ser sincera, preciso dele, mas quando eu
quero e da pessoa que eu escolho. Não é nenhum dos casos agora.
— Bom, é que… sempre que a gente se encontra pelos corredores,
você sorri desse jeitinho carente para mim, então pensei que fosse gostar de
jantar na minha cabine amanhã. Ela é bem mais espaçosa que as cabines
dos funcionários inferiores.
Pisco. Ele não teve a audácia de dizer isso, teve?
— Ah, pensou foi? — meu sarcasmo faz pirueta em cada sílaba.
— É, achei que você ficaria feliz se eu te chamasse para sair…
amanhã especificamente, porque estou ocupado nos outros dias. Você sabe
como é, o navio precisa de mim para funcionar bem.
— Sei…
Empurro a língua contra o céu da boca, recolhendo todo o poço de
paciência que habita dentro de mim. Levo minha mão até onde ele me toca,
segurando seus dedos, mas não para os tirar dali e sim para acariciá-los.
Não, eu não estou aceitando o convite.
Por três erros cruciais.
O primeiro, ele já chegou tocando minha cintura… perto do meu
umbigo, o que claramente não é qualquer pessoa que eu deixo chegar perto.
Eu não ando de umbigo tampado atoa.
O segundo, ele me chamou para sair como se eu estivesse
implorando por isso com sorrisos. Querido, quando eu quero, eu sou clara.
Pergunte ao Gui.
E terceiro, ele definiu a data, como se eu não tivesse nada mais
interessante para fazer da minha vida do quê vê-lo na sua cabine.
— Claro, eu te vejo lá às 20h — finjo um sorriso.
— Mesmo? — Marcelo perde a pose de confiante por alguns
segundos. Geralmente homens que jogam em cima de você a razão pela
qual estão te chamando para sair, como se estivessem te fazendo um favor,
são na verdade tão inseguros que não sabem lidar com um convite aceito.
— Mesmo — Não. Mas eu queria ser uma mosquinha para ver
você me esperar a noite toda.
Convencido!
— Combinando então — ele tenta beijar meu rosto e desvio para o
lado com toda elegância que aprendi com a minha mãe.
Finjo um sorriso tímido, piscando os olhos devagar.
— Guarde energia para amanhã.
Não espero sua resposta e sigo meu caminho para o restaurante,
tentando me lembrar de algum mantra para me acalmar. Ou de venenos não
detectáveis.
Pode me chamar de puta, piranha, safada, assanhada, eu realmente
não ligo.
Mas necessitada? Ah, meu amor, aí não.
O que eu quero eu tenho, não preciso implorar.
Passo como um furacão pelo restaurante, procurando por um suco
de maracujá. Mamãe me recomendaria tomar um Rivotril, mas ela é meio
hipocondríaca, então não conta.
Como não estou acostumada a ficar tão nervosa, quando acontece,
eu não consigo achar nem um simples copo na minha frente. Não sei como
as pessoas que estão sempre estressadas vivem. Porque eu perco minha
visão, concentração e bom senso.
— Pérola? — uma voz familiar faz os pelinhos da minha nuca
arrepiarem.
Giro rapidamente nos calcanhares, encontrando João Guilherme
tomando no canudinho o suco da fruta que eu preciso.
— Honey? — tento minha melhor expressão amigável, já que ele
não tem culpa do meu humor ter azedado. Tenho verdadeiro pavor de
descontar nas pessoas as minhas frustrações.
Quando ele começa a balançar sobre os próprios pés, indeciso sobre
como me cumprimentar, ofereço meu rosto para que beije. A maioria das
mulheres acharia isso chato, mas eu acho uma graça. É melhor do que ele
sair por aí segurando a cintura alheia sem permissão. Sua boca toca minha
pele sem demora, os lábios gelados da bebida apaziguando a temperatura
quente do meu furor.
Mas nem isso é capaz de me acalmar por completo. Estou
estourando como pipoca na panela. Quem aquele cretino pensa que é para
deduzir que estou precisando de atenção?
Ele tem consciência que tive que me criar sozinha enquanto minha
mãe trabalhava e meu pai bebia na praça jogando damas? Eu não precisei
de atenção nem mesmo dos meus pais quando era criança e tinha dúvidas
para a prova de matemática, que dirá de um cara que acha que me conhece!
— Você está bem, Calypso? — sendo mais observador do que eu
contava, João Guilherme dá um passo para mais perto, suas orbes azuladas
atentas no meu rosto.
A ponta dos seus dedos afasta uma mecha de cabelo que quase
cobria meus olhos, a prendendo atrás da minha orelha. Nossas peles se
resvalam brevemente, mas enviam um choque que desce por toda minha
espinha.
Gui não mantém nenhum contato físico além do necessário, apenas
me fitando esperando minha resposta. Engulo a saliva.
— É… — limpo a garganta. — Não estou, quer dizer, não estava,
eu…
Ah, eu odeio ficar nervosa! Eu não nasci pra me estressar!
— Você tá parecendo comigo agora — seus lábios se erguem
divertidos, mas ainda muito gentis.
Merda… estalo o pescoço, tossindo.
— Alguém me estressou no caminho até aqui, é isso. — Inspiro o ar
com força, prendendo a respiração e soltando lentamente. Vou mesmo
precisar fazer EFT[18] hoje.
— Posso ajudar de alguma forma?
Encaro seus olhos azuis nublados de confusão, mas principalmente
de sinceridade. Gui é aquele tipo de pessoa que você enxerga de longe que é
alguém verdadeiramente bom. Eu realmente espero não estar enganada,
porque o mundo merece mais pessoas assim.
Ele só precisa entender o quanto é bom.
E é aqui que eu entro. Uma coisa Manuela e eu temos em comum:
lidamos com os problemas trabalhando.
E eu tenho muito o que trabalhar nesse portinho de mel.
— Na verdade, sou eu que vou te ajudar.
— Como assim?
— Vamos para a etapa dois do seu treinamento, Honey.
— Você vai usar o Kleber? — ele pergunta pronto para correr.
Sua expressão tira uma risada de mim, desanuviando um pouco o
estresse.
— Não, tudo que vamos precisar hoje é de uma maçã.
— Maçã? Pra quê você precisa de uma maçã?
— Tenho meus métodos próprios de ensino. — Jogo uma piscadela.
— Apenas leve, não me questione.
Bato meus saltos para longe, com um sorriso perverso torcendo
meus lábios.
Acho que a raiva me inspira.
Viu só? Sempre dá para tirar uma coisa boa de um momento ruim.

João Guilherme bate na porta da minha cabine assim que eu


termino meu EFT, infinitamente mais calma depois de querer assassinar
aquele macho pré-histórico. O mando entrar após o segundo toque,
conferindo se fez o que pedi.
Sorrio satisfeita ao ver a maçã em sua mão direita.
O observo sentada da pequena poltrona, descruzando as pernas para
me colocar de pé.
Gui veste uma bermuda de moletom, regata branca e uma coisa que
tinha me passado batido no restaurante: óculos de grau.
A expressão “cega de raiva” nunca fez tanto sentido, por que como
eu deixei passar esse detalhe mais que importante?
Cacete, ele não devia tirar esses óculos do seu rosto nem para
dormir. É sexy em níveis perigosíssimos para a minha sanidade sexual.
— Você está daquele jeito de novo — ele comenta para si mesmo.
— Que jeito? — pigarreio e paro de fantasiar com seus óculos…
não me julgue, isso o deixa intelectual e eu tenho fraco por homens
inteligentes.
— Hipnotizante. Como Calypso — ele usa novamente o apelido,
me intrigando.
— Você viu o que tenho tatuado? — Naquela noite, a luz estava
apagada, mas ele ainda pode ter notado…
— A flor de lótus no braço? — Gui aponta para meu braço direito,
onde a flor foi desenhada há cinco anos. Foi minha primeira tatuagem e foi
em homenagem ao tantra, que tem como símbolo a lótus.
— Não… a sereia.
— Você tem uma sereia tatuada? — os olhos dele percorrem meu
corpo rapidamente em busca da tatuagem.
— Não vai conseguir encontrá-la comigo vestida.
Suas sobrancelhas arqueiam.
— É… é em um lugar… — Ele dá de ombros, esticando a gola da
regata. — Você sabe, em um lugar…
— Não — o poupo do sofrimento. — Não é a Sereia que está em
um lugar mais privativo.
Deixo um olhar significativo e ele pega no ar a mensagem oculta.
— Então tem alguma tatuagem em lugar privativo. — Não é uma
pergunta.
Sorrio, estalando a língua.
— Se você merecer, quem sabe eu te mostro — flerto
descaradamente.
— Merecer? — a insegurança desenha sombras em seus olhos. —
Você sabe que não sou muito bom nessas coisas.
Balanço a cabeça, decidida a mudar esse pensamento pessimista.
Ofereço meu rosto a ele novamente, fechando os olhos para esperar
sua atitude e lhe provar que está errado. Gui aproxima seu rosto, a
respiração lenta batendo contra minha pele, até que seus lábios fazem uma
pressão suave.
Sorrio, abrindo os olhos.
— Você sabe seguir comandos, Honey… — encaixo a mão em seu
maxilar, sentindo o ossinho projetando-se para os lados. — E não apenas a
comandos explícitos, você capta os sinais. Isso já me mostra que é melhor
do que pensa. Você só precisa parar de pensar e se deixar guiar pelos seus
instintos.
A sua respiração mais pesada me deixa satisfeita.
Você também entra na vibe muito rápido, querido. Isso é ótimo. Só
tem que aprender a mantê-la mais do que por alguns segundos.
— Eu só beijei seu rosto, nada demais — seus ombros encolhem.
— Mas eu não te pedi um beijo, apenas me coloquei à sua
disposição… você foi instintivo.
— Qualquer um teria feito isso.
Arqueio a sobrancelha.
— Pode apostar que não. — As imagens de Marcelo se agarrando à
minha cintura vêm à mente.
— Pérola — Joca segura meus ombros, me colocando em sua
frente. Geralmente eu não gosto de ser comandada, mas suas mãos
gigantescas e hábeis me colocando onde quer, causam um certo formigando
entre minhas pernas.
— Gui… — tenho a intenção de brincar, mas sua expressão estoica
e séria me fazem prestar mais atenção.
— Me ensina tudo que eu preciso saber? — o timbre nada mais é do
que o de um gatinho ronronando e se esfregando nas pernas do dono.
Esquece o que eu disse, ele manhoso é muito melhor que ele
mandão.
— Eu estou aqui exatamente para isso, Honey… pegue de mim
todos os conhecimentos que precisar.
— Mas você não vai se sentir usada? — sua pergunta é
genuinamente preocupada.
— E quem foi que disse que eu também não estarei te usando?
— Me usando? Para o quê?
— Como diria a música do meu grupo favorito: só para o meu
prazer.
Ele engole a saliva duramente, adotando tons diferentes de
vermelho na face.
— Não sei como te dar prazer.
Minha calcinha discorda.
— Pegue a maçã e você vai aprender.
— Como uma maçã vai me ensinar a te dar prazer?
— A maçã vai te ensinar a beijar… — Jogo os ombros. — O beijo
vai me dar prazer.
— Eu vou parecer ridículo treinando com uma fruta.
Minha calcinha discorda de novo.
— Você não é o João Guilherme e não está com a Pérola agora…
— finco meus dedos por entre seus cabelos da nuca, o puxando para que
minha boca fique à altura da sua orelha. É bom ser mais alta que ele. E
excitante. A ponta gelada da minha língua contorna a cartilagem macia até
que eu o sinta estremecer. — Você está com sua Calypso. Você me
inventou, a fantasia é sua… e nela, não existe vergonha. O que acontece
aqui, é entre Honey e ela…e eles são ótimos em guardar segredo.
As mãos dele escorrem para longe de mim, mas não fico
decepcionada. Até porque ele ergue a maçã na altura do meu rosto.
— O que eu faço com isso?
— Beija como se estivesse beijando uma pessoa — indico a parte
funda da maçã.
O rosto dele fica ainda mais vermelho. Gui estala o pescoço,
tomando a fruta das minhas mãos para retirar o caule, o guardando dentro
do bolso.
— Vamos lá… não deve ser tão difícil — diz para si mesmo,
claramente em dúvida. Mas pelo menos ele tenta; é por isso que me mantém
interessada.
Depois de engolir a saliva, Gui coloca a língua para fora, sendo a
primeira coisa a encontra a fruta.
Estalo a língua. Primeiro erro.
— Querido… — Limpo a garganta e ele sobe o olhar para mim. —
Você está beijando ou procurando formigas como um tatu?
— Beijando?
— Então recolha metade da língua! Não chegue a enfiando na
garganta alheia.
— Ok.
Ele volta a língua para dentro da boca, encarando a fruta confuso.
— Boca aberta ou fechada? — me indaga.
— Meio termo.
— Assim? — Faz um bico esquisito e mordo o interior da boca.
Não posso rir ou ele vai se envergonhar.
— Menos bico.
Seus lábios se projetam menos e assinto, erguendo os polegares.
Gui começa a beijar a fruta com os olhos abertos, me observando
para saber se está fazendo certo.
— Feche os olhos. — Seguro seu rosto. — Geralmente seguramos o
rosto um do outro ao beijar, então me deixe fazer a parte que a fruta não
pode… se deixe ser guiado, você não pode ficar de olhos abertos durante o
beijo.
Ele me obedece instantaneamente e inclino minha mão para que ele
deite seu rosto, o virando sempre que a direção da minha mão muda para o
outro lado. Como eu disse, ele sabe seguir.
Ah, aquele Corinthiano tem um tesouro em mãos e não sabe.
— Muito bem, querido — faço carinho em seu couro cabeludo,
sentindo uma vontade estranha de ser a merda de uma maçã. — Agora abra
mais os lábios, desenvolva o beijo, use sua língua, apenas não exagere.
Observo o ato dele com os meus lábios presos entre os dentes. Isso
deveria ser engraçado e vergonhoso. Mas é estranhamento sexy.
Principalmente pelos sons que ele faz.
Gui beija a maçã com entusiasmo, se deixando ser levado pela
imaginação e comandos das minhas mãos em seu rosto.
— Pérola, esse Zé Mané insuportável está procurando o noivo… —
a porta é aberta em um rompante, com Manuela e João Pedro entrando no
quarto, estagnando os passos ao ver a cena que se desenrola.
Nós não temos tempo de ter nenhuma reação, a não ser virar os
olhos saltados para eles, comigo segurando a cabeça do Gui, que por sua
vez enfia a língua numa maçã.
— Que porra é essa? — JP faz careta e a fruta cai no chão.
— Você tá ensinando ele a beijar? — Manuela começa a rir.
Assinto devagar.
— Querem privacidade? — Ela tenta se recompor.
— Por favor — dessa vez é João Guilherme quem praticamente
implora.
— Eu vou ter pesadelo com isso — JP sai balançando a cabeça e
quando a porta se fecha atrás dele, Gui e eu nos viramos um para o outro
lentamente, nos encarando por longos segundos, até explodir em uma
gargalhada que nos leva para o chão.
Ele se senta com as pernas abertas e eu deito minha cabeça sobre
elas, com a barriga doendo pela falta de ar. Gui se dobra sobre mim,
buscando o próprio oxigênio.
E acaba roubando o meu.
Seu rosto próximo demais cessa todo e qualquer humor. O único
sorriso no meu rosto provém do cabelo dele que faz cócegas no meu nariz.
— Ele vai me zoar eternamente por isso, sabia?
— Uhum… — balbucio, perdida nas pintinhas mais escuras que
decoram suas íris, como pequenas constelações.
— Tem alguma coisa no meu rosto? — questiona ante o meu
silêncio.
— Tem.
— O quê? — suas mãos já começam a limpar freneticamente antes
mesmo de eu responder.
— Beleza.
— Ah, belez… espera, beleza? — se espanta como se eu tivesse
três cabeças.
— Você não tem ideia de como é bonito, não é? — estreito os
olhos.
— Olha, eu já fui chamado de muita coisa nessa vida e bonito não
foi uma delas.
Nego com a cabeça, erguendo a mão para desenhar seu maxilar.
Essas pessoas não pararam para vê-lo de verdade, então. Porque desde que
meus olhos cruzaram com ele, tudo que consigo pensar é que esse homem é
perfeito demais para ser real.
— Então me permita te oferecer mais uma primeira vez… —
espero seu olhar cair sobre o meu para falar. — Você é um homem muito
bonito, João Guilherme.
O que antes era uma circunferência predominante de azul, agora é
tomado pelo aro negro de suas íris, que se expandem com a minha fala.
Gui não me responde.
Ele apenas termina de inclinar o corpo para frente, se livrando dos
óculos de grau e extinguindo o espaço que separa nossas bocas. Seus lábios
chegam entreabertos, úmidos e quentes, e conforme sua mão entranha em
minha nuca, o bigode arranha minha pele e sua língua caminha lentamente
por entre meus lábios, eu tenho a certeza:
Nada melhor para ensinar alguém a beijar do que uma maçã.
 
— Aquela foi a coisa mais estranha que eu vi na vida. E olha que eu
assisti A Festa da Salsicha. — João Pedro pega a boia de dois lugares para
descermos no toboágua.
— Pra mim não foi nada estranho.
Desde que sai da cabine da Pérola, há umas duas horas, não consigo
tirar aquele beijo da cabeça. Eu não sei explicar, mas encaixou de um jeito
que nunca tinha encaixado antes. Foi como vencer uma partida extra difícil
de Tetris.
Não faz sentido. A posição não favorecia; ela deitada na lateral da
minha perna, eu todo curvado, nós dois no chão… e o principal: eu não a
amo. Como esse beijo pode ter sido melhor do que todos os que eu dei na
mulher com quem iria me casar?
Isso tem feito eu me sentir culpado. E confuso. E extasiado.
A forma como a boca dela se moveu, sua língua abraçando a minha,
lenta e ritmadamente, suas mãos afastando meu cabelo… eu ainda sinto a
sensação nos meus lábios, o formigamento, o calor…
Eu nunca beijei assim antes.
Nunca fui beijado dessa forma.
Quando Pérola produziu um som parecido com um gemido e meu pau
quis se levantar, eu precisei sair correndo dali. Ele ainda dói. Mas se não
doesse, eu ainda estaria lá…
— Como assim você não acha estranho beijar uma maçã? — nós
subimos a escada juntos, e deixo que carregue a boia grande e pesada.
— Eu não estava falando da maçã. — Me sento no espaço da frente da
boia, enquanto JP vai no de trás. Eu já nem me importo com o que vão
pensar da gente, só consigo pensar naquele bendito beijo.
— O que rolou depois que eu saí?
— Eu a beijei.
Conto, segundos antes de o funcionário nos empurrar toboágua abaixo.
Eu espero o frio na barriga, o medo — principalmente quando descemos
pela parte que fica para fora do navio —, mas apesar do meu estômago
gelar, a sensação não se compara com os arrepios que senti naquela cabine.
A boia chega na parte final, comigo afundando quando colidimos com a
piscina. Mas nem a água que entrou no meu ouvido e nariz, é capaz de
acabar com meu humor.
— O beijo foi tão bom assim pra você tá com essa cara de otário?
— Foi o melhor beijo da minha vida — confesso.
João Pedro balança a cabeça para se livrar do excesso de água.
— Nossa, todos os três? — ele gargalha. — Só não vai se apaixonar.
Você nunca mais vai ver essa garota depois que a viagem acabar.
Pisco surpreso.
— Me apaixonar? Tá maluco? — Reviro os olhos. — Eu ainda amo a
Olívia.
— Aham… nunca te vi assim depois de beijar ela.
— Porque eu nunca a beijei perto de você.
— Vocês pelo menos se beijavam? Porque eu tinha minhas dúvidas.
— Claro que sim! — Jogo água na cara dele, saindo de perto da saída
do toboágua. Com a minha sorte, teria o pescoço quebrado por uma boia
descendo em alta velocidade. — Eu só gostei do beijo da Pérola, isso não
quer dizer nada.
— Espero que não, porque ela acha que você vai se casar, não vai nutrir
nenhum sentimento por você.
— Eu sei disso, não esquenta. Não sou tão emocionado a ponto de me
apaixonar por um beijo.
Mesmo que eu duvide que vá ter outro tão bom assim…
Saio da piscina com a intenção de ir para o quarto tomar um banho e me
vestir adequadamente para o jantar, mas Sara tem planos diferentes dos
meus. Nossos bipes vibram.
Misericórdia, o que ela mulher quer agora?
“Oi, aqui é a Sara, sua comissária de bordo particular”.
— A gente corre? — JP sussurra para mim e quando olho em volta, tem
tripulante demais para isso.
— Qualquer coisa a gente finge desmaio.
— Combinado.
Batemos na mão um do outro, esperando o comunicado da malvada
artificial.
“Suas pulseiras de identificação já podem ser retiradas no andar Oliver
Brown[19], na sala Pretzel[20]; façam as escolhas com sinceridade e não se
deixem ser pressionados por ninguém. Vocês poderão trocar as cores
das pulseiras a qualquer momento. Os deixo sozinhos… por enquanto”.
— Pulseiras?
— Eu não sei muito bem o que é, mas a Pérola tinha falado que
escolheríamos pulseiras em breve.
— Eu vou lá buscar, você tem que tomar seu anti-inflamatório.
Faço cara de deboche.
— Tá preocupado comigo?
Meu amigo revira os olhos.
— Só não quero que a gente seja obrigado a interromper nossa viagem
por causa do seu pau avariado.
— Que delicadeza, amor — ironizo, apertando as bochechas dele.
Minha vontade era de socar, mas vão dizer que sou abusivo com meu noivo.
Além disso, se eu bater nele de novo, JP vai me dar uma surra digna das
que eu ganhava na escola.
— Sempre, Bombonzinho.
Ele pisca, mas passa o dedo do meio sobre a sobrancelha.
Um doce de pessoa.

Analiso o tecido amarelo envolta do meu pulso, tentando entender para


que vamos usar isso.
— Você sabe o que significa? — interrogo um João Pedro calado
demais para o meu gosto. Ele apenas entrou no quarto com uma cara
desconfiada, me mandou colocar a pulseira e não deu qualquer explicação a
mais. Agora ele se arruma para a noite de gala, usando o terno que eu
trouxe. Não o do meu casamento, é claro. Esse eu esqueci no salão de festas
porque estava ocupado demais beijando a Pérola.
— As pulseiras identificam o que estamos dispostos a fazer no navio. —
Ele dá de ombros. — Se somos monogâmicos, se topamos ménage, se
gostamos de dar uma observada… acho que é para não sermos
incomodados com convites que não estamos dispostos a aceitar.
Engulo a seco.
— E o que a amarela significa?
— Sei não, eu peguei essa cor porque parece ser tranquila. — Ele passa
gel nos cabelos, os penteando para trás. — As vermelhas devem ser as
piores, e as prateadas santas demais. Fui pelo meio termo.
— Você tá me dizendo que confiou em uma lógica fajuta de cores para
escolher e não na orientação de uma comissária? — Pisco aturdido.
— Tinha só duas pulseiras amarelas sobrando, deve ser porque a
maioria optou por algo mais tranquilo. Até porque, o máximo que vai
acontecer é receber uns convites safadinhos. Recuse e pronto.
Inclino o rosto, concordando.
É… esse é o pior que pode acontecer.

— Ficou sabendo que as pulseiras amarelas foram escolhidas? —


Manuela abre a porta da cabine quase a derrubando, me fazendo borrar o
desenho que fazia na unha. Tudo bem, estava meio feio mesmo. Pelo menos
me deu a coragem para tirar tudo e recomeçar.
— Nossa, elas não eram escolhidas há muito tempo. — Tiro todo o
esmalte da unha borrada com o algodão.
— As pessoas devem ser ricas, porque elas são as únicas que exigem
um valor adicional.
— Ricas e sortudas. Daquele lugar eu só conheci a sala de massagem,
porque um dos tripulantes solicitou na época.
— Deve ter até aquela cruz de BDSM. — Manu suspira sonhadora.
— Essa é mais a sua praia. Você sabe quem escolheu?
— Ainda não, mas vou descobrir.
— Deve ser um casal muito propenso a gastos e com um limite alto no
cartão.
— Maior que o nosso com certeza — Manu geme frustrada, pegando
um algodão e acetona das minhas coisas para tirar seu esmalte rosa pink.
Desde que a conheço, ela só usa essa cor.
— Não é que nosso limite seja pequeno, é que a gente gasta mais do que
pode — sou sincera.
— Ué, se eu ganho dois mil reais e tenho mil de limite no crédito,
obviamente eu tenho três mil reais para usar.
Gargalho alto, negando com a cabeça.
— Tá explicado porque a gente é de humanas, amiga.
— Não me julga, porque você gasta mais do que eu.
— Mas eu parcelo.
— A conta continua a mesma, Cheetos. Você só acha que gastou menos
por ver o valor das parcelas e não do todo.
Termino de pintar a flor na unha, voltando a respirar. Subo o olhar para
minha amiga.
— O que os olhos não veem, o bolso não sente.
— É por isso que você tá sem limite no cartão. Tem parcelas até para o
ano que vem!
— Eu tenho duzentos reais de limite, nem vem — falo ofendida.
— Que vai durar só até a primeira semana que desembarcarmos do
navio.
— Nem isso, eu preciso de umas blusinhas novas, vou pedir online.
— Tá em promoção? — os olhos de Manuela brilham. Quer ver um
pobre feliz? Fale de promoção. Eu como boa pobre, até perco o compasso
do ritmo cardíaco.
— Não, mas eu tenho cupom de desconto — outra palavrinha mágica:
desconto. Ah, se um cara disser isso durante o sexo, acho que posso até
gozar.
— Me passa, eu vi um cropped que vai ficar incrível com meu short
jeans.
Manu e eu passamos mais alguns minutos escolhendo como estourar
nossos cartões sem intenção de pagar tão cedo, até que estejamos atrasadas
para tomar banho e ir para a noite de gala.
Em todas as edições, alguns funcionários são sorteamos para terem
folga e aproveitarem a festa e como Manu e eu não participamos das
últimas cinco edições, essa é nossa vez de nos vestir como gente rica e
fingir que temos dinheiro para pagar pela roupa que usamos.
Spoiler: não temos.
Mas o “achados e perdidos” do navio é lotado de roupa cara e bonita,
então o usamos de guarda-roupa.
A gente tira no par ou ímpar para ver quem vai tomar banho primeiro e
quando as duas começam a roubar na cara dura, decidimos entrar juntas e
poupar tempo. Nos vestimos depressa, correndo para o depósito, antes que
mais pessoas tenham a mesma ideia que nós e levem todas as roupas boas.
O problema de pegar roupa emprestada, é que geralmente ficam largas
em mim. Se tiver decote então, fico me sentindo uma pré-adolescente, louca
para encher o sutiã de papel higiênico. Se o decote for nas costas e profundo
demais, aí é meu cofrinho que aparece, porque bunda também não tenho.
Vidas descorpadas importam!
— Eu vou com esse! — Manu ergue um vestido vermelho tomara que
caia, com uma fenda na perna. Ela tem peito pra segurar esse negócio, mas
não tem altura pra andar sem tropeçar na barra.
— Vai ter que usar um salto quinze — aviso.
— Todos os meus saltos são quinze — Manu dá de ombros. — E com
qual você vai?
Encaro minhas opções, sabendo que o azul vai sobrar nos meus peitos, o
preto vai ficar na metade da minha canela e o amarelo parecendo uma
camisola.
Suspiro.
— Acho que é melhor eu não ir. Eu troco de lugar com algum
funcionário que tenha roupa pra isso.
— Ah, mas não vai ter graça sem você — Manu faz beicinho.
— Não se preocupe, eu vou ficar vendo reprise de RBD e comendo
M&M de amendoim.
— Tem certeza? Eu posso te fazer companhia.
— Tenho certeza. — Aceno com a cabeça. — Eu quero mesmo que se
divirta, você merece.
— Mas e você? Não quero que fique triste e sozinha.
— Eu vou assistir ao Santos fazer a Lupita se apaixonar por ele e
esquecer o bosta do Nico pela milésima vez, não tem como ficar triste. [21]
Ok, talvez eu fique um pouco triste, porque queria ir à festa, mas posso
usar esse tempo para aproveitar a minha solitude. Tem tempo que não fico
sozinha, vai ser saudável.
É isso… sempre uma coisa boa em outra ruim. Não vou me chatear.
Foda-se o fato que eu sempre quis me vestir com vestido de gala e
dançar uma valsa, já que não pude na minha festa de quinze anos. Eu já
tenho vinte e sete. Não ligo mesmo pra isso. Não mesmo.
— Certeza? — Manu confere mais uma vez.
— Certeza, Mônica.
— Magali!
 
 
Uau.
É tudo que consigo pensar desde que subi ao salão superior, onde a
noite de gala foi montada. Eu pensei que fosse ser no mesmo local da
primeira festa, mas aqui estou eu no convés do navio, exatamente acima da
cabine do capitão, onde a parte mais pontiaguda do navio se afunila.
Algumas mesas foram postas, uma iluminação menos lúdica e mais
elegante e calorosa, com o som de violinos ao fundo.
Não tocando Celine Dion, tá tudo certo.
O garçom nos oferece uma taça de espumante, mas eu recuso por ser
alérgico à uva, e opto pelo copo de água.
João Pedro, ao contrário de mim, vira a taça dele de uma só vez.
Balanço a cabeça com a mão na testa.
A elegância em pessoa.
— A gente sabe ficar em uma festa tão chique assim? — ele limpa a
boca com as costas da mão.
— Você ainda precisa perguntar? — ironizo.
— Ah, até parece que você sabe se portar nesses lugares.
— Não sei, mas eu fico calado e sorrio quando acho que é necessário.
Aí quem olhar de fora, acha que eu sei.
— A personalidade em pessoa — ele zomba.
— Fala menos e me ajuda a procurar comida, tá inclusa no nosso
pacote.
— João Guilherme, se você falar mais alguma vez que algo está incluso
no pacote, eu juro que te jogo do navio.
— É fácil falar, você veio de graça!
— São as vantagens de ter um amigo que foi corno antes do casamento.
Eu prometo que quando for minha vez, te deixo ir na minha lua de mel.
Viro a água na boca como se fosse álcool. Mas também podia ser
veneno.
— Faça o favor de comer para não passar mal — alerto.
— Não vou comer, já está tarde.
— João Pedro, já conversamos sobre isso. Sem privações de refeições,
lembra? — o encaro seriamente. De tempo em tempos, ele fica mais
paranoico que o normal com a dieta e isso me preocupa, porque sempre
acaba com ele passando mal dias depois. A sua relação com a comida nunca
foi lá uma coisa muito saudável. Ou come demais ou come de menos.
Vou ter que conversar com a mãe dele. Só ela para obrigá-lo a procurar
um médico. E não mentir pra ele.
— Ora ora, se não são Pinky e Cérebro[22].
Nos assustamos com a voz feminina e viramos para o lado em um pulo,
assistindo a valentona trajada em um vestido longo de cor vermelha,
combinando com os lábios pintados na mesma cor. Seus cabelos castanhos
caem por seus ombros, batendo abaixo de seus seios.
João Pedro limpa a garganta quando ela se aproxima.
— Eu sou o Pink — já escolho o melhor personagem.
— É claro que é — ela ri, jogando os cabelos para o lado com
elegância. Então a malvada consegue ser uma dama? Até hoje ela só foi
uma cobra com a gente.
— Está bonita — elogio por educação.
— Obrigada, você também dá pro gasto. — Retiro o que eu disse. Ela é
feia porque é má. — E você? Só vai ficar me olhando e não vai falar nada,
Bombom de Alho? — ela se dirige ao meu amigo, que a encara sem piscar.
Pelo amor de Deus, ele não é apaixonado por ela ainda, né?
Se a humilhação que o fez passar não bastou, então quase arrancar o pé
dele no primeiro dia de cruzeiro deveria bastar.
— Quer que eu diga o quê?
— “Você está deslumbrante” seria educado. — Sorri provocativa.
— Seria, mas não tenho intenção de ser educado com você.
— E você tem intenção de ser educado com alguém, por acaso?
Olho de um para o outro, como um filho vendo os pais brigarem.
— Gente… — Ergo as mãos para chamar atenção e seus olhares se
viram para mim sincronizados, faiscando de raiva. Ok, é melhor eu sair de
perto. — Por acaso a Pérola está por aqui, pra eu me encontrar com ela e
deixar vocês se matarem sem testemunha?
O semblante de Manuela muda no mesmo instante que pronuncio o
nome da amiga.
— Ela não pôde vir.
— Por que não? Está trabalhando?
— Não, ela só não tinha roupa.
— E você não podia emprestar ou só não quis ninguém ofuscando o seu
narcisismo? — João Pedro provoca e eu juro que sai fumaça da orelha dela.
— Escuta aqui seu filhote de cruz credo, se eu tivesse uma roupa para
emprestar, Pérola já estaria aqui. Mas se não percebeu, nós temos corpos
diferentes e caso você seja burro o suficiente para não entender, minhas
roupas ficariam largas e curtas demais nela!
Arregalo os olhos.
E lá se foi toda a elegância dela.
Céus, como Pérola é amiga dessa onça?
Enquanto uma é uma bomba prestes a explodir, a outra é praticamente
um Seakalm[23].
— Dá pra pararem de brigar?
— Não! — rosnam em uníssono.
Ergo as duas mãos, me rendendo.
— Vou atrás da Pérola. Por favor não se matem antes de concluirmos a
viagem, eu gastei dinheiro nesse cruzeiro e quero pelo menos aproveitar ele
até o final.
Já basta o casamento que paguei e não fui.

— Se for a Manuela, já mandei você se divertir que estou bem. Se for o


Marcelo, espere sentado para o nosso encontro e se for um supervisor, eu
estou doe…
— É o Gui — interrompo o falatório dela depois que bati à sua porta.
— Ah, Honey! — grita animada, abrindo a porta rapidamente, com um
sorriso rasgando o rosto. Não consigo não sorrir de volta, principalmente
com seu pijama estampado com maçãs. Isso me traz memórias… — O que
tá fazendo aqui?
Ela me puxa pela gravata, me colocando para dentro da sua cabine.
— Vim pedir ajuda para impedir que João Pedro e Manuela se matem
no convés e transformem isso em um cruzeiro de terror.
Pérola assobia enquanto me observa descaradamente dos pés à cabeça.
— Vou te chamar de senhor Honey agora. Está um gato! — Ela beija
minha bochecha duas vezes, me pegando totalmente de surpresa. O que não
é surpresa é minha cara pegar fogo.
— Obrigado. — Abaixo a cabeça, tentando esconder minha expressão
ridícula.
— Não vai me dar dois beijinhos de volta? — Pérola estica seu pescoço
como tem feito desde que nos conhecemos e a beijo tão demorado quanto
minha vergonha permite. Pelo menos demorou mais do que o tempo que
levei pra gozar quando ela sentou em mim.
— Então, os dois estão brigando de novo? — retoma o assunto.
Suspiro, assentindo.
— Não conseguem dar “oi” sem partirem para a ignorância.
— É tesão reprimido, se transarem passa — ela desdenha, mas seus
olhos saltam em seguida. — Ah, meu Deus, estou falando do seu noivo,
desculpa...
— Fique à vontade, eu não me importo. — Mesmo. Eu não me importo
mesmo. — Mas eu acho que Manuela enforca ele com as coxas se tentarem.
Ao invés de sexo, vai virar briga.
— Melhor do que fraturar o pênis dele — caçoa como se ela própria não
tivesse feito isso.
— Engraçadinha.
— Sempre! — Pérola se joga na cama, me puxando pela mão. — Senta
aqui e me conta o que veio fazer de verdade na minha cabine.
Pérola é esperta demais. Isso é um perigo para uma anta como eu.
— Eu vim te convidar para subir e aproveitar a festa.
Um biquinho se forma no seu lábio e ela aponta para a tela.
— Estou assistindo a reprise de Rebelde, não vai dar.
— Não é por isso — revelo sua mentira. — Manuela falou que você não
achou nada pra vestir.
— Aquela linguaruda de pouca estatura! — Cruza os braços emburrada.
— Não fica brava, ela tava triste sem você lá. — Bom, triste não era
exatamente o sentimento e sim cólera, mas uso isso de desculpa.
Pérola ergue a sobrancelha.
— Antes ou depois de discutir com o Corinthiano?
— Durante — acabo rindo.
— Ela sobrevive sem mim essa noite.
— Mas e eu? — Brinco com os dedos, com medo de olhar para ela e a
coragem ir embora. — O que eu vou fazer sem minha instrutora lá em
cima?
Dedos gelados erguem meu queixo.
— Você sobreviveu sem mim por 25 anos.
— É, mas você viu que eu mandei bem mal sem supervisão durante esse
tempo — entro na brincadeira.
Pérola geme frustrada, se jogando de costas na cama.
— Eu queria ir, mas como Manuela contou, não tenho roupa.
— Não dá pra vestir qualquer coisa?
O jeito que ela me olha me dá a certeza que falei merda.
— Querido, você é um fofo, mas ainda é homem demais pra entender o
que acabou de falar.
— Não entendi mesmo.
— Escuta... — Segura minhas mãos. — A minha autoestima é ótima, às
vezes até demais, mas inclusive eu tenho um limite. Não vou me sentir bem
vestida de qualquer jeito, enquanto todo mundo está extremamente
elegante.
— Ok, eu também não me sentiria — sou obrigado a concordar. O
argumento dela é irrefutável. — Mas aqui não tem lojas?
— Lojas tem, o que eu não tenho é dinheiro sobrando. Massagistas
tântricas ainda não recebem o quanto deveriam.
— Eu estou te convidando, então o certo da minha parte seria te
oferecer a roupa, já que não preciso oferecer o jantar.
Franzo o cenho assim que a fala sai da minha boca.
Espera… eu me ofereci para gastar dinheiro?
Bati a cabeça?
— Não precisa, é sério. Vou ficar bem vendo meu RBD. — Recusa
gentilmente. — Eu te convidaria para ficar, mas também quero que você se
divirta lá em cima e me conte todas as fofocas.
Meu ombro cai e faço a minha melhor expressão pidona.
— Eu prometo que assisto quantos episódios você quiser, mas por favor,
não me deixa lá em cima sozinho — nem preciso de esforço para fazer
meus olhos lacrimejarem, é só me lembrar da minha vida amorosa.
Pérola esfrega o rosto, se sentando na cama.
— Ok, mas só se a gente achar algo barato.
Falou a palavra mágica pra mim, sereia.
— Combinado!

Achar algo barato? A coisa mais em conta que eu achei nesse navio foi
uma presilha de cabelo. Ela pode ir nua, com o cabelo arrumado?
Forço um sorriso na cara para não demonstrar que sou um belo de um
mão de vaca, como JP gosta de me chamar. Isso é culpa do meu pai, ele
economizava em tudo, como um bom contador. A única pessoa que não
sofria com suas economias era mamãe, porque ela tinha tudo que queria.
Ele me ensinou a economizar até colocando água no shampoo, mas nunca,
em hipótese alguma, economizar com a mulher que você ama.
Não amo a Pérola.
Mas ela tem sido uma boa amiga.
Conta, não é?
— Eu desisto! — Pérola suspira cansada depois de passarmos pela
terceira loja.
— Ainda tem uma última. — Inclino o rosto na direção da última
vitrine.
— Aquela é a mais cara.
Engulo a saliva.
— Mas é nossa última opção.
— Você não deveria tá usando esse tempo para se aproximar do seu
noivo? — suas íris avaliativas me estudam.
Merda… ela tem razão.
— É que… bom, a gente combinou de se conhecer sozinhos antes de
nos conhecermos como casal.
— Vocês deveriam ter feito isso antes de aceitarem casar um com o
outro, mas ok… — ela desdenha claramente confusa com nossa relação. Se
soubesse da missa a metade... — E ele não vai sentir sua falta?
Seguro a risada.
— Pode apostar que ele não é do tipo apegado.
— Deve ser um pouco difícil pra você.
— Por quê?
— Porque você faz o tipo apegado.
— Como sabe? — Tá tão na cara assim?
— Você é romântico, atencioso e prestativo, deve esperar isso de volta
também.
É, esperar eu sempre esperei, agora receber em troca nunca me
ocorreu.
— Tudo bem, JP e eu lidamos bem um com o outro. — A gente não ter
se matado em 25 anos de convivência é uma ótima prova disso.
Pérola me observa avaliativamente e me sinto como um bicho dissecado
sendo estudado por uma universitária. Ela é observadora e tenho que tomar
cuidado com isso.
Pelo menos ela aceita me acompanhar até a última loja de vestidos, sem
fazer mais nenhum questionamento sobre meu noivado.
— Eu vou dando uma olhada por ali e você procura por aqui — Pérola
ordena, como sempre querendo ter o controle de tudo. Como ela consegue
ser calma e mandona ao mesmo tempo? Ela é aquele tipo de fúria contida
que você tem medo de cutucar e passar por cima de você.
— Eu não sei o que procurar — digo a verdade. Não sou a pessoa com
mais senso de estilo se ela não notou.
— Escolha algo que faria você se interessar por uma garota caso a visse
vestindo.
Fantasia de Temari[24]?
Eu penso, mas não falo. Ela nem saberia quem é, de toda forma.
Olho em volta, coçando o queixo.
Que tipo de vestido me atrairia em uma mulher? Eu nunca pensei sobre
isso. Me senti atraído por Olívia no momento que me deu “oi” e não revirou
os olhos para mim.
Disfarçadamente, observo as peças que Pérola analisa por mais tempo,
antes de seguir para a próxima.
Ela gosta de coisas brilhosas. Ok.
Então vou procurar brilho.
Fico de frente para a arara de vestidos longos, perdido com tanta cor e
opção. Cruzo os braços, batendo o indicador no queixo. Quando estou
travado durante o desenvolvimento de algum game, eu fecho os olhos, fico
nessa posição e tento me imaginar jogando com ele já pronto.
Agora, eu só troco o jogo por Pérola descendo uma escadaria, porque
foi isso que vi em todos os filmes que minha mãe assistia na sessão da
tarde. Era o único horário que ela me deixava ver tv, já que não passava
nada de putaria.
Esses conhecimentos fizeram falta…
Talvez se eu tivesse assistido a mais filmes, não precisasse que uma
mulher me ensinasse com uma maçã.
Foco, Joca! — Shikamaru grita na minha cabeça.
Ok, foco. Achar um vestido que a deixe bonita.
Não… achar um vestido digno da beleza dela. Porque Pérola com
certeza não precisa de uma peça de roupa para ficar deslumbrante. Por mim
ela iria com seu pijama e ainda assim se destacaria.
Ao voltar a abrir os olhos, um tecido dourado e reluzente me chama
atenção ao final dos cabides. O retiro com cuidado, notando seu peso leve
em comparação a todos aos outros pesados demais. Eu acho que isso
combinaria muito mais com o jeito extrovertido dela do que algo
extremamente formal.
Limpo a garganta, a chamando. Pérola gira o pescoço com uma
sobrancelha erguida e mostro o vestido. Seus olhos brilham mais do que o
tecido.
— Cacete, que vestido lindo!
Comprimo os lábios para não rir.
Boquinha suja…
— Fica parada. — Com as mãos em seus ombros, a posiciono de frente
para mim, estendendo o vestido diante dela. Quando o tecido leve chega aos
seus pés em um farfalhar, o ar escapa dos meus pulmões.
Minha nossa… isso é…
É…
Abro a boca tentando pronunciar um adjetivo suficiente para o que essa
cor faz com a pele dela, mas só consigo dizer uma única coisa plausível.
— Experimenta! — entrego a ela o vestido dourado de alças finas
— Ficou maluco? — ela exclama depois de olhar a etiqueta. — É muito
caro, e se eu estragar?
— Não tem problema, porque ele já é seu.
— O quê? Como assim meu? — Pérola gargalha, negando com a
cabeça. — Eu nunca teria dinheiro suficiente para comprar esse vestido.
— Que bom que eu tenho, porque eu não consigo admitir ninguém mais
vestida com ele do que você. — Não sei de onde vem essa vontade de
gastar e muito menos a necessidade de vê-la dentro desse tecido, mas não
consigo evitar que minhas palavras saiam atropelando minha língua.
— Eu não posso aceitar um presente tão caro, me desculpe — Pérola
recusa educadamente, empurrando o vestido para mim.
Dou um passo para mais perto, segurando em seu antebraço e a fazendo
esticá-los diante de si mesma, onde repouso o tecido brilhante.
— Não só pode, como deve, já que me presenteou com um ainda mais
valioso.
— Não entendi — ela me observa confusa. — O que eu dei a você que é
mais valioso que este vestido?
— O melhor beijo da minha vida.
Pérola pisca aturdida.
E eu começo a calcular quão forte eu teria que bater a cabeça na parede
para fingir desmaio. Onde foi parar o meu filtro mental?
— Você… — Ela limpa a garganta, seu rosto adotando um tom rosado.
Está tímida? Por que ficaria? Já me disse coisas bem mais reveladoras do
que um simples beijo. — É… você não precisa me retribuir por isso, eu te
beijei porque quis e…
Pouso o polegar sobre o lábio dela, segurando o inferior para que não
diga mais nada. Os olhos de Pérola saltam e meu rosto esquenta.
— Por favor, não estou tentando te pagar pelo beijo, eu jamais te
ofenderia dessa forma — liberto seu lábio, o massageando para não ficar
dolorido. — Eu só quero muito presentear uma pessoa que tem me feito
bem em um momento difícil.
Não me importo de relevar essa segunda parte agora e Pérola me deixa
confortável o bastante para não questionar o porquê de eu ter dito isso.
— Você sabe que somos amigos agora, não é? — averigua. — Não
precisa me presentear.
— Eu sei — manejo a cabeça afirmativamente, afastando uma mecha de
cabelo dela para longe do seu rosto. — Mas eu ainda quero… por favor, não
recuse meu presente.
As pálpebras dela se estreitam, como se tentasse entender o que enxerga
em sua frente. Ela passeia a língua por seus dentes superiores, em uma
mania que notei desde que a conheci.
— Ok — Sorri ao final, suspirando. — Mas com uma condição.
— Você não pode deixar de ter o controle um só segundo, não é? —
arquejo.
— Não. — Ela bate no meu peito. — Sou viciada em mandar. Agora
fique quieto e escute minha condição.
Finjo fechar um zíper na minha boca, esperando seu veredicto. Seja lá
qual for, eu vou aceitar. Eu apenas preciso ver essa mulher dentro desse
vestido ou não vou viver em paz.
— Só vou aceitar se for alugado, não comprado.
— Mas… — começo a contestar e ela ergue uma sobrancelha como
quem diz: ouse me contrariar… eu não ouso. E nem deveria querer, afinal
ela está querendo que eu economize. Eu não deveria querer o mesmo? —
Ok.
Me rendo.
— Ótimo, vou experimentá-lo — Pérola dá gritinhos e pulinhos de
adolescente animada, me presenteando com seu sorriso travesso.
Cristo, eu me sinto realmente um jovem de 16 anos com ela, mesmo que
Pérola seja mais velha que eu. Em que parte da minha vida eu perdi esse
espírito infantil e feliz? Eu sequer já tive ele dentro de mim?

Puta. Que. Pariu.


Eu nunca, na minha vida, vesti algo tão bonito.
Desde que eu comecei a trabalhar no navio, via esse tecido brilhando na
vitrine, mas embora chamasse minha atenção, eu sabia que meu querido
salário iria todo embora se eu sequer me atrevesse a olhar para a etiqueta.
E eu estava certa.
Essa coisinha brilhosa e dourada, custa uma pequena bagatela de mil e
setecentos reais.
O aluguel já deve custar meu rim direito.
Mas nossa, eu entendo o preço, isso aqui é deslumbrante. Parece que foi
feito para mim, os brilhos dourados realçando o leve bronzeado da minha
pele, as alças tão finais que mal se sobressaem em meus ombros,
comportando bem o decote profundo, que me surpreende ao não ficar
sobrando em meus seios.
Seguro a barra, a girando de um lado o outro.
Se meu pai não tivesse falecido uma semana antes do meu aniversário
de quinze anos, eu com certeza, teria escolhido algo assim para usar no dia,
ao invés do moletom que usei para comer o bolo que minha mãe
encomendou para não deixar a data passar em branco.
Giro incontáveis vezes em frente ao espelho.
Eu sempre me considerei uma mulher bonita, mas agora eu realmente
me vi como a princesa que meu pai me chamava.
Vai ser doloroso devolver esse vestido depois de usar. Quem sabe um
dia eu consiga dinheiro para comprá-lo...
Com uma longa respiração, empurro a cortina vermelha do provador,
fechando os olhos ao me virar para João Guilherme. Acho que não quero
saber se ele não gostar, porque esse definitivamente é meu vestido ideal.
— Virgem Maria! — escuto uma aclamação. Virgem? Não deve ser
comigo. — Você está deslumbrante.
Ah, aí é comigo.
Abro os olhos devagar, conferindo se é João Guilherme mesmo que está
mesmo me elogiando.
E bom, me elogiando não sei, mas babando com certeza está.
Seus cotovelos estão apoiados em suas pernas, enquanto seu rosto se
encaixa em suas mãos. Se fosse um cachorro, a língua estaria para fora, mas
eu não preciso vê-la para entender esse olhar. Ele quer me levar para cama
agora mesmo, mas não vai, porque eu definitivamente preciso usar esse
vestido.
— E então? — Dou uma voltinha, a saia flutuando no ar. — Você
gostou?
— Se eu gostei? — sua voz arranha e ele pigarreia, tentando se
recompor. — Acho que eu já tenho a aparência perfeita para a próxima
heroína do meu jogo.
Arqueio uma sobrancelha.
Eu? Heroína de um jogo?
Ele me ganhou só de não ter falado que eu seria a vítima a ser resgatada.
— Eu preciso que você feche o zíper para mim.
Viro de costas, trazendo meu cabelo para frente. Gui demora um tempo
até se colocar atrás de mim e observo seu olhar indeciso através do espelho.
Ele está focado em minha nuca, como se fosse uma região extremamente
interessante. Me pegando de surpresa, seus dedos tocam a região,
arrepiando os cabelinhos descoloridos. Ele não faz menção de descer até o
zíper, apenas fica desenhando coisas aleatórias na pele descoberta.
— O zíper é bem mais embaixo, Honey. — provoco para ver suas
maçãs do rosto ficarem rubras. — Você vai precisar ser mais ousado.
João Guilherme não me encara pelo espelho, ao contrário. Sua atenção
se mantém fixa e determinada em seu trabalho. Da minha nuca, seu toque
desce sobre a linha da minha coluna, tão interessado em sentir minha pele,
que o deixo levar o tempo que precisar. É tão leve quanto o carinho de uma
pena macia, mas ao mesmo tempo muito eficaz.
Um toque não precisa ser invasivo para dar prazer. Na verdade, os que
parecem mais insignificantes, são os que geram o grande resultado.
Ao chegar na base da minha coluna, ele engole em seco e assisto de
camarote seu pomo de adão movendo-se duramente. Gui não demora a
segurar o zíper e o elevar até tê-lo fechado por completo.
— E o beijinho? — pisco os olhos inocentemente. — Nos filmes,
quando o cavalheiro sobe o zíper de uma dama, deposita um beijo sobre o
ombro dela.
— Eu posso?
Minha postura é quebrada com o tom carente da sua voz.
Aceno positivamente.
João Guilherme toca meus ombros cobertos apenas com a fina alça do
vestido, acariciando a região antes de inclinar minimamente seu rosto para
me beijar. Seus lábios se separam infimamente, apenas que eu sinta um
pouco do interior quente e molhado.
Os olhos dele se fecham e demora mais tempo em seu gesto do que já vi
em todos os filmes. Mas eu não reclamo desse roteiro improvisado. Na
verdade, se não quisesse mesmo usar esse vestido, o convidaria para meu
quarto.
— Foi bom? — Sorri sem graça depois de se afastar.
Viro de frente para responder descentemente.
— Você realmente ficou bom em beijar, Honey.
Ele é do tipo que precisa de incentivos verbais. E eu não me importo em
dá-los.
— Já escolheram? — a atendente pergunta ansiosa. Eu também estaria,
a comissão dela vai ser gorda.
— Já, vamos alugar esse — aponto para o vestido.
A expressão dela cai.
— Sinto muito, esse nós não alugamos. Só está disponível para venda.
Alegria de pobre dura pouco mesmo, viu.
— Ok, então eu vou tirá-lo.
— Não! — Gui me impede de seguir para o provador. — Nós vamos
levar esse mesmo, moça.
— Mas a gente combinou que... — começo a reclamar e a atendente me
interrompe.
— Você não deveria se preocupar, ele deve poder te dar esse presente, já
que está com a pulseira amarela.
Tão logo fala, meus olhos caem sobre seu pulso. Puxo a sua blusa social
para cima, constatando que foi ele quem escolheu a pulseira vip.
— Puta merda — exclamo chocada. Um capricorniano gastando tanto
assim? Vou rever meus conceitos sobre astrologia.
— Espera, o que tem a ver a pulseira com o vestido?
— É que a pulseira vale o dobro do vestido — debocho.
— Como é esse papo? — a cor do rosto de João Guilherme some tão
rápido quanto o meu salário na conta em dia de pagamento. Ele se senta no
pufe redondo no centro da loja, se abanando.
— Todas as pulseiras são gratuitas, servem apenas para identificar se
vocês são monogâmicos, ou se estão dispostos a outras experiências... —
começo a explicar.
— Mas? — ele faz careta para esperar a resposta.
— Mas essa sua pulseira, dá acesso à área vip do navio, na última
semana do cruzeiro... e custa três mil reais.
— Misericórdia — ofega.
Acho que ele vai desmaiar
Abano seu rosto depressa, pedindo à moça que traga um copo de água
com açúcar. Ela mal entrega e Gui parece que acabou de voltar de uma
maratona de compras na Vinte e Cinco de Março de tão rápido que bebe o
líquido.
— Você não sabia? — interrogo sem entender nada.
— Não — a voz dele é só um fio rouco. — O JP ficou encarregado de
pegar as nossas pulseiras e ele disse que viu só duas das amarelas, então
pensou que fossem as mais comuns, que o pessoal mais tinha escolhido. Na
cabeça dele, seria a mais de boa.
— Ninguém pegou porque elas custam um rim e meio. — Digo com
pena.
— Eu vou matar o João Pedro! — Ele se ergue e seguro seus ombros.
— Calma, respira aqui comigo — Sopro seu rosto. — Mentaliza uma
chama púrpura. Foca na chama púrpura.
— Posso mentalizar o JP queimando nela?
— Se te acalmar... — Dou de ombros. — Olha, eu vou tirar esse vestido
e a gente esquece esse assunto de você gastar, ok?
João Guilherme não me deixa afastar pela segunda vez. Sua mão segura
a minha e ele respira fundo cinco vezes antes de voltar a falar. Seu olhar cai
novamente sobre o tecido brilhoso e ele nega com a cabeça.
— Desculpa reagir assim, mas isso é sobre a merda que o JP fez, e não
sobre seu vestido. Se eu gastei com a merda de um quarto pomposo, por
que não gastaria para te ver linda e feliz assim? — ele suspira, claramente
tentando se acalmar. — Eu vou fazer o JP limpar nosso apartamento pelo
resto da vida dele e tá tudo certo. Mas o vestido é seu.
— Mas...
— Sem “mas”, Pérola. É seu. — Ele se vira para a atendente, não me
dando chance de interferir. — Vocês dividem em quantas parcelas no
crédito?
— Quantas o senhor precisaria?
— Todos os meus anos de vida.
Sorrio encantada.
Ah, é como eu, adora uma parcelinha. Isso me faz gostar ainda mais
dele agora.
— Que isso, assaltou uma loja? — É a primeira coisa que Manuela fala
quando Joca e eu subimos para o convés do navio, depois de eu ter
terminado de me arrumar na cabine.
Não fiz uma maquiagem muito elaborada, porque definitivamente não
levo jeito pra coisa. Ainda bem que nasci bonita.
— O Gui comprou o vestido pra mim — Beijo a bochecha dele.
— O Joca? — João Pedro gargalha. — Esse Joca aqui? Gastou
dinheiro? Conta outra!
— É verdade — Gui anuncia
— Tá zoando? — a voz dele sobe alguns decibéis. — Será que ficou
enciumado? Merda, não quero causar problema. — Você conseguiu fazer
esse homem gastar?
Sendo pega completamente de surpresa, o Corinthiano me abraça,
tirando meus pés chão e me girando pelo ar. A sorte dele é que fez isso
comigo e não com Manuela. Ela tem o estômago mais fraco que de um
gato.
Ele só para de girar quando Joca coloca uma mão em seu ombro, forte o
suficiente para JP fincar os pés no chão.
— Solta ela. — A voz dele não é nem um pouco doce.
Nós nos viramos para ele com os olhos saltados.
Bom, se JP não ficou com ciúmes dele ter me alugado um vestido, com
certeza Gui ficou com ciúmes do noivo. Ele realmente parece gostar mais
de João Pedro do que este o retribui.
— Por que, Bombonzinho? Estou agradecendo a ela por ter te
convencido a abrir a carteira.
— Não precisa abraçar assim pra isso — diz emburrado. — Ela já
entendeu que você está grato. E a gente vai ter uma conversa sobre gastos
mais tarde.
Manu me cutuca e conto a ela o lance das pulseiras. Claro que ela adora,
porque pimenta no olho dos outros é refresco para minha amiga.
Antes que eles comecem a discutir pelo erro de João Pedro, os bipes dos
meninos vibram em seus bolsos e a voz de Sara estouro os nossos tímpanos.
— Lá vem… — Manu resmunga.
— Eu tô ficando traumatizado com essa voz — JP completa.
Reviro os olhos. Por acaso eu sou a única que gosta da Sara? Ela é
uma grande querida.
“Oi, aqui é a Sara, sua comissária de bordo particular. A elegância e
luxo reinaram em nosso navio na noite de hoje. Podemos nos sentir
nobres ingleses do século XIX, aproveitando um baile da alta
temporada de casamentos. E como um bom baile francês, não pode
faltar uma boa dança a dois… vocês só não podem escolher seus
próprios parceiros para ela. Sem ciúmes, é apenas uma dança
inocente…”
A voz dela mal termina de se perder no ar e João Guilherme já me toma
nos seus braços, um segundo antes de JP tentar o mesmo. Arregalo os
olhos.
— Nossa, eu tô tão bonita assim? — provoco o Corinthiano. Ele bufa,
estendendo a mão para Manuela a contragosto.
— Eu só não queria ficar com a valentona, não se acha não.
— Como se eu quisesse dançar com você — minha amiga coloca a mão
sobre a dele com a delicadeza de um elefante.
Acho graça, enlaçando o pescoço de Joca com os braços.
— Você me presenteou com o vestido, nada mais justo que seja o
primeiro a me tirar para dançar.
— Eu preferia ter esse direito por você gostar mais de mim do que dele
— diz com a cabeça baixa e aproveito para aproximar os lábios de sua
orelha.
— Então pode ficar feliz, porque eu realmente gosto mais de você do
que dele.
Joca estremece e ergue o rosto, deixando nossos lábios a milímetros um
do outro.
A saliva se acumula na minha boca, me lembrando do sabor adocicado
do seu beijo. Engulo forçosamente, afastando nossos rostos.
— Você vai precisar nos conduzir, porque isso aqui eu não sei dançar —
digo um tanto ofegante. Que merda, nem está tão quente.
— Não se preocupe — ele envolve minha cintura com uma das mãos,
seus dedos se aconchegando na região com maestria. — Ao menos aqui e
agora, você pode se deixar ser guiada.
Os olhos cor de mar adotam uma rara confiança. E por incrível que
pareça, eu gosto.
Ele nos leva para a lateral do navio, onde podemos ver mais das luzes
refletindo no oceano escuro e denso.
“Só para o meu prazer” começa a tocar em uma versão mais lenta do
que a original e meus pelos se arrepiam. Essa é minha música favorita da
vida.
Minha mão direita é capturada pela esquerda dele, que as ergue na
altura de nossos rostos.
— Basta manter seu corpo leve, não lute contra. Você saberá o que fazer
— ele fala como eu diria na cama.
— Acho que eu já te disse coisas parecidas — sorrio viperina.
— E gostou mais de falar ou ouvir? — se fosse qualquer outro, eu diria
que a frase está carregada de malícia e provocação, mas João Guilherme
apenas entona a mais crua curiosidade
— No momento, eu preferi ouvir — lhe ofereço a mesma sinceridade.
Ele me responde com um breve sorriso, nos movendo lentamente pelo
piso.
Eu realmente não sei dançar a dois, mas eu sei como deixar meu corpo
se levar. E para alguém que, apenas com uma mão na minha cintura,
consegue enviar mensagens ao meu cérebro do que fazer, fica ainda mais
fácil.
Franzo o cenho, tentando decifrar todas as facetas desse homem. Ele é
inocente, mas sabe mais coisas do que penso. É reservado, mas sabe ser
extravagante em pequenos gestos. Não gosta de gastar, mas me ofertou um
vestido que nem mesmo eu, que gasto mais do que posso, teria coragem de
comprar.
— Quem é você? — sussurro em voz alta, me dando conta apenas
quando ele responde.
— Um homem que também está tentando descobrir quem é a mulher
em seus braços agora.
Engulo a saliva.
— Eu sou uma mistura simples de coisas complicadas — respondo
quando ele me gira e volto a ficar frente a frente ao seu rosto. — E você,
senhor misterioso?
— Eu sou uma mistura complicada de coisas simples.
Sorrio, beijando sua bochecha demoradamente.
— Então prazer em te conhecer.
— Prazer? — seus dedos se afunilam na minha cintura quando repete a
mesma pergunta que me fez quando nos conhecemos.
— Você pode deixar o prazer para depois se preferir — rio da nossa
brincadeira.
— Agora eu sou mesmo obrigado a deixar para depois — ele abaixa os
olhos para sua virilha machucada.
— Vou ter que pedir desculpa quantas vezes pra você esquecer isso? —
faço bico.
— Eu nunca vou ser capaz de te esquecer, Pérola — ele diz brincalhão,
claramente zombando de mim, mas a frase faz acontecer algo estranho no
meu estômago. São gases?
— E isso é ruim? Não me esquecer?
O sorriso dele morre aos poucos.
— Não — me responde seriamente. — Há várias coisas na minha vida
que eu realmente gostaria de esquecer. Que eu faria qualquer coisa para não
ter na lembrança. Mas aquela noite, mesmo tendo terminado em um
desastre total, não está na lista que eu quero excluir do meu HD interno.
Está nas pastas que quero arquivar.
— Que tipo de pasta? — fico curiosa. Achei que ele tivesse detestado
aquele dia.
— Na pasta das recordações que eu devo abrir de vez em quando para
me lembrar de como é bom ser livre.
Erro um passo da dança.
— Posso perguntar o que mais tem nessa pasta?
Ele encolhe os ombros, olhando para cima.
— Quase a minha infância toda até meu pai falecer. Eu realmente gosto
de me lembrar desse período.
Pisco.
— Seu pai também faleceu quando era jovem?
— Quando eu tinha quinze an… espera, seu pai faleceu?
Assinto com um sorriso amarelo.
— Eu também tinha quinze — explico. — Estou quase vivendo minha
noite de debutante que não tive, só faltou a valsa.
— Sinto muito. — Ele ergue a mão para fazer um carinho no meu rosto,
mas a detém, indeciso em me tocar. A seguro, tomando a decisão por ele,
pressionando contra meu rosto. Seu toque é quente e confortável.
— Carinho é sempre bem-vindo, Honey.
— Vou me lembrar disso. — Sorri, dissipando o clima pesado que se
instalara. — Já que você não teve sua valsa de quinze anos, me permite sair
do ritmo da música para dançá-la com você?
— É... c-claro — gaguejo, já que não esperava por isso.
Mas eu não esperava nada do que tem acontecido nesses primeiros dias
de viagem.
João Guilherme muda o ritmo com que nossos pés se movem, em uma
cadência mais acelerada, nos girando pelo centro da pista que os
passageiros formaram. Algumas pessoas nos encaram esquisito, afinal
estamos totalmente fora do compasso da música, mas eu só consigo fitar
seus olhos cor de piscina e me impressionar com a capacidade que ele tem
de fazer de gestos pequenos, algo grande.
Fico imaginando como ele se parecia com quinze anos. E como seria a
imagem de nós dois, se ele tivesse sido o príncipe da minha festa. Parece
tão ridículo eu me importar com isso, mas eu sempre tive uma dorzinha no
coração de não ter tido esse momento. Além disso, minha mãe deu tudo de
si para não chorar naquele dia. O homem que ela amava havia falecida há
uma semana, meu pai havia partido... eu só lembro de sorrir por ela e ela
não chorar por mim. Foi o presente que eu pude receber naquela época.
João Guilherme me gira com delicadeza, meus pés quase flutuando no
ar; o vestido dourado formando um aro bonito ao nosso redor. O brilho se
torna ainda mais intenso quando as luzes o refletem, formando pequenos
fachos de luz no chão. Ele me volta ao passo correto quando me perco, me
ergue como as garotas costumam ser erguidas nas festas de quinze e inclina
meu corpo para trás ao final da dança, selando minha testa com seus lábios.
— Posso ser sincera? — indago quando ele me coloca ereta novamente,
com meu coração batendo no peito em todas as direções.
— Por favor — Gui também tem a voz ofegante.
— Gostei mais desse presente do que do vestido. Mas obrigada pelos
dois. — Beijo sua bochecha, com a barba fazendo cócegas.
— Eu também gostei mais desse. Mas por nada pelos dois. — Nossos
rostos começam a se aproximar de forma natural, porém a banda interrompe
a música, nos assustando. Ele pigarreia, mudando de assunto. — Seus pés
não estão doendo com esse sapato?
Olho para baixo.
— Na verdade estão, mas não dá para usar um vestido como esse sem
saltos.
— Quer se sentar para descansar um pouco? — ele me oferece em um
gesto cavalheiro. Mal sabe que só de não ter reclamado por eu usar salto e
ficar ainda mais alta que ele, já tinha ganhado pontos por bravura.
Abro a boca para confirmar, mas logo sou tomada por outros braços e
João Guilherme é forçado a se desvencilhar de mim. O Corinthiano assume
a minha condução e Manuela tenta dançar com Gui.
— O que tá acontecendo? — indago confusa.
— O Thanos que você chama de amiga, tá quase perfurando o pouco do
meu pé que sobrou. Eu não danço mais com ela.
Giro o pescoço para olhar Manuela e acabo vendo Joca massageando os
próprios pés depois que ela pisou.
Sorrio amarelo.
— Ela não leva muito jeito pra dança.
— Jura? Não percebi — ele me gira com habilidade e fico
impressionada que os dois dancem tão bem. Deveriam dançar um com o
outro.
— Por que você não puxou seu noivo para dançar?
Ergo a sobrancelha e ele arregala os olhos.
— Porque a Sara mandou dançarmos com outras pessoas.
— Hum…, mas isso foi na primeira dança.
—Escuta, Joca e eu vamos querer guiar e não vai dar certo.
— Na dança, assim como na vida, temos que abrir mão do controle de
vez em quando.
— Só que aquela anta quadrada só abre mão do controle para quem não
dá valor nele e… — JP se interrompe no meio da fala com uma expressão
assustada. — Deixa pra lá.
Estreito os olhos.
— Vocês agem um com o outro como melhores amigos, xingando,
provocando… nem parecem noivos.
A mão dele se torna gelada contra a minha.
— É que fomos amigos por muitos anos, então alguns hábitos não
mudam. — Seu olhar desvia do meu, fugindo sempre que tento contato.
— Você realmente se importa com ele? — é a pergunta que não deixa
minha mente.
O Corinthiano suspira, me girando na pista. Quando nossos corpos
voltam a se encontrar, me surpreende com a resposta.
— O Joca é a pessoa mais importante da minha vida. Eu me importo
com ele como não me importo com ninguém mais.
Eu procuro na sua linguagem corporal ou tom da voz, algum miligrama
de mentira ou falsidade, mas este homem está sendo sincero. Já lidei com
mentirosos o suficiente para saber quando estão tentando me enganar.
— E você o ama?
Ele demora a me responder, mas quando o faz, também é de forma
certeira.
— Amo.
Pisco confusa. É verdade. Mas ainda parece oblíquo demais, como se
faltasse um “mas” nessa frase.
Suspiro, deixando para lá. Às vezes minha intuição pode ser invasiva
demais e acaba me fazendo ver problema onde não há.
— Espero que seja verdade… — procuro por João Guilherme, sorrindo
ao vê-lo ensinar os passos básicos para uma Manuela emburrada. — Porque
ele é uma pessoa boa.
— Até demais, Vascaína… até demais.
— Ele deve ter muito o signo de câncer no mapa astral — suponho.
— De signo eu só sei que sou de escorpião, no mais não me pergunte.
Faço careta.
— Nossa, agora tá explicado por que eu tenho vontade de te bater
mesmo sem motivos. Detesto escorpianos. — Ergo o queixo.
— E você é o que, oh boazuda?
— Sou sagitariana, com ascendente em leão e lua em libra — me gabo.
— Saúde, Deus te abençoe.
— Mas eu não espirrei.
— Só que eu entendi como um espirro.
A música termina e JP foge de mim o mais rápido possível, talvez
intimidado com meu interrogatório pelos seus sentimentos. Ou meu papo de
signos. Ele não é tão aberto como seu noivo; é mais receoso.
Mesmo não gostando de admitir, JP se parece demais comigo.
— Ele te irritou muito? — Gui sussurra próximo às minhas costas e sua
voz faz meu couro cabeludo pinicar. Giro lentamente, com a barra do
vestido esvoaçando pelo piso.
— Nada que eu não possa lidar — estalo a língua, estendendo minha
mão, que ele captura imediatamente. — Vamos nos sentar ali.
Indico a ponta do navio, onde um casal acaba de tirar uma foto estilo
Titanic. Sinceramente, eu adoro esse filme, mas tenho vontade de bater na
Rose. Se ela tivesse ido com os botes, o Jack só precisaria se preocupar com
a própria segurança e provavelmente estaria vivo.
Isso é sempre um bom lembrete para nunca deixar sua segurança de
lado por ninguém, porque esse alguém pode não dividir o espaço seguro
com você.
Gui e eu nos sentamos com os pés para fora da barra de proteção, os
balançando no ar.
Os meus olhos estão na água, mas eu sinto suas íris queimando minha
pele.
— Obrigado por ter vindo, Pérola.
Sorrio sem o encarar, apenas esticando meu rosto querendo receber mais
alguns dos seus beijos. Eu sou grudenta, eu sei, mas não posso evitar. Gosto
de contato físico.
Gui me beija, mas dessa vez, não na minha bochecha.
Beija o canto dos meus lábios.
E talvez, apenas talvez, eu sinta um palpitar estranho no peito.
 
 
 
Eu não deveria ter comido tanto canapé de camarão. Meu estômago está
reclamando mais do que minha ex-noiva quando me via jogando LOL. Mas
é que estava incluso no pacote e eu tinha que dar prejuízo para o navio igual
eles me deram com essa merda de pulseira vip. João Pedro ouviu um
sermão de duas horas sobre isso ontem, quando voltamos para a cabine.
Ele cagou, mas pelo menos eu desabafei.
— Certeza que vai ficar aí? — João Pedro passa protetor solar de
qualquer jeito, ficando com manchas brancas no rosto.
— Passa na orelha — aviso antes de me revirar na cama, ficando de
bruços. O balançar do navio não está ajudando em nada e eu comecei a
sentir muito mais depois que Sara anunciou que o mar estava mais agitado e
por isso deveríamos evitar usar as piscinas do navio. — E sim, vou ficar no
quarto, estou praticamente vomitando.
— Então eu estou de saída! — ele se adianta para a porta. — Se estiver
morrendo, vai até a enfermaria.
— Não deveria dizer “se estiver morrendo, me chama”?
— E eu por acaso sou médico ou coveiro? O máximo que vou poder
fazer é chorar sua morte.
— Sai logo daqui! — atiro uma almofada na direção dele, mas JP sai a
tempo de eu só conseguir atingir a porta.
Um gemido de dor escapa pelas minhas entranhas e permaneço o mais
estático possível, tentando me concentrar em não vomitar.
Por que sempre que estamos enjoados, nossa mente fica enviando
imagens de comida? Por acaso é alguma gozação?
Vamos, Joca, pense em algo antes que coloque até as tripas para fora.
Eu poderia simplesmente vomitar, mas eu odeio com todas as minhas forças
ficar vomitando. Eu choro, é humilhante, nojento e barulhento.
Vamos, pense em algo bom, cheiroso e bonito!
As três palavras fazem meu cérebro dançar até a noite de ontem, mais
especificamente o quase beijo que dei em Pérola. Não faço ideia do que deu
em mim, mas vê-la tão linda naquele vestido, com um tom suave de
vermelho nos lábios e a luz da lua refletindo sobre seu rosto, não cabia
apenas beijar suas bochechas. Se eu fosse um pouco mais corajoso, teria a
tomado para um beijo tão bom quanto o que ela me deu anteriormente, mas
a insegurança só me permitiu resvalar contra seus lábios.
Não importa, o sorriso que ganhei em troca conseguiu ser melhor do
que qualquer beijo. Aquela mulher pode conseguir tudo que quiser apenas
com um relevar de dentes e esticar de lábios. É um sorriso brilhante,
realmente feliz.
Ao menos foi isso que fez comigo na noite de ontem. Me fez feliz,
como se eu não estivesse em um dos piores momentos da minha vida. Para
ser sincero, se alguém me perguntasse o porquê de eu estar nesse cruzeiro,
diria apenas que quis fazer a viagem. Pérola conseguiu me fazer esquecer
de tudo com muito mais facilidade que o álcool.
Nós ficamos conversando por horas a fio, como se nos conhecêssemos a
vida inteira.
Flashback
— Você tem um sonho bobo? Do tipo que fantasiou toda sua infância e
continua sendo seu desejo secreto e inocente? — Pérola pergunta
subitamente, observando as ondas causadas pelo navio cruzando o mar.
Apoio o queixo na barra de proteção, tentando me lembrar de algum
em específico. Sorrio quando minha mente se recorda de um tão antigo
quanto me lembro — Quando eu era criança, via o meu pai realizando
todos os desejos da minha mãe. Se ela falava que estava com vontade de
comer algo, logo ele aparecia com o desejo dela em mãos. Se ela admirava
uma bolsa em uma loja, ele podia levar os meses que fossem, mas ela a
ganharia quando menos esperasse. — Fecho os olhos, ainda me lembrando
perfeitamente da conversa com meu Pai. — Um dia, eu o perguntei por que
ele fazia todas as vontades dela.
— E o que ele respondeu? — os olhos de Pérola brilham úmidos.
— Ele respondeu que fazia todas as suas vontades porque é assim que
se trata o amor da sua vida.
— O seu sonho é ter um relacionamento como o deles, então?
Nego com a cabeça.
— Meu sonho é poder realizar todos os sonhos do amor da minha vida.
Pérola desvia o olhar, brincando com os próprios dedos.
— E o seu? Qual seu sonho bobo de criança?
Um pequeno sorriso dança nos lábios dela.
— Ser erguida nos braços como nos finais das comédias românticas,
quando o casal percebe que não pode viver um sem o outro… é uma
vontade que tenho desde que assisti Dirty Dance. — Ela joga os ombros. —
Mas não vai acontecer.
— Por que não? — franzo o cenho. Que homem não se sentiria honrado
em realizar este sonho dela?
— Sou alta demais… é meio difícil.
— Não para o homem que te amar de verdade.
Fim do flashback
Sorrio com a lembrança, esquecendo momentaneamente do enjoo. Nós
realmente fizemos valer o investimento naquela noite, porque ficamos no
convés até que o sol nascesse. Pérola deitada no meu colo, eu brincando
com seus cabelos e um silêncio tão agradável quanto uma conversa sobre
animes.
Ela lutou contra o sono até ver o sol nascer, quando finalmente se
entregou para ele, tranquila nos meus braços. Confesso que passei bons
minutos apenas a admirando dormir. Aproveitando da sua paz, para senti-la
também.
Eu nunca fui um homem muito crédulo em todas essas coisas de energia
e aura, mas mesmo que eu não acredite, sou obrigado a admitir que Pérola
tem algo que transborda dela, algo que nos envolve antes mesmo de
percebermos. Ela nos faz rir, sem ao menos entender a razão.
Se eu pudesse defini-la como algo da natureza, seria o sol. Que mesmo
quando se esconde, ilumina a lua para não nos deixar no escuro. É assim
que me sinto.
Ainda que ela não esteja aqui, consigo sentir aquela paz.
Paz e enjoo, mas isso é culpa dos canapés.
Canapés esses que querem muito sair do meu corpo agora.
Levanto depressa, chegando por pouco tempo ao vaso, esgotando tudo
que eu tinha colocado na boca no dia anterior. Ah, que merda. Agora eu vou
chorar.
Por acaso tem alguém que não chora quando vomita?
Agarro a louça gelada, tentando não me esborrachar no chão.
— Caralho, você tá mesmo morrendo, o Corinthiano não mentiu —
alguém fala atrás de mim, mas não posso me dar ao luxo de virar o pescoço
ou poderia despejar meu estômago por todo o chão. — Vem cá, deixa eu
segurar você.
Quando uma mão gelada toma minha testa, eu percebo que se trata de
Pérola.
Virgem Maria, a Pérola!
Ela não pode me ver assim.
— Não… — Afasto o rosto dela, querendo me esconder. — Sai daqui,
não quero que veja isso.
— Até parece que vou te deixar sozinho aqui. — Ela estala a língua,
ignorando meus pedidos para que se afaste.
— Pérola, isso é nojento — argumento, fazendo o possível para não
chorar. É em vão quando uma nova ânsia atinge e eu coloco até a garganta
para fora. Deus, que vergonha.
— Shhhh… não se preocupe. Eu cuidava do meu pai quando ele bebia.
— Ela continua segurando meu rosto, se agachando às minhas costas. —
Você está sendo comportado perto dele.
Seus dedos massageiam meu couro cabeludo e de vez em quando ela
molha as mãos na pia e passa pela minha nuca e pescoço, outras limpando
meu rosto, sem qualquer receio ou asco. Eu tenho vontade de tirá-la daqui o
mais rápido possível, mas as forças do meu corpo estão indo embora junto
com a descarga.
— Acha que foi tudo? — Pérola puxa meu rosto para si, afastando meu
cabelo pregado de suor.
— Acho que sim… — engulo dolorosamente, a garganta ardendo com o
gosto intragável. Começo a escovar os dentes, quando ela segura a barra da
minha camiseta.
— Então vem, vou te ajudar a tomar um banho.
Arregalo os olhos.
— Banho? — enxaguo a boca, negando com a cabeça.
— Eu já te vi pelado, não se preocupe.
É… ela tem um bom argumento.
Suas mãos gélidas me ajudam a tirar a camiseta pela cabeça e ao menos
consigo me livrar sozinho das calças e cueca. Minhas bochechas ardem
inevitavelmente, mas não me sinto desconfortável.
Logo a água fria cai sobre minha cabeça e até tento sair, sendo impedido
por uma mulher muito da mandona.
— Fica quieto aí! — ela me empurra para debaixo do chuveiro,
escorregando no processo e parando sob o jato de água junto a mim. — Ai,
caralho, que gelo.
Solto uma risada.
— Pimenta nos olhos dos outros é refresco, né? — zombo da careta que
ela faz para a temperatura da água.
— Eu molhei minha roupa — ela encara seu uniforme ficando
completamente encharcado.
Para a minha sorte, ou azar, a camisa branca perde qualquer utilidade ao
se tornar transparente. E com certeza Pérola não é muito adepta ao uso de
sutiã. Inclino o rosto, observando a pecinha metálica em seu mamilo direito,
empurrando o tecido molhado.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Já imagino o que seja, mas fala.
— Por que só um? — Aponto para o piercing.
Pérola ri, assentindo.
— Todos perguntam… e a resposta é simples: doeu para um cacete. Não
tive coragem de fazer no outro.
— E ainda dói? — fico verdadeiramente curioso. — Quer dizer… não
dói se tocar, se…
Pérola interrompe minha balbuciação ao abrir os botões da camisa,
ficando nua da cintura para cima, apenas com sua saia e lenço no pescoço.
Engulo assustado.
Acho que vou vomitar de novo, mas dessa vez é de pânico.
Pânico porque ela é bonita demais e eu nem sei o que fazer com isso.
— Me dá sua mão.
— O que você vai fazer?
— Te mostrar o que acontece quando tocam.
— Eu não quero te machucar — digo engasgado.
— Você não vai…
Pérola insiste com a mão estendida e não sou forte o suficiente para me
controlar. Eu a entrego.
Meus dedos são abertos, aproximando-os de seus pequenos seios. Sua
pele é de um rosa claro, quase nenhuma auréola ao redor, apenas com o
mamilo mais proeminente, nem tão grande nem tão pequeno, apenas o
tamanho ideal para a pecinha brilhante, com uma bolinha de cada lado.
Ela comanda meu indicador para tocar ao redor, contornando o pontinho
esticado. Minha respiração pesa ao ponto de ficar audível, ainda que sob o
som da água despencando sobre mim. Observo o que ela faz com total
atenção, hipnotizado, me esquecendo que há pouco estava quase morrendo.
— Continue — ela me solta de seu comando físico, mas a ordem ainda
está implícita no ar, caminhando pela minha mente. Meus pés se aproximam
com um passo e meu dedo continua percorrendo sua auréola a sentindo se
enrugar sob meu toque e seu mamilo se projetar na minha direção. Não me
atrevo a tocar o piercing, com medo de que qualquer erro meu a machuque.
Com um passo generoso, Pérola se aproxima mais de mim, fazendo
minha mão espalmar seu seio, o mamilo pressionado e esmagado contra
minha palma. O ar escapa sofregamente da minha boca, admirando surpreso
a região.
— Não vai doer se você tocar. Apenas explore, faça o que tiver vontade
— incentiva, escorrendo seus dedos da minha nuca até a base da minha
coluna. Meu quadril se projeta para frente instintivamente, o gesto fazendo
meu membro resvalar contra sua saia.
— Desculpe…
— Peça desculpa por algo que eu sinta muito ter acontecido, o que não é
o caso aqui. — Ri viperina. — Continue, Honey.
— Olá, Calypso — sorrio extasiado ao perceber a mudança de tom e
atitude da sua parte. Já não estou com a doce Pérola aqui.
Sua confirmação vem em forma de toque, onde suas mãos passam das
minhas costas para meus braços, descendo e subindo pela pele, me
arrepiando mais que a água gelada. Com uma respiração em busca de
coragem, ouso tocar uma das extremidades do metal, subindo o olhar para o
rosto de Pérola.
— Me avise se machucar.
— Eu vou gemer se machucar, mas se fica mais tranquilo com um
aviso, tudo bem — ela joga os ombros e nem me atrevo a perguntar se ela
iria gemer de dor ou prazer. Até porque minha intuição me diz que é a
segunda opção.
Pulo de uma extremidade a outra do piercing, um pouco sem graça de
tocar seus mamilos. Meu medo é que seu corpo não esboce qualquer reação
ao meu. Não que eu espere grandes resultados ante a minha falta de
experiência, mas ver seu rosto frustrado mais uma vez seria constrangedor.
— Se não vai brincar, não desce para o play, querido — sua voz é
crítica, mas ao mesmo tempo divertida.
— É difícil brincar se você não sabe as regras do jogo.
— Então me deixe facilitar para você — ela segura novamente minha
mão, fazendo meu polegar e indicador pressionar seu mamilo intumescido
de uma forma nem um pouco delicada ou branda. Arregalo os olhos para a
região. — Aqui vai as regras.
Seus lábios desenham a pele da minha orelha, a respiração gélida me
enviando calafrios pela espinha.
— Número um, trace seu objetivo.
Ela pressiona mais meus dedos contra sua carne.
Minha nossa…
— Número dois, não sinta pena.
Pérola solta minha mão, e aumento a pressão dos meus dedos, ficando
satisfeito em senti-la resfolegar.
— E número três, aposte em círculos — para demonstrar, a ponta de sua
língua contorna a cartilagem da minha orelha e preciso contrair o abdômen
para o choque que vai descendo até minha ereção já nem um pouco
discreta. Ainda dói. Mas não posso evitar. — Siga essas regras e será bem-
sucedido na tarefa que escolher realizar.
Arriscando mais do que qualquer outra vez antes, belisco o pequeno
mamilo entre os dedos, o girando e torcendo, quase fechando os olhos para
a cena infernalmente luxuriante à minha frente. Acho que nunca senti tanto
desejo por algo como agora. Nunca quis tanto mais e mais suspiros para
mim como os que ela me entrega conforme eu aperto e castigo sua carne.
Minhas bolas ardem e busco em seu rosto saber exatamente o que ela
sente. Não dá para atestar o prazer que ela sente como dá para ver
visivelmente em meu membro ereto, cavando a saia que ela pressiona
contra mim.
— Pérola? — chamo baixo e ofegante, esticando um pouco mais seu
mamilo para mim.
— Diga, Honey… — a voz dela é mais controlada que a minha, mas
ainda assim, mais baixa e tempestuosa do que antes.
— Ainda não tenho certeza sobre o que você sente quando te toco aqui.
Ela solta uma risada lenta e baixa… profunda.
— Me dê o prazer de te mostrar.
A mão livre que eu repousava em sua estreita cintura, ela segura no
pulso e a leva para dentro do tecido encharcado de sua saia. Pérola faz meus
dedos passearem pelo interior da sua coxa, a pele macia e suave deslizando
facilmente pela água, até chegar ao centro do seu corpo.
Ofego quando, ao invés de encontrar um tecido interrompendo meu
caminho, encontro nada além de uma pele escorregadia e infernalmente
quente. Subo meus olhos para ela, me perdendo no castanho das suas íris,
tão confiantes como nunca. Um sorriso tênue, mas ao mesmo tempo voraz,
eleva o canto dos seus lábios.
Abro a boca para tentar formular uma frase, mas tocar seus seios e seu
sexo estão tornando todo meu raciocínio fraco e enevoado.
Pérola faz meus dedos subirem e descerem por entre seus lábios,
espalhando ainda mais o líquido que escorre. Mordo o interior da boca para
conter o grunhido que quer escapar pela garganta.
— Você está tão… — nego com a cabeça, procurando a palavra certa.
— Molhada — ela completa por mim.
— Não — rio incrédulo. — Encharcada.
Pérola sorri, fazendo um dos meus dedos se afundarem minimamente
em sua entrada. Meu pau contrai tão fortemente que trinco os dentes de dor.
— Agora você sabe o que eu sinto quando o tocam — ela abaixa o olhar
para seu piercing. Belisco mais forte o ponto agora avermelhado das minhas
ministrações e ela rebola contra meu dedo, me fazendo ir do céu ao inferno
em poucos segundos.
— Pérola… — murmuro necessitado.
Ela solta minha mão, me deixando sozinho, e não interrompo minha
exploração por sua intimidade. Misericórdia, eu nunca fui muito bom em
fazer oral, mas eu daria tudo para ter em minha boca o que agora meus
dedos percorrem. O sabor dela deve ser ainda melhor que seu aroma.
Para extinguir qualquer fio de sanidade que ainda resistia em minha
mente, ela envolve minha ereção em sua mão, seu polegar massageando
minha glande, a contornando e espalhando o líquido que já começa a
aparecer.
— Se você estivesse recuperado e totalmente bem, eu te deixaria
ajoelhar e descobrir muito mais de perto o quanto você me deixou excitada
com esse toque… — sua língua estala e eu fecho os olhos quando as mãos
dela descem para minhas bolas. — Mas preciso que esteja cem por cento
bem para aprender tudo que vou te ensinar.
— Eu acho que estou melhor — argumento desesperado. — Deve ser
um milagre.
Pérola gargalha, liberando meu pau do seu carinho e retirando minhas
mãos do seu corpo. Eu poderia muito bem começar a chorar aqui.
— Não seja ansioso. Tudo no seu tempo, Honey — ela bica meus
lábios, saindo de dentro do box.
Enfio a cabeça debaixo da água gelada, esperando que ela seja capaz de
diminuir o calor do meu corpo.
Eu só não sei como vou fazer meu pau abaixar, se nem bater uma eu
posso.
Oh vida de cão!

— O que acha? Fiquei bonita? — dou uma voltinha na frente de Joca,


depois de vestir uma camisa dele.
Minha roupa está agora secando na varanda do quarto e eu torço para
que o vento a seque antes da minha próxima sessão de tantra daqui três
horas.
Gui me observa da cama, com o olhar tão guloso quanto o que ele me
direcionou no chuveiro. Prova disso é sua ereção insistente, que mesmo
após meia hora, ainda fica me provocando sob o short de moletom que ele
escolheu.
Moletom é sacanagem, isso é quase uma calcinha de renda para os
homens.
— Você fica linda com a minha roupa — ele comenta baixinho, sem
desviar a atenção de mim.
Nossa, realmente há algo incrível em ser admirada. Se o navio pegasse
fogo, Joca permaneceria me olhando até ser obrigado a salvar a própria
vida.
Pulo na cama ao lado dele, conferindo a temperatura da sua testa.
— Então, está melhor mesmo ou só disse aquilo para tentar transar
comigo no chuveiro? — falo já esperando o vermelho tomar conta do seu
rosto. E bingo. Ele toma.
— Eu… eu estou um pouco melhor sim…
— Mas?
— Mas eu devo admitir que também queria transar com você no
banheiro — ele confessa com um travesseiro sobre o rosto.
Rio alto, o tirando da frente para admirar sua expressão.
— Você não precisa ter vergonha de querer transar comigo, eu também
queria transar com você lá dentro.
— Mesmo? — os olhos dele saltam.
— Você acha que fico molhada daquele jeito à toa? — reviro os olhos.
— Eu não penso em sexo vinte e quatro horas para estar sempre pronta.
Só noventa por cento disso, mas não preciso expor minha mente safada.
— Não entenda errado, eu só não achei que você estivesse daquele jeito
por minha causa.
— Querido, você tem que começar a tomar ciência do quão gostoso
você é.
— Gostoso? — ele ri. — Eu?
— Foi a primeira coisa que pensei quando te vi.
— Que eu era gostoso?
— E que eu ia perder a aposta com Manuela. Estou devendo uma grana
pra ela por culpa sua — bato no peito.
— Eu sinto muito.
— Não sinta, valeu a pena a experiência.
— Mesmo que eu tenha gozado com uma sentada?
— Mas foi a sentada — me abano. — Você atingiu um novo recorde de
profundidade.
Gargalho alto com a expressão chocada que ele me lança.
— Vou parar de te deixar com vergonha antes que você exploda na
minha frente.
— Eu agradeço — ele contorce as mãos sobre a barriga.
— O que você ia fazer se eu não tivesse chegado?
— Provavelmente eu ainda estaria chorando no vaso com nojo de mim
mesmo.
Dramático…
— Não, eu quero dizer depois disso. O que você ia passar o dia
fazendo?
— Ah — ele assente. — Eu ia assistir alguns episódios do Shippuden.
— Saúde — faço graça porque não tenho ideia do que ele acabou de
pronunciar. — Que caralhos é isso?
Joca ri da minha confusão, se sentando na cama.
— Digamos que são os episódios do Naruto na sua versão mais velha.
— Ah, Naruto eu sei o que é.
— Jura? — os olhos dele brilham na minha direção como se eu fosse
um diamante.
— Juro, eu sempre assistia algum episódio pela manhã, enquanto
esperava começar O Clube das Winx.
— Ah, entendi — a expressão dele murcha um pouco.
— Você esperava encontrar uma fã louca, não é? — faço carinho no seu
rosto. Ele fica fofinho chateado.
— Na verdade, sim.
— Olha, eu não era nenhuma fã, mas eu achava um dos ninjas um
gatinho.
— Deixa eu adivinhar… — a cara dele retorce. — O Sasuke?
— Quem é esse? — coço a cabeça.
— O de cabelo preto, galã da escola, todas as garotas disputavam ele…
— Pela sua descrição, eu tenho certeza de que não era desse que eu
gostava — debocho. — Detesto os famosinhos. O que eu gostava, era um
com cara de tédio, que vivia jogando um jogo de tabuleiro… como era
mesmo o nome?
— Shikamaru! — ele ajoelha na cama em um pulo.
— Saúde! Você tá ficando gripado? — olho assustada.
— Não, Shikamaru é o nome do personagem.
— Ah, isso eu não sei, pra nome eu sou péssima.
— Deixa eu pegar uma foto dele para te mostrar… onde tá meu celular?
Ele vasculha sua mala com uma pressa desnecessária, desalinhando um
pouco os meus chakras. Esse homem já ouviu falar em calma? Vou passar
umas meditações pra ele.
— Aqui! — ele se senta do meu lado, ligando aparelho. Assim que dá
os primeiros sinais de vida, as notificações quase o transformam em um
vibrador potente.
A maioria levando o nome “mamãe”. Fofo, eu acho lindo quem chama
os pais assim.
— Sua mãe deve estar com saudade — provoco jogando o ombro contra
o dele.
— Quem dera fosse saudade — ele estala o pescoço.
— E essa? É sua irmã? — indico o nome Olívia, que decora as três
últimas notificações.
A expressão dele se fecha no mesmo instante e até mesmo sua cor que
estava voltando, vai embora.
— Minha ex.
Arqueio a sobrancelha.
— Vocês são amigos?
— Não — ele sai rapidamente da tela inicial, deletando todas as
notificações.
— Por acaso ela fica no seu pé para voltar, então? — tento uma
brincadeira, mas isso não ameniza seu bico irritado.
— Não sei o que ela quer comigo e tenho raiva de quem sabe — a voz
dele entoa tanta irritação e mágoa, que é difícil não aprofundar no assunto.
— Ok — ergo as mãos.
Joca finalmente acha a foto do personagem e me passa o celular para
ver.
— Ah, é esse aqui mesmo… — passo as fotos para o lado, entendendo
o porquê eu o achava tão gato. — Nossa, esse é ele mais velho?
— Sim, essa foto é dele na terceira guerra ninja.
— Vamos ver esse negócio, porque acabei de adicionar um crush
supremo na minha lista.
— Quem está no topo? — sua voz sai mais calma agora.
— O Santos, de RBD.
— Não faço ideia de quem seja.
— Eu assisto Naruto com você hoje e depois eu te apresento a obra de
arte da tv mexicana.
— Combinado — Joca ri e bate a palma na minha que estendo na sua
direção.
Bato palmas animada, me sentindo atrás dele e o fazendo deitar a
cabeça no meu colo. Assim eu posso fazer trancinhas no seu cabelo.
Geralmente não curto cabelos grandes demais, mas são um ótimo trabalho
manual antiestresse.
Joca passa uma hora me explicando o que preciso saber de essencial
para entender o episódio que ele vai colocar, mas tudo que captei é que um
velho malvado de olho vermelho quer trazer à vida um mostro com calda
pra cacete e botar o mundo todo pra sonhar.
Não faz sentido pra mim, mas eu não contei isso ao Gui, ou ele nunca
colocaria o episódio.
Ah, quase me esqueci. Ele disse que tenho que odiar o gótico gatinho e
amar o loirinho sorridente. Acho que agora foi tudo.
A porta do quarto é aberta quase no final do episódio, por Manuela e o
Corinthiano, nos encarando como se vissem um massacre. Deve parecer
que houve mesmo um, porque eu estou debulhada em lágrimas.
— O que diabos aconteceu aqui? — Manu faz cara de nojo quando eu
assoo o nariz.
— O Neji morreu — eu digo chorando, abraçando o Gui para conter os
soluços.
Ele dá de ombros, afagando minhas costas.
— É um evento canônico — explica, mesmo eu não fazendo ideia do
que é canônico.
— Eu vou fingir que não vi isso — escuto a voz de Manuela e logo
depois um tapa. — Olha o que seu noivo tá fazendo com ela!
— E que culpa tenho eu, endemoniada?
— Parem de brigar e vivam o luto! — eu choro mais alto e escuto a
porta se fechar em seguida. Será que eu os espantei? Pelo menos o Gui tá
quase chorando junto comigo.
 
 
“Mãos para cima!”
Gritam os professores de zumba do lado de fora da piscina.
João Pedro me arrastou para a água querendo queimar as calorias que
ingeriu ontem na noite do Fondue e eu, como um noivo legal — como ele
me chamou —, não poderia deixá-lo sozinho e sem apoio.
Ergo os braços tentando seguir os comandos, mas a vovozinha ao meu
lado tá mandando muito melhor do que eu…, mas espera, ela tá num
cruzeiro erótico? Pessoas nessa idade avançada ainda conseguem transar?
Eu devo ser muito fraco pra ter problemas de ejaculação nessa idade. Que
vergonha.
— Dá pra parar com essa cara? — JP joga água no meu rosto, já
ofegante de tanto pular.
— Que cara?
— Essa cara de cu que você tatuou no rosto há dois dias.
— Tô de boa — a careta que esboço demonstra outra coisa, mas não
estou com paciência para desenvolver minha chateação.
Pérola conseguiu me distrair quando eu vi que Olívia tinha me mandado
mensagem, mas considerando que não a vejo há dois dias, meu mau humor
prevaleceu por pura covardia.
Não tenho coragem de abrir as mensagens dela e nem contei a JP sobre
isso. Ele jogaria meu celular no mar só para não ter chance de falar com ela.
— Por acaso esse enjoo todo é porque não vê uma certa mulher com
nome de joia?
— Claro que não — reviro os olhos. — Pérola está ocupada, não pode
viver me dando atenção.
— Mas bem que você queria, né safadinho… — ele belisca minhas
bochechas e minha vontade é de beliscar suas bolas até que elas explodam.
— Eu queria que você me deixasse em paz, só isso.
— Para de ser assim, curte o momento. A gente tá na piscina, com vista
para o mar, bebendo e comendo à vontade… quer dizer, você não tá
comendo à vontade porque tá com pau fraturado, mas pelo menos ainda tem
os dedos e a língua…
Antes que ele continue, eu seguro a língua dele.
— Você não queria dançar? Então dança.
Meu amigo recolhe sua língua.
— Vamos na enfermeira e mandar ela te dar alta, você precisa transar
antes que eu te jogue de isca pra tubarão.
— Acha mesmo que sexo resolve todos os problemas? — cruzo os
braços.
— Não, mas faz gozar, e gozar faz da gente pessoas felizes e pessoas
felizes não são rabugentas e irritadiças. Sacou?
“Oi, aqui é a Sara, sua comissária de bordo particular”
— Ah, meu pau — JP exclama.
— Meus ovos! — reclamo conjuntamente.
— O que essa demônia quer agora?
“Tenho notado os ânimos exaltados no dia de hoje. Não há tesão que
resista a brigas constantes, dito isso, vamos todos fazer as pazes com
seus parceiros, dando aquele selinho caloroso e demorado, olho no olho,
mãos nas mãos… o céu é o limite.”
— O limite é a cabeça da minha rola — JP nega com a cabeça. — Eu
não vou te beijar.
— E você acha que quero beijar você? — gargalho ironicamente. — Eu
nunca beijaria alguém que escova os dentes apenas duas vezes ao dia.
— Essa é a quantidade de vezes normal para alguém escovar. Quando
acorda e quando vai dormir!
— E depois das refeições, seu nojento?
— Vai tomar no seu…
— Meninos?
Por favor, que não seja a Manuela, que não seja essa mulher enviada
por satanás, por favor…
— Não vão obedecer a Sara?
Puta merda, é ela mesmo.
Giro o pescoço devagar, forçando um sorriso mais falso que a carta de
Hogwarts que tenho no meu quarto.
— Manuela… como vai?
— Má, cruel e dissimulada — é meu amigo que responde. Belisco sua
costela, esperando que ele não a provoque.
— Acertou, Zé Mané. Mas se esqueceu de linda, inteligente e
inesquecível.
— Devo acrescentar mentirosa à sua lista de defeitos? — ele ignora
meu aviso.
— Por que você não fala menos e beija mais? — seu queixo redondo
aponta na minha direção.
Eu vou matar o JP. Eu sabia que não era pra provocar essa bomba
prestes a explodir.
— Tá querendo mandar na minha boca sem ao menos pagar um jantar
antes? — ele se aproxima sem nenhum medo de ela jogar o sapato na sua
cara. João Pedro é maluco?
— Eu não pagaria um jantar pra você, nem se te visse passando fome.
— Nunca achei que você fosse de fazer caridade mesmo…
— Escuta aqui, seu…
— Gente! — grito, erguendo os braços. — Será que podem não brigar
por um segundo?
— Então se beijem… — ela sorri maldosa. — Ou será que vocês não
são mesmo um casal?
Merda…
Engulo em seco, negando com a cabeça.
— Claro que somos — rio nervoso, sentindo o suor brotar na testa. —
Por que a gente fingiria ser um casal? Só pra entrar no navio? Claro que
não, a gente…
Tusso a última palavra fora com a cotovelada que ganho de João Pedro.
— Não precisa provar nada pra ela, Bombonzinho…
— A típica frase de quem está mentindo — Manuela estreita os olhos,
alisando o próprio queixo. Ela parece uma gângster de filme
hollywoodiano. — Se fossem mesmo um casal, já teriam se beijado.
— É um beijo que quer ver? — João Pedro se irrita, segurando nos
meus ombros. Ah, eu vou me foder aqui…
— Não é melhor assistir num filme? — minha voz sai mais fina que a
rola do Igor. Não é porque ele transou com minha noiva, é porque era fino
mesmo! Eu vi!
— Sou mais do presencial — Manuela instiga a competitividade de JP.
— Então assista, Valentona… quem sabe assim você aprende.
— Como assim?
Mal tenho tempo de falar e meu amigo cola a boca na minha, em um
selinho que mais parece um murro de tão forte.
Meus olhos esbugalham.
— Se você colocar a língua, eu te mato — ele ameaça.
— Foi você que beijou — tento mover o menos possível a boca. Eu
realmente não planejava beijar meu melhor amigo em nenhum momento da
minha vida.
— Sua boca é lisinha, o que você passa? — ele comprime as
sobrancelhas.
— Hidratante labial com ácido hialurônico. Fica macio, né?
— Muito, vou comprar — ele assente.
Nós dois nos olhamos.
E nos damos conta de que estamos em uma conversa durante um beijo.
Nos afastamos depressa e só não limpamos nossa boca porque a
baixinha sobrinha de Lilith ainda nos observa.
— Real o bastante pra você? — João Pedro limpa a garganta.
Eu desvio o olhar dele, com as bochechas queimando.
Vou passar uma semana sem conseguir olhar para a cara dele.
— Por enquanto — Manuela estala a língua, desfilando para longe da
piscina.
— Depois dessa eu topo a terapia de casal — confesso.
— Vou marcar. 15h tá bom pra você?
— Fechado.
Normalmente nós daríamos um aperto de mãos, mas agora acho que
precisamos de um certo distanciamento físico.
Eu beijei um cara.
Meu melhor amigo.
E agora posso dizer: provei e não é minha praia.
Espero pelo menos que ele tenha escovado os dentes hoje.
— Mãe, já disse que estou bem.
— Você sempre fala isso, Pérola.
— Talvez por que seja verdade? — reviro os olhos para a parede,
sentindo o celular esquentar por culpa da ligação longa da minha mãe, que
consistiu em perguntar se eu estava bem.
— Ninguém vive sempre feliz, não minta para mim.
— Eu não disse que sou sempre feliz, mas sempre estou bem. Só vou
ficar mal quando eu não tiver soluções para meus problemas.
— Pérola, hoje é aniversário de falecimento do seu pai. Esse problema
não tem solução.
— A morte do meu pai não é um problema, mãe. É um fato. E fatos não
precisam ser consertados, porque já estão feitos, já estão no passado.
— Como pode ser tão fria em relação a isso?
— Não sou fria. Mas também não vou ficar chorando por algo que eu
não tenho controle. — Respiro fundo. — A senhora precisa seguir em
frente.
— Eu o amava.
— Eu também. Mas ele selou seu destino muito antes de partir, mãe. O
que podemos fazer é esperar que ele esteja em um lugar melhor agora.
— Você não vai fazer nada em homenagem a ele hoje?
Encaro a garrafa de Velho Barreiro na minha cama.
— Vou, não se preocupe. E fique bem… ele não nos fez muito bem em
vida, mas eu tenho certeza de que meu pai não queria nos fazer mal em sua
morte.
Desligo depois de mais alguns minutos com ela tentando me convencer
a voltar para casa. Abro a garrafa, inspirando o cheiro do álcool. Eu não
quero beber hoje. Não é das bebedeiras que quero me lembrar dele. Só do
seu perfume. Só desse cheiro que eu conhecia como o cheiro do papai.
Sorrio, abraçando a garrafa e fechando os olhos, tentando me sentir
como uma criança naquela varanda novamente.
Dois toques na porta me despertam em um pulo e me agarro a garrafa
para que não caia da cama. Esfrego os olhos, sequer me dando conta de que
havia pegado no sono. A luz do sol que antes entrava pela janela, foi
substituída pela luz artificial das lâmpadas acesas.
— Entra — grito depois de fechar a garrafa e a guardar na gaveta.
João Guilherme coloca a cabeça para dentro da cabine, me deixando
surpresa. Faz dois dias que não nos vemos e ele não tentou nenhum contato.
— Gui?
— Oi — ele coça a nuca, parecendo sem jeito. — Você está bem?
Essa pergunta de novo… será que estou com algo diferente na voz?
— Estou, por quê?
— JP e eu encontramos a Manuela no restaurante na hora do jantar, mas
não vimos você, então eu perguntei a ela se você tinha comido. Como ela
respondeu que você passou o dia no quarto, achei melhor te trazer isso…
Ele tira suas mãos de trás das costas, revelando uma marmita de isopor.
— O que é isso? — Levanto da cama curiosa. O cheiro também faz meu
estômago roncar.
— Eu não sabia o que você gostava, então peguei de tudo um pouco no
buffet.
— Não sendo frutos do mar estranhos, eu engulo qualquer coisa.
— Uma carioca que não gosta de frutos do mar? — A sobrancelha
direita dele se ergue.
— Você mesmo disse que sou uma sereia, não posso cometer
canibalismo — Jogo os ombros. Ele gargalha da minha piadinha infame e
terrível.
— Sorte sua que não tinha peixe no cardápio de hoje.
Ele abre a tampa de isopor, revelando todos os tipos de macarrão do
buffet, carne assada, frango grelhado e o meu favorito: linguiça toscana.
Minha boca enche d’água no mesmo instante.
— Se tiver vinagrete, eu caso com você.
Ele nega com a cabeça.
— Eu posso ir lá buscar se quiser… — começa a ir em direção a porta,
mas seguro na sua mão, o puxando para se sentar na cama comigo.
— Não precisa… a menos que queira largar seu noivo e se casar comigo
— brinco roubando um pedaço de linguiça. Merda, isso é bom demais.
— Não seria má ideia — ele ri, mas seus olhos parecem bem sérios.
— Vocês estão bem?
— Mais que bem, a gente até se beijou hoje.
Pisco.
— E não fazem isso todo dia?
— Não, beijar não faz parte da nossa rotina.
— Deveria — pego outro pedaço com as mãos, colocando na boca dele.
— O beijo é onde se começa tudo, é um ato de muita intimidade. Além
disso, você aprendeu a beijar bem.
— Claro… — limpa a garganta, mudando de assunto. — Mas o que
você estava fazendo antes de eu chegar?
Dormindo agarrada em uma garrafa para me lembrar do meu pai.
— Cochilando.
— Pensei que estivesse fazendo as unhas — ele aponta para a acetona
em cima da mesinha ao lado da cama.
— Eu deveria, porque já estão todas com o esmalte descascado — eu
não sei porquê, mas minhas unhas não ficam feitas nem por três dias. O que
eu gasto de esmalte e acetona pesa na conta do mês.
Mas é melhor pobre, do que feia.
— Quer ajuda com isso?
— Com o que? Pintar as unhas?
— É.
Eu espero uma risada ou ele dizer que é brincadeira, mas nada disso
vem.
— Por que você quer me ajudar a pintar as unhas? — estreito os olhos.
Será que Manuela falou mais do que devia e contou que dia é hoje?
Desde que nos conhecemos, eu a fiz prometer que nunca me trataria
diferente nesse dia. Eu nunca quis olhares pesarosos, lamentações, mimos
em exagero ou coisa parecida. Ela sempre cumpriu a parte de não fazer isso
comigo, mas ela achou uma brecha na sua promessa que consiste em
obrigar pessoas a fazerem por ela.
— Porque você cuidou de mim aquele dia e agora eu quero cuidar de
você.
Respiro fundo, passando a mão pelo seu rosto.
— Já ouviu falar em atos de serviço voluntários e desinteressados?
— Como assim?
Sorrio.
— Eu não cuidei de você esperando que cuidasse de mim em troca. Eu
apenas te fiz uma gentileza.
— Eu sei, mas agora estou em dívida com você.
— Eu não te dei nada mais que carinho e afeto e nada disso é capaz de
gerar dívida, apenas gratidão. Se quer me dar algo em troca, diga obrigado e
me dê um beijo na bochecha.
— Só isso? — ele franze o cenho.
— Deveria dizer: tudo isso? — fico sobre os joelhos na cama,
engatinhando para me sentar no seu colo, com uma perna de cada lado do
seu quadril. Penteio os cabelos compridos para trás, revelando seu rosto,
agora com óculos. Sinceramente adoro ele com óculos. — Isso vale mais do
que você está dando valor, querido.
As mãos de Joca se apossam da minha cintura sem receio e fico feliz
que ao menos conseguimos passar da primeira base.
— Obrigado — diz timidamente. Ofereço meu rosto quando ele foca
atenção na região e logo eu ganho um beijo demorado e carinhoso.
Meu sorriso rasga o rosto desde o momento que seus lábios me tocam
até o momento que me abandonam.
— Pérola? — ele chama encarando minha boca.
— Hum?
— Você pode sorrir assim sempre que eu beijar seu rosto?
Pisco surpresa.
— Por quê?
— Porque se continuar sorrindo assim, eu prometo que logo vou perder
a timidez e beijar sem que você precise pedir.
Acaricio suas sobrancelhas com os polegares, assentindo brevemente.
— Prometo, Honey.
— Ótimo… agora me ensina a pintar sua unha.
— Eu já falei que você não precisa.
— Eu sei — ele encosta o nariz no meu, seu óculos batendo contra
minha testa. — Não vou fazer porque eu preciso, mas porque eu quero.
— É alguma tara em unhas, por acaso? — provoco só porque estou
ficando sem graça. Ele me deixar tímida é o fim da picada.
— É uma tara por ver seu sorriso de menina travessa.
Ok, ele conseguiu. Fiquei vermelha.
— AAAAH! — grito irritado depois de tentar passar o palitinho pela
décima vez e a ponta dessa bosta borrar todo meu trabalho. — Como que
passa isso sem borrar?
Pérola morde a boca tentando não rir.
— Anos de prática.
— Isso aqui é humanamente impossível! Quando eu limpo de um lado,
acumula do outro.
— É que você passou metade do pote de esmalte em uma única unha.
— Por que não me avisou?
— Porque você estava tão bonitinho concentrado, que não tive coragem
de te criticar. Mas veja pelo lado bom… sai com acetona. — A voz dela
falha da risada contida e meu bico estica no rosto na mesma hora.
Eu tenho um sério problema em não saber fazer as coisas. Já basta ser
ruim no sexo, agora eu não consigo nem fazer uma unha?
— Não faz essa carinha, Honey — minhas bochechas são apertadas sem
dó. — É só você ter paciência.
— Eu não tenho muito isso.
— Eu já percebi, você se irrita com muita facilidade. Seu plexo solar
deve estar desalinhado.
— Plexo quem?
— Seu chakra plexo solar.
— Eu não entendo nada disso — dou de ombros. — E nem de pintar
unhas.
— Você só precisa se concentrar… o que você costuma fazer no
trabalho quando está distraído?
— Bufar, reclamar e pensar o quanto eu sou um merda.
— Nossa, que saudável — ela ri ironicamente. — Que tal você colocar
um mantra ou um ruído branco para ouvir? Tenho certeza que vai te ajudar
a se concentrar mais do que se xingar.
— Posso fazer uma pergunta? — ela vai me achar ridículo.
— Até duas.
— Não é pecado não, né? É porque eu sou católico, não sei se posso tá
ouvindo essas coisas.
Pérola me encara séria, mas sua expressão não se mantém assim por
nem um minuto, logo ela perdendo a batalha para sua risada. Ela beija
minhas bochechas quentes, negando com a cabeça.
— Isso não tem a ver com espiritismo, e mesmo que tivesse, por que
haveria de ser pecado? Você só estaria buscando paz e harmonia, nada que
seja contra o que Jesus prega.
— Eu não conheço muito sobre outras religiões — Dou de ombros.
Em casa, se eu falasse que queria conhecer outras crenças, era capaz de
ser expulso. Mamãe sempre foi uma mulher extremamente católica, desde
que eu era bebê, frequento a igreja rigorosamente às quartas e aos
domingos.
— Eu não tenho uma religião, não sei se posso ser chamada de Cristã
também, porque acredito no universo — ela me explica. — O que as
pessoas chamam de Deus, eu reconheço como natureza. Mas eu acho bonita
todas as formas de fé que defendem o amor. Ninguém nunca perdeu por
propagar esse sentimento.
Franzo o cenho.
— Nunca tinha pensado dessa forma. Acho que tenho sido muito rígido
quanto à minha religião.
— Se permita descobrir no que você acredita. A comunhão de pessoas
em uma religião é algo realmente bonito; fé compartilhada; crenças
unidas… só se torna nocivo se isso se tornar uma comunhão para repugnar
todos os outros que não estejam inseridos no grupo.
Assinto, pensativo.
— Talvez por já ter crescido inserido na igreja, eu nunca tenha me
questionado sobre o que eu acredito ou não. Eu sempre acreditei no que
meus pais acreditavam.
— Bom, se te faz bem, que mal há? — Pérola tira o esmalte da unha
que borrei, para que eu comece de novo. — Só não se esqueça de pensar
com sua própria cabeça e não com a dos outros. É como dizem: você não
pode seguir as pessoas cegamente, porque não sabe para onde elas estão
indo.
—Filosófico — brinco, pegando o esmalte amarelo de novo.
— Então, quer que eu coloque um ruído branco?
— Se me fizer terminar meu trabalho, com toda certeza.
Se isso fosse em um computador e me dessem um mouse, com certeza
sairia perfeito.
Pérola coloca um som de chiado no seu Spotify, que mais irrita do que
concentra, mas evito decepcioná-la.
Até porque, hoje é aniversário de morte do seu pai.
Eu não menti sobre ter encontrado Manuela no restaurante, só omiti a
informação que ela me passou. Como prometeu não ficar em cima da amiga
hoje, ela pediu que eu fizesse companhia a ela sem dar na cara que eu sabia
de algo.
Minha vontade é de abraçá-la, porque eu conheço essa dor, mas talvez
ela fique mais feliz em ser cuidada de outras formas.
— Eu posso fazer um desenho? — respiro aliviado depois de passar o
esmalte e não borrar tanto quanto da outra vez.
— Você nem sabe pintar e já quer desenhar?
— Feio vai ficar de qualquer jeito, então eu vou arriscar.
— Bom, quem sou eu para desestimular a arte alheia, não é? Vai em
frente.
— Eu posso usar esse palitinho aqui?
— Usa o outro, é mais fino — ela me mostra sua bolsinha cheia de
utensílios que poderiam ser usados para matar, mas que ela me garantiu ser
apenas para fins estéticos. Por via das dúvidas, vou me lembrar de nunca a
irritar perto dessa coisa. — O que você vai desenhar?
— Você vai ver — sorrio animado.
Se eu conseguir, vou ter que tirar uma foto.
Coloco a língua para fora, pressionando com os lábios em busca de não
respirar e errar o desenho.
Uma hora mais tarde, eu passo a última camada do esmalte transparente
que ela disse que era secante. Eu espero mesmo que seque, porque se Pérola
estragar minha obra de arte, vou ficar verdadeiramente irritado e não vai ter
ruído branco, azul, verde ou roxo que resolverá.
— Pronto! — suspiro aliviado, admirando meu trabalho.
Se tudo der errado nos games, pelo menos eu tenho uma segunda
alternativa.
— Deixa eu ver. — Pérola puxa sua mão e mordo o lábio ansioso para o
que ela vai achar.
Sua risada me deixa agoniado.
— Pac-man? — as sobrancelhas finais se arqueiam.
— É pra você lembrar de mim.
— Me comendo? Porque é isso que o Pac-man faz.
Arregalo os olhos. Eu não tinha pensado por esse lado.
— Em minha defesa, eu ia desenhar os cogumelos do Super Mário, mas
definitivamente achei o Pac-man mais fácil.
— Ainda bem que não desenhou os cogumelos, iam me chamar de
Maria droguinha.
— Posso entender que você detestou? — contorço a boca, desviando os
olhos para minhas próprias mãos.
Parabéns, Joca, você conseguiu cagar com tudo até num dia como hoje.
— Honey.
— Hum?
— Eu amei.
Ergo os olhos para ela com tanta rapidez que fico tonto.
— Mesmo? Não achou feio?
O sorriso que ela me devolve é o mesmo de quando eu a beijo no rosto.
— Tá feio, mas eu amei mesmo assim.
Comprimo as sobrancelhas.
— Como amou se achou feio?
— Eu amei o cuidado que você teve em dar o seu melhor. Isso é mais
importante que o resultado final.
— É por isso que não desistiu de mim mesmo depois de eu ter gozado
como um adolescente virgem?
— Eu também não desisti porque quero sentar em você de novo, dessa
vez com mais tempo — ela gargalha sem nenhuma vergonha, enquanto eu
quero me enfiar debaixo da cama.
— Assanhada — zombo emburrado.
— Com muito orgulho. — Pérola se estica sobre a cama, beijando meu
rosto. — Obrigada por ter me feito companhia.
Coloco a mão sobre o local que ela beijou, não conseguindo conter meu
sorriso. Eu gosto das demonstrações de carinho espontâneas.
— De nada… eu gosto de ficar com você.
— Sabe de uma coisa? — Pérola me esquadrinha como se chegasse a
uma conclusão. — Eu também gosto de ficar com você. E isso é estranho,
porque eu costumo enjoar fácil das pessoas, mas de você eu não enjoei.
Engulo a saliva, procurando qualquer brincadeira em seu rosto. Não
estou acostumado a isso. Definitivamente esse convívio sem filtros é
totalmente novo para mim. Fico esperando momento que ela vai falar que
se cansou dos meus assuntos entediantes Meu peito se aquece quando nada
disso vem e vejo só uma sinceridade divertida nos seus olhos.
— Acho que estou te devendo assistir alguns episódios de RBD… —
mudo de assunto quando não consigo me livrar do calor no meu rosto. Eu
gosto de elogios, mas não sei lidar com eles.
— Se você não fosse noivo, eu te pediria em casamento agora. — Ela
dá um pulo para fora da cama, ligando a televisão.
Dessa vez, é Pérola quem se deita no meu colo e eu quem fico
brincando com seu cabelo. Ele tem cheiro de algodão doce, o que me leva a
cheirá-lo sempre que ela está distraída demais com a televisão.
Estamos no quinto episódio da primeira temporada quando ela quebra
nosso silêncio agradável.
— Manuela te contou, não foi?
Pérola não precisa me explicar o que quer dizer. Eu sei que é sobre seu
pai.
— Sim — não minto. Em vez disso, continuo fazendo carinho em seu
couro cabeludo.
— Obrigada por não ter tocado no assunto.
— Eu também não gosto que falem sobre isso. Eu não vim aqui porque
sinto pena de você.
Ela vira o rosto na minha direção, seus olhos castanhos pela primeira
vez evidenciando alguma fragilidade.
— Por que veio então?
Encolho os ombros.
— Para te mostrar que você não precisa ficar sozinha. A dor da perda
pode ser dividida mesmo que não se toque no nome dela.
Pérola assente, envolvendo minha nuca com os dedos e me fazendo
dobrar o corpo, até nossos lábios se encostarem em um singelo selinho.
— Obrigada por dividir ela comigo.
Nego com a cabeça, beijando mais uma vez sua boca antes de me
afastar.
— Foi uma honra.
 
Até que enfim um pouco de terra firme. Eu já não aguentava mais ver
tanta água ao meu redor, os pensamentos intrusivos de me jogar do navio
estavam aparecendo mais do que o normal. Talvez seja porque eu não paro
de pensar na mensagem que Olívia me enviou e no conteúdo que pode ter
nela.
Eu estou decidido, hoje mesmo vou olhar quando JP não estiver por
perto. Não deve ser tão difícil me esconder dele por aqui.
Nós pegamos uma lancha do navio até à vila, já que não havia um píer
onde a embarcação pudesse ancorar na ilha de Boipeba. Trouxe uma
mochila de costas, porque temos um dia inteiro para aproveitar Morro de
São Paulo. Sempre ouvi falar desse lugar, mas não fazia ideia de que era tão
bonito. A cor da água é completamente surpreendente.
Surpreendente bonita, mas ainda prefiro meu pedacinho de terra.
Não sou peixe para viver no mar. Se eu pudesse, acharia a lanhouse
mais próxima só para dar uma olhada no meu trabalho, embora eu saiba que
hoje em dia é bem mais difícil de se encontrar alguma por aí.
Quando eu era mais novo, nem todo mundo tinha computador ou
internet em casa, então passava as férias inteiras na lanhouse do meu bairro,
fazendo corujão madrugada adentro, enquanto jogava CS com os garotos
excluídos da escola.
Ali, nós éramos o máximo.
— O que acha de conhecer a praia de Moreré? — João Pedro olha um
panfleto que as comissárias de bordo nos entregaram antes de sairmos. Elas
deram algumas dicas de restaurantes para irmos sem gastar nosso rim por
sermos turistas. Acho que eu tenho cara de econômico... ou de pobre.
— É pelo mar? Se for eu tô fora — recuso.
— Tem como chegar lá de quadriciclo.
— Tudo bem, desde que a gente consiga voltar para o navio até as 20h.
Não quero gastar com hotel.
— Acho que dá sim. As praias ficam a pouco mais de três quilômetros
do centro da vila.
— Tudo bem então, onde a gente aluga os quadriciclos?
— Pelo que eu entendi, a gente tem que chegar ao centro da vila velha
Boipeba e de lá sãos dez minutos até o ponto do trator, onde os guias devem
alugar o quadriciclo. — Ele indica uma ruazinha estreita, de chão de
tijolinhos e alguns comércios a ladeando. Nós caminhamos por ela até
chegar a uma pracinha no centro, em frente a uma igreja antiga em estilo
barroco.
Tiro o celular do bolso para fotografar a igreja por fora, fazendo uma
nota mental para passar ali antes de ir embora e bater algumas fotos do lado
de dentro para enviar para minha mãe.
Espero que isso amenize a raiva que ela deve estar de mim por não
atender ou responder a nenhuma de suas ligações e mensagens.
JP e eu seguimos até a barraquinha com um cartaz de “aluga-se
quadriciclos”, entrando na fila atrás de duas garotas com chapéus enormes.
— Finalmente um pouco de paz longe daquela valentona — JP estica a
coluna, sorrindo para os quatro cantos em não ver Manuela.
— Você detesta tanto ela, mas sempre que eu estou com a Pérola vocês
aparecem juntos.
— Porque ela fica me perseguindo que nem um demônio cobrando um
pacto.
— Demônio é a senhora sua mãe — as garotas na nossa frente se viram
para nós de repente, nos fazendo dar um passo para trás de susto. — Me
chama de demônio na cara, Zé Mané!
Manuela enfrenta João Pedro de perto, mesmo batendo na altura do
peito dele. Quem olhar de fora, pode até achar que ela está em
desvantagem, mas basta uma cabeçada nas bolas e ela acaba com ele em
dois segundos.
— Tá vendo! — meu amigo aponta para ela como se apontasse para
uma barata no chão. — Eu disse que esse capeta me persegue!
— É você que está atrás de mim, se não percebeu.
— Você não devia ficar no navio? Não tem trabalho a fazer não? Fechar
pactos de almas, arrastar alguns pobres coitados para o inferno?
— Eu sou funcionária, não escrava. Também tenho meus dias de folga,
seu capitalista abusado.
Ele arregala os olhos para mim.
— Ela me chamou de capitalista. — Dou de ombros. Ele quer que eu
faça o quê? — Eu sou um humilde proletário. O dono do capital é ele.
O Judas Iscariotes me acusa.
— Eu também vivo vendendo minha força de trabalho, palhaço! —
Estapeio sua nuca. — A única diferença é que eu ganho bem pra isso.
— Joga na cara mesmo, você está destruindo nosso amor pouco a pouco
com essas atitudes mesquinhas. — Ele coloca a mão sobre seu coração e faz
a maior cara de cão abandonando do caminhão de mudança.
A veia da minha testa começa a saltar.
Serpente ardilosa.
— Meu Deus, não há alinhamento dos chakras que resolva essa energia
caótica de vocês — Pérola reclama, entrando no meio de Manu e João
Pedro. — Será que podemos entender esse encontro como uma mensagem
do universo para aproveitar essa ilha incrível juntos?
— Não! — os dois respondem simultaneamente.
— Que ótimo, vai ser incrível fazer esse passeio — ela ironiza,
procurando ajuda em mim.
Em mim? Eu não consigo lidar nem com meus próprios problemas.
— Eu voto em soltar eles no mar dentro de um bote e só resgatar
quando virarem amigos.
— Eu morreria à míngua — Manuela contorce a boca em uma careta.
— Eu a jogaria no mar no primeiro minuto. — Meu amigo cruza os
braços.
— Próximo! — o homem da barraquinha de aluguel nos chama e Pérola
se adianta.
— Oi, seu Antônio. Vão ser dois quadriciclos, por favor.
— Deu sorte, minha joia do mar — ele sorri para ela galanteador e dou
um passo à frente com o cenho franzido. Velho safado, será que não
percebe que tem idade pra ser avô dela? — Só restaram dois hoje.
Para minha surpresa, ela contorna a mesa e abraço o senhor, que sorri
como um vovozinho fofo. Ok, agora que me sinto culpado por ter chamado
ele de safado. Só tava sendo educado... mais uma coisa para minha lista de
pecados.
— O senhor é sempre o melhor!
— Espera, não tem mais quadriciclo? — João Pedro exclama, enfiando
sua cara na frente.
— Hoje não, mas vocês podem reservar para amanhã.
Suspiro, negando com a cabeça.
— Deixa quieto, JP. Vamos pensar em outra coisa. — Aceno para as
meninas e o senhor. — Obrigado.
Puxo meu amigo da fila, esperando encontrar algum quiosque por aqui
perto mesmo que a gente possa passar o dia.
— Por que vocês não vêm com a gente? Cabem duas pessoas em cada
um.
— Pérola! — Manuela estapeia o braço dela.
— Que foi? A gente já fez esse passeio várias vezes, podemos levar os
meninos. O que custa?
— Custa minha paciência, beleza e boa vontade.
— Incrível como nenhuma dessas coisas você tem — João Pedro
cochicha, mas é claro que a audição canina dela escuta.
— Eu vou, mas só se o Zé Mané for com você.
Começo a rir da forma como ela o chama, mas meu sorriso morre
quando percebo que vai sobrar para eu ir com essa mulher cruel.
Nego com a cabeça, pronto para dizer que prefiro me atirar de cabeça
em uma rocha pontiaguda.
— Eu topo — João Pedro corre para perto de Pérola, mas agarro seu
braço a tempo de ele ir cheio de tentáculo para cima dela.
— O que você quer com isso? — O encaro seriamente. Ele pode ser
meu amigo e é justamente por isso que eu sei muito bem sua intenção com
as mulheres. Pérola merece mais do que ser alguém de uma noite na vida
dele.
— Não se preocupe que não vou tocar em uma sequer escama da sua
sereia.
— João Pedro — alerto.
— Fica tranquilo… eu já entendi o que tá rolando aqui e não vou
interferir — ele ergue as mãos, e embora eu não entenda o que ele quis
dizer com isso, solto seu braço. — Vamos, Vascaína.
Ele pede as chaves para ela, que gargalha alto.
— Você vai provar um gostinho de como é ser guiado por uma,
Corinthiano. — Ela sobe no quadriciclo, estendendo a mão para ele com um
sorriso. Limpo a garganta, com uma coisa estranha me fechando a glote.
João Pedro sobe atrás dela e o fuzilo com os olhos, o desafiando a
abraçá-la por trás. Ele pisca, segurando nos seus ombros.
Respiro mais aliviado, puxando a gola da minha camiseta.
Nossa, que coisinha esquisita na boca do meu estômago… será que foi
meu café da manhã?
— Não se preocupe — Manuela sussurra ao meu ouvido. — Ele não faz
o tipo dela.
— O que? — rio disfarçando. — Não, tá tudo bem. Afinal, por que eu
teria ciúmes da Pérola?
Manuela estreita os olhos me avaliando.
— O certo não seria ciúmes do seu noivo?
Arregalo os olhos.
— É! — falo alto demais, me denunciando mais ainda. Merda, eu sou
um boca de sacola. — É do meu noivo, eu confundi. Claro que é dele…
vamos subir? Você quer dirigir?
Ela nega com a cabeça, me deixando ciente que não caiu no meu papo.
O suor brota na minha testa.
Se Manuela desconfiar que isso tudo é falso, é capaz de ela nos fazer
andar na prancha.
Sem falar nada, sobe no quadriciclo e ergue uma sobrancelha como
quem diz: não vai subir não, idiota?
E eu subo, porque sou mesmo um idiota que não consegue ficar calado.
Seguro nas laterais, não me arriscando a tocar nela e perder os dedos.
— Se segura firme, porque comigo é com emoção.
Espera, o quê?
Antes que eu tenha a chance de pular fora, a maluca arranca com o
quadriciclo, fazendo o negócio cantar pneu em plena praça, alcançando
Pérola e JP mais rápido do que seria considerado seguro.
É isso… eu vou morrer. E o pior, vou morrer sem ter lido minhas
mensagens.
— Será que você pode ir um pouco mais devagar? — a voz
estrangulada e medrosa do Corinthiano me faz rir.
— Com medo?
— Com precaução.
Reviro os olhos.
— Não se preocupe, sempre que o navio faz parada aqui, eu faço esse
passeio. Conheço bem o caminho.
— Eu não confio cem por cento no seu senso de direção depois de ter
quebrado o pau do meu noivo… — ele resmunga quase fraturando minhas
omoplatas do tanto que se segura.
— Primeiro, abrace minha cintura antes que eu fique com dor nos
ombros. E segundo, que foi culpa sua e da Manuela eu ter quase quebrado o
pau do seu noivo.
— Primeiro, que se eu abraçar sua cintura, o Joca arranca meus dedos
com uma faca cega. E segundo, que eu não podia imaginar que vocês
estavam transando. Se soubesse eu teria esperado acabar.
Diminuo a velocidade. Joca é ciumento com o noivo? Nunca me
pareceu.
— Você chegou quando acabou — o recordo.
— Nem me lembra disso, que vergonha do Joca.
Freio bruscamente, fazendo JP bater a testa na minha cabeça.
— Ai, tá louca?
Viro para trás já apontando o dedo para seu rosto.
— Não tem nenhuma vergonha no que aconteceu, vergonha é você ficar
falando assim do homem com quem pretende se casar.
Os olhos verdes saltam com meu rompante.
— Eu estava brincando.
Suspiro, voltando a ligar o quadriciclo. Espero a poeira que o veículo de
Manuela causou abaixar para voltar a dirigir pela estrada estreita.
— Não brinque assim sobre ele. O Gui já é inseguro o suficiente.
— Mas eu só estava zoando, ele já está acostumado.
— Por acaso quando você era zombado na escola, alguma vez se
acostumou só porque faziam sempre? — jogo a cartada certeira, que até
sinto seu peito tencionar contra minhas costas.
— Não. Nunca me acostumei.
— E por acaso você não desenvolveu inseguranças por causa desses
comentários? — arqueio a sobrancelha mesmo que ele não vá conseguir
ver.
— Desenvolvi, mas isso acabou quando saí da escola. Somos adultos
agora.
— Só que você está fazendo o Joca viver nos tempos da escola com
esses comentários, seu lerdo. — Nego com a cabeça. — Uma brincadeira só
tem graça quando os dois riem dela e não quando alimentam a nossa maior
insegurança. Não é engraçado magoar os outros.
Respiro fundo, estranhando os batimentos acelerados do meu coração.
Que merda, por que fiquei tão nervosa?
— Tudo bem, eu já entendi. Não precisa me pagar um sapo.
— Foi mal, eu não devia ter me metido. — Por que me exaltei assim?
Isso aconteceria facilmente com Manuela, mas comigo? Eu devo tá
precisando alinhar meu chakra laríngeo para controlar melhor minha
comunicação.
— Você gosta dele, não é? — a pergunta de JP me faz frear novamente,
mas dessa vez ele parecia estar esperando, porque sua cabeça não choca
com a minha.
— Como é? — indago em meio a tosse.
— Calma, não quis dizer que está apaixonada, só que gosta dele… que
se importa.
— Ele é uma pessoa, eu me importo com pessoas.
— Você se importa comigo? — diz num tom debochado.
— Você é corinthiano, não força — faço careta.
— E você é vascaína, quer discutir?
— Se a gente começar, vamos os dois ser encontrados em avançado
estado de decomposição dias depois.
— Quer dizer eu, né? Só com essa unha você perfura minha carótida…
— ele pega minha mão, se interrompendo. — Isso é o Pac-Man?
— É. — Puxo minha mão para continuar dirigindo.
— Você gosta de jogar? — a voz dele demonstra algum grau de respeito
por mim.
— Não, foi o Joca que desenhou.
— O Joca fez sua unha? — ele grita no meu ouvido.
— Fez, ele levou horas para desenhar isso.
— Ah, a coisa está pior do que imaginei…emocionado do caralho! —
diz parecendo puto.
— Como é?
— Nada não, volta a dirigir antes que eles pensem que paramos no mato
para transar.
Ligo o quadriciclo, estalando a língua.
— Eu transaria, mas não com você.
— Idem, mocinha.

Por que eles ficaram para trás?


Pérola e JP pararam na estrada por duas vezes e a psicopata que dirige
esse automóvel da morte não se deu ao trabalho de esperá-los. Ao contrário,
ela os fez comer poeira.
Só espero que poeira tenha sido tudo que João Pedro comeu.
Eu avisei que Pérola não é uma das suas conquistas baratas.
— Manuela, pelo amor de Deus, tenha misericórdia de mim e
desacelera. — A essa altura, eu já a abraço como um filhote de preguiça nas
costas da mãe. Meus olhos já não têm mais lubrificação porque todas as
lágrimas escorreram pelo meu rosto com o vento. Nem mesmo meu óculos
foi suficiente para impedir o ar cortante.
— Aff, desse jeito você vai me fazer arrepender de ter vindo com você e
não com o Zé Mané do seu amigo.
— A gente ainda pode trocar.
— Você indo com ele?
— Não, com a Pérola.
— E por que você quer ficar mais com minha amiga do que com seu
noivo?
— Por quê? — ótima pergunta. Mas a resposta sincera eu não posso dar.
— Porque Pérola pode sempre ter coisas a me ensinar.
Que desculpa mais fajuta, Joca —Shikamaru me critica.
Eu era melhor em sair de situações arriscadas quando jogava RPG.
— Então isso não tem nada a ver com o fato do seu noivado com o João
Pedro ser mentira?
— Não, até porque a Pérola nem sabe que é de mentira, eu só não quero
que ela perca a aposta contra o convencido do João Pedro e… — Arregalo
os olhos. Caralho de asa, eu fiz merda.
Manuela freia o quadriciclo bruscamente e meu óculos bate de uma vez
na sua cabeça. Minha Nossa Senhora da Abadia, se eu ficar sem ele, não
vou enxergar um palmo na minha frente.
— Eu sabia! — ela grita, descendo do veículo.
— Você entendeu errado, eu falei brincando, porque é claro que não é
mentira o meu noivado. — Rio de nervoso. — Quem seria o desocupado
que fingiria um noivado só para entrar num cruzeiro erótico só para casais?
Porra, Joca, cala a boca!
Suspiro, cobrindo o rosto com as mãos.
— Você sabe que só está piorando tudo, né?
— Sei sim — digo abafado, com vergonha demais para olhar na cara
dela.
— Agora você vai crescer, tirar a mão da cara, me olhar de frente e
contar toda a verdade.
— De frente só se você subir em um banquinho — externo meus
pensamentos antes que o filtro do meu cérebro funcione.
Cristo, agora ela vai me dedurar com gosto.
— Vou fingir que não escutei isso porque você claramente não queria
dizer em voz alta.
— Agradeço a generosidade — respiro fundo, limpando meu óculos
cheio de poeira antes de explicar para ela toda a situação até aqui.
Talvez eu dê mais detalhes do que é necessário, mas quando eu começo
a falar, geralmente não paro.
— Deixa eu ver se entendi… — ela faz um coque com os cabelos
compridos. — Você pegou sua noiva na cama com seu assistente, gemendo
loucamente no quarto de vocês, uma semana antes de se casar? — Essa é a
parte que eu podia ter ocultado, por que falei isso?
— Isso.
— E para não perder o cruzeiro de lua de mel, o Zé Mané do seu amigo
deu a brilhante ideia de fingirem ser noivos um do outro?
— Isso.
— E você está enganando minha amiga para ela te ajudar a salvar um
casamento que nem vai acontecer.
— Isso — respondo no automático, só me dando conta depois da
cagada. — Não! Eu não queria enganar a Pérola, mas eu fiquei com medo
de contar e ela nos dedurar.
— Pérola não é dessas — Manu a defende.
— Eu sei que não — suspiro. — Agora eu sei, mas eu não a conhecia
direito naquela noite, não podia confiar que ela guardaria nosso segredo.
— Hum… — seus braços cruzados caem na lateral do corpo e a
expressão irritada se dissolve minimamente. — Até que você tem razão,
não tinha como saber que ela guardaria seu segredinho sujo.
— O que eu faço agora? — meu coração acelera. — Eu conto pra ela
que era tudo uma mentira?
— Ah, não — Manuela gargalha. — Pérola odeia mentiras, se você
contar isso agora, ela não vai mais olhar na sua cara.
Porra… eu sabia que isso terminaria mal.
— E eu vou continuar mentindo? Se ela descobrir vai me odiar.
— Vai, mas se você contar agora, com tão pouco tempo de convivência,
ela nem vai perder tempo te odiando, simplesmente vai fingir que você não
existe.
— Isso não é melhor que odiar? — Estive errado minha vida toda?
— Vocês homens são mesmo burros, né? — ela bufa, dando um
peteleco na minha cabeça, exatamente como JP faz. Eles são farinha do
mesmo saco. — Escuta, para odiar alguém, ela precisa ter sido importante o
suficiente na sua vida em algum momento para ocupar um sentimento tão
forte no seu coração como o ódio. Agora se ela simplesmente esquecer que
você existe, é porque é tão insignificante, que nem ao menos raiva
conseguiu gerar.
Pisco aturdido.
Mas até que faz sentido…
— Eu entendi seu ponto, só que ainda não entendi o que eu devo fazer.
Manuela segura o próprio queixo, pensando em uma solução.
— Olha, vocês não vão se ver nunca mais depois desse cruzeiro, pra quê
machucar o coração dela agora? Continue fazendo bem a ela como está
fazendo e depois siga sua vida, ela vai seguir a dela sem mais uma
decepção… acredite, Pérola já foi muito decepcionada pelos homens, ela
não precisa passar por isso de novo.
Abaixo a cabeça, me sentindo um merda.
Estou fazendo com ela o que Olívia fez comigo. Esconder, mentir,
ocultar… eu mereço aquele chifre.
— Não quero causar nenhum mal a ela… Pérola tem sido a melhor
coisa que me aconteceu depois de muito tempo.
— Então guarde para você esse sentimento que está crescendo no seu
coração, que provavelmente é apenas carência, e não dê esperanças a ela
que você não vai cumprir. Seja o amigo e o aluno dela, mas não ouse usá-la
como estepe para esquecer sua ex… fui clara? — ela coloca o dedo contra
meu peito e assinto assustado.
— Pelo menos agora JP e eu não vamos precisar fingir pra você.
— Ah, vão sim — um sorriso maquiavélico estica seus lábios.
— Como assim?
— Eu não vou contar para minha amiga sua mentirinha, mas você
também não vai contar ao seu amor que eu sei toda a verdade.
— Por quê? — desconfio.
— Porque o castigo é eu poder continuar os torturando usando seu
próprio plano contra vocês.
— Você é uma pessoa má.
— Se eu fosse, Pérola saberia agora que você é apenas um recém-corno
e não recém-noivo.
Ergo as mãos em rendição.
— Não está mais aqui quem falou.
 
Manuela e eu esperamos Pérola e JP nos alcançarem quando chegamos
à areia, dispostos a trocar de lugar. A ideia poderia ter vindo de mim, mas a
verdade é que a mulher sem alma do meu lado achou a oportunidade
perfeita para atormentar um pouco mais a vida do meu amigo. E não sou eu
que vou recusar.
— Por que pararam? — Pérola desce do quadriciclo com os cabelos
bagunçados e frisados, os olhos um pouco avermelhados do vento e da
poeira e ainda assim, consegue ser mais bonita do que todas as personagens
de anime que já assisti.
— A gente vai trocar de lugar, o João Guilherme está com medo demais
da minha direção aventureira.
Pérola se vira para mim para conferir se é verdade e dou de ombros.
Mentira não é, eu realmente temi pela minha vida em alguns momentos.
— Ah, aí você fica com medo de morrer, e ao invés de aguentar, me
joga na jaula dos leões? — JP cruza os braços na minha direção.
— Cada um tem que ter sua quota de risco de morte, amor — ironizo e
escuto a risada tossida de Manuela. Vai ser o inferno com ela sabendo a
verdade, mas pelo menos vou poder ver meu amigo sofrendo um terço do
que ele tem me feito passar aqui.
— Por que a gente não fica aqui mesmo? — ele argumenta. — Aqui já é
praia.
Olho em volta, vendo que tem razão. Já dá para ir ao mar aqui.
— Tem mar, mas nós sempre ficamos no Pontal do Bainema, que fica
quase ao final da faixa de areia. — Pérola explica calmamente.
— O que é esse pontal? — eu realmente estou aprendendo a perguntar
antes de ir aceitando me enfiar em qualquer coisa que esses malucos me
coloquem.
— É a única estrutura montada nessa praia, é um barzinho muito
aconchegante. Tem bebida, comida e algumas redes onde podemos nos
deitar também.
— Eu tô sem fome, sem sede e sono, por mim podemos ficar aqui
mesmo — João Pedro faz de tudo para não ter que subir no quadriciclo com
Manuela.
— Por mim você pode morrer assado aqui, mas a gente vai até lá — ela
gira a chave do veículo.
— Vamos, Corinthiano… vai deixar uma flamenguista te desafiar? —
Pérola fala e é como se apertasse a tecla “X” no Fifa, porque JP corre na
velocidade da luz para o quadriciclo, batendo na lataria da coisa como se
estivesse em um cavalo.
— Vamos ver quem é que tem medo aqui.
— Já aviso que não paro se você cair — Manuela força o motor, que
range engasgado. — Eu só dou marcha ré para passar em cima.
Ela arranca com o veículo, fazendo Pérola e eu engolir metade da areia
da praia.
— Comer areia nessa idade não é tão legal quanto eu me lembrava —
ela tosse, limpando os próprios olhos.
— Espera, você já comeu areia? — ainda bem que eu não estava de
lente, porque a essas horas já estaria sem os olhos.
— Claro, você não?
— Não, eu tinha nojo até de andar descalço. Minha mãe me conta que
eu só fui pisar na areia com cinco anos.
— Meu Deus, com um ano eu já tinha comido a areia de todas as praias
do Rio de Janeiro — ela ri, sacudindo os cabelos agora já duros de poeira.
— Acho que se a gente se conhecesse quando criança, você não ia gostar
muito de mim.
— Por quê?
— Porque eu também comia catota do nariz.
—Ah, que nojo — a bile sobe e fecho a boca a tempo de não despejar o
conteúdo do meu estômago.
Em troca, Pérola gargalha até perder o ar, subindo de volta no
quadriciclo.
— E você me beijou hein… na boca que já comeu catota.
Urgh… calma, Joca. Respira fundo…
— Para que eu vou vomitar.
— Vai me dizer que nunca comeu catota quando era criança? Nem
quando…
— Pérola! — imploro com o estômago quase ocupando o lugar da
minha laringe.
Isso só intensifica sua risada exagerada.
— Tá bom, parei! — sua mão se estende na minha frente e arqueio a
sobrancelha. — Eu não tiro mais catotas do nariz fora do banho, pode ficar
com leveza no coração.
Estreito os olhos, mas prefiro acreditar nela.
Subo no banco de trás novamente.
— Eu posso dirigir na volta? — afasto o cabelo dela do meu rosto.
Pérola gira o pescoço apenas o suficiente para que eu veja a lateral de
seu rosto.
— Eu falei sério sobre sempre estar no controle, Honey.
— Ah, não — cruzo os braços. — Eu nunca posso fazer nada.
Mimado — Shikamaru revira os olhos na minha mente.
— Você pode passar esses braços fortes pela minha cintura e usar a sua
proteção como desculpa para me encoxar… quer mais que isso?
— Não, tá ótimo, você é muito gentil! — trato logo de abraçar sua
cintura e chegar para frente, antes que ela desista da ideia. Pérola ri da
minha pressa e segura uma das minhas mãos, colocando-a sobre seu seio.
Arregalo os olhos.
— Só não arranque o pouquinho que eu tenho. Considere como uma
bolinha anti-ansiedade.
— Posso apertar? — averiguo.
— Querido, se você achar alguma coisa aí pra apertar, fique à vontade.
Dou uma leve apertada só para conferir. É, não tem muita coisa, mas é
macio e fofinho. Deveriam desenvolver uma bolinha anti-ansiedade com
esse molde. Pérola ficaria rica.
— Não é uma buzina — ela me lembra antes de ligar o veículo e
acelerar como se sua mãe estivesse na forca à sua espera.
— Deveria ser, a gente vai precisar de uma se algum desavisado passar
na nossa frente — arregalo os olhos para os solavancos que o veículo dá
quando a areia cria vales e montes.
— Você e seu noivo são muito medrosos.
— Medo ele deve tá passando é com a sua amiga.
— Manu é doida, mas é uma ótima motorista, não se preocupe. Ainda
haverá casamento pra você.
Bufo internamente.
Não, não haverá casamento pra mim, Pérola.

— Meu Deus, como eu amo o chão — João Pedro se joga do


quadriciclo assim que Manuela começa a frear. — Eu poderia comer toda
essa areia de tanta felicidade.
— Qual o problema de vocês com areia? — seguro meu estômago
embrulhando.
— Como assim? — A baixinha curiosa se intromete.
— É que eu contei pra ele que já comi areia quando era criança.
— E quem nunca comeu? — JP se levanta depois da sua cena
humilhante.
— Eu! — ergo a mão. — Por que eu deveria comer areia?
— Anticorpos? — Manu dá de ombros.
— Eu tomava vitamina pra isso, não areia.
Onde estavam os pais deles enquanto comiam areia? Minha mãe teria
três tipos de ataque se eu colocasse terra na boca. E eu teria cinco.
— Ele é Nutella — a malvada debocha de mim.
— Eu gosto. — Pérola pisca os olhinhos na minha direção e minha
carranca se desmancha em segundos.
João Pedro cutuca minha costela, me mandando disfarçar.
Disfarçar o que? Eu só estava olhando.
— Eu vou pedir caipirinha pra gente, vocês gostam com vodka ou
cachaça?
— Cachaça — Pérola se adianta.
— Vodka — JP e eu preferimos um caminho menos perigoso, porque
algo me diz que vamos ter que voltar dirigindo.
— Sem graças! — as perninhas curtas vão rebolando até a estrutura de
madeira erguida sobre a areia, para o completo alívio do meu amigo.
Se antes ele tinha urticária sempre que ela aparecia, acho que agora
Manuela conseguiu atingir um nível mais alto de pânico.
— Nossa, que calor — Pérola exclama, antes de segurar a barra da sua
blusa e a retirar sobre a cabeça, revelando o biquíni cor de rosa. Minha boca
fica seca no mesmo instante, sendo atraído para a tatuagem de sereia que
ela ostenta na costela. A cauda desaparece dentro do short, me dando a
atender que se alonga pelo seu quadril e começo da coxa.
Ela havia me falado que tinha uma tatuagem escondida, eu só não sabia
que não era tão escondida assim.
Quando dou por mim já dei um passo mais perto dela e meus dedos já
se elevaram na altura do desenho.
— Posso? — sussurro tão baixo que não tenho certeza se me fiz escutar.
— Vá em frente, Honey…
Esfrego minhas mãos uma na outra para aquecê-las.
Meu indicador é o primeiro a tocar a pele macia, com alguns pelinhos
descoloridos, quase dourados sob a luz intensa do sol. O desenho é
delicado, de traços finos, em movimentos que acompanham as curvas do
corpo dela, quase como se a sereia nadasse por ele.
— É linda.
— A sereia ou eu?
Sorrio, ainda admirando a tatuagem.
— As duas.
— Gente, eu ainda tô aqui! — JP chama atenção para si e tenho vontade
de socar a cara dele.
— Com ciúmes, Corinthiano?
— Vocês podem se comer aqui na areia na minha frente, vou até
apreciar a vista, mas por favor, me falem onde eu posso mijar antes? Tô
realmente apertado — ele segura o pau na nossa frente, me causando
desgosto.
— Você está na frente de uma mulher, tenha modos — repreendo.
— Ela já viu o seu pau, o meu não tem nada demais, agora anda… —
ele começa a dar saltinhos ridículos. — Se não falarem, eu vou mijar no
mar.
— Eca —me arrepio.
— O banheiro do quiosque fica ali atrás, só seguir reto e entrar na
segunda porta.
Ele sai correndo e pulando como uma gazela segurando o próprio saco.
— Vocês são muito diferentes — Pérola abraça minha cintura com suas
mãozinhas de morto e mesmo sobre a camiseta dá para sentir o frio. Ela tem
sangue circulando no corpo? Deveriam pedir um hemograma dessa mulher.
— Dizem que os opostos se atraem, não é? — não é de tudo mentira,
basta ver que Pérola e eu ficamos amigos. Se há dois seres mais opostos que
nós dois, eu quero ser apresentado.
— É, dizem…, mas eu não acredito que sejam as polaridades que se
atraem e sim os objetivos e sonhos em comum que se aproximam.
— Dá pra ter objetivos em comum sendo tão diferentes? — fico
confuso.
— Basta ver você e o Corinthiano… são diferentes, mas mesmo assim
querem se casar. É um objetivo em comum.
Eu queria muito poder explicar o quanto ela está errada sobre isso,
porque eu não me casaria com João Pedro nem se minha vida dependesse
disso, mas não quero perder essa amizade que estamos criando.
Manuela tem razão, nunca mais vamos nos ver, pra que eu tenho que
estragar esse pouco tempo que nos resta?
Ao menos uma vez, quero aproveitar algo de bom que está acontecendo
na minha vida, sem ficar pensando nos mínimos detalhes.
— É, faz sentido — é o que digo, ao invés da verdade. — Então, eu
pensei que a sua tatuagem fosse mais escondida do que isso.
Mudo de assunto da água para o vinho.
Pérola sorri daquele jeito travessa, beijando minha bochecha.
— E quem disse que essa é a minha tatuagem escondida?
Arqueio a sobrancelha.
— Quer dizer que tem mais? Você tem quantas tatuagens? Vou precisar
de um mapa.
Ela ri batendo no meu peito.
— Só mais uma, são três ao total. Eu teria mais se tivesse verba para
isso.
— Quer virar um livro em quadrinhos? — debocho.
— Considerando que essa é sua praia, você bem que poderia passar um
bom tempo lendo no meu corpo.
Fatality! Pérola win!
— Eu não sei você, mas consegui imaginar bem até demais essa cena —
Estico a gola da camiseta, buscando um pouco de ar.
— Tira logo essa coisa, por acaso você vai ficar engomadinho até na
praia? — ela já vai subindo a barra e só ergo os braços no automático para
que ela se livre da minha roupa. Eu tenho a impressão de que ela detesta me
ver vestido. — Bem melhor… minha nossa, bem melhor mesmo.
Ela olha descaradamente para o meu abdômen descoberto e eu travo os
músculos pelo tempo que meus pulmões sem ar aguentam.
— Uma tatuagem aqui ficaria incrível — ela dedilha os músculos da
minha costela.
— Eu ficaria sem família se fizesse uma tatuagem.
— Por quê? Eles acham que é coisa do diabo?
Inclino o rosto, assentindo.
— Por aí.
— Mas você tem vontade de fazer?
— Sabe que nunca pensei no assunto? — acho que eu tinha medo até de
pensar nisso e minha mãe descobrir. Ela ia quebrar o pé de amora do nosso
quintal nas minhas costas se eu aparecesse sequer com uma de henna.
— O que você faria se pudesse?
Faço um bico para pensar, tentando achar um desenho que eu não me
enjoaria de ver na pele.
— Acho que eu faria o símbolo da aldeia da folha.
— Naruto? — ela tenta adivinhar.
— Acertou! — sorrio feliz por ela realmente ter prestado atenção nos
episódios que assistimos. Bom, talvez até demais, porque ela chorou por
duas horas por causa da morte do Neji. Foi legal ter essa experiência, eu
nunca tinha assistido nenhum anime com uma garota antes. As vezes em
que chamei Olívia para ver comigo, ela sempre estava ocupada… ou fingia
estar.
— Eu já posso ser chamada de nerd por saber isso? — ela envolve meu
pescoço com os braços e toda a minha atenção recai para seus lábios com
um tom acentuado de rosa. É natural?
— Quem gosta de anime é otaku, mas você não assistiu nem a dez por
cento de Naruto para se considerar uma… fique tranquila.
Minha fala sai arrastada, mas em minha defesa, usei todos os neurônios
para formulá-la, já que meu corpo está mais interessado em admirar a boca
próxima da minha.
Misericórdia, eu quero muito beijá-la.
Vamos, Joca, resgata essa coragem que foi perdida na Grande Ilha.[25]
Fecho os olhos com o coração acelerado e projeto meus lábios para fora,
com a intenção de pegar para mim um singelo selinho.
Só não completo minha missão porque meu ombro é cutucado.
— O que foi, diabo do meu ódio?! — viro para trás com as labaredas da
quinta dimensão do inferno pipocando nos meus olhos, pronto para afogar o
João Pedro na água mais próxima.
Não faço isso porque não era ele e sim a baixinha sobrinha de Lilith,
que me encara como se fosse arrancar um pedaço do meu pau fora.
Se ela me livrar de uns 3 centímetros já fico feliz.
— Eu não sabia que era você, me desculpe. — É uma boa hora para
começar a rezar?
— É claro que não sabia, você não parece ser do tipo que gosta de
arriscar a vida.
Manuela bufa irritada, estendendo um copo para Pérola e eu.
— Obrigada, Mônica.
— Magali, Cheetos. Magali!
Franzo o cenho.
— O que tem a Turma da Mônica e quem é Cheetos? — será que esse é
o novo linguajar dos jovens? Não que a gente seja, mas elas são muito mais
antenadas do que eu.
— Ela é Cheetos — Manuela indica a amiga.
— Por quê?
— Porque eu peguei um bronzeado errado e fiquei laranja por duas
semanas, e Manuela resolveu adotar esse como meu novo apelido.
— Você é má.
— Se eu ganhasse um real pra cada vez que você me fala isso, estaria
rica — ela revira os olhos.
— E o que tem a Mônica e Magali? — continuo curioso.
— Manuzita é a mistura perfeita do ódio e fome num corpinho pequeno.
Assinto.
— Faz sentido.
— Ah é, Joca? — Manuela sorri como o gato da Alice. — Será então
que devo incorporar a dentuça e destruir o clube do bolinha?
Droga. Ela não contaria pra Pérola agora, contaria?
Suas sobrancelhas dançantes me garantem que sim. Ela contaria.
— Deixa pra lá, eu também acho que você só parece com a Magali —
entro em defesa por livre e espontânea pressão.
O que nem fez diferença, porque Pérola está mais concentrada em beber
a caipirinha como se fosse água. O copo chegou à metade com uma única
golada.
— Com sede? — solto uma risada chocada.
— Muita, principalmente depois de você me secar daquele jeito — ela
pisca descarada, trazendo o fogo para as maçãs do meu rosto.
— Eu não estava te secando.
— Estava sim.
— Tá bom, eu estava, mas com todo respeito.
— Por mim vem sem respeito mesmo, mas se te deixa feliz, aceito o
cavalheirismo.
Engulo a saliva.
— Você me faz querer te beijar muitas vezes no dia — admito antes que
meu cérebro filtre a informação.
— E você me beija menos do que pensa em me beijar… comece a agir
ou eu vou pensar que você é só papo.
— Vai descobrir que nem papo eu sou, porque só pensei alto. —
Encolho os ombros, empurrando o óculos contra o nariz.
— Sorte sua que além de boa de papo, eu sou ótima tomando iniciativa
por nerds desengonçados.
Ela arranca os óculos da minha cara de qualquer jeito, quase me
arrancando um olho, e nem tenho tempo de reclamar, porque a boca de
Pérola se une a minha em um nanossegundo.
Eu fico de olhos arregalados e inerte só até o momento que a língua dela
pede passagem na minha boca de pato.
Nem um lerdo como eu ficaria parado com uma mulher dessa me
beijando como se quisesse descobrir Atlântida na minha boca.
Deixo minha língua participar da brincadeira, segurando na sua cintura
com a mão livre do copo. Meus pés ficam nas pontas para que eu inverta a
posição de nossas cabeças, tentando me lembrar de todos os passos que ela
me ensinou com a maçã.
Um, dois, três, virar a cabeça. Língua pela metade, não toda. Intercalar
lábios de cima e lábios de baixo.
— Para de pensar — ela murmura embolado, sem desgrudar nossas
bocas. — Só me beija.
— Só uma perguntinha antes… tô indo bem?
— Ah, sim, estou quase ficando molhada, continua que é sucesso.
— Misericórdia… amém.
Pérola até tenta continuar me beijando e admiro seu esforço, mas a
risada dela não consegue ficar contida por muito tempo.
— Droga, você me desconcentrou, não vale — ela joga o pescoço para
trás enquanto ri e eu só consigo admirar a região. Deve ser bom beijar ali.
Eu deveria? Acho que deveria.
Ela falou para agir mais e pensar menos.
Então eu vou agir.
Beijo o pescoço dela.
Não é lá um beijo desentupidor de pia, mas demora segundos os
suficientes para interromper a risada dela e Pérola ficar estática.
Permaneço com os lábios sem movê-los em seu pescoço, mas inspiro
seu perfume doce, me intoxicando do aroma doce. Isso me faz ter vontade
de mordê-la, o que me deixa assustado. Não tenho essas volúpias. Ou não
deveria ter.
Me afasto devagar, olhando para baixo, preocupado com a reação dela.
Não sei se Pérola vai gostar da minha atitude ou não. Na verdade, agora me
encontro com a testa suando.
— Olha pra mim — ela sussurra, erguendo meu queixo. Seus lábios me
entregam o mesmo sorriso de quando eu beijei sua bochecha. — Obrigada
pelo beijo.
— De nada — sorrio sem graça.

Ainda consigo sentir o beijo fantasma do Gui na minha pele, fazendo


meus pelinhos se arrepiarem de tempos em tempos, como se sua boca ainda
repousasse em meu pescoço. Balanço os pés na água, esfregando minha
pele para tentar desfazer a sensação.
Não resolve. Ainda está aqui como cola permanente.
— O que foi? — Manu se estica da sua prancha de stand up para
sussurrar no meu ouvido. — Tá com dor no pescoço?
— Eu? — tiro a mão para disfarçar. — Não, só com um pouco de calor.
— Pelo sol ou pelo beijo?
Nossa, tá tão óbvio?
— É que a sensação não sai — digo agoniada.
— Como assim não sai?
— Não sei — dou de ombros. — Ainda sinto como se a boca dele
tivesse aqui.
— Pode parar com esses papos, Cheetos! Não é do seu feitio ficar
chocada com um beijo no pescoço — ela repreende e sei que tem razão.
— Eu sei… só que foi diferente.
— Ih, não. Chega! Cadê minha guerreira que queria fazer celibato? Não
vem com esse assunto de diferente pra um cara que vai se casar.
Assinto, balançando a cabeça.
— Você tem razão, acho que só estou meio carente.
— Carência a gente resolve com um bom sexo. E se o garotão ali não
consegue te dar um no momento, procure outro.
Olho para onde ela aponta, com Gui e o Corinthiano tentando se
equilibrar nas suas pranchas e chegar até nós. Nem mesmo sentados eles
conseguem remar três vezes sem cair. Vejo claramente João Guilherme
brigando com sua prancha, a mandando ficar quieta enquanto ele aprende.
A gargalhada que ele dá quando cai me faz abrir um sorriso.
— Pérola? — Manu passa a mão na frente do meu rosto. — O que acha
da minha sugestão?
Balanço a cabeça.
— Vamos ver… — encerro o assunto.
Verbalmente, porque internamente estou com belo ponto de
interrogação na minha cabeça. E com certeza minha vagina está me
perguntando por que não estou a colocando para jogo.
“Da última vez você quase quebrou alguém, queridinha.”
Seguro a risada. É o fim da picada conversar com minha genitália.
— Será que vocês podem ajudar a gente? — Gui desiste de aprender
sozinho e clama por socorro.
— O que a gente vai ganhar com isso? — Manu grita de volta.
— O que vocês querem, mercenárias? — O Corinthiano se levanta de
outro tombo, com os cabelos pregados na testa como um pinto molhado.
— Eu topo se o Gui fizer uma tatuagem de henna — sorrio travessa.
Aquele corpinho ficaria dos deuses coberto de rabiscos.
— Precisa ser algo vergonhoso? — ele indaga.
— Não! Ele pode escolher — tranquilizo.
— Sem graça! — Manu e JP reclamam.
Estreito os olhos.
Esses dois são iguaizinhos, não valem um real.
— Espera, só eu ganho penitência? — Gui ergue os braços indignado.
— A penitência do seu noivinho vai ser aprender comigo — Manu
passa a língua nos lábios.
Ela quer enganar quem sempre dando um jeito de ficar perto dele?
Os meninos chegam até nós empurrando suas pranchas e quase
arrancando a orelha um do outro. Nunca vi casal tão sem sincronia como
esses dois.
Se não tivessem me falado que vão se casar, eu nunca acreditaria que
eles sequer se namorariam.
— Essa coisa tem vida própria, eu forço de um lado e ela vira pro outro.
Eu vou pra trás e ela vai pra frente.
— Para de ser tão resmungão, Honey.
— É você que é muito tranquila.
— Porque é mais fácil ser tranquila do que reclamar da ordem natural
das coisas. — Jogo os ombros. —Dá muito mais trabalho lutar contra a
maré do que seguir seu caminho. É você quem está dificultando as coisas.
— Então você nunca se irrita?
Gargalho.
— Claro que me irrito. Eu fiquei bem puta da vida quando descobri que
meu ex estava mentindo pra mim e já era casado.
— Ah… — ele desvia os olhos de mim. — Você não curte mentiras, né?
— Não mesmo. Isso é uma das poucas coisas que me tira do sério.
Os ombros dele ficam tensos sob minha mão.
— Mas então, você vai me ensinar?
— Vou, claro!
O ajudo a subir na prancha, sustentando o equilíbrio dela.
— Primeiro se ajoelhe e se sente sobre as plantas dos seus pés, sinta a
prancha, as ondas do mar, não tente ir contra elas.
Seu corpo samba tanto na superfície plana, que eu poderia jurar que ele
está tendo um troço.
— Espera, eu vou subir com você. — Me acomodo às suas costas,
segurando sua cintura para o fazer se aquietar. Encaixo o queixo no vão do
seu pescoço, torcendo para que minha voz o acalme. — Você já me deixou
te guiar algumas vezes e se saiu bem nisso, então apenas relaxe e me deixe
te levar.
— E se a gente cair?
— Aí a gente ri e sobe de novo. Igual a quando era criança.
— Quando eu era criança eu chorava — ele conta baixinho.
Solto uma risada que colide contra sua pele cheia de gotículas de água.
— Você traz apenas as partes ruins da sua infância à tona e deixa as
importantes para trás.
— Como assim?
— Você deixou o lado leve ficar no passado, mas trouxe os medos e
inseguranças com você. Inverta isso, Honey. Seja feliz como uma criança,
mas não ingênuo como uma.
— Vou ter que anotar no meu diário de bordo essas dicas.
— Você tem um diário de bordo?
— É, eu sei que é meio ridículo, mas eu gosto de imprimir algumas
fotos e escrever sobre os momentos para não esquecer. Eu comprei com a
intenção de ser um diário de lua de mel, mas… — ele se interrompe,
ficando completamente estático.
— Mas aí decidiu usar na viagem com seu noivo… tá tudo bem. As
coisas foram feitas para usarmos, se seu plano inicial deu errado, você fez
certo em ressignificar.
— É… é acho que sim.
— E vai me deixar ler esse diário? Estou curiosa para saber o que tem
lá.
— Ah, são coisas normais, só os acontecimentos mais importantes da
viagem.
Umedeço os lábios, me aconchegando no seu pescoço.
— Eu estou nele?
Gui solta uma risada tímida, assentindo.
— Em quase todas as páginas.
— Hum, me sinto lisonjeada… mas espera, você não colocou que eu
quase quebrei seu pau, né?
— Coloquei. Está na página 10.
Abro a boca.
— Não acredito que você fez isso! Não tem uma foto disso né?
— Você acha que eu tiraria uma foto do meu pênis fraturado?
— Olha, a maioria dos homens com um do tamanho do seu, teriam um
álbum inteiro.
Gui suspira, virando com cuidado para se sentar de frente para mim.
Nossos pés ficam balançando na água, com o brilho intenso do calor do sol
castigando nossos rostos.
— Eu não gosto do tamanho dele — ele me revela com o rosto baixo.
O que não me surpreende, ele praticamente se desculpou comigo no dia
que transamos. Quer dizer, no dia que eu sentei, transar é bem diferente
daquilo.
— Deixa eu adivinhar, você acha que machuca?
— Já me relataram que machuca, então é mais do que um simples
achismo.
Assinto.
— Ok, pode mesmo machucar, mas tudo depende do jeito. Você não
precisa ser um bate-estaca para dar prazer.
— Mas e receber? Porque eu tenho dificuldade de chegar lá usando só
metade … — Revela sincero, mas ruborizando em seguida. — Ah, minha
Nossa Senhora, desculpa te falar isso.
Levanto seu queixo pra mim, chegando para frente até passar minhas
pernas envolta da cintura dele.
— Para de desviar os olhos dos meus, Honey. — Penteio seus cabelos
para trás, enxugando suas sobrancelhas das gotículas de água. — E para de
pedir desculpa por me contar coisas pessoais, principalmente quando você
passou aquele dia péssimo comigo. Nós somos amigos, entendeu?
— Eu não sou acostumado a poder falar de tudo. Só com o JP.
— Você só teve ele como amigo? — ele concorda com a cabeça. — E a
sua ex? Que te mandou mensagem… vocês não conversavam?
João Guilherme solta uma risada amarga, evidenciando que é uma
relação que ainda mexe com ele.
— Acho que eu passei muito tempo da minha vida achando que éramos
melhores amigos, mas a verdade é que eu percebi que só eu fui amigo… —
ele brinca com seus dedos, melancolicamente. — Você me conhece há uma
semana e talvez saiba mais coisas de mim do que ela.
— Vocês terminaram há muito tempo?
Ele nega com a cabeça, mas não detalha.
— Ainda te machuca?
Ele assente.
Seguro suas mãos.
— O problema não é com você, sabe disso, não é? Todo mundo já teve
um relacionamento que não deu certo.
— Até você? — seus olhos piscina me encaram incrédulos.
— Eu? — bato palma, rindo alto. — Eu sou a rainha dos
relacionamentos errados.
— Por isso você estava em celibato?
— É… exatamente por isso.
— Posso perguntar o que aconteceu?
— Pode. Eu descobri que ele era casado.
Seus olhos saltam.
— Que chato.
— Chato é meu pé, isso foi uma merda mesmo. — Rio da minha
própria desgraça.
— Descobriu como?
— A esposa dele foi até minha casa enquanto estávamos transando… o
resto você já pode imaginar.
— Você não desconfiou?
Nego.
— Ele trabalhava como cozinheiro no navio, desde o princípio se disse
solteiro. Nós namoramos por seis meses.
— Isso te deixou mal?
Nego novamente.
— Sou eu quem decido quem tem o poder de me deixar mal. E ele não
tinha esse direito.
— Como você consegue ter esse controle? — ele pergunta quase
implorando por uma aula.
— Quando você teve que aprender a não ser machucada pelas coisas
que o homem mais importante da sua vida fazia, os outros se tornam
insignificantes.
— Seu pai? — ele indaga receoso.
— Ele era alcoólatra.
— Sinto muito.
— Não sinta — sorrio. — Não é essa a parte que eu guardo dele. Eu
guardo o meu pai amoroso. A única coisa que eu guardo é aquilo que vai
me proteger de sofrer de novo.
Dessa vez, o beijo que eu ganho, não é no pescoço.
É na testa.
E não sei o motivo, mas minha garganta aperta.
— Por que esse beijo? — agora sou eu que estou olhando para baixo.
— Porque eu senti vontade de te dar esse carinho. Fiz errado?
Engulo a saliva.
— Não… — limpo a garganta. — Não fez.
— Você mordeu meu saco!
João Guilherme e eu damos um pulo na prancha, quase despencando
com o susto.
Olhamos para o lado, vendo o Corinthiano segurando as bolas e
Manuela com a expressão raivosa e com os cabelos todos bagunçados.
Arregalo os olhos.
— Porque você me afogou, Zé Mané!
— Qual o problema de vocês duas em deixar a genitália alheia inteira?
— Gui me pergunta me cutucando e o empurro da prancha, o fazendo cair
como uma manga madura.
Palhaço.
 
 
Eu fiz uma tatuagem.
Dona Das Dores arrancaria na navalha se visse.
Ainda bem que é removível.
Encaro a bandana da aldeia da folha envolta do meu braço, ainda sem
acreditar. Depois de passar duas horas me ajudando com a prancha, Pérola
me arrastou para a praia vizinha de Moreré, na busca de alguém que fizesse
a henna, enquanto João Pedro e Manuela quiseram continuar onde estavam,
porque haviam pedido caranguejo para comer.
Uma coisa esses dois tem em comum: a fome.
Combinamos de nos encontrar no centro da vila Antiga Boipeba, em
frente à igreja, no horário de pegar as lanchas de volta ao navio. Mas cá
estamos, Pérola e eu aguardando os dois com o prazo para subir a bordo
quase se esgotando.
— Será que a gente vai atrás deles? — começo a me preocupar.
— Se a gente for e se perder deles vai ser pior. Vamos aguardar aqui no
ponto que marcamos — Pérola como sempre não esboça nenhum tipo de
ansiedade ou angústia com a situação. Ao contrário, ela tem nas mãos um
espeto de queijo coalho e um guaraná na outra, comendo como se o tempo
não estivesse passando.
A calma dela às vezes é irritante.
— E se eles não chegarem a tempo?
— Aí eles dormem aqui e pegam a lancha pela manhã. O navio só zarpa
amanhã.
— Fácil assim? Mas e o dinheiro? Eu não sei se eles estão com a
carteira e…
Pérola interrompe meu falatório segurando meus lábios.
— Escuta, se nem eles estão preocupados, por que você vai
enlouquecer? Eles podem usar seus cartões no próprio celular, tem pix, e
eles sempre podem vender o corpinho também — ela brinca com a última
parte, me tirando uma risada.
Manuela tudo bem, mas quem vai querer pagar pelo JP?
Eu tento vender ele na OLX há anos e nunca tive uma oferta.
— Última chamada para o Royal Pleasure Line! — grita o marinheiro
de dentro da lancha.
— É, o tempo deles acabou… — Pérola me puxa pela mão e continuo
olhando para trás, procurando algum sinal daqueles dois. — Não se
preocupe, Manu e eu já ficamos aqui várias vezes, ela conhece uma
pousada… seu noivo vai estar seguro.
— Certeza? Porque eu estou com medo deles terem se matado.
Ela estala a língua.
— O máximo que vai acontecer é eles transarem com raiva… o que
para Manuela, é quase um afrodisíaco.
Assinto, tendo que concordar. É bem a cara do João Pedro fazer isso. Só
não com ela.
— A história dos dois é complicada demais para ele ficar com ela.
— Manu nunca me contou direito sobre esse passado deles.
— Pra ser sincero, o JP também não se abriu totalmente comigo. Eu só
sei o que vi. Ela o humilhou na frente de toda a escola e desde então ele a
odeia.
— Talvez eles estejam demorando porque estão se resolvendo — ela
supõe.
Gargalho alto.
— Eu aposto mais no sexo com raiva do que na reconciliação.
Nós subimos na lancha colocando nossos coletes, desistindo de uma vez
de esperar pelos dois. Fazendo como a senhora paciência do meu lado, tento
ver o lado positivo: vou ter a cama só pra mim essa noite.
Nós subimos as escadas retráteis do navio, esfregando os braços do
vento gelado que sopra contra nós.
— Para de passar a mão! — Pérola repreende e segura meu pulso. —
Ainda bem que tirei uma foto sua com a tatuagem, porque desse jeito não
vai durar um dia.
Ah, essa foto… eu fiquei com cara de sonso e todo desengonçado, mas
realmente estava feliz. Assim que o homem terminou de desenhar a
bandana, Pérola me fez ficar com os pés na água e me fotografou… só de
sunga.
Pelo menos depois eu pude pedir uma foto dela, a qual Pérola fez
questão de fazer várias poses em cima de uma pedra. Acho que tenho quase
um álbum de foto dela e a minha feia, com a rola marcada na sunga.
Acho que foi uma má escolha ter vestido a branca, mas não me importei
com aquilo na hora. Me senti tão livre, como se eu tivesse fechado o braço
com tatuagens de verdade.
Só espero que essa saia antes de o cruzeiro acabar, ou vou infartar
minha mãe com três notícias.
A tatuagem. O chifre. E o cruzeiro erótico.
— Você não precisa me deixar na porta do meu quarto como um
namorado preocupado — comenta enquanto a acompanho até sua cabine.
— Não sou seu namorado, mas somos amigos, você mesma disse.
— Eu sei, mas não há perigos por aqui. Posso ir bem sozinha.
Mordo o lábio.
— Você cansou da minha presença? — Porra, Joca, isso soou carente
demais até para você.
— Se eu cansei do meu nerd favorito? — ela me presenteia com seu
sorriso de adolescente inconsequente e aperta minhas bochechas. — Claro
que não, querido. Só não quero abusar da sua boa vontade.
— Não é abuso, eu faço questão de te levar até o quarto. — Me sinto na
obrigação de retribuir tudo que ela tem feito. Pérola claramente está saindo
perdendo nessa troca. Tudo que ela leva é experiência para o próprio
trabalho, enquanto eu fico com o bônus de ter pela primeira vez uma amiga
e uma pessoa que me escuta sem julgar.
“Isso é porque ela não sabe tudo sobre você” — minha voz interior
grita até minha cabeça doer.
— Você quer entrar? — ela indaga quando chegamos à sua cabine.
— Entrar?
— É, a gente pode assaltar a cozinha e trazer uns lanches pra cá.
— Mas a comida não tá inclusa?
— Está, mas acredite em mim que na cozinha tem muito mais coisa. Eu
conheço a chef.
— Se você está dizendo… eu realmente estou com fome.
— Ótimo, vou guardar nossas mochilas aqui e a gente vai até lá.
Eu a espero realmente guardar nossas coisas, mas tudo que faz, é jogar
as duas mochilas da porta mesmo, que quicam no colchão. Por favor, que
meu iPhone não tenha quebrado… eu sei que ele já não faz mais
atualização, mas eu não quero trocá-lo por dois motivos.
Número um: não quero gastar dinheiro.
Número dois: ele ainda tem o botãozinho na tela.
Não sei o que fazer sem ele!
— Que caminho é esse que estamos fazendo? O restaurante não é por
ali? — aponto para o outro lado do corredor, onde deveríamos subir as
escadas ou ir de elevador.
— Esse é o caminho que os hóspedes fazem — ela pisca cúmplice e não
questiono mais nada.
É ela quem trabalha aqui, com certeza sabe mais do que eu.
Nós fazemos inúmeras voltas, passando pelo andar SS Pleasure [26]até
entrarmos pelo restaurante na entrada dos fundos, que dá direto para a
cozinha, sem ninguém nos ver.
O lugar ainda está com algumas áreas em funcionamento, já que o
buffet fica aberto até às 23h e Pérola cumprimenta algumas pessoas, me
arrastando para as geladeiras mais ao fundo.
Quando ela abre as gigantescas portas duplas, minha boca saliva.
— Meu Deus, tem bolo floresta negra recheado com cereja — só de
falar minha boca enche d’água.
— Eu detesto essas cerejas — ela treme do meu lado. — Estou mais
interessada naquilo ali, oh.
Seu dedo quase se enfia em uma torta alemã pela metade.
— É aqui que guardam o que não é consumido? — evito olhar demais
para dentro da geladeira, com medo de encontrar uma higiene precária… é
aquilo, nunca conheça a cozinha do seu restaurante favorito.
— Sim, tudo que ainda é comestível, claro. A senhora Fátima não deixa
entrar nada aqui que possa nos fazer mal. Além disso ela prepara algumas
coisas que pedimos também.
— Acho que vou me inscrever pra trabalhar aqui.
— Contando que você fez um ótimo trabalho como garçom na noite que
te conheci, posso te dar uma carta de referência. — Ela brinca, passando o
dedo no recheio do bolo e o limpando no meu nariz.
— Ah, não, agora eu não posso comer — choramingo pelo desperdício.
— Eu nem enfiei dentro, tá só na pontinha — ela ri do meu drama. —
Come aí, vai ser o mais perto que você passou de comer catota.
— Lá vai você começar com isso. — Seguro a ânsia. — Meu estômago
é fraco, porquinha.
— Do que você me chamou, seu nerd de uma figa? — ela sorri como o
gato da Alice, mas ao pegar um punhado de recheio nos dedos, corre atrás
de mim com a agilidade do coelho.
— Pérola, você não faria isso comigo, né? — eu pergunto já sabendo a
resposta, porque me esquivo para trás de uma extensa mesa prateada que os
funcionários usam para montar os pratos.
— Achei que eu já tinha te alertado sobre duvidar de mim, Honey… —
ela dá um passo para contornar a mesa.
— Se eu fosse você, não faria isso. — Me preparo para correr. — Eu
sou treinado em mais de 500 episódios de luta ninja.
— Mas é míope.
Abro a boca para contestar, mas ela tem razão. Considerando que meu
óculos tem metade do grau que preciso, a chance de eu dar de cara com a
parede enquanto corro dela é bem grande. Além disso, essa lente está torta
na armação, o que deixa minha percepção de profundidade um tanto
alterada.
É como erguer os pés na altura de dois degraus para subir um só. O
míope sofre mais que nerd tentando achar o Mewtwo jogando Pokemon Go.
— Você é uma opressora de minorias — balanço a cabeça em
desaprovação. — Não se deve usar a miopia de alguém contra ela. Pode ser
você precisando de óculos amanhã.
— E quem disse que eu não preciso usar? — ela ri. — Eu só finjo que
não preciso e me acostumei a enxergar a cara das pessoas um tanto borrada.
Ajuda muito quando eu preciso ficar com um feio.
Arqueio a sobrancelha.
— Tá me chamando de feio? Vocês ouviram isso? — me distraio com
meu choque, perguntando aos funcionários que nem dão moral para a nossa
brincadeira.
— Não, mas de lerdo com toda certeza.
A voz dela que deveria vir de frente, vem de baixo de mesa, me fazendo
arregalar os olhos e ver a mulher engatinhando embaixo do móvel para
tentar me pegar.
Demoro dois segundos para sair correndo, me abaixando para passar
sob as panelas penduradas no suporte do teto, desviar das bandejas que eles
carregam e dos cabos de panela fervendo, tudo isso segurando o óculos no
rosto porque as hastes estão frouxas.
Eu preciso trocar esse óculos!
— Volta aqui, Honey. Só quero te deixar mais doce. — A voz dela
ofegante me garante que está dando tudo de si para me sujar de recheio.
Só de pensar na gordura do creme impregnada na minha pele e o tanto
que vou demorar no banho para tirar isso, começo a suar. Pelo menos eu
não estou em casa para pesar na conta de água e energia.
Já basta meu computador ligado vinte e quatro horas.
— Pérola, tenha piedade… — suplico misericórdia, mas ela tem a
mesma disposição de João Pedro para me poupar: zero.
Ouço reclamações a cada volta que eu dou para fugir, principalmente
porque meu cotovelo esbarra na maioria das pessoas enquanto seguro o
óculos.
“Olha por onde anda”.
“Tá fugindo do capeta, caralho?”.
“Isso aqui não é pista de corrida”.
“Engoliu o Relâmpago McQueen?”
São algumas das coisas que eu escuto. As outras são feias demais para
eu comentar.
Minha corrida só cessa por total falta de controle da minha parte.
Quando meu pé direito escorrega na poça de molho de tomate no chão e vai
para cima como se quisesse alçar voo e o esquerdo não é capaz de conter o
estrago, minha bunda atinge o chão com a força de uma ogiva. Eu nem
mesmo tenho tempo de gritar, porque o grito da mulher que eu atinjo como
uma bola de boliche me interrompe no momento exato que ela deixa o bolo
que carregava cair em cima de mim.
A massa, recheio e cobertura explodem em mim e se espalham por cada
centímetro do meu corpo no que imagino ser uma típica cena de Tom e
Jerry. Para constar, eu sou o Tom.
Tiros os óculos cobertos de glacê do rosto para conseguir enxergar
alguma coisa, vendo confeito espalhado como uma segunda pele.
— Meu bolo! Eu não acredito que derrubei meu bolo! — a mulher
começa a choramingar e eu a encaro incrédulo. — A culpa é toda sua!
Ela bate em mim fazendo cobertura voar para os lados e nem tento me
defender.
Eu esperava que Pérola fizesse isso, mas tudo que escuto vindo dela é
uma gargalhada espalhafatosa e já quase sem ar.
Giro o pescoço para trás, vendo a criatura agachada, com a mão sobre a
barriga, passando mal de rir da minha desgraça.
— Você… — ela diz entre uma lufada e outra. — Você estava fugindo
de um pouquinho de recheio… — outra pausa para rir. — E agora tá igual a
Cruella Devil no final de 101 dálmatas.
Quase não consigo erguer as sobrancelhas já endurecidas de tanto glacê.
— Meu Deus! O que fizeram com a minha cozinha? — Uma senhora já
de idade me olha primeiramente com choque, que vai passando para raiva
em poucos segundos.
Arregalo os olhos.
— Agora fodeu — um dos funcionários comenta e logo Pérola segura o
meu braço.
— No três você corre — ela diz pra mim, mas sua atenção está na
senhora que agora segura um rolo de massa.
— Ela não vai bater na gente com isso, vai? — averiguo.
— Pode apostar que sim. — Pérola me ajuda a levantar. — Tia Fátima,
um, juro que limpo tudo amanhã, dois, quando a senhora não quiser mais
me matar, três!
Ela me puxa com tanta força para fora da cozinha, que metade do bolo
fica no ar e eu saio fazendo um caminho como João e Maria, deixando
migalhas por onde passo.
E se eu tinha dúvidas que essa senhora meiga e gentil bateria na gente
com aquela coisa, se encerra com a quantidade absurda de palavrão que sai
da boca dela.
Credo, a senhora cometeu tanto pecado agora que até os meus nesses
últimos dias ficaram amenos.
— O que a gente faz agora? — pergunto ofegante, correndo atrás de
uma Pérola gargalhante e despreocupada. Eu só posso estar ficando maluco
de ainda segui-la.
— A gente te dá um banho… porquinho.
Eu até penso em brigar com ela por toda essa confusão, mas seu sorriso
de puro atrevimento, formando ruguinhas nos cantos dos seus olhos e um
franzido fofo no nariz, me faz engolir toda e qualquer reclamação.
Acho que eu mesmo atiraria um bolo na minha cabeça para vê-la tão
feliz assim de novo.
 
Eu literalmente não esperava causar esse caos todo na cozinha,
principalmente sabendo o sermão que vou levar da Tia Fátima, mas devo
confessar que só de ver o Joca completamente melecado de bolo, vai valer a
pena todos os puxões de orelha.
Ele me obrigou a trazê-lo para a minha cabine porque se recusou a sujar
a sua. Eu nem pude me opor, afinal era culpa minha ele estar parecendo um
bolo de andar de casamento de gente rica.
— Misericórdia, eu nem sei por onde começar a me limpar.
— Vem pro banheiro que eu te ajudo, resmungão — reviro os olhos.
Normalmente eu não tenho paciência com reclamações, mas ele fica
todo fofinho emburrado, que quebra qualquer pose de irritada que eu possa
criar.
Arrasto a Cruella, quer dizer, o Gui para meu banheiro, fazendo uma
careta para o rastro que ele deixa no chão. Manuela vai me matar quando
chegar amanhã. Ela não é fissurada com limpeza, mas tem pavor de formiga
e isso pode muito bem juntar algumas.
Pode parecer ilógico ter formiga num navio…, mas com lógica ou não,
essas pequenininhas conseguem aparecer.
Pego o óculos dele e o limpo com cuidado na pia do banheiro,
engordurando toda a louça. Gui me xingaria se eu o obrigasse a limpar?
— Levanta os braços para eu tirar sua roupa.
— Você adora tirar minha roupa, né?
— Notou, foi? — ironizo. — Por mim você andaria pelado.
— Eu tenho que andar é enrolado em plástico bolha perto de você.
— Pode ser também, eu amo ficar estourando bolinhas.
— Não sendo as minhas, fique à vontade.
Comprimo os lábios.
— As suas não são inhas, Honey… é proporcional ao resto.
— Eu sei, quando eu era criança uma médica pensou que eu tava com
cachumba e tinha descido para as bolas. — Cubro a boca, tentando não rir.
— Pode rir… até minha mãe riu.
— Desculpa, Gui. É que eu imaginei a cena.
Ele finalmente ergue os braços para que eu tire sua roupa e puxo a blusa
sobre a cabeça, tentando não me sujar de bolo. É hipócrita já que isso
começou comigo tentando sujá-lo, mas a vida é sobre ser hipócrita e tá tudo
bem.
Jogo a blusa na pia, passando para seu short de moletom. Finco os
dedos na costura, abaixando junto com sua sunga, me afastando um pouco
com medo de levar uma anaconda na cara. Não que eu não goste, mas de
pau mole nunca testei.
Gui nota minha atitude e resmunga que eu sou cruel.
— Entra pro chuveiro, Mia Colutti.
— Como é?
— Você parece ela, só falta dizer o quanto é difícil ser você.
— Mas é difícil ser eu!
— No próximo remake de Rebeldes, faça um teste. Você com certeza
passa.
Ele abre a boca provavelmente para reclamar de novo, mas o empurro
para dentro do box, ligando o chuveiro sobre sua cabeça.
Pelo menos dessa vez a água está quente.
Gui se sacode com o susto e fecho os olhos para evitar que os respingos
de água e bolo se alojem na minha córnea.
— Você tá me sujando inteira! — repreendo, me afastando com a
intenção de sair do box.
Mãos na minha cintura me impedem de concluir meu plano.
Abaixo os olhos, me surpreendendo ao vê-lo me segurar.
— Você acha mesmo que vou te deixar sair daqui limpa e seca depois de
ter ficado coberto de bolo por sua culpa?
— Estou contando com isso.
— Não conte, mocinha. Você foi muito travessa hoje — a fala dele não
é nem um pouco maliciosa, o que me faz rir. Qualquer homem diria isso no
sentido de me punir sexualmente, mas ele está apenas querendo retribuir a
sujeira que causei.
— Não fui eu que joguei o bolo em você.
— Não, foi culpa sua eu ter saído correndo.
É tudo que ele fala antes de inverter nossas posições e me jogar
embaixo do jato d’água e se esfregar a mim como um cachorro se secando
depois de pular numa piscina. Gargalho alto, tentando me livrar do seu
aperto, mas ambos estamos tão escorregadios do glacê, que nossas mãos
escorregam na pele um do outro.
Gui finalmente me permite sair debaixo do chuveiro, sorrindo com um
bobo, a cara toda melecada de bolo. Não resisto em passar a língua na sua
bochecha, provando do doce na sua pele.
— João Guilherme e floresta negra... até que fica bom.
— Agora estamos quites — Gui começa a rir vitorioso da minha sujeira.
Abaixo os olhos para meu próprio corpo, negando com a cabeça.
— Eu acho que falta algumas partes para sujar.
Tiro minha saída de praia sem aviso prévio, a jogando para o outro lado
do box, focando minha atenção nas íris azuladas sendo preenchidas pelo aro
nebuloso das pupilas enquanto me assiste. Ele deixa seus olhos navegarem
pelo meu corpo, jogando uma âncora exatamente onde se encontra a sereia
desenhada. Só desvia a rota da região quando levo uma mão para trás,
desatando o nó da parte de cima do biquíni, que cai em um baque mudo no
piso molhado.
Gui arfa diante de mim, dando um passo para trás até encontrar a parede
de azulejos, onde se escora para buscar equilíbrio.
— Que foi? — digo inocentemente, o vendo praticamente babar pelo
meu piercing. — Tá fugindo?
— Por que… — ele limpa a garganta. — Por que você tirou a roupa?
— Porque você disse que estamos quites, mas estou limpa demais em
comparação a você.
Para demonstrar, pego com o dedo um punhado de recheio em seu
ombro e o coloco sobre meu pescoço, escorrendo até minha clavícula.
— Acha que está bom? — finjo inocência.
Ele nega com a cabeça. Reprimo sorriso, pegando mais do glacê e
espalhando no canto dos meus lábios. O vejo fechar as mãos em punhos e
apoio a nuca no azulejo para se manter parado.
— Ainda está muito limpa — sussurra sem precisar que eu pergunte.
— Então faça o favor de me deixar tão melada quanto achar necessário.
Ele entende o duplo sentido da minha frase, porque balança a cabeça
com uma risada constrangida. Espero pacientemente, ficando à disposição
para ele levar o doce ao meu corpo. Antes que seu dedo suje meus ombros,
o aviso.
— Só não se esqueça, de que todo lugar que você sujar, vai ter que
limpar depois... e não é com água, Honey.
O peito dele se move mais rapidamente e consigo enxergar a batalha
que trava dentro de si para criar coragem e me tocar. Para simplesmente
colocar em prática aquilo que deseja. Por que tantas amarras, tanta
precaução?
— Quem foi que te convenceu de que você não é incrível, querido? —
digo em voz alta, mais para mim do que para obter uma resposta. Seguro a
mão que ele mantém estirada a um passo de me tocar, a aproximando do
meu ombro. — É aqui que deseja?
Ele assente fracamente e faço seu dedo melado de glacê percorrer meu
ombro e voltar para si para se sujar novamente do doce.
— Onde mais?
Os olhos dele caem para a região abaixo da minha orelha e novamente
guio sua mão para lá, delimitando a linha até a base do meu pescoço. Dessa
vez, não preciso o interrogar, porque João Guilherme toma a iniciativa de
fazer o doce percorrer o centro dos meus seios, escorregando até minha
lateral, onde ele concentra a maior parte na sereia. Mais um pouco da
textura aveludada é passada em meu quadril, descendo para minhas coxas e
terminando na altura dos meus joelhos.
Sem dizer nada, seus joelhos tocam o chão molhado e ele pede com
uma voz tão baixa que tenho dificuldade de assimilar com sob o barulho do
chuveiro.
— Se segure na parede.
Só entendo quando ele segura o interior do meu joelho e ergue minha
perna até fica na altura do seu ombro. Qualquer homem, teria olhado
diretamente para minha entrada, agora de frente e aberta para o seu rosto.
Mas não ele. Ele está focado no filete de glacê que desenhou sobre meu
joelho.
Seus olhos procuram os meus em um pedido velado de permissão.
Assinto com os lábios presos entre os dentes, apoiando as costas no azulejo
gélido.
Os lábios de João Guilherme não tardem em recolher o doce da minha
pele, sua língua refazendo o caminho que seu dedo criou. Suas mãos
seguram minha coxa com posse, mantendo-a no lugar, enquanto gira sua
língua sobre meu joelho, me fazendo arfar. Gui sobe um pouco mais, não
deixando uma migalha sequer no interior da minha coxa. Sua respiração
colide contra minha boceta, a deixando ainda mais quente. É angustiante o
ter tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe.
Não vou apressar as coisas, não dessa vez. Ele precisa ter confiança em
si e conhecer o meu corpo antes de mais nada.
Seus cabelos roçam minha virilha, formando uma fina camada que
cobre a minha flecha de sagitário, enquanto ele trabalha avidamente em
chupar a tez sensível da coxa. Ao erguer seu rosto e conferir o resultado,
percebe a pequena sujeira que causou acidentalmente.
O rosto dele toma tons avermelhados e ele fita a tatuagem na minha
virilha com uma atenção reverenciada.
Estalo a língua, chamando sua atenção. Sorrio lateralmente, apontando
para o local.
— Eu avisei que onde sujasse, deveria limpar.
O canto dos lábios dele sobem satisfeitos e Gui me faz prender a perna
sobre seu ombro, a deixando apoiada na região para facilitar seu acesso à
minha tatuagem. A indecisão nos seus gestos não dura tempo suficiente,
porque logo a carne aveludada de sua língua toca o pequeno espaço de pele,
me fazendo arfar junto com ele. Gui pragueja algo que não entendo,
segurando em meus quadris para que eu não sabia do lugar.
Sua língua desliza por toda a linha da virilha, recolhendo o glacê
demoradamente, fechando seus lábios sobre minha pele como se beijasse
minha boca. Eu travo a respiração, imaginando que ele irá aprofundar o
toque para meus lábios internos, mas não o faz. Se limita ao que foi melado,
mas em um entusiasmo e dedicação, que arriscaria dizer que ele me faria
chegar ao orgasmo apenas assim.
Com delicadeza, desce minha perna para o chão, sua boca se
concentrando na sereia, a acarinhando não apenas com sua língua, mas com
suas digitais e principalmente seu olhar. A forma com as íris azuladas
esquadrinham o desenho na minha cintura, quase me deixam ciumenta por
tamanha atenção. Ele salpica beijos por toda ela e quando finalmente se dá
por satisfeito, seus lábios percorrem o centro dos meus seios, limpando o
que foi deixado ali.
Com um sorriso travesso, pego um pouco do bolo e coloco sobre meu
mamilo, o encarando para ver sua reação.
— Isso é trapaça — acusa.
— Vai me dizer que nunca jogou sujo?
— Nunca.
— Bom, sempre tem uma primeira vez para tudo, Honey.
A resposta dele é pegar minha do doce e passar pelo mamilo com o
furo. Controlo para não rir, porque parece que o senhor bochechas rosadas
tem uma verdadeira obsessão por ele.
Primeiro seus lábios tomam o mamilo sem a peça metálica, testando a
sensação contra sua língua. Ao fechar sua boca sobre ele, ao invés de o
chupar ondulando sua língua, Gui o suga, causando mais dor que qualquer
outra sensação.
— Com calma — instruo, segurando seu queixo.
Ele acena, liberando a carne agora avermelhada e se concentrando
apenas em provocá-la com sua língua. Isso não me causa muito efeito, não
nesse mamilo sem o furo. As mãos dele seguram meu quadril e as sinto
inquietas, indo de voltando pela minha virilha, mas nunca chegando a lugar
nenhum.
— Diga o que quer, querido... você precisa falar se quiser receber seus
objetos de desejo.
Contrariando minha fala, ele não responde com palavras, mas sua mão
afasta minha coxa, me olhando sob os cílios com meu seio em sua boca,
proferindo a sua pergunta ao deslizar o dedo para o interior das minhas
pernas quase tocando minha entrada.
— Quer saber se estou molhada como no outro dia?
Ele assente, mamando meu mamilo. Não é bom o movimento que faz,
mas a cena por si só faz meu clitóris arder.
— Fique à vontade, Honey.
Tempo é algo que ele não perde, levando não apenas um, mas dois de
seus dedos para minha boceta, afastando os lábios inchados e os
percorrendo até introduzir em minhas paredes, encontrando aquilo que
procurava.
Ele choraminga em meu mamilo, se aproveitando da lubrificação para ir
mais fundo dentro de mim. Seus dedos se curvam dentro do meu interior e
jogo a cabeça para trás, a batendo contra a parede. Gui solta meu mamilo
com um som molhado e recolhe o doce do meu pescoço com habilidade, até
chegar à minha boca.
Agarro os cabelos de sua nuca, me apossando dos seus lábios ao senti-lo
estocar os dedos em minha boceta e a palma de sua mão acariciar meu
clitóris. Ele pode não ser bom com a boca, mas é maravilhoso com os
dedos.
Benditos sejam os joysticks.
Nossas línguas se embolam, o sabor e a textura do bolo adocicando e
deixando nossas lábios aveludados, tornando tudo tão infernalmente
delicioso, que não demoro em prender minha perna em seu quadril o dando
mais espaço para me foder com seus dedos.
— Mais um — peço quando ele desce os beijos para minha mandíbula,
os dentes arranhando a epiderme. Gui adiciona um terceiro dedo, não me
poupando ao fazê-lo entrar até a base, os metendo em um ritmo rápido e
extremamente coordenado.
Merda...
Levo a mão para entre nossos corpos, segurando sua ereção com
cuidado, apenas dando a ela algum alívio. Minha palma o bombeia
lentamente e Gui borde meu lábio inferior, estocando seus dedos ainda mais
rápido, me permitindo escutar os sons molhados da minha carne os
engolindo.
Ele abaixa o rosto sobre mim, indo em direção ao único local que falta
limpar. O mamilo com a peça metálica.
Meus músculos internos mastigam seus dedos e eu me controlo para não
bater uma para o seu pau na mesma medida, com a mesma intensidade. Ao
invés disso, acaricio a glande com o polegar, o fazendo gemer ao chegar em
meu mamilo e o chupar de uma única vez. A sensibilidade do furo,
juntamente com os primeiros sinais do meu orgasmo, me faz gemer mais
alto do que pretendia.
O que leva o Gui a se assustar e erguer o rosto rapidamente, com seu
cabelo se prendendo ao piercing. Me arrancando um segundo grito. Mas
esse, não de prazer. De dor.
— Para, para, para! Fica quieto, porra! — Pérola segura meu pescoço
como se faz com uma galinha no abate e retiro os dedos de dentro dela, com
medo de a ter machucado com as investidas.
— O que foi? — pergunto estrangulado.
— Você tá arrancando meu mamilo!
Comprimo as sobrancelhas.
— Pérola, não sei se foi gostoso ao ponto de você ainda estar sentindo
minha boca aí, mas eu soltei seu mamilo faz uns 10 segundos.
Antes da resposta dela, eu ganho um aperto na traqueia. Tesão a deixa
agressiva?
— Seu cabelo, cacete! É seu cabelo que prendeu no meu piercing!
Arregalo os olhos. Puta merda.
— E agora? — indago paralisado.
— E agora que a gente corta!
— Meu cabelo? — questiono incrédulo.
— Meu mamilo que não é!
Acho que agora descobri como ela fica irritada. E olha que nem teve o
pau quase partido ao meio.
— Vai cortar meu cabelo com o quê? — Olho em volta e tudo que eu
vejo é uma lâmina de barbear. Senhor Jesus, que ela nem cogite essa ideia.
Eu estava mesmo querendo cortar o cabelo, mas com um profissional e de
preferência com uma tesoura.
— Eu tenho uma tesoura de cabelo no armário da pia.
— Pra quê? — desconfio.
— Pra cortar a rola alheia — ironiza mais irritada. Minha nossa, me
lembre de nunca ferir o mamilo alheio de novo. As pessoas ficam realmente
nervosas. — É claro que é pra cortar cabelo, eu não tenho dinheiro pra ficar
gastando com salão.
— E como a gente vai pegar isso? — meu pescoço já tá gangrenando
com essa posição.
— A gente vai com cuidado e com calma, porque se você arrancar meu
mamilo, vou te fazer me comprar outro.
E se compra isso? Estou mesmo desatualizado do mercado.
— A culpa não é minha do meu cabelo ter prendido.
— Ah, não… deve ser minha! — ela fala exatamente como minha mãe
agora.
É melhor que eu fique calado antes que ela arranque junto meu couro
cabeludo.
Pérola abre a porta do box com cuidado, ainda agarrada ao meu pescoço
para que eu não me mova além do necessário. A cena por si só já é ridícula
e vergonhosa. Nós dois nus, meu cabelo enroscado na bendita pecinha de
metal e minha cabeça pregada à barriga dela, frente a frente com a sereia
tatuada.
Essas coisas só acontecem comigo. Eu não joguei pedra na cruz, eu
joguei a cruz na pedra.
— Agora a gente precisa se abaixar com muito cuidado para eu abrir a
gavetinha... — Pérola geme de dor e meu constrangimento se transforma
em preocupação.
Que droga, estávamos indo bem, ou pelo menos eu acho que estava.
Pérola ficou molhada, isso é bom, não é? Ou ela ficaria assim com qualquer
cara no meu lugar?
Provavelmente ficaria mais — a parte depreciativa da minha mente
debocha.
— Peguei! — ela comemora.
— Você quer que eu corte? — Ofereço por educação.
— Querido, você acha mesmo que vou colocar uma tesoura na sua mão
perto do meu mamilo? Com o adendo que você não pode virar a cabeça pra
olhar?
— Ok, foi uma proposta burra.
— Obrigada por reconhecer.
Arqueio a sobrancelha. Pérola com o mamilo ferido é a mesma coisa de
Manuela num dia comum.
— Corta pouco, tá? — e rápido, minha coluna está gritando nessa
posição.
— Eu vou cortar o necessário pra soltar a gente.
— E isso seria?
— Muito. Seria muito! — É impressão minha ou a voz dela parece com
a de alguém segurando a risada?
Fecho os olhos, começando minha oração.
Senhor Deus, que ela saiba a diferença do meu cabelo para a minha
orelha…
O barulho da tesoura sendo aberta me dá calafrios, porque parece tão
enferrujada quanto a minha prática sexual. O próximo som é o corte seco
que ela dá no meu cabelo, me libertando da minha prisão.
— Consegui! — ela grita animada.
Cambaleio para trás e apoio uma mão sobre a lombar para me endireitar
decentemente. Talvez meu osso estale três vezes até que eu consiga não ser
mais um “S” ambulante.
— Ah, merda... — Pérola cobre a boca me encarando e minha espinha
gela.
— O que foi?
— Você tá parecendo uma calopsita — ela começa a rir, me fazendo
virar de frente para o espelho sobe a pia.
Meus olhos saltam tanto que por pouco não caem dentro do ralo.
— Eu vou sofrer bullying pro resto da minha vida.
— Não vai não... — Ela morde o lábio. — Só até ele crescer de novo.
Pérola perde a batalha e começa a rir de nervoso, tentando abaixar o
chafariz que ela fez no meio da minha cabeça. Eu duvido que tudo isso
tenha se prendido naquele brinquinho pequeno.
Faço bico, cruzando os braços.
Podia ter cortado menos, eu sei disso!
— Oh, coisinha linda, não fica bravo comigo não. — Ela se pendura no
meu pescoço, espalhando beijos pelo meu ombro. — O cabelo tinha
realmente enrolado muito no piercing, olha.
Ela me faz virar de frente para ver o tufo de cabelo ainda grudado ao
brinco metálico.
Ok… ela cortou até pouco dado a confusão que isso virou.
Um alerta para todas as pessoas com piercing no mamilo: cuidado com
parceiros de cabelos grande. O bullying pode ser evitado.
— Como você vai tirar isso? — toco a região para descobrir como tirar
esse cabelo sem machucá-la.
— Tenho que tirar o piercing e higienizar.
Abaixo a cabeça com as bochechas pegando fogo.
— Me desculpe por esse desastre. Eu queria te proporcionar um
momento inesquecível e agora você deve tá querendo me tirar daqui a
pontapés.
— Gui... — Ergue meu rosto. — Você me proporcionou um momento
inesquecível. Ou acha que vou me esquecer que quase perdi um mamilo
para um fio de cabelo?
Pérola gargalha já sem um pingo de irritação e meu próprio sorriso
começa a brotar no rosto.
— Não leve isso mais a sério do que a situação exige, por favor. — Ela
se cobre com uma toalha, enrolando outra no cabelo, apontando para o
chuveiro. — Termina de se limpar do bolo e me encontra no quarto, eu vou
cortar seu cabelo para não ficar tão diferente.
Abaixo os olhos para meu corpo, constatando que ainda estou pregando
do glacê gorduroso.
— E você sabe cortar cabelo? — indago com medo.
— Do mesmo jeito que você sabe como colocar um piercing de volta
em um mamilo.
— Mas eu não sei.
— Pois é. — Ela joga os ombros, demonstrando que essa é a resposta à
minha pergunta.
Se eu começar a chorar, meus problemas acabam?
Vou parecer a Sakura[27] depois de cortar os cabelos na prova ninja. Mas
pelo menos ela cortou os seus para salvar os amigos, eu cortei para salvar
um mamilo. Essa vergonha vou passar sozinho.

— Não me deixa careca — suplico, enquanto Pérola parte meu cabelo


para fazer o corte que ela achou em um tutorial no YouTube. Ela me sentou
na poltrona da cabine, pegou um pente de cabelo que, segundo ela, Manu
usa para treinar os penteados que faz nos cachorros quando não está no
cruzeiro e precisa trabalhar num pet shop. Pérola contou que é sua cobaia,
que sempre fica parecendo um poodle de lacinhos.
— Ah, parece ser fácil pelo tutorial.
— Ver os outros fazendo é sempre fácil — resmungo.
— Tenha mais fé em mim! — Ela bate no meu ombro. — Eu tive em
você hoje.
— É, e eu quase arranquei seu mamilo. Foi uma péssima ideia ter fé em
mim.
Estou verdadeiramente chateado com isso. Eu estraguei nossa noite e
ela estava sendo perfeita.
Escuto o suspiro de Pérola e penso que ela vai me enxotar para fora do
seu quarto pelo meu humor azedado. Mas ao invés disso, ela se curva às
minhas costas, para ficar na altura da minha orelha.
— Eu nunca me arrependo de nada na minha vida, porque é perda de
tempo. Principalmente de algo que foi realmente prazeroso. Ter fé em você
não foi decepcionante, acredite.
Giro o pescoço para trás, surpreso.
— Então foi bom? — não consigo conter o sorriso.
— Os dedos? Sim. A boca? Nem um pouco. Mas eu te ensino essa
segunda parte outro dia.
Minhas bochechas queimam.
— Foi tão ruim assim o que fiz com a boca? — Pra que eu fui
perguntar? Claro que foi.
— Eu me senti sendo ordenhada. Não é legal. Mas não se preocupe, a
maioria dos homens não sabe o que fazer.
— Mesmo?
— Uhum. Cinquenta por cento acha que é um chiclete pra ficar
mascando e a outra metade pensa que é chupeta.
— E qual é o certo?
— Querido, meu objetivo hoje é cortar seu cabelo, tirar o tufo dele do
meu peito e dormir o sono dos justos. Vamos deixar a aula para amanhã.
Fico calado de uma vez, deixando-a ajustar minha cabeça de forma reta.
Pérola demora quase uma hora inteira para terminar o corte e estou
quase dormindo na poltrona quando ela me entrega um espelho de mão.
— Se o tantra não der certo, posso virar cabeleireira. — Sorri satisfeita
para seu trabalho.
Mal consigo reconhecer meu reflexo no espelho. Não porque ficou
ruim, mas porque voltou a parecer comigo mesmo. Deixei tanto tempo meu
cabelo crescer para agradar a Olívia, que eu tinha me esquecido de como
gosto dele desse tamanho. Não que esteja realmente curto, do tipo “acabei
de me alistar para o exército”, mas está batendo acima da minha nuca e os
fios não mais caem sobre meus olhos.
É bom voltar a me ver no espelho. Realmente bom.
— Gostou? — Pérola fica na minha frente para analisar seu trabalho e
num impulso que nem eu mesmo sei explicar de onde vem, a puxo para o
meu colo. Os olhos dela saltam surpresos, embora não assustados. E eu a
abraço.
Abraço realmente forte, enfiando meu rosto no vão do seu pescoço,
sentindo o cheiro de doce que vem da sua pele, que agora é o mesmo que o
meu por usar seus produtos de higiene.
Os braços dela envolvem meu pescoço, acariciando o couro cabeludo
mais exposto.
— Não que eu esteja achando ruim, porque acredite não estou, mas por
que desse abraço?
— Não sei — sou sincero. — Talvez porque eu me vi como eu mesmo
depois de muito tempo, ou por você não ter me enxotado para fora, ou por
simplesmente conseguir transformar qualquer situação ruim em algo bom
no final. — Franzo o cenho, estreitando ainda mais meus braços. — Acho
que eu preciso te abraçar para entender que é real e para te agradecer.
O corpo dela tensiona sobre o meu por uns instantes e fico preocupado
de ter ultrapassado algum limite, mas quando Pérola deposita um beijo
carinhoso e demorado no meu pescoço, essa preocupação vai embora.
— Seja qual for esses motivos, fico feliz que os tenha retribuído com
um abraço.
Sorrio contra seu ombro.
— Eu achei que esse cruzeiro seria horrível, achei que eu nunca fosse
gostar de nada que fugisse da minha zona de conforto — confesso. — Mas
você tem uma espécie de mágica, que basta uma palavra, um sorriso
travesso, ou simplesmente aparecer, para me fazer enxergar as coisas de
outra forma. Obrigado por me mostrar que nem toda coisa nova é ruim.
Pérola me afasta para me fitar olho no olho.
— E eu achei que todo homem fosse uma peste mentirosa e
manipuladora, então obrigada por me mostrar o contrário. Estamos quites
nessa, Honey.
Isso mata meu sorriso.
Porque posso até não ser uma peste manipuladora.
Mas sou mentiroso.
E sinto o peito apertar na possibilidade de perder sua amizade por isso.
Volto a puxá-la para mim. E rezo para que pelo menos enquanto durar
esse cruzeiro, eu possa ter uma amiga como ela. Alguém que realmente
gosta de mim como eu sou.
 
— O que aconteceu com vocês? — essa pergunta deveria vir do
Corinthiano sobre o cabelo do noivo, mas veio de Joca ao ver o estado
deplorável que o dito cujo e Manuela chegaram ao navio.
Essa última, me encara como se eu tivesse quebrado sua paleta de
sombra da Bruna Tavares. [28]
Gui e eu acabamos dormindo na minha cabine mesmo, depois de
ficarmos conversando quase toda a madrugada. A gente acordou cedo e a
primeira coisa que fez foi vir até o convés, esperar os amigos que deixamos
perdidos na praia no dia anterior.
— Reformule sua pergunta, João Guilherme. — O Corinthiano grunhe.
— O certo seria: o que nós fizemos com vocês?
— Como assim o que fizemos com vocês? — fico confusa. — Não dava
pra gente esperar lá, vocês atrasaram e nós voltamos pro navio.
— Por que não pergunta o motivo pelo qual nos atrasamos, Pérola
Duarte? — Arregalo os olhos quando Manu me chama assim. Isso é
realmente raro. Ela só me chamou assim quando eu acidentalmente deixei o
seu alicate de unha recém amolado cair no chão e perder o corte.
— Qual foi? — Gui tira as palavras da minha boca.
— Vocês levaram as chaves do nosso quadriciclo na sua bolsa! —
Manuela praticamente grita no meio do convés. Alguns passageiros nos
encaram e eu forço um sorriso educado.
— Eita... — João Guilherme exclama. Eu fico muda, tenho medo dela
quando fica assim. — Como vocês voltaram então?
As veias da testa de Manuela ficam tão saltadas que eu me preocupo
que ela comece a ter um ataque bem aqui. Ela segura o colarinho da roupa
do Gui, quase espumando pela boca.
— Nós voltamos a pé. À noite. No meio do nada. Com esse energúmeno
ainda nos fazendo errar o caminho pela mata!
Isso explica os arranhões deles pelo corpo; eu pensei que pudesse ter
sido sexo selvagem, mas ao que parece foram galhos durante a trilha.
— Manu, mas são só três quilômetros. Nem é tudo isso.
Sinto vontade de retirar as palavras tão logo elas escapam, porque virei o
alvo da sua fúria.
— Seriam três quilômetros, se a sua amiguinha não tivesse inventado
que conhecia um atalho — JP fala depois de muito tempo nos encarando
como se planejasse nosso assassinato.
— Eu realmente sabia, mas você ficou me estressando e eu acabei
errando a passagem. — Eles começam a se enfrentar frente a frente e me
questiono se os arranhões nas suas peles, na verdade, não foram de briga.
— Bom, mas pelo menos vocês chegaram vivos, né? — Tento um
sorriso para apaziguar e os dois se viram para mim lentamente. Gui se
coloca na minha frente no mesmo instante.
— Sem pensamentos positivos agora ou a gente vai apanhar — ele
cochicha para mim.
— Pode deixar — digo de olhos arregalados.
É o auge ser atacada por ser uma pessoa feliz.
Amargurados!
— Nós passamos a noite numa trilha escura, com os celulares sem sinal,
cheio de mosquitos nos picando e um frio do caralho. Vivos não é
exatamente a descrição que eu daria para nós! — Manuela rosna como um
Pinscher.
— Estão respirando, coração batendo e sangue no corpo, vivos vocês
estão — comento na intenção de aliviar o clima. Não funciona.
— Cheetos, eu te amo, mas estou querendo muito te acompanhar em
uma sessão de depilação à cera na virilha para te ver sofrer.
Os meninos fazem cara de assustados. Deveriam mesmo, isso dói!
— Vocês dormiram na trilha? — Mudo de assunto. Não estou a fim de
pensar nos pelos da minha vagina sendo arrancados sem piedade.
— A gente chegou até à vila de madrugada e nos deram um quarto…
que só tinha uma cama de solteiro. — Manu revira os olhos.
— Eu dormi no tapete, só pra constar — o Corinthiano resmunga.
— Do meu lado que não seria!
— Eu preferia dormir do lado da boca de um tubarão do que do seu.
Olho para Gui quando eles começam a discutir de novo.
— No três a gente corre — repito a instrução da noite passada.
— Fechado. — Ele bate a mão na minha e quando o número três sai da
minha boca, vamos os dois para lados opostos, correndo como se nossa vida
dependesse disso.
E talvez dependa.
Manuela brava é sempre um risco à saúde.
Ela se acalma e dorme vendo documentários de assassinos em série, o
Spotify e Tiktok só tem podcast de crime… ela sabe como esconder um
corpo e eu sei ter amor à vida.

— Porra, Cheetos! — Ela seca seu cabelo depois do banho, jogando a


toalha em cima de mim. — Não acredito que você me fez passar a noite
com ele!
Há tanta raiva encubada ao se referir ao Corinthiano que sou obrigada a
tocar no assunto que vem me deixando intrigada há dias.
— Manu… — A faço se sentar na cama, aproveitando do meu horário
de almoço. — O que você não está me contando sobre essa história com o
João Pedro?
— Por que acha que não estou te contando algo? — Ela coloca o cabelo
atrás da orelha, entrando na defensiva.
— Porque se fosse um cara qualquer que não mexe com você,
simplesmente fingiria que não existe ou debocharia até ele explodir de
ódio…, mas é você que está convalescendo dele.
Manu revira os olhos.
— Eu odeio quando você fala comigo como se fosse minha mãe.
— Não comece com a ofensa.
— Ok, desculpe… peguei pesado.
— Não muda de assunto. O que você não contou dessa história de
vocês?
Ela suspira, se rendendo à minha insistência. Manuela abre o pote de
óleo capilar para tirar o restinho e passar no cabelo, se preparando para me
contar.
— A gente teve um caso no ensino médio. — Solta sem delongas.
— Como é que é?! Um caso? Que tipo de caso? — eu esperava que ela
me dissesse que ele passou cola errado pra ela ou coisa do tipo. — Vocês
transaram?
Com essa minha amiga ri.
— Naquela época o mais perto de sexo que o João Pedro chegava era
nos pornôs que assistia enquanto batia uma no banheiro. Nosso caso foi de
um beijo só.
— Então não foi um caso, foi um momento.
— De beijo sim, mas nós passamos meses de flerte.
— Você e o Corinthiano? — é meio difícil de acreditar. — Sem se
matar?
— Ele não era implicante assim naquela época, ok? — Ela me empurra.
— Na verdade, ele era… fofo.
— Fofo? — debocho. — O João Pedro?
— É, Pérola! Ou você acha que só seu nerd sabe ser fofo?
— Ele não é meu. — Agora quem entra na defensiva sou eu.
— Tá, que seja. Acontece que naquela época ele foi o único cara da
escola que conversou comigo olhando nos meus olhos e não nos meus
peitos.
Abaixo os olhos para os peitos dela.
— É que eles são incríveis, amiga.
— São, não são? — Segura as tetas com orgulho.
— São. Agora volta para o assunto.
— Ah, é… então, ele realmente parecia o Joca.
— Fofo e tímido?
— Sonso, desajeitado e sem articulação pra falar.
— Credo, Manuela. — Fecho a cara. — Não fala assim dele.
— Você defendendo macho me preocupa, mas cala a boca e me deixa
terminar a história porque é a última vez que vou tocar nesse assunto.
Finjo fechar um zíper sobre minha boca.
Ela puxa uma mecha do seu cabelo, a trançando para se distrair
enquanto fala.
— Você sabe que eu sempre amei histórias em quadrinhos.
Principalmente da Turma da Mônica, porque era o que meu dinheiro
conseguia comprar naquela época. Eu me escondia na biblioteca da escola
toda tarde para ler.
— Por quê?
— Porque eu era bonita, popular, gostosa e naquela época gostosas liam
Capricho e não Maurício de Sousa.
— Eu era viciada no horóscopo.
— Cala a boca, você fala mais que o homem da cobra. — Ergo as mãos,
me calando. — Como eu dizia, eu me escondia na biblioteca para ler e
ficava a tarde toda aproveitando meu momento. Eu estava no oitavo ano do
fundamental naquela época. Um dia, enquanto lia o quadrinho em que o
Mingau pensa que a Magali vai comê-lo, João Pedro tropeçou em mim no
corredor que eu estava sentada. Ele chegou a cair e o aparelho nos dentes
até cortou sua boca.
Nossa, quanto detalhe… eu não lembro nem o que comi ontem, que dirá
coisas como essas.
Manu continua:
— Eu paralisei, fiquei morrendo de medo dele contar para as pessoas
que tinha me visto lendo um quadrinho… eles iam me zoar da mesma
forma que eu zoava todo mundo, e seria mais que justo. — Ela solta uma
risada. — Acontece que ele não fez nenhum alarde, apenas se levantou,
olhou para o quadrinho nas minhas mãos e perguntou se eu gostava. Eu
disse que sim.
— E então?
— E então que ele perguntou se podia ler comigo.
— E você deixou? — pergunto em choque.
— Deixei! — O tom da voz dela é como se tivesse deixado que ele
olhasse dentro da sua calcinha. — A gente leu o todo o quadrinho juntos e
mais um da DC que ele tinha dentro da mochila. Eu não tinha dinheiro para
comprar esses porque eram caros, então foi meu primeiro contato com um
quadrinho da DC. Lembro até hoje qual era: Batman Rip.
— Foi aí que se beijaram?
—Quê? — ela gargalha. — Nós ficamos nos encontrando na biblioteca
escondidos por quase três anos antes que esse beijo rolasse, Pérola. Quando
aconteceu, eu já estava no primeiro ano do ensino médio.
Tusso fora meu pulmão.
— Três anos?!
— Eu disse que era um caso e não um momento.
— Tô chocada.
— Eu sei, mas piora. — Ela ri de nervoso, pegando outra mecha de
cabelo para trançar. — Nós criamos uma amizade muito verdadeira, ele não
me olhava com malícia, não tentava me cantar e realmente gostava de tudo
que eu gostava. Nós líamos os quadrinhos da Turma da Mônica juntos e
depois ele lia os seus da Marvel e me emprestava os seus da DC…
— Que nerd — cantarolo.
— Não fui eu que deixei um certo alguém desenhar o Pac-Man na
minha unha! — Ergo os braços em rendição. E aquilo foi fofo! Ela continua:
— O fato é que pela primeira vez, eu pude ser eu mesma sem me preocupar
se seria julgada ou jogada na sarjeta do ciclo social escolar. E eu gostava de
quem eu era perto do João Pedro. Uma garota boa, legal e inteligente. Eu só
podia ser assim nos breves momentos que a gente passava junto naquela
biblioteca empoeirada, porque nos corredores eu fingia que não o conhecia
e era apenas uma garota má; e em casa, eu precisava continuar sendo ela
para sobreviver.
Isso me lembra o que Gui falou para mim ontem. Que ficou feliz de ser
ele novamente. Deve ser essa a sensação que Manu sentia na época.
— O pior de tudo, é que ele não se importava de ser meu amigo secreto.
João Pedro fingia que não me conhecia, enquanto os outros caras que
andavam comigo, passavam a mão na minha bunda na frente de todo
mundo para mostrar que tinham uma garota gostosa. Vi várias vezes JP
fechar as mãos em punhos quando acontecia e eu apenas balançava a
cabeça, porque aqueles garotos o machucariam feio se ele se metesse.
— E o Joca? Sabe disso? Ajudava vocês? — Queria que os dois
encontrassem esses babacas agora para dar a surra que eles merecem.
Manu nega.
— Nem mesmo o Joca sabia que a gente se encontrava. Mas eu gostava
disso, Pérola, porque João Pedro não ficava do meu lado para se gabar com
o amigo, ou para receber algo em troca como a minha mãe. Ele ficava
comigo porque gostava de quem eu era... e naquela época, nem eu mesma
gostava de mim. — Ela ri com certa dor. — Ele trazia gibis novos para
lermos todos os dias, porque me via lendo sempre os mesmos antigos e
velhos. Toda semana, ele aparecia com um gibi novo até lacrado e dizia
para eu guardar na minha casa porque na dele não cabia. Eu sabia que era
mentira, afinal a casa dele era enorme. Eu passava por ela para ir até a
parada de ônibus.
Manu balança a cabeça.
— Eu estudava naquela escola porque tinha ganhado bolsa, algo que só
contei ao João Pedro. Ele tinha conhecimento que eu não era cheia da grana
e nunca exigiu os gibis de volta. Mesmo quando eu tentei devolver, ele não
aceitou, dizia para eu guardar um tempo mais. — Ela respira fundo, com
um sorriso leve e bonito nos lábios. — Então, quando o aniversário dele
chegou, eu quebrei o cofrinho que juntava moedas, para comprar um gibi
novo para ele. Os da Marvel eram caros se comprados novos, então eu fui
em um sebo e achei uma edição de Amazing Fantasy do Homem Aranha de
1962, um pouco surrada, mas ainda em bom estado. Mesmo usando todo
meu dinheiro, ainda não dava para cobrir o valor, mas a mulher me deixou
completar o restante ajudando-a a cuidar da sua filha num fim de semana. E
foi assim que dei meu único presente a ele, em troca de todos os outros que
ele me dava.
— Isso foi legal, Manu. — Minha garganta aperta. — E fofo.
— Eu disse... — Ela pisca. — João Pedro não quis aceitar na época. Ele
pediu que eu guardasse esse gibi também, mas eu via os olhos dele
brilharem por ser do Homem Aranha, o seu herói favorito. Para convencê-
lo, disse que era especial demais para mim e tinha que ficar protegido num
lugar seguro, com um homem forte... ele era magrinho, quase sem uma
grama de gordura no corpo, mas o protegeu. Desde então, não teve um dia
sequer que ele não carregou esse gibi consigo. Não importava o dia, se eu
abrisse sua mochila, estaria lá.
Merda, isso é mais do que eu podia imaginar da história deles. Entendo
por que ela fica tão mexida. Ou melhor, tento entender, porque nunca vivi
algo assim.
Até agora.
— Com o tempo, a nossa amizade foi se tornando a melhor parte dos
meus dias. Eu amava ir para a escola mais cedo, para vê-lo se despedir da
mãe com um abraço apertado e ganhar um afago no cabelo do pai. Ele era
zombado por isso, mas nunca se recusou a se despedir assim da família. Eu
também amava o observar no refeitório com Joca; eles ficavam jogando
naqueles games portáveis de antigamente, apostando o próprio lanche.
Minha vontade era de me juntar a eles para rir como eles riam, mas eu
ficava na mesa dos populares, zombando dos caras que eu queria ser amiga.
Manu não parece gostar de lembrar dessa parte de si mesma.
— Eu ficava ansiosa para o horário da saída, só para entrar naquela
biblioteca, me sentar no chão e ler ao lado do meu amigo secreto e poder
ser eu mesma por algumas horas. Depois de você, ele foi minha melhor
amizade...
— Até que não era mais só amizade, né? — adivinho.
— É... não era mais amizade. — Um sorriso melancólico sobe seus
lábios. — Eu comecei a perceber os olhares demorados dele em mim. Mas
não eram como todos os outros, com luxúria e malícia, claro que tinha
interesse, afinal éramos adolescentes, mas não me deixavam
desconfortáveis e nem com nojo. Na verdade, eu sentia meu coração quase
atravessar no peito quando ele esperava eu olhar para o gibi, para ficar me
observando. Eu demorava para ler só para que ele tivesse mais tempo de
continuar ali... com seus olhos em mim. Porque eu me sentia linda e incrível
através daqueles olhos verdes.
Chego mais perto, a deixando saber que estou aqui caso queira um
abraço. Manu não é chegada a toque físico como eu, então não invado seu
espaço pessoal em momentos assim.
Ela continua quando se sente pronta.
— Em uma tarde de chuva, a energia acabou na escola e já passava um
pouco das 18h, então a biblioteca ficou tomada pelo breu da noite, só a
iluminação do poste do lado de fora nos permitia ver alguma coisa. — Ela
encara a frente de forma perdida, como se estivesse de volta àquele dia. —
Nos dois minutos que a energia oscilou, nós nos beijamos.
— E depois que a luz voltou?
— Eu me levantei e sai correndo, com medo que nossa amizade tivesse
se encerrado ali.
— E encerrou?
Ela dá de ombros.
— Não naquele momento. Tudo deu errado quando eu mandei um
bilhete para a mesa dele no dia seguinte, me desculpando por ter fugido
daquele jeito e contando que eu apenas tive medo dos meus sentimentos,
porque havia gostado demais daquele beijo... que tinha sido o melhor da
minha vida. — Manu maneja a cabeça negativamente. — Todos acharam
que o bilhete foi entregue errado. Mas não foi. Era para ele.
— Foi quando ele te pediu em namoro? — Puxo Manu para se deitar
com a cabeça no meu colo, acariciando seus cabelos.
— Foi. Ele foi um impulsivo de merda e me pediu em namoro na frente
de toda a escola. Inclusive do meu…
— Do seu irmão.
Ela engole, assentindo.
— Eu sabia, Pérola, que se eu não humilhasse João Pedro publicamente,
meu irmão faria muito pior. — A voz dela embarga ligeiramente e isso me
aflige. Pior do que ter uma ferida aberta, é saber que uma amiga tem uma da
qual você não é capaz de cicatrizar. — Eu fui cruel e humilhei a única
pessoa que realmente me conhecia… a única por quem já fui apaixonada.
Solto o ar pesarosa.
— Foi por isso que voltou para o Rio para morar com seu pai? Por
causa do JP?
— De certa forma sim, mas ele foi só a pontinha do iceberg.
Quando sua mão se torna gélida, eu deduzo que isso faça parte da
história do seu passado que ela relembra todas as noites.
— Se não quiser me contar, não precisa…
— Não — ela nega, bufando uma risada debochada, típica de quando
quer fingir que algo não a afeta. A verdade é que Manu e eu temos
mecanismos de defesas parecidos nesse sentido. Ela debocha, eu sorrio. —
Eu preciso contar isso de uma vez.
Aperto sua mão na minha.
— Naquele dia, fui para casa achando que Manuel já teria se dado por
satisfeito com o que eu tinha falado ao João Pedro. Achei que tinha sido
convincente, mas… mas eu estava errada. De noite, que era sempre o
horário que ele fazia suas próprias sessões de filmes de terror, ele entrou no
meu quarto para cobrar satisfação sobre o que aconteceu.
Eu não sei muito sobre essa parte da vida de Manuela, só que seus pais
se separaram quando ela era criança, então se mudou do Rio para São Paulo
para morar com a mãe e o irmão após o divórcio. A mãe era viciada em
heroína e o irmão um demônio na melhor das hipóteses, que queria se
colocar como pai dela, a castigando fisicamente.
— Manuel estava transtornado, ele esperou nossa mãe usar toda sua
merda para poder gritar à vontade comigo. Ele dizia que eu não podia sair
abrindo as pernas para qualquer idiota que passasse na minha frente. E pela
primeira vez eu o enfrentei. O enfrentei no escuro, como ele sempre
esperava ficar para brigar comigo. Então ele também me enfrentou de volta
e…
Ela segura o próprio pescoço, ficando em silêncio.
Desde que a conheço, Manuela não fica sozinha no escuro, mas
principalmente, não usa sequer colar porque não suporta que nada a toque
no pescoço.
— Ele te machucou — a poupo de falar.
— Naquele dia, eu achei que ele iria até o fim… foi por isso que quando
eu dei a sorte de chegar viva ao dia seguinte, liguei para o meu pai e avisei
que iria morar com ele.
— E ele aceitou numa boa?
Manu ri.
— Você conhece meu pai, tudo na vida é bom pra ele… me lembra
muito de você. A diferença é que você é mais responsável.
— Ele te buscou em São Paulo?
— Não, ele me mandou dinheiro e eu matei aula, pegando o ônibus. Eu
já tinha dezesseis por ser um ano atrasada na escola, então já podia ir
sozinha. Minha mãe e meu irmão só souberam o que eu tinha feito quando o
dia acabou.
— Ela tentou te ter de volta?
— Minha mãe ficou mais preocupada porque perderia a pensão que era
dada para mim, mas não se preocupou com o resto.
— E seu irmão?
— Ele disse que me encontraria de novo — ela estremece. — Mas eu
não tenho mais medo dele, sabe? Deve estar tão viciado como minha mãe.
Pelo que me lembre, eles são filhos de pais diferentes, mas o de Manuel
sumiu no mundo quando ele nasceu. Não que o pai de Manuela seja um
exemplo de pai, porque ele parece mais como um amigo inconsequente do
que qualquer outra coisa, mas pelo menos sempre a tratou bem.
— E desde então você culpou JP por isso?
Manu me olha com sentimentos demais orbitando seus olhos.
— Eu o odiei, Pérola. Todo o sentimento bom que eu tinha por ele,
deixei se transformar em cólera. Porque por um impulso dele, eu não tinha
mais ninguém com quem pudesse ser eu mesma. Porque por culpa desse
impulso, eu tive que magoar alguém que amava. Tive que perder meu
melhor amigo. Precisei ser ainda mais cretina, mais cruel, mais fria do que
antes. Levei anos até conseguir encontrar alguém em quem eu confiasse de
novo.
— Até me encontrar — sorrio.
Ela sorri de volta.
— Até te encontrar, Cheetos.
Abaixo meu tronco para beijar sua testa, sabendo que esse foi seu limite
de explicação. Manu odeia chorar, e geralmente tem acessos de raiva
quando acontece, então não a pressiono por mais.
— Obrigada por me contar.
— De nada.
— Só uma última coisa... por que não explica para ele o que você
passou? João Pedro acha que você foi apenas uma cretina cruel sem
motivos.
— É melhor assim. — Manu se levanta, colocando de volta a máscara
fria. — Cretinas cruéis não podem ser machucadas. E bons garotos evitam
ser machucados por elas.
 
— Vai me contar por que cortou seu cabelo ou eu vou ter que adivinhar?
— João Pedro pergunta subitamente, tirando o rosto de dentro do quadrinho
da Marvel surrado que lê na espreguiçadeira do convés.
É a primeira vez que fala comigo desde ontem por, segundo ele, tê-lo
deixado com o Thanos[29] de saia. Não sei tudo que rolou naquela praia, mas
o deixou possesso.
— Pérola derrubou um chiclete nele e precisei cortar — minto na cara
dura. Se eu disser a verdade, daria arsenal para ele me zoar até as próximas
cinco encarnações.
— Até que ficou bom. — Dá de ombros.
— Quer me contar o que houve de verdade na praia? — é hipocrisia
falar de verdade já que não contei do piercing, mas é que ele parece
agoniado e precisando desabafar.
— Aconteceu o que eu falei. Ficamos lá e erramos o caminho.
— E não conversaram sobre nada do passado? — desencosto da
espreguiçadeira. — Tipo... sobre o que ela fez com você no pátio da escola?
Achei que vocês pudessem ter passado uma borracha nessa história.
As feições dele se retorcem.
— Joca... tem uma parte da minha história com Manuela que você não
sabe. E acho que é desnecessário saber a essa altura do campeonato. Tudo
que precisa entender, é que aquele dia no pátio da escola, isoladamente, não
teria surtido efeito na minha vida. Eu estava mais que acostumado a ser
humilhado naquela merda. — Ele trava o maxilar. — O que fez aquele dia
ser o pior da minha vida e me fazer ser outra pessoa a partir daquele
momento, foram os três anos antes dele.
João Pedro engole, observando o gibi na sua mão, passando a mão por
ele em uma espécie de carinho. Ele tem esse exemplar de Homem Aranha
desde que estávamos no oitavo ano do ensino fundamental. Meu amigo
andava agarrado a ele até aquele dia no pátio da escolha. Mas mesmo
depois que parou de andar com a coisa embaixo do braço, ele o guardou em
um local especial na sua coleção de quadrinhos. Vez ou outra, quando saio
de madrugada para buscar água, o vejo folheando o gibi, como se fosse
mais do que uma história em quadrinhos.
Nunca tive coragem de perguntar o motivo. Parecia íntimo demais.
— Como foi sua noite com a Pérola? — Ele muda totalmente de
assunto. Mas antes que eu consiga responder, nossos bipes vibram.
“Oi, aqui é a Sara, sua comissária de bordo particular”
— Alguém tira o servidor dessa mulher da tomada! — resmungo.
“Piriquita e eu notamos que alguns passageiros estão mais tensos que o
normal, e nada melhor para aliviar a tensão do que uma boa massagem
nos ombros. Se joguem nos cremes e óleos e ofereçam ao seu parceiro ou
parceira um gostinho do que suas mãos podem fazer”.
Encaro JP, negando com a cabeça.
— Eu não vou fazer massagem em você não.
— Ah, mas vai! — ele já fala se virando de bruços na espreguiçadeira.
— Vai, porque eu mereço depois de passar a noite com meu pesadelo
particular por culpa sua.
— Eu nem tenho creme aqui, palhaço — tento me livrar. Não era
alisando o JP que eu pensei em passar minha manhã. Nem nenhum outro
dia da minha vida.
— Vai no seco mesmo, sem cuspe. — Ele pisca e eu fico vermelho.
— Quem não sabe o contexto, acha que eu vou te fazer uma massagem
no períneo ao invés das costas — digo emburrado, mas me sentando na
lateral que ele deixe sobrar na espreguiçadeira, massageando de qualquer
jeito seu ombro.
— “Per” o quê? — JP faz a mesma cara que eu fiz quando soube desse
lugarzinho mágico.
— Uma coisa que eu aprendi com a Pérola — me gabo.
— Acho que eu preciso de umas aulas com ela também — graceja
balançando as sobrancelhas.
E eu aperto com força seu músculo, o fazendo gemer de dor.
— Nem pense nisso — corto qualquer esperança dele sobre o assunto.
— Você é muito egoísta.
— Já falei que a Pérola não serve para as suas conquistas baratas.
— Por quê? Só serve para as suas? — JP vira o rosto para mim, com
escárnio.
— Eu não estou a usando! — Meu tom é severo a partir daqui.
— Você está aproveitando da boa vontade dela para se aperfeiçoar na
arte do sexo, sem que ela saiba que você não é noivo porra nenhuma… usá-
la é exatamente o que está fazendo.
Eu sei que João Pedro está me provocando e só quer me tirar do sério
para descontar o dia anterior, mas isso realmente consegue me atingir além
de uma implicância comum de amigos.
— Nós somos amigos. — Me defendo. — Se você acha que todo o
tempo que eu passo com ela é para aprender a transar, então realmente não
sabe de nada.
— Amigos? — debocha. — Se conhecem há o quê? Alguns dias?
— E tem tempo mínimo para poder ser considerado amigo? — Arqueio
a sobrancelha.
— Você pelo menos tem que saber algo da vida dela e ela da sua, que
seja verdade, para se considerarem amigos.
Aperto o maxilar.
— Eu sei coisas da vida dela e ela sabe coisas da minha que nem você
sabe!
— Tipo o quê? — Ele se senta, desconfiado.
— Tipo o fato da minha ex ter me mandado mensagem! — Despejo
antes que consiga controlar meu impulso, me arrependendo um segundo
depois. João Pedro arregala os olhos.
— Eu não acredito que você tá falando com a Olívia! Porra, eu
realmente não sei mais como te defender ou te ajudar! — Ele ergue os
braços em descrença. — Estou implicando justamente para você confessar
que está gostando da Pérola e a revelação que ganho é que anda de papo
com a mulher que te meteu uma galhada?
Meu amigo passa as mãos no cabelo, realmente irritado.
— Só que eu não estou de papo com ela — conto antes que ele me
jogue no mar.
— Como não?!
— Eu nem mesmo li a mensagem que ela mandou.
— Onde tá o seu celular? — Estica a mão, exigindo o aparelho.
— Vai dar um de noivo tóxico e abusivo futricando meu celular? —
tento uma brincadeira, que não funciona. João Pedro realmente está puto.
Eu não tiro sua razão, também ficaria puto se ele estivesse sendo burro
como eu.
— Joca…
— No quarto. Está no quarto — revelo e nem mesmo ganho uma
resposta antes de ele sair andando feito um touro na direção da cabine.
É melhor eu ir atrás antes que ele ligue para Olívia e ofenda até o
papagaio da tia dela.

João Pedro e eu encaramos meu celular, e não sei o que está mais alto,
os meus batimentos cardíacos ou a mastigação de unha dele. Quando entrei
na cabine, pensei que já estaria aos gritos com minha ex, mas nem ele teve
coragem de abrir as mensagens.
Talvez tenha medo que ela me peça para voltar e eu aceite. Nessa altura
do campeonato, acho que eu não aceitaria. O que me fez mudar de ideia
desde que subi a bordo, eu não sei. Mas algo mudou.
— O que você acha que pode ser? — murmuro.
— Não sei. — Dá de ombros. — Pode ser desde ela te pedindo
desculpa, até mandando o convite de casamento com seu assistente.
Faço careta.
— Espero que seja a primeira.
— Eu espero é que ela se foda.
— João Pedro…
— João Pedro meus ovos, para de defender essa mulher, caralho.
— Não estou defendendo. A gente vai continuar tendo essa discussão
por quanto tempo? — o encaro entediado.
— Até você criar um pouco de autoestima e dignidade.
Ah, então vai demorar.
— Lê logo de uma vez.
— Se sua mãe parar de mandar mensagens eu olho, toda vez que vou
clicar no nome da Olívia vem uma notificação pra atrapalhar.
— Me dá aqui! — Tento arrancar o celular da mão dele, contudo o que
consigo é clicar justamente em uma das infindáveis notificações de mamãe,
dando de cara com a foto que ela encaminhou.
Com Olívia. Abraçadas.
O JP vai me matar.
— Por que sua mãe tá mandando foto com a cascavel sete peles? — Ele
amplia a foto para ver se é antiga, mas assim como eu, descobre que é de
agora pela mensagem seguinte de dona Das Dores.
“Com minha norinha aguardando a volta do nosso príncipe”.
Eu não sei se morro de vergonha da minha mãe chamar ela de norinha
ou de me chamar de príncipe.
— A tia Das Dores enlouqueceu?! Por que ela tá chamando a Olívia de
nora ainda? — meu amigo olha para mim esperando uma reação como a
sua, mas é impossível esboçar o mesmo choque. Porque eu sei o motivo
pela qual ela chamou Olívia assim. Na cabeça da minha mãe, por culpa
completa minha, ela realmente pensa que ainda tem nora.
Será que ela enfarta se eu disser que sua nora agora é o JP?
— Joca? — Ele me balança pelos ombros. — Fala alguma coisa! Por
que sua mãe tá chamando sua ex de norinha?
Respiro fundo, tirando os óculos e fechando os olhos.
Ele vai socar minha cara.
E eu mereço.
— Nãoconteipraminhamãequeleveiumchifre — falo tal e qual ele falou
para mim sobre o cruzeiro ser erótico.
— Quê?! Cospe o pau pra fora antes de falar.
Merda, ele vai mesmo me socar.
— Não contei pra minha mãe que levei um chifre — admito devagar e
com a cara pegando fogo de vergonha própria.
Podem atualizar as definições de trouxa de zero à Joca. Sendo Joca um
nível não aceitável.
Abro os olhos quando o silêncio se perpetua de forma tão macabra que
escuto até mesmo os nossos corações batendo.
— Eu entendi errado... — Ele ri de nervoso. — É isso, eu com certeza
entendi errado. — Meu amigo começa a gargalhar, batendo no meu ombro.
— Essa piada foi realmente boa, você quase me pegou. Agora fala a
verdade.
Comprimo os lábios, dando de ombros.
— Essa é a verdade. — Engulo a saliva que mais parece uma pedra
pontiaguda rasgando minha garganta. — Eu disse a minha mãe que adiei o
casamento porque precisava fazer uma viagem urgente de trabalho que
surgiu de última hora e que Olívia não se importou de esperar algumas
semanas para o casamento.
Novamente, silêncio.
Ergo os olhos com medo da reação do João Pedro, mas ele só me
encara. Perplexo e incrédulo. Sua cabeça se move negativamente, não
querendo acreditar, e eu movo a minha positivamente, dizendo a ele que
sim, deve acreditar.
Meu amigo se ergue e começa a andar em círculos pela cabine, pelo que
imagino ser uns dez minutos inteiros. Quando seus pés finalmente fincam
no lugar, seu dedo aponta em riste na minha direção.
— Por quê?
— Primeiro, porque eu achava que meu relacionamento teria volta,
então não queria preocupar minha mãe atoa. Depois, porque senti vergonha
de ter sido traído, vergonha de que ela soubesse que não consegui manter
meu noivado. E por último, porque mamãe sempre gostou da Olívia, não
queria estragar a relação das duas...
— Você está querendo me dizer, que além da sua mãe achar que você é
um otário que adia um casamento por causa de uma reunião de trabalho, ela
ainda pensa que Olívia é um anjo na terra por ser compreensiva a esse
ponto?!
Ele começou falando baixo, só que a essa altura até os vizinhos do
andar de cima devem ter escutado.
Assinto sem jeito.
— É isso aí.
— Escuta... — Ele aperta a ponta do nariz. — Desde que eu me entendo
por gente, você é alguém bom, Joca. É uma pessoa de coração puro, que
mesmo depois de sofrer bullying pra caralho, mesmo depois de perder seu
pai para um mal súbito, mesmo depois de ter que ser o alicerce da sua mãe
ainda com quinze anos, não permitiu que o mundo quebrasse seu coração.
— Por que está dizendo isso?
— Porque eu sempre tive medo que uma hora ou outra, algo o fizesse
mudar. Algo quebrasse aí dentro de você, como quebrou em mim. Algo que
te fizesse desacreditar do amor, de felicidade, e de todas essas merdas que
as pessoas sonham. — Ele apoia as mãos na cintura. — Desde que você
conheceu a Olívia, esse medo triplicou. Porque eu sabia que ela podia ser a
pessoa que te faria desacreditar de tudo isso.
— Olívia não tem culpa das minhas inseguranças, João Pedro — tento
explicar. — Na verdade, eu acho que ela não tem muita culpa nem por ter
me traído. Eu devia ser muito distante, frio, ruim de cama... ela buscou
alguém que fosse o contrário.
Dou de ombros.
— Eu juro que tentei te entender. — Ele bufa uma risada decepcionada.
— Eu realmente tentei entender quando você a pediu em namoro, quando a
pediu em casamento e até quando pagou a viagem dela com os amigos sem
que ela quisesse que você fosse junto… eu tentei entender inclusive a porra
do seu sofrimento por ela ter te traído, mas isso não. Isso eu não consigo
entender! Você está comprometendo sua imagem com sua mãe, por uma
mulher que te traiu! Está se rebaixando, para justificar a escolha que ela
tomou. Porque acredite, ela podia só ter terminado com você...
Levanto do sofá com a vergonha sendo substituída pela raiva. Eu quem
deveria me importar com isso e não ele.
— E por que você tem que entender algo? É a minha vida! — grito de
volta.
— É a nossa, porque eu te considero como meu irmão, porra!
— Se te deixa mais leve, então não me considere mais um irmão. —
Ergo os braços. — Me deixa viver minha vida como eu quero, porque não é
como se você soubesse o que está fazendo da sua!
Tão logo as palavras saem e a expressão dele se transforma em mágoa,
eu me arrependo. Mas já é tarde demais para voltar atrás.
Droga. Que merda!
— É isso que vou fazer. — Acena chateado. — Vou te deixar em paz.
Só não venha chorando quando o mundo cair em cima da sua cabeça de
novo. Ligue para a Olívia... quem sabe ela te deixa assistir a mais um sexo
com seu assistente.
João Pedro pega a mochila de mão que levou para a viagem, joga as
minhas cuecas limpas dentro dela e sai da cabine depois de quase arrancar a
porta das dobradiças.
Solto todo o ar dos meus pulmões, me jogando na poltrona com as mãos
na cabeça.
Eu fodi com tudo.
Vou ligar para um dos desenvolvedores de The Sims e avisar que não
mereço ser um dos tester’s da nova atualização.
Não sou digno o suficiente.
Eu estava na metade do meu Fandangos quando bateram à porta da
cabine. Olhei para Manuela e ela para mim, sem a mínima ideia de quem
pudesse ser. Nós mandamos entrar depois de eu colocar um short e ela parar
de arrancar os pelos encravados da axila com uma pinça.
Realmente não esperávamos ninguém, mas encontrar João Pedro do
outro lado da porta, foi uma surpresa à parte.
Ele entrou com uma expressão assassina e eu quase perguntei o que
Manuela tinha feito, até que o Corinthiano se sentou na minha cama,
roubou meu salgadinho e começou a falar sobre como queria amarrar o Gui
na hélice do navio e vê-lo girar até criar vergonha na cara.
Agora, meia hora depois do desabado, eu sei que eles brigaram por algo
relacionado à sua ex, que João Guilherme gosta de ser pisado, e que João
Pedro não dorme no mesmo quarto que ele porque quer preservar o réu
primário.
— E você quer ficar aqui?! — Manuela o interroga em choque depois
que ele propõe dormir no nosso quarto.
— Pelo menos por dois dias, até o Joca pensar nos próprios erros. Ele
pediu para ser deixado em paz e eu vou deixar. — O Corinthiano limpa a
boca com as costas da mão. — Desde pequenos eu o defendi, apanhei no
lugar dele incontáveis vezes, o protegi de coisas que eu sabia que as pessoas
falavam..., mas acho que eu só o deixei mais vulnerável. O cara não sabe se
defender nem dos próprios pensamentos. Eu o convenci a malhar o corpo,
mas deveria ter mandado malhar a dignidade.
Não sei o que rolou com essa ex. Mas ao que parece não mexe só com o
Gui, como também com JP. Não parece ciúmes, mas há raiva o suficiente
para eu imaginar que a história dos dois não terminou nada bem.
Suspiro, voltando atenção para Manuela. Ela finge não prestar muita
atenção na conversa, mexendo no celular, mas eu quase posso ver sua
orelha se esticando para captar todos os detalhes.
— Tudo bem ele dormir aqui, Manu?
— Hum? — Me encara fingindo desentendimento.
— O Corinthiano pode dormir aqui?
— Por mim… — Joga os ombros indiferente. — Ele pode ficar, mas eu
vou procurar outro lugar.
— Que outro lugar? — indago confusa.
— Ora, o quarto dele. Com certeza a cama é melhor do que a nossa.
— Não precisa sair do seu quarto, Manuela. — Ele revira os olhos. —
Se não quiser que eu fique, fale de uma vez.
— Não preciso, você sabe que não te quero perto de mim… — Ela se
levanta da cama, tirando o short de pijama e colocando um jeans, tudo na
frente de nós dois. — Mas falei sério sobre ficar no seu quarto. Eu mereço
uma noite de rainha.
— Lá só tem uma cama — ele avisa depois de limpar a garganta para a
cena de seminudez que ela o ofereceu. Eu sei que essa safada fez isso de
propósito para vê-lo sofrer.
— Mas tem poltrona, e como você mesmo disse, o nerd precisa pensar
na vida… deitado o cérebro não funciona bem.
— Isso não faz sentido, Manu.
— Eu também não, Cheetos, mas é a vida. — Ela beija minha bochecha
depois de pegar escova de dente e uma muda de roupa no armário. — Volto
para cá daqui dois dias.
— Dois? — Franzo o cenho.
— É, eu vou fazer um programa de reabilitação anti-ex com o pirocudo
— Manu sopra um beijo antes de sair da cabine.
— Acho que eu tô com um pouco de pena dele agora — JP resmunga,
se deitando na cama.
— Não tenha pena dele, tenha de você. — Sorrio diabólica. — Porque
você ficou no meu quarto e eu acordo cinco da manhã.
Ele arregala os olhos, pronto para correr da cabine, mas eu a tranco e
guardo a chave entre os peitos. A chave cai direto no chão, obviamente,
mas até que minha intenção foi boa. Pego novamente o objeto metálico,
enfiando na minha gaveta de absorventes. Aqui eu sei que ele não vai
mexer.
— Pronto para maratonar Rebeldes comigo? — Bato palma animada, ao
passo que João Pedro encara o céu pela janelinha.
— Eu já entendi, Deus… eu mereço.

— O João Pedro bateu a cabeça? — Solto uma risada puto da vida. —


Ele acha mesmo que vou ficar aqui, enquanto ele dorme no quarto com a
Pérola?
A baixinha raivosa revira os olhos, jogando sua muda de roupa sobre
minha cama.
— Eu já disse que seu amiguinho não faz parte do cardápio dela, não se
preocupe.
— Ela sempre pode mudar de ideia — contraponho.
Com certeza o JP consegue terminar um sexo decentemente sem quase
quebrar o pau ou arrancar o mamilo dela.
— Se mudar, qual o problema? Ela é solteira, o relacionamento de
vocês dois é só uma farsa… eles são desimpedidos.
Na última frase, a voz dela adota o mesmo tom de desconforto da
minha.
— É, mas…, mas ela topou me ensinar, não ele.
— E eu topei ser milionária, mas nem por isso estou vestindo Prada,
então se conforme.
Se meu humor estava estragado, agora só piorou três vezes mais. Eu não
acho que Pérola queira ficar com meu amigo e vice e versa, mas eles são
parecidos, tem coisas em comum. Ambos são extrovertidos, falam pelos
cotovelos, não tem vergonha de nada… pode acabar rolando.
E eu? O que eu sou dentro dessa situação? Apenas um corno que não
sabe transar.
Cubro o rosto com as mãos, os esfregando com raiva, até mãos
pequenas me impedirem de continuar. Abaixo o braço, vendo Manuela
agachada na minha frente.
— Eu te mandei interromper qualquer sentimento que estivesse nutrindo
pela Pérola.
— Eu não estou nutrindo nenhum sentimento, ela é só minha amiga.
Ao menos eu acho que é isso. Quero estar perto dela o tempo todo, seu
sorriso me deixa feliz, gosto das nossas conversas, me sinto confiante para
contar coisas que não contaria a ninguém, quero saber coisas que ela
também não contou a nenhuma outra pessoa... adoro beijá-la, adoro tudo
que ela me ensina, adoro seu jeito mandão, adoro o que ela faz meu corpo e
mente sentir...
Apenas coisas de amigos.
— Ela é minha amiga também e não estou preocupada se está sentando
em alguém agora, mas você sim.
— Porque eu me importo com o coração dela.
Ok, talvez o que eu sinta seja ciúmes, mas é um ciúme de amigo.
— Você tá se importando é com sua carência! — Ela ignora minha
explicação. — Pérola não precisa de ninguém que a queira só para tapar
buraco. Então não a iluda.
— Não estou iludindo sua amiga, acredite em mim, eu nem saberia
como fazer isso.
Manu ri, negando com a cabeça.
— Joca, você é o tipo de cara que conquista com os gestos, com as
atitudes, isso é muito mais perpétuo do que a conquista barata de palavras.
Então só tome cuidado para não estar demonstrando para ela, um
sentimento que você acha que existe.
— Eu estou agindo exatamente como me sinto por dentro — digo
seriamente. — Eu me sinto bem perto dela, me sinto feliz como em muito
tempo não sentia, me sinto eu… então só estou agindo com gratidão e
retribuição. Isso não sou eu tentando criar ilusões... até porque, não tenho
nada a oferecer que sua amiga não encontre aos montes e muito melhor na
rua.
— Puta merda! — Manu se levanta e vira de costas para mim,
exatamente como JP fez. Ao que parece estou deixando todos putos da cara
hoje. — Eu achei que chegaria aqui e brigaria com você por ser tão trouxa,
mas eu acho que vou ter que te sentar nas minhas pernas e te confortar.
— Não há necessidade — dispenso.
— Você não tem mesmo ideia, não é? — ela suspira, sentando-se na
minha cama com os antebraços apoiados nas pernas. — Acha que é um
merda por mandar mal na cama, por ser tímido e gostar de coisas de nerd?
É sério?
— Sim? — E não era pra achar?
— Escuta, sexo se aprende, então não é nenhum defeito, é um detalhe.
Ser tímido? É o tipo ideal daquela garota. E gostar de coisas de nerd? Bom,
é muito melhor isso, do que gostar de curtir fotos de garota de biquíni que
não são sua namorada, muito melhor do que tentar ficar com a amiga dela
enquanto ela vai no banheiro, e infinitamente melhor do que ter uma esposa
escondida na manga.
Minhas sobrancelhas comprimem.
— Pérola já passou por tudo isso?
— E muito mais, que não cabe a mim dizer. Então não pense que você
não presta só porque não a fez gozar. Isso ela faz por si mesma.
Passo as mãos entre os fios do cabelo recém cortado, sentindo a cabeça
explodir.
— Eu estou ficando confuso, primeiro você diz que não é para eu a
iludir demonstrando sentimento e agora me diz que sou o tipo ideal dela e
que devo me valorizar?
— Eu não quero que você a iluda, porque nós sabemos que o que quer
que esteja acontecendo agora, não vai passar dessa viagem, mas isso não
quer dizer que você precise se achar a bosta do cavalo do bandido.
— Onde fica a tecla sap em você?
Manu revira tanto os olhos que eles quase não voltam à órbita.
— Traduzindo, não faça ela se apaixonar por você, porque apesar de ser
o tipo de cara que a faria feliz, você não vai estar aqui quando essa viagem
acabar. Vai ser mais um cara que foi embora da vida dela. — Manu faz
careta. — E ainda tem o fato, que talvez você acabe perdoando a mulher
que te traiu e volte com ela.
Fecho a cara.
— Eu prefiro quando é o JP brigando, porque ele não articula bem e
ainda grita, então posso ficar com raiva. Você faz sentido e nem posso gritar
de volta.
Ela joga seus cabelos para trás, claramente se gabando da sua lógica.
— Só me tira uma dúvida... eu sei que sua ex te mandou mensagem e
que te traiu, agora o que não sei, é o que você respondeu a ela para deixar o
Zé Mané a ponto de te assassinar com um Joystick.
— Eu não respondi. — Abaixo a cabeça. — A conversa que João Pedro
abriu foi com minha mãe. Nem sei o teor da mensagem de Olívia.
— Não entendi.
Respiro fundo, explicando para ela o real motivo da briga. A cada coisa
que contava, Manuela foi ficando mais vermelha, e no final ela estava tão
puta quando meu amigo.
— Você merecia uns tapas!
— Eu sei.
— Você tem que contar pra sua mãe!
— Eu sei.
— E tem que parar de ter medo da opinião das pessoas! Quem deveria
ter vergonha disso é sua ex que te traiu e não você que foi corno!
— Eu sei.
Ganho um tapa no braço.
— Para de falar “eu sei” e age.
— Quer que eu conte pra minha mãe que o filho dela foi corno a essa
hora?
— Não, mas quando voltar dessa viagem, a primeira coisa que você
deve fazer é isso. Porque se for um covarde, então eu retiro o que disse
sobre você ser o cara para a Pérola.
Essas palavras mexem comigo. Nem em sonhos, eu poderia sequer
cogitar ser alguém digno da Pérola. Ela é boa demais pra mim. Em todos os
sentidos. Eu nunca que mereceria uma mulher como ela. Mesmo que no
fundo, eu tenha gostado de saber que Manu pensa assim.
Acho que Pérola também seria o tipo de pessoa que me faria muito
feliz. Se eu não fosse tão trouxa.
— Acabou o sermão? — eu realmente estou cansado de tanta conversa
por hoje. Principalmente porque agora Manuela conseguiu enfiar essa
dúvida na minha cabeça.
Eu gosto de Pérola só como amiga?
— Ok, vou te poupar de levar mais esculacho... por hoje. — Ela se joga
na minha cama, deixando claro que é lá que vai dormir e que com certeza
não sou bem-vindo. — O que você tava assistindo?
Ela dá play na tevê, com o Clássico de Naruto passando na Netflix.
— Par ou ímpar pra ver se a gente assiste isso ou Turma da Mônica.
— Par. — Ergo a mão para apostar.
— Ímpar.
Ela joga três dedos e eu cinco.
— Ganhei! — comemoro.
Mas nós assistimos Turma da Mônica mesmo assim, porque ela
ameaçou raspar minhas sobrancelhas de noite se eu não deixasse.
E eu não duvido dessa mulher.
 
 
Tem dois dias que estou dormindo com o Corinthiano das cantadas
ruins. E por dormir, quero dizer dormir mesmo, porque eu descobri que
somos praticamente a mesma pessoa e seria estranho eu transar com minha
versão masculina.
Talvez eu tenha começado a gostar mais dele depois que vi que se
importa de verdade com o Gui. Mesmo que eu não sinta o amor
transbordando entre os dois como deveria, ao menos respeito e preocupação
ele sente. Além disso, me deixou tirar sua sobrancelha, o que o fez ganhar
muitos pontos comigo.
Eu tenho uma tara estranha por arrancar esses pelinhos, é quase uma
terapia.
Assim que tranco minha sala depois da última sessão de tantra, meu
celular apita no bolso da saia. Antes mesmo de olhar, torço para que seja
João Guilherme. O Corinthiano disse que só iria voltar para a cabine dos
dois quando ele tomasse iniciativa para conversar sobre o que houve, nem
que fosse comigo.
Não obtive maiores detalhes da briga, mas João Pedro conversou muito
comigo sobre querer que o Gui se valorize mais. E que para isso, ele teria
que ficar sem as pessoas que se importam, para notar que são essas que
fazem falta e não as que só o querem por algum interesse. Eu concordo.
Às vezes só a saudade pode nos mostrar quem é importante de verdade.
Talvez por isso eu esteja inquieta com a quantidade desse sentimento
que tenho sentido nesses dois dias sem um certo nerd...
Suspiro aliviada ao ver seu nome no meu celular.
Estranhamente, senti falta de falar com ele, como se a gente se
conhecesse há mais do que apenas alguns dias. Senti falta da sua timidez,
dos olhos confusos e curiosos, dos seus assuntos difíceis de entender, das
suas piadas bregas...
Deixo de pensar besteira, abrindo a mensagem dele de uma vez.
Gui: Vai fugir de mim até quando, Sereia?
Sorrio, sentindo o peito aquecer com um calor gostoso. É, realmente ele
se tornou meu amigo, não tem como negar. Só isso para explicar essa
sensação no peito por uma simples mensagem de texto.
Eu: Não estou fugindo de você.
Gui: Ontem quando você me viu chegando no refeitório, se enfiou
debaixo da mesa.
Ih… ele viu? Eu tive que fazer isso para cumprir o que combinei com
JP. Nada de passar a mão na cabeça.
Eu: Ok, eu tô fugindo, mas é para te dar tempo para pensar.
Gui: Eu não posso pensar com você do meu lado? Estou com saudades.
Meu coração dá um salto. Muito — muito — forte.
Limpo a garganta, estalando o pescoço.
Estou sentindo tantas coisas estranhas hoje... parece que acordei vendo
o mundo de forma mais chorosa e sentimental. Não gosto de ficar assim...
vulnerável.
Eu: Promete que se estiver do meu lado, vai continuar pensando?
Gui: Eu não penso direito perto de mulher bonita, então venha com a
cara tapada.
Rio alto.
Eu: Vou fazer o possível para diminuir minha beleza.
Gui: Tenho certeza que vai falhar, eu duvido que fique feia mesmo
tentando.
Meu coração salta. De novo. Muito — muito — forte.
Eu: Você está flertando comigo?
Mesmo não devendo, eu sorrio para o celular.
E isso é terrível, eu não posso sorrir para o celular.
Gui: Depende, está funcionando?
Merda, eu tinha esquecido que ele é soltinho em mensagens.
Eu: Me encontra no andar Mistaken.[30]
Não respondo sua pergunta.
Mas a título de informação, sim, estava funcionando. Eu só não quero
pensar no quanto.
Desço para o andar que marquei com ele, cantarolando para evitar que
os pensamentos invadam minha mente.
Chego ao local onde as lanchas ficam acopladas ao redor do navio em
casos de emergência, já sentindo uma paz me preencher. Gosto daqui, talvez
por ser o andar com acesso aos tripulantes mais próximo da água.
Eu me sinto melhor perto da natureza, então quando preciso pensar e,
principalmente, ficar sozinha, venho para cá, entro em uma das lanchas do
lado de fora e apenas aproveito a brisa, o aroma salgado do mar e os sons
do navio o cortando. Sou uma pessoa flexível em quase todos os aspectos
da minha vida, mas talvez a única coisa da qual eu seja completamente
irredutível, seja em morar próxima ao mar. Não importa de qual lugar, a
temperatura, a força das ondas, desde que eu possa vê-lo de perto sempre
que precisar.
A maioria das pessoas tem esse emprego como algo intermediário ao
que realmente querem, o cruzeiro é sempre o meio para um fim. Para mim,
é apenas o que desejo no momento.
Claro que é bom voltar a terra firme, mas poder flutuar sobre a
imensidão azul que o universo criou apenas para nós, é indescritível. Um
banho de mar é capaz de tirar as impurezas que nem o melhor produto
importado seria capaz. Ele tira a sujeira da alma, não da pele.
Abraço meu corpo, esfregando os braços pelo vento frio, fechando os
olhos para curtir os sons da água batendo contra o casco. Escuto passos
vindo na minha direção e o perfume me deixa ciente de quem é, mesmo que
eu não olhe.
Os batimentos do meu coração se exaltam desnecessariamente e os
adestro como um dono faz com seu cão. Sou eu que decido o que sinto e o
que deixo de sentir.
— Calypso? — a voz manhosa vem das minhas costas e logo sinto uma
respiração próxima à minha nuca.
— Honey? — repito em uma brincadeira particular.
— O que JP te falou que a deixou chateada comigo a ponto de ficar sem
me ver? — a voz dele não passa de um sussurro jogado ao vento. E talvez,
só talvez, denote certo grau de mágoa pelo meu comportamento.
— Ele não fez sua caveira, se é o que está pensando.
— Então por que não me olha? — o timbre manso e carente leva
consigo qualquer sensação de frio.
— É tão importante assim que eu te olhe? — continuo observando o
mar enegrecido, tomado pela escuridão como um abraço de gigantes.
— Sim — ele apoia a testa em minha nuca, não me tocando em nenhum
outro lugar além desse pequeno gesto. — Não menti quando disse que sinto
sua falta.
— Por que sentiu minha falta se nos conhecemos a tão pouco tempo? —
minha pergunta é assertiva, mas não há intenção de ser grosseira.
— É preciso um tempo mínimo e motivos para sentir saudades? —
quase posso vê-lo encolher os ombros e suas bochechas serem acesas como
tochas olímpicas.
— Não. Mas eu gostaria que você tentasse os encontrar para explicar
aquilo que não consigo responder a mim mesma — admito depois de um
engolir tenso. Gui coloca as mãos sobre meus ombros e meus músculos se
dissolvem.
— Gosto de estar com você, gosto de quem eu sou quando estou do seu
lado; gosto dos momentos e das conversas que temos; gosto do fato de você
mal saber quem eu sou, mas me entender mais do que pessoas que estão ao
meu lado há anos… e principalmente, gosto de que tudo isso tenha
acontecido em apenas alguns dias. — Ele massageia minhas omoplatas. —
Mas quer saber o que não gostei? Da falta que tudo isso me fez quando me
ignorou. Então é essa a resposta que tenho para te dar. Senti saudades
porque não gosto de ficar longe de você, mesmo que eu tenha passado
praticamente toda minha vida sem saber que você estava por aí.
O ar sai dos meus pulmões em um sopro inaudível.
Acho que preferia quando Gui mal conseguia articular uma frase inteira
perto de mim. Era mais fácil de manter o controle.
Após uma longa e demorada respiração, giro nos calcanhares,
finalmente o fitando de frente, sem covardia. Essa sou eu, não tenho medo.
Não tenho por que ter medo de estar mexida. Eu me conheço, sei que me
emociono, mas não dura mais que uma semana. Logo o tédio me consome
ou ele faz alguma merda que me afasta. Simples assim.
O que vai vir primeiro, Honey? O desinteresse ou a decepção?
Ainda não consigo saber, mas com certeza um dos dois ocorrerá e logo
não passará de mais um cara que passou na minha vida e não deixou nada
além de uma lembrança para trás.
Sorrio depois de me lembrar disso, segura de que meu coração continua
protegido.
— Melhor agora? — indago, com olho no olho.
— Ainda não.
Pela primeira vez desde que nos conhecemos, eu não preciso ofertar o
rosto para que ele me beije. A iniciativa vem totalmente de João Guilherme,
me pegando desarmada e desprevenida. Seus lábios também demoram mais
que o normal na minha pele. Ao se afastar, ele sorri como uma criança boba
na noite de Natal.
— Agora sim.
Pisco depressa, tentando sair do transe.
— É… — Estalo o pescoço, pigarreando. — Vem se sentar aqui na
lancha.
— Ali fora? — Seus olhos saltam.
— Não se preocupe, é só você passar para o outro lado com cuidado…
eu sempre venho para cá, é seguro.
— Sua concepção de seguro é diferente da minha, mas tudo bem.
Eu passo primeiro para a lancha suspensa sobre o oceano, estendendo a
mão para ajudá-lo. Ele se desequilibra momentaneamente e se agarra a mim
como forma de equilíbrio. O ajudo a se apoiar, embora continue o
segurando mesmo após se firmar. João Guilherme também não esboça
nenhuma intenção de me soltar e nos sentamos no banco de trás da lancha
ainda envolvidos nos braços um do outro.
Está frio. É por isso.
Só não tenho explicação para deitar a cabeça em seu ombro e nem para
ele segurar minha mão e brincar com meus dedos.
— O que você sabe? — ele me pergunta depois de um tempo em
silêncio, apenas escutando a água sendo cortada pelo casco do navio.
— Sei que JP descobriu a mensagem da sua ex e que ficou preocupado
com você e com a sua capacidade de deixar que te maltratem.
— Então sabe boa parte.
— O Corinthiano não exagerou, então?
— Não. Ele pegou até leve.
— Ele se preocupa de verdade com você.
Gui suspira, fazendo uma massagem estranhamente reconfortante nos
tendões no dorso da minha mão.
— Eu sei. Só que ele acha que é mais fácil do que verdadeiramente é.
— E por que não é?
— Impor limites nunca foi meu forte, Pérola.
— Quer dizer que acha mais fácil ser permissivo mesmo que isso
infrinja seus próprios limites? — Ergo a cabeça para observar seus olhos.
Eles costumam me confundir mais do que explicar, mas ainda espero achar
respostas.
— Quero dizer que não sei como impedir que as pessoas me
machuquem.
— Bom, ninguém sabe. — Jogo os ombros. — Isso é algo impossível.
As pessoas vão sempre tentar te machucar.
— Então do que adianta impor limites?
— Você não tem como impedir que as pessoas te assaltem, mas você
não precisa entregar a faca na mão do ladrão por isso. Uma coisa é ser
machucado apesar da sua tentativa, e outra diferente é ser machucado
justamente por sua total falta de ação.
— Que diferença vai fazer se o resultado é o mesmo?
— A diferença, é que quem precisa lutar para te ferir, faz apenas uma
vez. Mas quem tem a sua ajuda para te cortar, faz de novo. O ser humano é
preguiçoso, Honey… ele não faz aquilo que demanda esforço demais.
Então faça um favor a si mesmo e dê trabalho para as pessoas te ferirem.
Ok?
— Ok.
Sorrio, alinhando seu óculos sobre o nariz volumoso, esperando que
melhore seu semblante desanimado. Ele costuma ser contido, mas vê-lo
triste é incômodo. Na verdade, eu não consigo ver ninguém cabisbaixo que
já quero dar uma dedada na costela pra ver se ressuscita.
— Vai ficar com essa carinha pra mim? — Aperto suas bochechas. —
Cadê o sorriso cheio de dentes branquinhos de quem escova a cada
refeição?
Os cantinhos dos seus lábios se erguem a contragosto e ele tenta virar o
rosto para longe.
— Não se esconda de mim. — O faço me olhar segurando seu queixo.
— Eu acho que mereço um sorriso depois de te trazer no meu lugar secreto.
Gui ergue uma sobrancelha.
— Esse é seu lugar secreto?
— Uhum… nem mesmo a Manu sabe que venho para cá.
— Então por que me trouxe?
Abro a boca para responder, mas chego à conclusão de que… eu não
sei. Não sei por que o trouxe aqui, se era para ser o lugar para onde corro
quando não quero que ninguém me ache.
Mas tudo bem, afinal eu nunca mais o verei depois dessa viagem.
É… tudo bem. Tudo bem mesmo.
Né?
Pigarreio.
— Eu venho aqui para pensar e você disse que precisava pensar,
então…
— Obrigado — diz subitamente.
— Pelo quê?
— Por ter dividido seu lugar comigo.
Como recompensa, me entrega o sorriso que eu havia pedido
anteriormente.
Mas acho que era melhor não ter feito isso.
Porque o sorriso dele me faz ter a sensação de uma estrela descer do céu
e se iluminar apenas para mim, com um brilho exclusivo e particular. E eu
não sou acostumada a ter as coisas só para mim. Dividir já fazia parte da
minha cartilha. Me apavora pensar que poderia ser diferente, porque eu sei
que não é.
— De nada.
Desvio a atenção do seu rosto.
E dos meus pensamentos errantes.
— Você tá diferente — comento quando o silêncio perdura mais do que
já ocorreu entre nós dois.
— Não estou com raiva de você se é o que pensa.
— Não acho que está, eu não fiz nada para te deixar com raiva… né?
Pérola ri, negando com a cabeça.
— Não fez, fique tranquilo. — Ela suspira, finalmente me olhando. Não
que eu ache que sou mais interessante que o oceano abaixo de nós dois, mas
ela costuma manter contato visual quando estamos juntos e hoje parece
fugir disso.
Talvez tenha se enjoado de mim.
Ou visto que sou um caso perdido.
Até mesmo o meu noivo de mentira quis dormir em quarto separado;
então devo estar fazendo algo muito errado com a minha vida.
— O que acha que está diferente em mim? — ela parece curiosa e até
ansiosa para minha resposta.
— Você tá muito pensante.
Sua testa forma ruguinhas com o semblante confuso.
— Tá querendo dizer que normalmente eu não penso?
— Não! — digo rapidamente, balançando as mãos. — Não, é só que
você fala enquanto pensa e agora só está… pensando.
— Ah, então eu sou tagarela? — Sua sobrancelha direita arqueia
incisiva.
Merda. Pra que eu fui abrir a boca? Nunca é inteligente perguntar para
uma mulher o que ela tem. Geralmente ela tem mesmo algo, só que não vai
contar e com certeza é culpa nossa.
— Só pra saber… — Coço a nuca. — Se eu continuar falando, isso aqui
vai se transformar em uma discussão?
— Vai — ela diz brava e meu coração para por nanossegundos, até
Pérola começar a rir. — É brincadeira, Honey. Pode voltar a respirar.
Suspiro, balançando a regata para entrar um pouco de vento fresco.
— Que susto. Achei que você fosse me jogar da lancha e meu corpo
seria encontrado em avançado estado de decomposição.
— Não seria não, os tubarões te comeriam primeiro.
Engulo, chegando mais para o meio do banco da lancha e me afastando
das laterais. Pérola gargalha, deitando a cabeça no meu colo e estendendo as
pernas pela barra de proteção.
— Não tem graça, bobinha. — Estalo a língua, fazendo um bico em
seguida.
— Tem sim, principalmente quando você faz esse biquinho fofo que eu
tenho vontade de morder.
Pela primeira vez, são os olhos dela que saltam depois de falar alguma
coisa impulsivamente e não os meus.
— Então por que não morde? — já que ela está agindo como eu, então
farei seu papel no dia de hoje.
Pérola pisca aturdida e inclino o rosto para frente, como virou um
costume para nos beijarmos. Nossos lábios ficam a um gibi de distância e
nossas respirações se unem com a brisa salgada da maresia, como se os
aromas se difundissem em algo particular.
— E então? Está com medo, Calypso? — mesmo que meu rosto
esquente e arda como o inferno com o que estou fazendo, vale a pena pelo
semblante extasiado que Pérola me devolve, como se não acreditasse no
que acaba de ouvir.
— Eu não tenho medo de nada — diz petulante, erguendo uma das
mãos. Eu imagino que ela vá envolvê-la nos cabelos da minha nuca para me
puxar para si, mas o engano é um doce apetitoso na minha língua, porque
ao invés disso, seus dedos se fecham ao redor do meu pescoço, com as
unhas ameaçando arranhar a epiderme. Pérola sorri ladina para o meu
choque. — Já te avisei uma vez sobre nunca me desafiar. Eu não costumo
repetir avisos, Honey.
Como para provar sua fala, Pérola me joga de volta contra o encosto do
banco, sentando-se sobre meu colo com uma perna de cada lado do meu
quadril, sem dar qualquer trégua ao seu aperto em minha garganta.
Ela se aproxima sorrateira e totalmente incorporada em seu álter ego. A
capacidade dela de mudar seu estado de humor em segundos ainda me
impressiona. Antes de profanar meu lábio com os dentes e me dar a
mordida que praticamente pedi, Pérola me atira uma piscadela.
Fecho os olhos com a leve pontada de dor, no fundo aproveitando a
sensação de seus dentes puxando meu lábio para si.
— Satisfeita? — questiono quando Pérola o solta.
— Preciso de muito mais que isso para me sentir satisfeita — para
deixar claro seu ponto, Pérola move o quadril de encontro à minha pélvis, o
tecido das roupas estimulando a ereção que começou a dar sinais de vida
assim que a boca dela se aproximou da minha.
Isso é enervante. Eu nunca fui de tender tanto para a luxúria como
agora. Meus instintos carnais não eram os mais aflorados para um homem
da minha idade e agora eu pareço prestes a subir pelas paredes se não me
sentir dentro do seu corpo caloroso e macio ao menos uma vez mais.
— Pérola? — sussurro com as pálpebras ameaçando se fechar.
— Hum? — ela move mais uma vez seu quadril, apoiando as mãos em
meus ombros.
— Se isso não é capaz de te satisfazer, então me ensine o que é.
— Achei que eu já estava te ensinando desde que fechamos esse acordo.
— É que eu preciso de uma revisão pré-exame final — explico. —
Porque eu quero… ou melhor, eu preciso te dar prazer agora ou minha
dívida com você vai ficar difícil de pagar.
— Não estou contabilizando, fique tranquilo.
— Mas eu estou. Te devo pelos menos três orgasmos.
— Nós não podemos transar, ainda faltam 3 dias pra sua alta — ela
conta nos dedos de um jeito tão bonitinho que tenho vontade de apertar suas
bochechas. Mas não faço, ou ela me jogaria daqui de cima.
— Eu não falei de ir até a terceira base. Foi você mesma quem disse que
eu não precisava do pau para te satisfazer. — Minhas bochechas esquentam
por falar assim com ela. Minha mãe teria um desgosto enorme se me visse
falar assim com uma mulher.
Só que no momento, eu não me sinto desconfortável. Pérola muito
menos.
Ela sorri satisfeita.
— Então erga o quadril e abaixe seu short até os joelhos.
Franzo o cenho
— Mas… você disse que…
— Eu sei o que eu disse. Não vai rolar penetração.
Engulo em seco.
— Então pra que… — Pérola morde meu lábio inferior para me calar,
me arrancando um gemido de dor.
— Honey, posso estar te ensinando, mas não sou sua professora do
fundamental que parava as aulas para ouvir a todos os seus
questionamentos. — Seus olhos reviram. — Faça o que eu mando e se livre
da droga da roupa.
— Sim, senhora — assinto, já abrindo o zíper.
— Bom garoto. — Ela dá tapinhas no meu ombro como recompensa.
Isso me faz sentir um cachorro sendo adestrado, mas talvez seja
exatamente essa a realidade.
Levanto os quadris o suficiente para abaixar o tecido de moletom, o
deixando preso ao meio das minhas coxas. Por ironia do destino, eu estava
sem cueca, porque a cruza de labrador com calango do João Pedro, levou
todas as minhas na mochila dele.
Pérola ergue sua saia até altura do quadril, formando um bolo
desconexo de tecido azul marinho. Ela escorre a fina calcinha por suas
extensas pernas, a enfiando no bolso do meu short.
A cada segundo fico mais confuso. Por que estamos ficando nus da
cintura para baixo se não vai rolar a terceira base?
Seu corpo volta para o meu colo e minhas mãos automaticamente se
apossam do seu quadril, a segurando contra mim.
Sou atraído para a visão dos nossos sexos próximos, mas ainda
separados por uma linha tênue de distância que Pérola estabelece.
Meu queixo é erguido com delicadeza pelas pontas de suas compridas
unhas, ainda decoradas com o desenho que fiz.
— Mantenha os olhos em mim, Honey. É no meu rosto que você vai
encontrar as respostas para os questionamentos que tem. — Ela desliza os
dedos por meu couro cabeludo, me fazendo deitar o pescoço para trás em
deleite. A massagem dura poucos segundos, apenas o suficiente para eu ser
repreendido. — Eu disse para me olhar. Não desvie, não importa o prazer
que esteja sentindo. Aguente.
Endireito o pescoço novamente, assentindo firmemente. Eu só não
tenho certeza de que consigo permanecer de olhos abertos com o que ela
pode fazer. Minha ereção já se projeta entre nossos corpos, implorando para
participar da aula prática.
Não sei o que impossibilita meu cérebro de raciocinar, se é Pérola me
empurrar contra o banco até que eu me deite sobre ele, com ela encaixada
em minha cintura, ou o fato de ela se posicionar exatamente contra meu
pau, friccionando nossas intimidades uma contra a outra.
Tento manter meus olhos nos dela, mas todo meu corpo grita para que
eu abaixe meus olhos e fite de perto seus movimentos quase imperceptíveis,
mas por si só uma miséria para meu autocontrole. Ela apoia suas mãos
sobre meu peito, as unhas acariciando a pele em movimento circulares e
aleatórios, ora subindo até meu pescoço, ora descendo até minha virilha,
retomando o caminho para meu peitoral.
— Pérola — suplico com a voz travada com a força que faço para me
manter estático e a deixar tomar as rédeas da situação.
— Estou aqui — ela sorri do meu sofrimento.
— Você está me matando.
Ela ergue as sobrancelhas, descendo os olhos para minha glande, que
sobressai à sua pélvis encaixada na extensão do meu pau.
— Não diga isso, porque você está tão excitado que eu poderia acreditar
que a quase morte te excita.
Eu sei que ela está conversando para manter o meu controle, mas seu
sexo sobre meu está tão quente, macio e escorregadio, que todos os meus
neurônios pararam de funcionar para focar apenas nessa situação específica.
— Eu falo sério — umedeço os lábios, os prendendo entre os dentes,
afundando os dedos na sua cintura delineada. — Isso é tortura.
Fecho os olhos quando ela movimenta sua pélvis, atingindo a minha em
um estímulo ínfimo, mas potente.
— Olhos nos meus olhos, Honey — ela belisca meu mamilo em
repreensão e engulo a saliva pastosa para conter o palavrão que quero
proferir.
— Qual sua intenção com isso? Porque eu achei que fosse me ensinar a
te satisfazer.
Ela curva o tronco para frente, até seus lábios gelados e com aroma de
chocolate se apossam da carne da minha orelha, puxando o lóbulo entre os
dentes, o pressionando quase ao ponto da dor.
— Como você espera me satisfazer sem conseguir controlar seu próprio
corpo? — a frase é sussurrada não como uma bronca, mas como um canto
hipnótico de um ser mitológico. Maldita sereia.
— Não dá para me controlar com você… — nego com a cabeça,
contraindo o abdômen quando ela desce beijos para meu pescoço, não
poupando a ação de seus dentes na minha pele. A mão dela se apossa da
minha garganta novamente, deixando-me assustado com o quanto eu gosto
que ela me tenha sob seu próprio controle. Não é como se eu pudesse
confiar no meu.
— Acha que é fácil para mim? — ela sussurra contra minha pele, o
hálito gelado fazendo minhas bolas arderem ao passo que minha mente cria
cenários da sua boca apaziguando o calor torturante do meu corpo.
— Acho… porque sou eu sob você. Não há muito aqui que possa te tirar
do sério — eu jogaria os ombros se o aperto em meu pescoço não tivesse se
tornado mais estreito. Por que essa porra é tão… infernalmente boa?
— Querido… — a língua de Pérola cria uma linha reta do meu pescoço
até meus lábios. — Acho que você não faz ideia de como estou usando todo
meu estoque de calma e autocontrole para não te encaixar em minha entrada
e o montar até que o sinta me preenchendo tão fundo que eu não tenho outra
opção que não deixar meus olhos rolarem pela órbita.
Misericórdia. Não goza, eu te proíbo de gozar, João Guilherme!
Ela continua:
— Mas não está me vendo fazer isso, está? — Nego com a cabeça,
rezando até pra São Longuinho. — Não é porque é fácil, é porque a espera
vale a pena. — Ela se move novamente, moendo minha ereção. Mordo o
interior da boca com força. — É você quem tem o poder sobre seu corpo.
Você goza quando permite. Se cansa quando quer. Abandona o controle no
exato momento que deseja. Não o inverso. Controle-se, ou eu vou fazer isso
por você.
Para demonstrar, ela se afasta minimamente.
— Como vai ser? Vai manter a calma ou vou precisar me sentar ao seu
lado e me satisfazer sozinha?
Isso fere o orgulho até mesmo de um cara sem orgulho como eu. Virou
questão de honra fazer essa mulher gozar. Nem que pra isso eu venha em
mais uma edição desse cruzeiro.
Em um rompante de coragem, impulsiono o quadril para cima, meu pau
deslizando entre suas dobras, as separando ao ponto de os lábios macios
abraçarem a minha pele, a glande atingindo o nervo tensionado de Pérola.
Ela xinga baixinho, cravando as unhas em meu pescoço. Ela não
interrompe minha respiração, mas pressiona contra minhas veias, trazendo
uma sensação de torpor estranhamente boa. É como se meu mundo girasse
em torno dela, como um planeta atraindo seu satélite natural.
— Vou considerar isso como uma resposta positiva à minha pergunta —
ela sorri puramente cínica e maliciosa. Não é doce, nem seus toques e muito
menos suas ações e é justamente por isso que Pérola me fascina. Sua
autenticidade e despudor elevam minha temperatura a um nível avançado
do jogo. — Três minutos, Honey… aguente por três minutos.
Arregalo os olhos.
Três minutos? Porra, ela tá achando que sou maratonista? Se eu
aguentar três minutos dessa mulher esfregando sua boceta no meu pau
como uma cobrinha com cólicas, eu vou merecer uma rua com meu nome.
Só que ao invés de dizer isso a ela, eu assinto fingindo costume.
Eu duraria tranquilamente três minutos antes de entrar nesse cruzeiro,
mas desde que meus olhos pousaram sobre essa mulher, todo meu controle
foi pisoteado junto ao meu senso de certo e errado.
Não quero pensar. Eu só quero viver o que estou vivendo agora, como
se o mundo real não estivesse me esperando dali dez dias, como se eu não
fosse precisar abandonar o mar e a sereia que nele habita.
— Bom garoto — Pérola repete quando eu não abro a boca para
contestar. — Você aprende rápido.
Ela segura uma de minhas mãos, a levando até a própria boca, fazendo
meu polegar desenhar o contorno dos seus lábios, até que os entreabrem e
meu dedo é agraciado com o toque aveludado e aprazível de sua língua ao
redor, umedecendo, o tornando escorregadio. Assisto à cena hipnotizado,
arremetendo minha pélvis contra a dela para buscar qualquer alívio ao
desejo que se torna dolorido ao não ser saciado.
Meu dedo sai de sua boca com um som molhado e ela o escorre por seu
corpo, desde o vale dos seus seios, contornando sua barriga lisinha, até
chegar ao topo de suas pernas, onde ela o centraliza contra o ponto sensível
e latejante de seu clitóris.
Pérola arfa, sua língua umedecendo seus lábios, enquanto analisa a cena
como eu.
— Lembre-se, isso é sempre um jogo a dois, querido. Você pode passar
a primeira fase sozinho, mas se quiser prosseguir para outras, terá que jogar
em dupla. Chegar do outro lado sem seu companheiro de time, além de sem
graça, é desonroso.
Balanço a cabeça, rindo de puro desespero. Fazer metáfora com jogos é
golpe baixo, porque imaginar essa mulher com um joystick na mão
enquanto monta sobre mim é fazer com que eu não dure sequer um minuto,
que dirá três.
— Como você gosta? — encontro forças para perguntar.
Pérola move meu dedo contra sua pele, me fazendo sentir o aglomerado
de terminações nervosas se mover de um lado para o outro.
— Entenda como o botão analógico e que você precisa muito fazer seu
personagem girar, Honey. Círculos… aposte sempre em círculos.
Círculos… ok, eu posso fazer isso.
Na verdade, eu sou muito bom com os dedos.
Palavras dela.
— Posso dar play? — ela provoca.
Não respondo. Eu apenas escorrego meu dedo mais para baixo,
recolhendo a lubrificação que escapa de sua entrada, a trazendo para seu
clitóris, onde exerço mais pressão que anteriormente, o rodando devagar.
Fico satisfeito quando a vejo arquear a coluna e jogar o pescoço para trás,
seus cabelos compridos caindo como cascatas em suas costas. Seus seios se
projetam para frente, cobertos pelo tecido de sua camisa azul do uniforme,
mas a falta de sutiã me deixa ver seus pequenos mamilos esticando o tecido.
Penso em segurar os quadris de Pérola e a ajudar a rebolar sobre mim,
mas definitivamente essa mulher não precisa de ajuda quanto a isso. Então
ao invés do quadril, ergo a mão livre para seus seios, mais especificamente
ao que carrega a pecinha metálica, que se tornou o alvo da minha mais
recente obsessão.
O aperto entre os dentes, o que faz Pérola endireitar sua coluna e
encarar surpresa meu gesto. Ela sorri aprovando minha atitude, fazendo
movimentos de vai e vem sobre meu pau, como se ele de fato estivesse
dentro de seu corpo apertado e receptivo. A lembrança de suas paredes me
apertando e mastigando ameaçam me levar ao delírio. Me amaldiçoo por
não ter prolongado aquele momento.
No entanto, ainda que eu não esteja enterrado em Pérola como gostaria,
sua intimidade se esfregando e me molhando com seu próprio prazer é
quase tão arrebatador quanto. É alucinante quando minha glande se
encontra com sua entrada, mas passa por ela, atingindo embaixo de seu
clitóris, o empurrando contra meu dedo. Quando acontece, Pérola morde os
lábios, segurando o gemido.
Meus dedos fazem movimentos contrários nas duas regiões de seu
corpo. Quando um solta, o outro aperta. Quando um puxa, o outro
pressiona. Em resposta, rebola tão malditamente coordenada sobre minha
extensão, que consigo sentir a umidade escapar pela ponta.
Droga, ainda não.
Contraio o abdômen, segurando meu prazer e desfocando das sensações
que sua boceta encharcada me proporciona. Me concentro no corpo dela.
— Pérola — chamo enquanto ela se apoia em meu pescoço para moer a
pélvis contra mim. — Por que não está me olhando? — ela ergue as
pálpebras, me encarando com os olhos turvos e nublados. Sorrio orgulhoso.
— Não foi você que disse que não posso desfazer nosso contato?
Ela desenha a ponta dos dentes superiores com a língua, erguendo meu
pescoço com seus dedos, aproximando a boca da minha.
— Eu disse que você não pode… e sequer me lembro de ter te permito
falar alguma coisa. — Seu polegar e indicador pressionam as veias laterais
em meu pescoço e ela se move mais duramente contra mim. — Suas
instruções foram círculos e controle, não questionamentos. — Ela lambe
meu lábio inferior, mas sua mão me impedir de me erguer e capturar seus
lábios para mim como é meu desejo. Pérola estala a língua, negando. —
Seja mais obediente e ganhe seu beijo.
Suspiro frustrado, aumentando a pressão em seu clitóris como forma de
castigo, mas duvido que ela tenha entendido assim, porque apenas me
agracia com um gemido que vai me atormentar para sempre.
É… delicioso.
Tudo.
Seus sons.
Seu sabor.
Seu aroma.
O fato de estarmos em seu lugar secreto, com o mar sob nós e as
estrelas acima.
Alucinante.
Pérola está me alucinando.
Quando meu pau está completamente molhado do prazer que escorre
dos seus lábios e meu pescoço ferido de suas unhas que não tem piedade de
me ferir ao minha glande atingir ininterruptamente a zona inferior de seu
clitóris, sinto as coxas de Pérola contrair ao meu redor, assim como sua
respiração travar na garganta, com os lábios formando um grito mudo.
Ela está gozando.
Para mim.
Eu a fiz gozar.
E não consigo sequer me concentrar no meu próprio prazer para ir no
mesmo caminho, porque tudo que consigo fazer é olhar para ela. Para sua
feição deleitosa, manhosa e deliciada. Seus lábios abertos, pálpebras
contraídas, pescoço alvo jogado para trás, movimentos erráticos de seu
quadril…
Perfeita.
Ela é perfeita.
É exatamente como um ser mitológico.
Como uma sereia.
Uma sereia que eu erroneamente quero para mim.
Pérola curte seu orgasmo por alguns segundos, abaixando finalmente o
rosto para mim, franzindo o cenho.
— Você ainda não? — sua voz é tão manhosa que preciso novamente
contrair meu abdômen.
Nego com a cabeça.
Ela sorri, sentando-se mais abaixo nas minhas pernas e tomando minha
boca na sua. Ela me beija lascivamente, descendo sua mão até minha
ereção, a segurando entre os dedos e aproveitando da lubrificação que seu
orgasmo causou para bombear sua mão para cima e para baixo em minha
extensão, deslizando o polegar contra minha glande, em um carinho que me
faz grunhir contra seus lábios, chupando a língua que ela me oferece.
Estou maluco.
Completamente maluco por ela.
Pérola desce sua mão, aumentando a pressão na base. Não tanto quanto
eu gostaria, mas ao menos ela, de nós dois, se lembra que ainda não
terminei meus dias de repouso. Pérola gira sua mão, como se espremesse a
região e meus olhos reviram.
Mas é quando seu dedo atinge a região abaixo das minhas bolas, onde
ela havia me ensinado dias atrás, que eu perco a visão e sinto o puro e
excruciante prazer.
— Goza agora, Honey. Deixe o controle se estilhaçar ao seu comando.
Aproveite a sensação de estar no poder do seu corpo.
Ela pressiona mais a região, girando dois de seus dedos, enquanto a
outra mão continua batendo uma para mim com uma precisão que nem
mesmo eu teria.
Gozo com o comando dela, sujando a nós dois. Não que tenhamos
despendido qualquer atenção para isso, porque continuamos nos beijando
por minutos a fio, mesmo quando os espasmos de ambos os corpos se
cessam.
Agora, ambos deitados de lado no estreito banco, com meus braços
envolvendo o corpo de Pérola para abrandar o frio do vento que nos atinge
sem a proteção do desejo latente. Nós estamos simplesmente nos olhando
há tanto tempo, que não consigo contabilizar.
Rio, negando com a cabeça.
Estou em completa paz.
Depois de muito, muito, tempo, estou em paz.
É estranho. É como quando meu computador trava e um simples
comando é capaz de voltá-lo à ordem.
— Do que está rindo? — ela pergunta baixinho, com as sobrancelhas
unidas formando um fofinho em sua testa.
Balanço a cabeça, afastando fios de cabelo que se atrevem a cobrir seu
rosto.
— Você é meu control alt del.
— Tá em inteligente. Traduz, por favor.
Gargalho da sua confusão, beijando sua testa rapidamente.
— Você reinicia meu sistema quando ele entra em pane. Me restabelece
de volta às minhas configurações.
— Essa foi a coisa mais nerd que já me falaram — ela engole após dizer
com a voz falhada, os olhos se tornando avermelhados ao redor, ao passo
que uma lágrima solitária escorre em sua bochecha.
— Então por que está chorando?
— Porque também foi a mais linda que já ouvi.
Ela me beija.
Me beija por muito tempo.
Seus lábios nos meus são a última coisa que me lembro antes de acordar
sozinho na lancha no dia seguinte, com a calcinha dela dentro do bolso do
meu short. A única prova de que essa noite não foi fruto da minha
imaginação.
 
 
— Desceu! — grito do banheiro da cabine. — Desceu, era isso!
Manu abre a porta assustada com meus gritos.
Ergo o absorvente com um sorriso rasgando o rosto e dando pulinhos
vergonhosos.
— O que deu em você?
— Minha menstruação desceu.
— E daí? Que eu saiba você não tá transando pra ter medo de tá
grávida.
— Não é isso — reviro os olhos. — É que quer dizer que eu estava
apenas sensível pela TPM e não apaixonada!
Os olhos da minha amiga saltam.
— E você achava que estava apaixonada?
— Depois que o Joca me fez chorar com o que falou, eu realmente
entrei em pane e achei que pudesse estar me apaixonando por ele… mas era
só TPM — respiro aliviada, a sensação sendo parecida com a de quando
limpo o rosto depois de usar uma make pesada.
— Ele te fez chorar? — ela se coloca por inteiro dentro do banho. — Eu
vou matar aquele espantalho do Fandangos.
— Não, Manuela… — espera, do que foi que ela o chamou? —
Espantalho do Fandangos?
— É, o espantalho que fica na embalagem… — desenha com as mãos.
— E não muda de assunto, me conta o que ele fez que eu vou lá fazer
churrasco de pinto pra comer com limão e uma cerveja gelada.
— Mas ele não fez nada de errado, você não me deixou explicar.
— Como não fez nada de errado? A gente só chora por coisa boa se for
de alguém que gost… — ela arregala os olhos. — Ah, entendi.
— Pois é — rio de nervoso. — Foi isso que eu pensei quando ele me
falou aquelas coisas e eu acabei chorando. Fiquei apavorada de tá me
apaixonando por ele, o que seria ridículo já que ele vai se casar.
— É… — Manu limpa a garganta. — É, ele vai, né…
Manuela começa a adotar um tom vermelho no rosto. Vergonha não é,
só pode ser calor.
— Tá tudo bem?
— Aham — ela assente sem me olhar. — Só uma pergunta, o que foi
que ele te disse?
Abro a boca para contar, mas a verdade é que eu não consigo me
lembrar com exatidão a a frase, porque era complicada e tecnológica
demais pra minha cabeça.
— Eu não sei direito, mas ele disse que eu era como um comando de
computador que reiniciava seu sistema… — coço a cabeça com uma careta.
— Control alguma coisa… ah, não importa! O que importa é que eu chorei.
— Você chorou com isso? — a expressão dela agora é de preocupação.
— No contexto foi bem bonito, tá? — defendo meu choro.
— Pérola… — ela se aproxima com cautela. — Você tem certeza de
que não está apaixonada, né? Quer dizer, é loucura.
— Tenho — tenho? — Eu sei que é loucura, mas foi só minha TPM me
deixando sensível. Né?
Manuela continua me avaliando mesmo após minha explicação.
Eu não menti.
Só não sei se estou inteiramente certa.
— Ok… — ela assente. — Espero mesmo que você não esteja. Não
quero te ver sofrer de novo.
— Mas eu não sofri das outras vezes — ergo o queixo.
— Sei… se você prefere acreditar nisso, ok.
— Manu, não começa.
— Digo o mesmo, Cheetos.
— Eu não tô apaixonada! — exaspero. — Que droga.
— Eu vou resolver algumas coisas, enquanto isso manda o Zé Mané
voltar para a própria cabine. Com certeza o amiguinho dele deve estar de
melhor humor para até ficar jogando cantadas pra você.
Não tenho tempo de explicar que não se tratou de uma cantada, porque
Manuela sai pisando firme para fora do quarto.
Abro a boca para gritá-la, mas a o barulho da porta batendo me garante
que é inútil.
Por que ela ficou tão brava?
Eu disse que não estou apaixonada.
Volta para o quarto no exato momento que o Corinthiano entra após
tomar café da manhã no restaurante. Sinto meu rosto esquentar, porque eu
cheguei a pensar que estava apaixonada pelo noivo dele.
E por mais que ele não tenha uma gota de ciúmes, eu me sinto culpada.
Não é nada legal se apaixonado pelo noivo alheio. Principalmente
porque eu sei que é noivo.
Minha vida parece uma novela mexicana de mau gosto.
— Tá tudo bem? — ele averigua.
— Tudo — afirmo, me balançando sobre os calcanhares. — A
propósito, você já pode voltar para sua cabine. Eu conversei com o Gui
ontem.
— Deu um chá nele, né? — ele sorri malicioso e provocativo.
Por acaso esse homem não sente nem um pouco de desconforto? Os
casais abertos que convivi geralmente não tinham curiosidade de saber o
que seus parceiros faziam com outras pessoas. Mas João Pedro parece até
ansioso para que eu tenha transado com o noivo.
— Não transamos — dou de ombros. — Ele ainda está de repouso.
— Ah, é mesmo…, mas rolou uma segunda base? — suas sobrancelhas
balançam.
— Pode se dizer que fomos até a base 2.5.
— O quê? Um sexo de roupa? — ele ri.
— Sem roupa — sou sincera. É ele que está perguntando, não tenho
culpa.
— Não entendi.
— Seria uma primeira base se estivéssemos de roupa, mas como a
simulação do sexo se deu sem qualquer empecilho de tecido, acho que seria
uma segunda base e meia.
— Aaaah — o sorriso dele se torna mais viperino. — Uma esfregação
do caralho, entendi.
Franzo o cenho.
— Não te incomoda? — preciso realmente entender.
— Só me incomoda o fato de até ele tá na safadeza e eu não.
— E por que não está?
João Pedro olha para a foto de Manuela no porta-retrato da cabeceira e
nega com a cabeça, suspirando ao final.
— Boa pergunta, Vascaína. Boa pergunta.
Ele beija minha bochecha antes de pegar suas coisas e sair da cabine
sem dizer uma só palavra.
Ok, isso foi estranho.
Mas tem sido estranho sempre, o que torna essa situação quase comum
na minha vida.

Enrolo a toalha na cintura, saindo do banheiro agitando o cabelo para


tirar o excesso de água. Agora com os fios mais curtos, eles secam
infinitamente mais rápido. Estou pronto para me jogar na cama e dormir
durante todo o restante da manhã, quando a porta da cabine é aberta.
Ou melhor. Praticamente posta abaixo.
Minha atual companheira de quarto invade meu espaço pessoal em um
rompante, não se dando ao trabalho de explicar o porquê de começar a me
bater.
— Seu cachorro, safado, vagabundo… — ela vai falando e me pergunto
se está cantando ou me xingando. — Mentacapeto!
Entendi, é xingamento.
— É mentecapto — corrijo, erguendo os braços em seguida para a
expressão assassina que ele me lança. — Desculpa, o xingamento é seu,
você fala do jeito que quiser.
Isso não a faz parar de me bater.
Pelo contrário.
— Minha vontade é esperar o seu pinto sarar só pra quebrar ele de vez,
cretino, nerd assanhado, espantalho do Fandangos!
— Espantalho do Fandangos? — Pelo amor de Deus, onde é a tecla F4
nessa mulher?
— Será possível que ninguém entende o que eu falo? — ela se irrita
mais ainda.
— Eu não estou entendendo nem porque tô apanhando, que dirá o que
você fala.
— Pois deveria entender, porque eu te avisei!
Manu continua batendo na boca do meu estômago e no máximo até meu
peito, que é onde ela alcança. Eu só protejo minhas bolas caso ela decida
acertar uma cabeçada nelas.
— Você poderia me explicar a razão que eu estou levando uma surra?
Pelo menos na escola me davam o benefício de saber que era porque eu era
um cu de ferro, quatro olhos ou simplesmente porque eles gostavam do som
que minha cara fazia ao me socarem.
— Que infância terrível, esses garotos eram monstros! — ela milita,
mas continua me batendo. Respiro fundo e continuo deixando porque a
verdade é que não tá doendo. Suas mãos são tão pequenininhas que ela me
faz mais uma massagem do que causa alguma dor.
Quando Manuela começa a suar do seu esforço, eu a seguro pela cintura
e a ergo do chão, suas perninhas balançando no ar revoltadas.
— Me solta!
— Você vai acabar se machucando desse jeito e vai querer me matar
enquanto eu durmo por isso. Então antes que você destronque esse pulso de
tanto me dar porrada, me explica que merda eu fiz que vou tentar me
redimir.
Ela para de tentar fazer uma corrida suspensa no ar e eu a coloco de
volta no chão.
— Eu falei para você não fazer a Pérola se apaixonar por você! — grita
subitamente e minhas sobrancelhas quase encontram meu couro cabeludo.
— Mas eu não fiz… fiz? — arregalo os olhos.
Não é possível que fiz.
— Torça para não ter conseguido mesmo, porque a Pérola se convenceu
de que tudo foi fruto a sua TPM, mas eu tenho uma opinião muito diferente.
— Por que você acha que ela está apaixonada por mim? — é apenas
essa informação que fica martelando minha mente. Isso seria possível? E se
sim, por que a ideia me apavora na mesma medida que me agrada?
— Porque você ficou jogando suas cantadas nerds pra cima dela e a fez
chorar.
— Não foi uma cantada e… sim, ela chorou, mas isso não quer dizer
que está apaixonada.
— A Pérola não chora facilmente. Ela só chora quando se emociona
muito e contando que eu imagino o nível de esquisitice da sua fala, só
estando apaixonada para achar isso bonito!
— Ei! Não precisa ofender.
— Precisa! — ela ergue o dedo do meio para mim do absoluto nada.
Assim de graça? — Por que você falou essas coisas pra ela? Pra levá-la pra
cama?
A suspeita dela me ofende mais do que qualquer tapa e gesto obsceno.
— Será possível que ninguém entende que eu não estou usando a
Pérola? Que eu gosto de estar com ela, inferno?! — respiro fundo, passando
os dedos pelo cabelo. — Escuta, Manu, eu não disse nada para ela com o
intuito de levá-la para cama, eu nunca fiz isso com mulher nenhuma e não
ia começar justamente com a única que realmente tem me feito bem. Se te
interessa saber, qualquer questão sexual entre Pérola e eu já tinha
acontecido antes de eu me abrir com ela.
— Se abrir? — a expressão dela muda para desconfiada.
— É, eu me abri com ela. Foi uma forma de agradecer por ela ter ficado
do meu lado e tentado me entender, por me fazer voltar ao eixo sem precisar
gritar comigo — ergo a sobrancelha e ela disfarça como se não tivesse
entrado aqui aos berros. — Eu me abri porque realmente quis dizer cada
uma daquelas palavras.
— Ah, deu o caralho mesmo! — Manuela choraminga, sentando-se na
cama. — Será possível que você está apaixonado por ela?
— Eu? — grito. — Não! — Estou? — Quer dizer… não estou, né?
— Como espera que eu saiba? Se nem vocês dois conseguem entender o
que estão sentindo, eu é que não vou tentar.
— Não, mas… — rio de nervosismo, balançando a cabeça. — Eu não
posso estar apaixonado por ela, quer dizer… não posso, eu…
— Chegou no ponto, Joca — ela se levanta para apontar o dedo na
minha cara. — Você não pode. Já conversamos sobre isso.
— Eu sei, eu… — solto uma lufada de ar, me sentindo um pouco tonto.
— Não é possível estar apaixonado por ela, eu a conheço não faz nem um
mês, acabei de terminar uma relação de anos… isso não é normal, não é
certo, não é como tem que ser.
Ganho um chute na canela.
Abaixo os olhos para a nanica que acabou de meter o pé em mim.
— Por que fez isso?
— Porque você é um jumento!
— Tenha dó do animal, ele não te fez nada — ironizo.
— É sério que você não consegue perceber que não precisa de um
roteiro ou um milhão de fases antes de gostar de alguém de verdade? Isso
não é um jogo, é a vida real. Pessoas se apaixonam em um único dia com
menos proximidade do que você e Pérola tiveram.
— Mas eu acabei de terminar um noivado de oito anos. Não dá pra
esquecer alguém em dias.
Ou dá?
Se der, é errado.
Né?
— Realmente não se esquece uma pessoa em dias, mas pelo que você
me contou da sua ex, você foi a esquecendo durante muito tempo, só é lerdo
demais pra ver que já não a amava.
Rio com escárnio.
— Se não a amasse, eu não teria sofrido como sofri.
Manuela revira os olhos.
— Você sofreu de orgulho ferido pelo chifre e não porque perdeu seu
relacionamento.
— Não é verdade — cruzo os braços.
— Então me fala ao menos uma coisa que você sente saudade da sua
noiva.
Abro a boca cheio de convicção de que vou soltar em cima dela uma
lista de itens, mas a verdade é que no meu arquivo mental, na pasta de
saudades, não há nenhum documento com o nome da minha ex.
Franzo o cenho, murchando toda a expressão corporal de certeza.
— Que droga… — me jogo na poltrona, um pouco triste. — Não tem
nada? Eu vivi oito anos com alguém e não sinto falta de nada?
— Isso é deprimente. — Ela bate na minha cabeça na tentativa de me
confortar, mas novamente me sinto como um cachorro.
— Me sinto mal com isso.
— Não deveria, ela te chifrou. Pelo menos você não precisa morrer de
saudades.
— Mas e se eu estiver me apaixonando pela Pérola em tão pouco
tempo? Seria traição também.
— Traição não seria, mas eu te jogaria do navio.
— Só que se eu tiver apaixonado, não é como se desse pra controlar.
— Tem razão. Mas dá pra esconder.
— Como assim? — nego com a cabeça. Como se esconde uma coisa
dessas? Eu nem sei se tô sentindo e já tô dando bandeira, imagina se tiver
certeza.
— Se você descobrir que está se apaixonando pela minha amiga, vai
fingir que não e não vai contar a ela.
— Por quê?
— Porque você vai embora. E ela não precisa de outro homem
importante indo embora da sua vida de uma hora para outra.
Abaixo a cabeça.
— Se refere ao pai dela?
— Sim. Então não faça isso. Não se torne importante e depois vá, como
se não estivesse partindo um coração recém-remendado.
Suspiro, esfregando meu rosto. Eu sabia que as coisas iriam desandar
assim que eu colocasse os pés nesse navio… mas não fazia ideia do quanto.
— E se eu descobrir que já estou apaixonado? — indago agoniado. —
Como disfarço?
Se. Porque eu não sei se estou. Nunca senti nada do que estou sentindo
agora, não tenho referências, precedentes e muito menos exemplos que
possa comparar. Pode ser paixão. Mas também pode não ser.
— Deixa isso comigo, apenas me encontre na sala Borboleta Paraguaia
no andar Joia Rara.
Comprimo as sobrancelhas.
Eles não podiam usar números?!
— E o JP? Vai continuar lá?
— Eu mandei a Pérola despachar ele, então já deve estar chegando aí.
Assim que ela fecha a boca, João Pedro entra na cabine com sua
mochila nas costas. Manuela não se dá ao trabalho de se despedir de mim e
muito menos de cumprimentar meu amigo. Ela sai tal qual entrou, como um
furacão.
— E então? – JP joga sua mochila na cama. — Depois do chá que a
Vascaína esotérica te deu, você já recuperou a dignidade e a autoestima?
Trinco o maxilar.
— Não foi com chá nenhum que ela melhorou minha dignidade,
acredite. Pérola e eu conversamos, sabe o que é isso?
Ele ergue as mãos.
Sim, estou de mau-humor.
Porque eu posso estar apaixonado.
E não deveria.
— Onde foi parar seu senso de humor?
— No mesmo lugar que vai parar o cabo de vassoura que vou enfiar no
seu rabo se não parar de me irritar.
Deito de bruços na cama, afundando a cara no travesseiro. Minha
vontade é de gritar.
Como eu queria meu computador aqui, pelo menos eu enfiaria a cara no
trabalho. Oh saudade de pensar em como um personagem pode matar o
outro.
Pelo visto a vontade não era só minha, porque João Pedro vai até nossa
varanda, berrando aos quatro cantos.
— ALGUÉM QUER ME HOSPEDAR NA CABINE?
A resposta que ele ganha o faz correr de volta para dentro e fechar a
porta da varanda na velocidade da luz.
— VEM NENÉM, TEM ESPAÇO NA NOSSA CAMA! — a voz de
duas mulheres chega alta até nosso quarto.
Eu não aguento e começo a gargalhar quando João Pedro se enfia
debaixo das cobertas, se escondendo de vergonha. É igual cachorro bravo,
só late. Mas na hora de morder, se esconde atrás das pernas do dono.
— Vai lá, bombonzinho — o provoco e ele ergue seu dedo do meio,
aumentando minha gargalhada.
Apesar de tudo, é bom tê-lo de volta.
É melhor do que a ameaça ambulante daquela baixinha valentona.
 
— O que vocês estão fazendo aqui? — estranho ao ver João Pedro e
João Guilherme na minha sala de tantra.
— Vieram ter uma sessão, claro — Manu abre espaço entre eles, se
fazendo aparecer.
— Por quê? — engulo a saliva.
— É você quem trabalha com tantra, amiga, não eu. — O olhar que ela
me lança me deixa bem claro a sua intenção.
Ela quer me lembrar que eles são um casal e que vão se casar em breve.
Eu sei disso, cacete.
Já falei que não estou apaixonada.
Mudo o peso do corpo para o outro pé, mais desconfortável do que
deveria.
— Sentem-se ali — indico um dos colchonetes desocupado, justamente
um bem na frente de onde fico. Respiro fundo, exibindo meu melhor
sorriso.
— Espera — JP ergue o dedo, apontando para Manu. — Você disse que
a gente só ia pegar a chave das salas vip’s com a Pérola.
— É, disse… só que eu menti — ela sorri para ele sem um pingo de
arrependimento. — A gente não tem acesso a isso, vocês só precisam ir até
a recepção e mostrar suas pulseiras amarelas.
— Olha, você é uma mentirosa compulsiva — ele a acusa. — Já pensou
em procurar uma terapia?
— E você já pensou em me procurar lá na esquina?
— Gente! — Gui os interrompe para o meu completo alívio. Ou
martírio, porque me sinto um pouco constrangida de ter chorado na frente
dele ontem. Foi… intenso demais. Merda de tensão pré-menstrual! — Será
que podem dar um tempo de briga por um minuto? Somos adultos, caso
tenham se esquecido.
— Cala a boca! — os dois proferem em conjunto.
Gui desiste de tentar uma conciliação e se vira para mim com um
sorriso em forma de pedido de desculpas pela atitude infantil. Eu não
consigo devolver o sorriso. Meu rosto simplesmente não se move. A
conversa com Manuela não sai da minha cabeça, a noite de ontem não
abandona meus pensamentos.
Não estou. Não estou. Não estou.
Não estou apaixonada!
Talvez estranhando meu silêncio e inércia, João Guilherme dá um passo
na minha direção, com a intenção clara de me cumprimentar com o beijo na
bochecha que se tornou costume, mas me esquivo disfarçadamente, usando
Manuela como desculpa.
Não tenho coragem de reparar na expressão que ele faz, só espero que
não fique chateado comigo, porque a recusa tem um motivo.
Tem. Eu só não sei qual.
Ou melhor, não quero pensar nele.
— Manu, podemos conversar um minuto? — empurro o Corinthiano
para o lado, pouco me fodendo se eles estavam tentando xingar os tataravós
um do outro.
A puxo pelo braço sem chance para recusa.
— O que você tá querendo com isso? — pergunto assim que chegamos
no canto da sala.
— Que você perceba que eles são um casal e não dê margem à sua
imaginação.
Fecho os olhos, balançando a cabeça.
— Manuela, eu sou uma mulher de vinte e sete anos, vivida pra caralho,
magoada pra caralho, com mais chifres na cabeça do que o líder do bando
dos veados. Sempre me virei sozinha com tudo na minha vida, não vai ser
uma paixonite que vai me fazer desabar e me transformar numa menininha
chorosa — ok, eu estou realmente brava. E eu odeio isso! Respiro fundo,
imaginando uma chama púrpura. — Olha, me escuta… eu sei que eles são
um casal e jamais interferiria nisso, mesmo que eu admitisse que estou
apaixonada pelo João Guilherme, ok? Não vou me magoar, porque eu já
entrei nesse jogo sabendo que eu sequer tinha chance de ser uma
participante ativa. Estou aqui para ajudar o Gui a se abrir…é tudo.
Solto o ar com força, esperando que ela me entenda de uma vez.
— Que porra — sua careta me confunde. — Você tá mesmo
apaixonada.
— Ah, vai chupar prego até virar taxinha — me estresso de uma vez,
dando as costas para ela.
Chega desse papo de paixão. Sou sagitariana, inferno! Isso é só uma
emoção passageira e inconsequente para alimentar meu vício por
adrenalina. Nada mais. Tão logo veio, logo vai embora.
Empino o rosto, incorporando a parte de mim que liga o foda-se para o
mundo.
Atualmente apelidada de Calypso.
— Os dois podem se sentar no colchonete como os outros passageiros.
— Escuta, é que somos tímidos, não curtimos essa coisa em grupo, ficar
nu assim pra geral…— JP começa e o encaro com tédio.
— Vocês não vão ficar nus, não vão tocar nas intimidades um do outro e
muito menos fazer sexo aqui. O tantra é justamente para que vocês
descubram outras formas de prazer que não o óbvio.
— Então nunca tem final feliz? — ele murcha.
— Há sessões de massagem que envolvem isso sim, mas a depender do
profissional e do que o paciente espera. No meu caso, não. Eu não toco o
órgão sexual de ninguém, não preciso disso.
— Não precisa mesmo — Gui comenta para si mesmo, mas não tão
baixo quanto pensa.
Pigarreio, fingindo que não escutei. Seja uma profissional, Pérola.
— Sentem-se e fiquem à vontade. A sessão de hoje é para a conexão
plena entre os casais, acho que é exatamente o que vocês precisam.
Os dois me encaram receosos, mas como não esboço minha expressão
mais amistosa, fazem o que digo.
Eles se sentam um do lado do outro, com as pernas cruzadas, como se
estivessem de volta ao jardim de infância.
Fofos.
É, eles são fofos.
Por isso você vai fazer essa sensação inconveniente passar, Pérola.
— De frente um para o outro, por favor — instruo muito mais paciente
do que antes. — João Guilherme, coloque suas pernas ao redor do quadril
do João Pedro, mas mantenha seu glúteo apoiado no colchonete.
Os dois me encaram de cenho franzido, estranhando meu linguajar mais
formal.
Que foi? Aqui é a Pérola profissional e não a pirada que não tem filtro
entre o cérebro e a boca.
— Precisa mesmo? — Gui averigua e assinto, com um pequeno sorriso.
Ele continua me olhando por um tempo e eu sei que deve estar se
perguntando se fez algo errado para eu ter mantido esse distanciamento
seguro.
Mas não fez.
Eu fiz.
Senti coisas que não deveria, então agora preciso retroceder alguns
passos. Ou todos.
Eles se encaixam um de frente para o outro, mas seus rostos estão
virados para o lado, não querendo manter o contato visual.
Agacho-me próxima a eles, voltando seus rostos na direção um do outro
com gentileza.
— Não precisam manter seus olhos abertos caso o contato olho a olho
os deixem tensos ou abertos demais ao parceiro, mas ao menos colem suas
testas e aproveitem a confiança da proximidade.
— Se arrependimento matasse… — JP resmunga e discretamente
belisco suas costelas o escutando chiar. Faço o sinal de silêncio com o dedo
indicador, deixando claro que ele não deve comentar sobre meu incentivo.
— Isso é tudo culpa sua! — é a vez de João Guilherme protestar. Mas
ele eu não belisco.
Fico de pé na frente da turma com mais outros cinco casais.
— Irei colocar uma música instrumental e acender uma vela de lavanda
para deixá-los relaxados para a experiência e peço que apenas fechem seus
olhos e respirem calma e profundamente por um tempo, até que seus
corações estejam em um ritmo lento e compassado.
Ligo o jazz na caixa de som, alternando as luzes para um tom amarelado
e não mais branco, tão fraco que vejo apenas as silhuetas e pequenos flashs
de luz entre os passageiros.
O perfume da vela logo vai tomando cada parte do ambiente e os instruo
em uma espécie de meditação guiada, tomando cuidado para que não
durmam no processo.
Com uma voz suave, começo as instruções para a massagem sensorial:
— Levem suas mãos para os ombros do parceiro, parceira, ou como se
sentirem mais confortáveis em se denominar, começando o toque no dorso
da mão e subindo pelo braço até atingir os músculos dorsais. — Noto
alguns casais se atrapalhando no processo para decidir qual braço é
acarinhado e qual proporciona o carinho, mas não interfiro, os deixando
seguir seu próprio tempo. Os únicos que eu sou obrigada e falar alguma
coisa é justamente a dupla de João’s que faltam se bater para colocar um
simples braço no ombro.
— Eu vou com a direita — Gui comanda.
— Não, eu que vou, você tem que usar a esquerda — JP protesta.
— Mas eu sou destro!
— Eu também sou!
— E eu posso ser agressiva — digo com um sorriso, segurando os
braços dos dois e os levando para os respectivos ombros. — Parem de
brigar e se conectem!
Talvez minha fala mais se pareça com um rosnado, mas eles bem que
merecem.
Se soubessem que minha cólica está ameaçando partir a minha bacia em
duas, eles não brincariam comigo hoje. Até porque se eu gritar, esse
absorvente vai vazar e isso aqui vai virar o filme Carrie, a estranha.
Meu fluxo dura apenas três dias, mas o primeiro não é desse mundo e
meu ovário policístico só piora toda a situação.
— Agora passem seus dedos pela extensão do pescoço, subindo para a
nuca e se aprofundando no couro cabeludo. Massageiem a região exercendo
um pouco de pressão, com cuidado para que suas unhas não firam.
— Ela disse com cuidado! — Gui bate na cabeça de JP.
— Me bate de novo que eu vou te meter a porrada — JP apela, fazendo
um barulho excessivo e atrapalhando os outros casais.
Os encaro entediada.
Esse é o casal mais sem sintonia que já vi em toda minha vida. Se a
intenção de Manuela ao trazê-los para minha sessão era me emocionar com
o amor entre os dois, sinto informar que tudo que consigo enxergar são dois
cães brigando até pelo ar que respiram.
Agacho na frente deles pela segunda vez, sentindo meu útero se contrair
de má vontade e expulsar todo o sangue do meu corpo como castigo.
Seguro na orelha dos dois, as apertando na mesma medida que meu ventre
dói. E é muito, a título de informação.
— Se eu tiver que me abaixar de novo para brigar com vocês, a minha
menstruação vai vazar, vai sujar minha roupa, eu vou ficar brava, ter que
encerrar minha aula mais cedo e ainda escutar comentários pelos corredores
de que me esquivei do meu trabalho… e isso vai ocasionar não apenas o
meu raríssimo mau-humor, como a completa perda da paz das suas vidas,
porque vou infernizá-los até que minha vagina pare de sangrar!
Respiro ofegante, vendo dois pares de olhos do tamanho de bolas de
tênis me encarando da mesma forma que eu via meus amiguinhos de
infância encararem os pais depois de fazer uma bagunça digna de apanhar
de tamanco de madeira.
Eu nunca tive essa sensação, porque minha mãe chegava em casa muito
tarde do trabalho e meu pai bêbado demais para reparar sequer se eu tinha
colocado fogo na casa.
Droga, agora estou reclamando do passado, eu odeio ficar menstruada.
É nojento, incômodo, essa mini fralda nos deixa assadas no calor e vem
gente querer fazer comercial com mulher feliz.
Feliz é a porra do pau que não tenho.
— A gente promete que vai fazer tudo certinho — JP sussurra com uma
careta. Ah, é porque estava torcendo sua orelha.
— Se você mandar eu pular do navio, vou nem perguntar a que altura,
só vou me jogar — Gui pisca assustado.
Liberto suas cartilagens, não me dignando a dar uma resposta.
— Agora se abracem — talvez tenha sido mais uma ordem que uma
instrução. Todos os tripulantes se assustam.
Mas se abraçam.
Eu deveria ser brava mais vezes? Parece funcionar.
Esse dia está do avesso e eu posso te provar.
Primeira prova: Pérola está possessa, como se tivesse absorvido a
personalidade de Manuela.
Segunda prova: eu estou me esfregando em João Pedro mais do que
uma esponja e sabão já fizeram isso por ele.
Terceira prova: precisa mesmo de mais?
— Você tomou banho hoje? — averiguo quando Pérola pede que nos
deitemos no colchonete em lados opostos e façamos massagem no pé um do
outro.
— Banho eu tomei, mas meu pé eu considerei limpo só por tá no piso
molhado.
Solto o pé dele no mesmo instante, que cai direto na boca do meu
estômago.
Tusso fora o ar, segurando a bile garganta abaixo.
— Tira essa coisa nojenta de cima de mim! — No momento que falo,
Pérola passa por mim, me analisando de cima como uma águia prestes a
capturar um ratinho. Eu sou o ratinho.
Fecho a cara, segurando o pé de João Pedro com a certeza de que vou
arrancar meus dedos fora em seguida.
— Você fica aí reclamando, mas pelo menos não tem que massagear um
pé com estria.
— Não acredito que disse isso — murmuro puto da vida, mas baixinho,
porque ainda tenho vida a zelar.
— Se não quer que eu fale do seu pé, então massageia o meu sem
parecer um hétero top descobrindo o clitóris.
— Você fala como se soubesse exatamente onde ele fica — provoco.
— Fica bem em cima da cabeça do seu pau, seu…
Sua fala se interrompe ao ouvirmos os toques nada suaves do sapato de
salto da Pérola no chão. Eu imagino que seja por medo dela pisar nas nossas
cabeças por atrapalhar a sua sessão pela milésima vez, mas tudo que ela faz
é se agachar na nossa frente com uma expressão agoniada e sussurrar:
— Me ajuda, eu acho que vou desmaiar.
Sento tão rápido que nem mesmo eu imaginava que possuía essa
agilidade, segurando em seus ombros de um lado, enquanto João Pedro já
está de pé, a segurando pelo outro lado.
— Pessoal, sinto muito, mas a nossa mestra não está se sentindo muito
bem. Vocês terão outra sessão gratuita em breve — ele explica para os
casais que analisam Pérola com preocupação.
— A sessão já é de graça, panaca — ela sussurra para ele, se apoiando
em nós para se levantar.
— Eu tô te ajudando, não me xinga que fico triste.
— E eu estou tendo meu útero pisoteado e retorcido como um pano
velho, então não me testa.
Ah. Cólica.
Minha mãe tinha muito isso antes de ter que retirar o útero devido a um
mioma. Eu costumava passar o dia cuidando dela quando ainda morava em
Atibaia. Quer dizer, isso quando meu pai já tinha falecido, porque antes, era
a responsabilidade dele. Meu pai passava o dia abraçado a ela, com uma
bolsa de água quente entre os dois para aliviar a sua dor, enquanto ele fazia
massagens e colocava o filme preferido dela para passar.
Bonequinha de Luxo.
— Eu preciso trancar a sala depois de todo mundo sair e levar até a
cabine de controle no final do corredor — Pérola murmura me deixando
preocupado, seu rosto normalmente corado e bronzeado agora pálido e
lívido demais.
— Eu tranco tudo aqui e você a leva para a enfermaria — JP adota um
tom raramente sério.
Assinto com pressa, passando o braço ao redor a cintura de Pérola.
— Não me leva pra enfermaria, me leva pra minha cabine.
— Mas e sua dor?
— Eu tenho remédio lá e não há muita coisa que eu possa fazer senão
deitar, chorar e implorar pra passar logo.
— Tem certeza?
— Tenho, Honey, agora cala a boca e me leva de uma vez.
— Posso te pegar no colo? — afasto seu cabelo do rosto, enxugando
com o polegar uma gota de suor que se forma.
Ela não me responde, mas a forma como dobra seu corpo para conter a
dor me faz passar o braço no interior dos seus joelhos e abraçar sua cintura,
a suspendendo no meu colo sem mais demora.
Pérola apoia a cabeça no meu peito e a aperto contra mim, andando o
mais depressa possível sem que isso a movimente demais.
Alterno o olhar entre o caminho à frente e o rosto da mulher nos meus
braços. Ok, faz muito tempo que eu não ajudo alguém com dores assim,
Olívia não sentia cólicas e também não gostava que eu ficasse perto dela
quando estava nesses dias, de modo que não sei se meus conhecimentos
sobre o assunto são os mais atualizados possíveis.
Eu só sei de uma coisa que funciona com toda a certeza, porque vi meu
pai fazer inúmeras vezes. Bolsa de água quente.
— Você tem certeza que não quer ir na enfermaria? — confiro uma
última vez chegando na cabine dela.
— Tenho, eu passo por isso todos os meses. Só que alguns, como o de
agora, são um pouco piores.
Ela abraça seu corpo na região do ventre.
Porra, Eva! Tinha que comer a maçã? Se a tentação fosse um chocolate,
uma pizza, uma coca gelada com limão, eu até entenderia. Mas ganhar um
castigo como esse por causa de uma maçã é de foder.
Eu até dou razão à raiva que as mulheres tem dos homens, porque Adão
também comeu e tudo que nós ganhamos foi um exame de próstata uma vez
na vida aos quarenta anos.
Balanço a cabeça, afastando os pensamentos.
Foco, Joca.
— Posso te deitar na cama?
— Pode, só pega aquele travesseiro pra eu colocar embaixo da barriga,
por favor.
Ela indica uma almofada em formato de bala de mascar.
Faço como ela instrui e a vejo se encolher na cama em posição fetal,
pressionando a região da frente com uma das mãos e a lombar com a outra.
— Eu volto já, não sai daí.
— Nem se eu quisesse.
Ela brinca, mas não tem sorriso no seu rosto.
Pérola sem sorriso não é a minha Pérola.
Quer dizer… que minha o quê? Fiquei maluco?
Se ela ouvisse esse meu pensamento era capaz de estragar meu pau
definitivamente dessa vez.
Volto para a cabine só depois de passar na cozinha do navio pelo
caminho que Pérola me ensinou, pedindo para a senhora Fátima uma bolsa
de água quente. Ela me ameaçou com o rolo de amassar massa quando me
viu, mas assim que expliquei a situação, ela correu para preparar a bolsa e
ainda me deu algumas dicas de como acabar com a cólica.
Uma delas foi sexo… ainda estou vermelho por causa disso.
Abro a porta com a mão livre, encontrando Pérola gemendo de dor
sobre a cama. Isso causa um efeito em mim que não consigo explicar. Eu
apenas tenho a certeza de que trocaria de lugar com ela agora só para sentir
a sua dor.
— Ei — me ajoelho na lateral da cama, afastando os fios do seu cabelo
de seus olhos. — Cheguei, linda. Vou te ajudar.
— Linda? — ela tenta um sorriso, mas ele não se forma nos seu rosto.
Meu coração aperta a cada contração de sua expressão para as pontadas de
dor. — Eu duvido que esteja linda agora.
— Você é linda, Pérola. Umas caretas não mudam isso — tento brincar
para aliviar o clima como ela sempre faz comigo. Contudo, não sou tão bom
em abrandar o ambiente como ela.
Estendo a bolsa de água para ela, esperando que ainda esteja quente o
bastante.
— Obrigada — ela recolhe a bolsa, a colocando sobre o útero. — Você
pode ir agora, não precisa ficar cuidando de mim.
— Tá brincando, né? Isso até me ofende, Pérola.
— Não tem motivo para isso, já lidei com cólicas antes, você pode
aproveitar sua viagem.
— Eu também já lidei com crises existenciais antes e nem por isso você
deixou de ficar comigo ontem.
— Não é uma competição, sabia? — sua voz baixinha e desanimada me
quebra. Não gosto de vê-la assim. Onde foi parar a minha vitamina
particular? Porque é isso que Pérola se tornou, minha vitamina. E eu vou ser
a dela se for disso que precisa hoje.
— Não disse que é uma competição e nem estou contando pontos, mas
eu só saio daqui se você disser que minha companhia não é bem-vinda.
Seus olhinhos cabisbaixos me esquadrinham por um longo tempo.
— Eu estaria mentindo se dissesse que não é bem-vinda.
Sorrio, não conseguindo me contar.
— Ótimo, então chega pra lá que vou te ajudar com seu útero latejante.
— Útero latejante? — bufa. — Isso foi mais específico do que eu
gostaria.
Pérola rola para o cantinho da cama de solteiro e me deito ao seu lado,
virando meu rosto na direção do dela.
— Sobe em cima de mim.
— Você quer transar agora? — ela arqueia as sobrancelhas. — Eu já até
ouvi falar que funciona pra dor, mas é que eu não tô a fim de transformar
minha cama em um rio de sangue, querido. Meu fluxo se equipara
facilmente com as Cataratas do Iguaçu.
Mordo o interior da boca para não rir. Sei lá, acho que não é legal rir de
uma mulher com cólica. Ela pode ir de dolorida para assassina em
segundos.
— Não estou te convidando para transar — explico e a malvada tem
coragem de fazer uma cara de decepção. — Ainda.
Coro ao repetir a fala dela na noite em que nos conhecemos.
— Plágio é crime, sabia? — ela me empurra. — Nerd copiador.
— Contando que um dos meus personagens favoritos de Naruto é
chamado de Ninja copiador, isso é um elogio.
— Eu deveria ter entendido?
— Não, porque senão eu seria obrigado a te pedir em casamento.
— Bigamia ainda não é permitido no Brasil.
Forço uma risada, não querendo entrar no assunto JP. Não aguento mais
mentir para ela. Isso não está certo.
Suspiro, no entanto, guardando a verdade para um momento mais
propício.
— Você vai vir pro meu colo, ou vou ter que implorar? — abro os
braços para que ela se deite sobre mim.
— Eu adoraria ver você implorar, Honey — diz dengosa, engatinhando
para se deitar de bruços sobre o meu peito. Suas pernas ficam esticadas
entre as minhas e seu rosto no vão do meu pescoço. Sua respiração faz
cócegas, arrepiando minha pele. — Mas aproveita que hoje eu estou
facinha.
Nego com a cabeça, rindo das suas palhaçadas mesmo com dor. Se eu
estivesse no seu lugar, já estaria chorando e reclamando que a vida não tem
sentido.
Seguro a bolsa de água que ela largou no lugar agora vago e a coloco
entre nós dois, pressionando seu ventre.
Ela solta um gemido longo.
— Aqui está bom? — averiguo fazendo um carinho em seus cabelos.
— Muito, muito bom.
— Agora trás suas pernas para cá — abaixo as mãos para segurar atrás
de seus joelhos, para que fiquem um de cada lada do meu quadril, com as
pernas recolhidas. O corpo dela tensiona, mas logo relaxa quando a posição
alonga seu quadril.
— Puta merda, doeu minha alma para erguer a perna, mas agora está
incrivelmente relaxante.
Sorrio.
Obrigado por ter sido um marido incrível para mamãe, pai. Pelo tempo
que ficou conosco, você me ensinou o que talvez eu não tivesse aprendido
nunca.
— Se ficar desconfortável me conte, ok? — apoio as duas mãos sobre a
lombar, fazendo uma massagem com pouca pressão, com medo de
machucá-la.
— Gui, eu não posso dizer que você fez minha cólica passar, porque
isso seria mágica, mas pelo menos é mais suportável assim.
Ela passa os braços por baixo dos meus, fazendo um carinho gostoso em
minhas laterais.
— Quer que eu coloque algo na televisão para assistirmos?
— Coloca A Grande Família. Eu já assisti tudo e não preciso olhar.
— Ok — beijo seus cabelos, abrindo o aplicativo na televisão.
Pérola e eu assistimos três episódios até que a bolsa fique
completamente fria e inútil ao seu propósito. Saio do quarto para a
esquentar no microondas e volto à mesma posição de antes tão logo me
deito, Pérola não perdendo tempo em se encaixar sobre minha e recolher
suas pernas.
Deve mesmo ajudar e isso até me deixaria tranquilo, se minhas
tentativas estivessem tirando por completo a sua dor. Mas a realidade está
longe de ser essa, porque sinto uma lágrima cair no meu ombro enquanto
todo o corpo dela fica rígido.
— Chega, bebê — me sento na cama a erguendo junto comigo. — Essa
bolsa não está resolvendo, vem pro chuveiro.
— Bebê? — ela me encara exatamente como um, seus olhinhos
inchados por chorar. Deus, o que eu faço para ela ficar bem? Isso está me
matando. — Isso foi fofo… bebê. Eu gosto.
Suspiro, a ajudando a se levantar.
— Sem gracinhas, eu preciso dar um jeito dessa dor passar.
Tento a levar para o banheiro, mas Pérola nega com a cabeça.
— Eu não vou conseguir ficar em pé lá agora — suas mãos enxugam as
lágrimas que descem sem sua permissão. Ela parece incomodada com elas,
mas não tem controle das reações do seu corpo à dor.
— Você não precisa, eu vou te segurar.
Ela nega rapidamente.
— Querido, eu não brinquei sobre o meu fluxo ser intenso. Se me
segurar, vai parecer que cometeu uma chacina.
Reviro os olhos para sua relutância, segurando seu rosto entre as mãos.
— Escuta, eu passo noventa por cento do meu dia programando
personagens de game para matar uns aos outros da forma mais sangrenta e
violenta possível. Sangue não me assusta.
— Só que isso é sangue de verdade e…
Antes que ela continue falando, a pego no meu colo, andando até o
banheiro com seus protestos.
Deixo seus pés tocarem o chão única e exclusivamente porque preciso
me livrar das nossas peças de roupa.
— Eu só vou aceitar suas recusas se elas forem relacionadas a um
desconforto seu em ficar nua comigo aqui. Agora se a sua preocupação é
sobre eu ter nojo, então vou fingir que nem é comigo que está falando.
— Quem é você e o que fez com meu nerd obediente e de poucas
palavras? — ela zomba já tirando a blusa sobre a cabeça. Pérola se
atrapalha no processo por causa do cabelo e a ajudo a terminar de ser livrar
da peça.
— No momento, você não precisa de alguém obediente, você precisa
ser obediente.
— Nunca soube ser, pergunta minha mãe.
— Ainda bem que não sou sua mãe, bebê — desfaço o botão da sua
calça, descendo o zíper até o final. — Você quer que eu me vire, ou não se
importa que eu te ajude?
— O meu absorvente não vai está nada legal de se ver.
— Pérola, eu já disse que não tenho medo de sangue!
Ela revira os olhos, descendo a calça de uma só vez, juntamente com
sua calcinha.
Deus do céu.
Ela tá com hemorragia?
Pisco desacreditado.
Medo de sangue eu não tenho, mas que ela fique sem uma gota do dela
dentro do corpo, sim.
— E aí? — ela diz em meio a um gemido de dor. — Já quer correr?
— Não, só quero saber qual seu tipo sanguíneo em caso de emergência.
— “O” positivo, e fique tranquilo que não vou precisar de uma
transfusão de sangue.
— Duvido, mas bora lá.
Agacho na sua frente, deixando que Pérola se apoie em meus ombros
para sair do aglomerado de tecidos nos seus pés. De volta em pé, a seguro
nos braços depois de tirar minha roupa, entrando debaixo do chuveiro com
a água o mais quente que consigo sem nos machucar.
Pérola suspira de alívio com o jato d’água caindo sobre seu ventre e a
posiciono para que se concentre nessa região. Sua cabeça repousa no espaço
entre meu pescoço e ombro, desenhando coisas desconexas sobre minha
pele com a ponta gelada do nariz.
Não ouso perguntar para que não pense que estou achando ruim. Porque
acredite, não estou.
A embalo de um lado para o outro, me balançando sobre meus pés,
cantarolando uma canção que meu pai catava para mim quando eu era
pequeno e tinha insônia. Eu nunca soube se essa música tinha letra, se era
mesmo de algum cantor ou apenas algo que ele havia inventado. Seja qual
for a verdade, a melodia sempre me acalma, então continuo esperando que
faça o mesmo pela mulher nos meus braços.
Eu sempre fui um homem romântico, do tipo que acredita em
relacionamentos duradouros e estáveis; em casamentos felizes e bem-
sucedidos; mas acho que nunca cheguei a pensar em sentimentos explosivos
e irracionais, que desafiam a lógica.
Nunca fantasiei em encontrar uma metade, nunca cogitei viver algo que
me arrancasse o fôlego, me tirasse do eixo ou me fizesse vivenciar algo
contra as próprias leis da natureza. Não entendia a maioria dos filmes e
livros que falavam de pele arrepiada, de visão turva, de coração palpitante,
de adrenalina correndo nas veias, apenas por estar ao lado de alguém que
gosta.
Para ser sincero, eu acreditava em amor, não em paixão. Era o que eu
conhecia, o afeto, a amizade, o companheirismo, a vivência a dois. Foi o
que vi dos meus pais. Eu via amor. Mas acho que nunca prestei atenção se
havia paixão.
Ao menos não existiu no meu relacionamento.
E agora, irracional ou não. Certo ou errado, estou sentindo coisas que eu
nem cogitei passarem das folhas de um livro ou de um filme de sessão da
tarde.
O que mais explica eu estar sentindo a dor pela mulher que repousa a
cabeça em meu peito? O que mais explica eu querer me colocar no lugar
dela para senti-la sozinho? O que mais explica cada milímetro do meu
corpo estar em alerta para agir tão logo necessário para buscar seu bem-
estar?
Está me arrancando o ar e a sanidade.
E eu achei que essas coisas fossem ruins.
Só que eu não fazia ideia de como estava enganado.
Não é ruim. Ruim é saber que tenho poucos dias para viver isso.
Bom, eu mereço. Estou mentindo para a única pessoa que já me fez
sentir… realmente vivo.
Estreito meus braços ao seu redor, beijando seus cabelos molhados.
Pérola envolve meu pescoço com os braços, acariciando minha nuca com as
pontas das unhas. Vez ou outra a sinto inspirar o perfume diretamente da
minha pele e todos os pelos do meu corpo se arrepiam em resposta.
— Eu preciso me lavar — ela sussurra baixinho.
— Posso te colocar em pé? — murmuro na mesma altura. E não sei por
que ela está falando assim, mas eu, é simplesmente medo de falar alto e
acordar dessa realidade e me ver longe disso tudo.
Longe dela.
As palavras de Manuela martelam na minha cabeça.
Eu estou apaixonado? Fui enfeitiçado pelos encantos da sereia?
Balanço a cabeça, a apoiando no chão quando diz que está pronta.
Auxilio Pérola a se lavar e faço o mesmo comigo, saindo tão logo termino
de nos livrar dos resquícios do sangue.
A enrolo em uma toalha e a deixo arrumar seu absorvente, não tendo a
menor ideia de como colar isso na calcinha. Mesmo brigando comigo, ela
aceita colocar as meias nos pés, porque li certa vez que andar descalça pode
piorar as cólicas. Não sei se é verdade, porém prefiro pecar pelo excesso
que pela falta.
Nós voltamos para a cama, na mesma posição de mais cedo, embora
agora o corpo dela esteja muito menos rígido e tenso. Mas não é por isso
que deixo de massagear sua lombar.
— Como você sabia exatamente o que fazer? — Pérola se aconchega no
meu colo como um gatinho ronronando.
— Minha mãe costumava sentir muita cólica e eu via meu pai cuidando
dela. Quando ele faleceu, eu ocupei esse papel.
Sinto um beijo singelo no meu pescoço.
— Obrigada por ser meu ibuprofeno.
Solto uma risada sobre seu cabelo.
— Obrigado você, por melhorar. Te ver com dor e sem o sorriso no
rosto foi a pior coisa que presenciei em muito tempo.
Pior até do que quando descobri que fui traído.
E a constatação me deixa apavorado.
Porque sim, Manuela tem razão.
Eu estou apaixonado.
Estou apaixonado pela Pérola.
E não tenho ideia do que fazer com essa informação.
 
 
Eu estou fodida.
E não é do jeito gostoso.
Estou fodida do tipo sem direito a orgasmos múltiplos.
Desde que João Guilherme saiu do quarto na noite passada quando
Manu chegou da sua última sessão de yoga, que minha expressão não passa
de uma folha em branco, sem expressão, personalidade ou reação. Eu
poderia ser colocada em um museu como estátua viva.
Mesmo enquanto eu chorava de madrugada pela cólica que voltou com
força total, eu não conseguia tirar da minha cabeça tudo que aconteceu
durante o dia. A forma como fui cuidada, ao invés de cuidar. A forma como
fui protegida, ao invés de proteger. Como pude simplesmente desligar a
mente de tudo e deixar uma pessoa tomar as rédeas sem ter receio que fosse
estragar tudo.
Eu nunca tinha passado por isso antes.
Mesmo sendo uma maluca em noventa por cento do meu tempo, eu
sempre fui a “adulta” das situações. Quando meu pai chegava bêbado, era
eu quem cuidava para minha mãe e ele não brigarem. Quando minha mãe
chorava no quarto por medo do meu pai não voltar depois de dias sumido,
era eu quem cozinhava, limpava a casa e não deixava a plantinha da
varanda morrer. Quando Manu e eu fomos olhar o apartamento, eu cuidei
de tudo. Não sabia nada sobre empréstimo, IPTU, como pagar uma conta de
água, mas me virei.
Eu sempre me virei.
E ontem, simplesmente pude… não me virar. Deixar que fizessem isso
por mim, ao menos a porra de uma vez na vida.
E foi tão bom… tão bom me sentir cuidada, que agora eu queria nunca
ter sido.
Porque não vai acontecer de novo.
— Aqui, Cheetos — Manu me entrega a copo de água que pedi para
tomar o remédio.
— Obrigada.
Jogo dois comprimidos na boca, esperando que eles me permitam ao
menos ir até a cidade na parada de hoje. O navio ancora em Recife e eu
quero visitar a Capela Dourada. Mesmo não sendo católica ou até mesmo
não me considere cristã, acredito firmemente em energia e aquele lugar me
transmite uma paz que poucos lugares no mundo conseguem. E eu já visitei
muitos.
— Vai me contar o que aconteceu pra você tá com essa cara? — Manu
senta na minha frente. — E não adianta dizer que é pela cólica, porque sua
expressão tá mais para: ai meu coração do que ai meu útero.
Assinto, respirando fundo.
— Não é a cólica que tá me deixando assim.
— O que é então? Você e o nerd brigaram?
Nego com a cabeça.
— Já enjoou dele e não sabe como falar?
Nego novamente.
— Descobriu alguma merda que ele fez? — a voz dela sobe alguns
decibéis nessa pergunta.
Franzo o cenho, negando com a cabeça. O que teria para descobrir?
— Não, Manu. Não aconteceu nada disso, esse é o problema.
— Por favor, não me diga que você está mesmo…
— Acho que estou me apaixonando — solto em um impulso, cobrindo
minha boca em seguida.
— Dorme que passa, amanhã é outro dia — Manu se apressa em falar.
— Eu dormi e não passou, amiga. Ou melhor, eu não dormir pensando
nisso. Eu achei que era só TPM, mas eu ainda estou sentindo essa coisa
esquisita no peito, esse calorzinho insistente…
— Tem certeza de que não é tesão reprimido?
— Eu nem estou pensando em sexo! — bato as palmas na cama.
— Ah, meu Deus — Manu cobre a boca com a mão.
— Pois é
— Mas por quê? Quer dizer, não estou dizendo que você só pensa em
sexo, mas isso sempre foi muito importante pra você.
— Eu não sei — jogo os ombros.
— É por que não sente tesão por ele?
Com essa eu tenho que gargalhar.
— Amiga, fazia tempo que não ficava tão molhada por alguém.
— Então é porque ele é ruim de cama?
— Ele é esforçado pra cacete e na última vez me fez gozar e foi uma
delicia. Claro que não passou nem perto do meu melhor orgasmo, mas
ninguém supera o que eu mesma posso fazer. Então não, não é por esse
motivo.
— O que é então, caralho? — ela bate no meu braço impaciente.
Tudo bem, eu também quero me bater.
— Eu só não penso em sexo sempre que estou com ele… quer dizer, a
gente conversa, sabe? Conta sobre coisas um do outro. Nos divertimos com
coisas bestas, tipo assistir aos programas que gostamos, ou pintar minhas
unhas, ou contar sobre o passado… sei lá, só não é apenas sexo.
Choramingo, deitando nas pernas dela.
— Não pode ser só um sentimento de amizade? Já que não é sexo…
— Manu, amizade é o que eu sinto por você. E acredite, não é a mesma
coisa que estou sentindo por ele, porque não quero grudar no seu colo como
um miquinho nas costas da mãe e nem beijar sua boca.
— Por quê? Minha boca é gostosa.
— Eu sei, gata. Não se ofenda, você é uma grande gostosa e eu com
certeza me apaixonaria por você se eu não fosse hétero.
— Tudo bem, nem todo mundo é perfeito, você tinha que ter esse
defeito.
— Manu… estou falando sério aqui, eu estou desesperada.
— E deveria mesmo. Lembra da sua ideia de celibato? Você deveria
fazer para o coração também.
Reviro os olhos.
— Eu não controlei nem minha vagina, acha que vou controlar meu
coração?!
— É, você tem um ponto.
— Mas ele vai se casar, Manuela. Eu estou sendo errada em gostar dele.
— Não é como se você conseguisse controlar, Cheetos.
— Eu preciso me afastar… né?
— Você tem um acordo para cumprir antes. Se esqueceu?
— Se eu estou apaixonada por ele antes de transformar aquele pãozinho
de mel em um deus na cama, imagina depois!
— Mas trato é trato… ou você vai perder pro Zé Mané do João Pedro?
Esfrego o rosto.
— Melhor perder pra ele do que me apaixonar de vez pelo seu noivo.
— Vai adiantar ficar longe agora? — ela me olha desconfiada. — Ou
vai ser mais dolorido se afastar agora sabendo que pode curtir esses
momentos? Não é como se você estivesse sendo amante dele.
— Não sou amante, mas o combinado foi ensinar ele a transar, não me
apaixonar.
— Detalhes — Manu dá de ombros. — Faz o seguinte, Cheetos. Não
pensa. Esquece o que seu coração falar e foca só em viver esses momentos
legais. Depois ele vai embora e vai ser mais fácil esquecer.
— Será? — estou realmente preocupada em não ser.
— Escuta — ela toma minhas mãos. — Se você não aproveitar o tempo
que tem, vai ficar pensando mil “e se?” e isso vai tornar tudo mais difícil de
esquecer. Termina o que você começou e vai perceber que era só uma
paixonite passageira.
Assinto, tomando uma longa respiração.
É isso. Deve ser só o meu ascendente em libra gritando.
Como uma boa sagitariana, eu deveria sentir vergonha. Cadê o espírito
de aventura? Onde foi parar a guerreira dentro de mim?
Levanto da cama decidida.
— Ok, eu vou fingir que não estou sentindo nada — sorrio abertamente
para Manuela.
Não seria a primeira vez que eu finjo não estar sentindo algo.
Uma hora, de tanto fingir, se torna realidade.
— Como você conseguiu nossa folga tão facilmente? — indago
Manuela quando entramos no ônibus a caminho da Capela Dourada.
— Digamos que eu sei que a nossa gerente tá tendo um caso com o
capitão, e também digamos que tenho a mulher dele no Instagram, e
também que deixei no ar que eu poderia ter foto dos dois juntos.
— E ela acreditou nessa mentira? — sento do lado da janela e Manu no
banco ao lado do corredor.
— Não é mentira, eu realmente tenho uma foto deles e sigo a esposa do
capitão.
— Como você tem uma foto deles? — desconfio. — Nós não temos
acesso a essa área do navio.
Manuela assovia, olhando para os lados, ignorando completamente
minha pergunta.
Às vezes ela sabe demais das coisas que rolam naquele navio, quase
tanto quanto a Sara.
— Olha, nossa parada é a próxima — ela aperta o botão no ônibus,
informando ao motorista da nossa descida.
Manu e eu descemos e caminhamos por cerca de dez minutos até chegar
à Capela Dourada, também chamada de Capela dos Noviços da ordem
terceira de São Francisco de Assis. Eu prefiro o nome curto que não me faz
pegar uma respiração antes de falar.
A capela é bonita do lado de fora, o estilo barroco e cor branca com
alguns entalhes dourados tem seu charme particular. Mas a verdadeira obra
de arte se encontra do lado de dentro.
Todas as paredes e altar são revestidos de puro ouro, reluzindo em um
dourado digno do seu nome. O teto possui painéis pintados à tinta óleo e os
arcos acoplados às paredes possuem estatuetas de imagens religiosas, cada
viga de madeira banhada à riqueza do ouro.
Eu amo esse lugar. Quem olha de fora, não imagina o que pode
encontrar dentro. É misterioso, conta uma certa história, mesmo para
alguém não religiosa como eu. Imagino que para os católicos se torne ainda
mais especial.
Manu sempre achou estranho esse meu apreço por uma igreja sendo que
não sei sequer me ajoelhar e fazer uma simples oração, porém eu não busco
uma explicação para esse sentimento. Eu apenas venho aqui em todas as
edições que o cruzeiro ancora em Recife. É minha parada obrigatória, vir
até aqui e ficar no centro da construção antiga, admirando cada pequeno
entalhe na parede como se fosse a primeira vez.
A imagem de Jesus crucificado está à frente sobre o altar e paro mais
alguns minutos para observar o detalhe da arte criada. Faço uma pequena
reverência, em respeito a tudo que ele representa.
Eu posso entender Deus como a natureza, diferente da maioria, mas
ainda tenho um profundo respeito por tudo que ele realmente representa no
coração das pessoas. Tudo aquilo que tem como premissa maior o amor e a
irmandade de certa forma têm um espaço na minha vida.
Manu termina de fazer sua oração, acendendo uma das velas.
Diferente de mim, ela foi batizada na igreja católica.
Sorrio para seu rostinho sereno, que apesar de sempre reclamar que
vamos sempre ao mesmo lugar, reluta mais em ir embora daqui do que eu.
Vozes familiares me fazem olhar para trás e encontrar João Pedro e João
Guilherme adentrando o espaço da igreja, fazendo o sinal da cruz sobre o
peito. Eles não parecem os palhaços que me acostumei a ver. Dá para notar
a mudança de semblante e reverência em seus olhares.
Antes mesmo de observar o local, ambos se ajoelham nos apoios dos
bancos de madeira e unem suas mãos, fazendo seus pedidos particulares.
Sempre fico curiosa sobre o que as pessoas conversam com Deus, porque a
verdade é que eu nem saberia como começar.
— Vamos? — Manu diz baixinho, tocando meu braço.
— Os meninos estão ali — indico os dois discretamente.
— Quer ir e falar com eles ou ir embora?
Boa pergunta. Quero ver o Gui? Hoje? Com meus sentimentos
bagunçados?
Notando minha indecisão, Manuela toma a escolha para si e me puxa
pelo braço para falar com eles. Os dois acabam suas orações e se assustam
ao nos ver em sua frente.
— Até aqui, Satanás? — João Pedro fuzila Manuela, ganhando uma
cotovelada do noivo. —- Ah, perdão Deus. O senhor sabe que já fiz coisas
piores, pode relevar mais essa, né?
Bufo uma risada.
— Por acaso vocês nos seguiram? — Manu cruza os braços.
— Você jura? — JP debocha. — Escuta, valentona, eu não sou
masoquista, não procuro tortura de livre e espontânea vontade.
— Gente, estamos em uma igreja! — Gui sussurra realmente bravo, se
erguendo do apoio dos joelhos.
— Pois é, nem sei como ela entrou aqui sem queimar — o Corinthiano
insiste na provocação.
— Eu sou católica, Zé Mané.
— Olha, eu não sou, mas eu lembro vagamente que a doutrina aqui é
amar ao próximo, ou tô errada?
— Ele não é próximo, ele é distante — Manu empina o queixo.
— Distante de você seria meu sonho.
Fecho os olhos. Agora seria um bom momento para aprender a rezar e
pedir pra um mosquito entrar na boca desses dois para pararem de discutir.
Isso é só tesão reprimido.
— Eu vou esperar lá fora, mas me convidem pro casamento — ironizo,
estendendo a mão para o nerd que me observa, esperando que eu fale com
ele. Onde foi parar aquele homem cheio de atitude de ontem? O pior é não
saber qual eu prefiro.
— Eu abro mão do noivo pra você — ele joga uma piscadela para
Manuela, segurando na minha mão e entrelaçando nossos dedos para
sairmos dali.
Leva pelo menos dez minutos para aqueles dois se sentirem saciados de
suas ofensas. Acho que é tipo preliminares pra eles.
Já fora da capela, tento soltar nossas mãos, mas Gui estreita seus dedos
aos meus, colocando uma mecha do meu cabelo para trás da orelha com a
mão livre.
— Você tá melhor? — os olhos azuis piscina esquadrinham cada
cantinho do meu rosto, provavelmente notando as espinhas internas que
aparecem sempre que eu menstruo.
— Eu tomei dois remédios fortes pra vir, então além de um pouco
grogue, estou bem.
— Que bom… — ele sorri rapidamente, ainda segurando minha mão,
acariciando o dorso com o polegar. — Eu fiquei preocupado de noite, mas
tive medo de te mandar mensagem e te acordar.
— A noite foi difícil, a dor piorou muito. Mas como eu disse, estou
acostumada. — Jogo os ombros.
— Já consultou um médico para saber se é normal?
— Já, eu tenho ovário policístico, faço tratamento com um
anticoncepcional, mas em alguns ciclos as cólicas são terríveis.
— Sinto muito — ele me surpreende ao meu abraçar, levando minha
mão junto com a sua para as minhas costas.
Caralho, ele não tá facilitando as coisas.
Pior que nem dá pra esperar que eu descubra que ele é comprometido
para não me apaixonar, porque eu já sei que ele é.
Parabéns, Pérola. Você literalmente perdeu o pouco de juízo que te
restava.
E como já estou me condenando, inspiro o perfume que exala da gola de
sua camisa polo, me entorpecendo com seu aroma doce e cítrico e…
O empurro rapidamente, pigarreando.
— O que foi?
— Nada, é… — É o que, Pérola? Paixão? Tesão? Carência? — Calor. É
calor.
Já fui melhor em dar desculpas.
— Realmente, acho que tá fazendo uns trinta graus.
— Uhum… — me balanço sobre os pés. Será que aqueles dois não
podem sair da capela e preencher o silêncio que eu não ouso por medo de
ser sincera demais?
— Pérola… você tá estranha de novo.
— Estranha? — arqueio a sobrancelha. — De novo?
— É, você estava estranha na aula de tantra, como se não quisesse ficar
perto de mim e agora de novo. — Ele cora, abaixando seu rosto. — Eu fiz
alguma coisa ontem que te chateou? Fui muito intrusivo? Se fui, me
desculpa, eu só queria te ajudar de alguma forma e…
Quando dou por mim, já ergui o rosto dele para cima e o calei com um
selinho. Os olhos dele estão arregalados, tais quais os meus, porque nem
mesmo eu entendo minha reação. Só não queria que ele continuasse
dizendo bobagens, porque nada disso tem lógica. Se eu fiquei longe, é
justamente porque queria ficar perto.
Nossa, nem na minha cabeça isso faz sentido. Estou agindo exatamente
como as mocinhas de comédia romântica que me matam de raiva por querer
ficar se afastando do cara que gosta.
Pelo menos os delas são solteiros… — minha consciência faz piscar em
vermelho neon.
Afasto os lábios dos dele, ladeando seu pescoço com meus braços.
— Por que você me beijou?
— Porque uma boca bonita como a sua não devia ficar falando merda.
— Eu só achei que você pudesse estar chateada por alguma coisa que
fiz.
— Pelo quê? Hum? — sorrio, deslizando a pontinha do meu nariz
contra o dele. — Por ter cuidado de mim? Por ter tirado seu dia para fazer
compressa quente, massagem e de quebra me dar um banho?
— Então por que parece que está me afastando? — a voz manhosa
carrega consigo o resquício de filtro entre meu cérebro que minha boca.
— Não parece, eu estou. Só não é pelos motivos que você pensa. —
Fitar seus olhos de perto causam uma cosquinha no meu interior impossível
de ignorar.
— Pode me contar quais? — suas mãos acariciam minha cintura e a
tatuagem de sereia parece se contorcer sob o toque. É, querida, eu te
entendo.
— Estou te afastando porque eu não posso me acostumar a ser cuidada
como você cuidou de mim. — Bico seus lábios, apenas porque estar perto e
ao mesmo tempo longe é um desafio que não consigo vencer. — Ter você
ali foi maravilhoso, mas eu não posso me dar ao luxo de achar que isso vai
virar rotina. Porque quando você for embora, quem vai ser o Honey que
deitará abraçado comigo até que a cólica passe?
Os dedos dele se estreitam possessivamente na minha cintura e João
Guilherme me puxa contra si como se a qualquer momento fossem me tirar
dos seus braços.
— Ninguém — ele responde a minha pergunta retórica. — Nenhum
outro além de mim vai ser seu Honey, Pérola. — Meu lábio inferior vai
parar entre os dele antes mesmo que eu possa digerir sua fala. Gui o chupa
com afinco, me fazendo comprimir as pernas e me segurar em seus ombros
por não confiar no equilíbrio das minhas pernas. Ele libera meu lábio com
um som molhado, unindo nossas testas. — Por favor, não importa quem
chegue depois de mim, não o chame assim. Só a mim. Só chame a mim de
Honey. Somente eu… por favor, bebê.
Bebê. De novo isso.
O que ele tá querendo com isso?
Me deixar maluca?
Me deixar viciada?
Me deixar apaixonada?
Me foder?
Seja qual for a intenção, eu já estou as três primeiras e aceito a última,
obrigada.
Uma das mãos dele se desprende da minha cintura e se infiltra entre
meus cabelos da nuca, onde ele os segura em punho. Procuro no seu rosto
qualquer sinal de que está tentando deixar uma mensagem com seu gesto,
mas o que encontro ali é só… necessidade.
Arfo, o olhando sob os cílios, tamanho peso que minhas pálpebras
adotam.
Eu estou na merda.
E tende a piorar.
Ah, se tende.
— Procurem um quarto!
Nós dois damos um pulo ao escutar a voz de João Pedro e me viro de
costas para eles, me afastando do Gui o mais rápido que minha letárgica
mente consegue.
— Ah, qual é, não vão se beijar por minha causa? Vamos, gente, não
sou ciumento, eu até curto ver — João Pedro provoca, mas Manuela vem ao
meu socorro.
— Querem beber? — ela fala alto, sobrepujando a voz do Corinthiano.
— Eu quero! — Gui e eu falamos ao mesmo tempo.
Eu não costumo recorrer ao álcool para resolver meus problemas por
motivos óbvios, mas hoje… hoje eu preciso de pelo menos umas duas doses
de tequila.
Ou vou acabar abrindo a boca mais do que devia.
 
Nós passamos a tarde na praia de Boa Viagem, com Pérola e Manuela
sentadas em cadeiras de plástico sob o guarda-sol, comendo milho assado e
bebendo caipirinha, enquanto João Pedro e eu encarávamos o mar.
É, não é lá a coisa mais segura a se fazer em Recife, mas a maré estava
baixa, a água não estava turva e nós só fomos até onde cobria nossos
joelhos… o que não impediu o João Pedro de me escalar quando algo
supostamente encostou na perna dele. O problema foi seu dedão do pé
enganchando na parte de trás da minha sunga, que foi parar na metade da
minha coxa, me deixando com a bunda ao relento.
Agora meio Recife sabe que eu tenho uma manchinha marrom na banda
direita. A minha sorte foi que as meninas não viram, porque estavam
ocupadas fazendo tererê[31] nos cabelos. Eu fiz de tudo para que Pérola não
visse minha bunda em todas as vezes que fiquei nu na sua frente e o
descacetado do JP quase arruína tudo num único dia.
Um sinal de nascença pode não parecer nada demais… e não seria
mesmo, se não fosse em formato de pistola! Esse bullying eu nem precisei
da escola para passar; tenho uma tia que só me chama de “ponto 40”[32].
Traduzindo, eu era o garoto da terceira perna, com uma pistola na
bunda, estria nos pés e fios de cabelo branco enquanto ainda era
adolescente. A quantidade de vezes que eu passei na fila do bullying antes
de vir ao mundo, foi a quantidade de vezes que deixei de passar na fila da
autoestima.
Depois de subir a sunga o mais rápido que consegui e ouvir assobios de
umas senhoras assanhadas, tive que sair com João Pedro à tira colo,
gritando que tinha visto um filhote de tubarão passando na perna dele. Eu
queria que fosse um de verdade, para pelo menos arrancar um corinho de
lembrança.
Só fico feliz porque as meninas não param de cantar Baby Shark [33] para
provocá-lo. O problema é que a música não sai da cabeça nem por um
inferno. Tem meia hora que estou cantando baixinho o “doo-doo-do0-doo-
doo”.
— Vamos voltar para o navio? — João Pedro pede emburrado, ao
deixarmos a praia quando o entardecer toma o lugar com tons alaranjados.
Ele adora zoar as pessoas, mas quando o jogo se inverte, fica com um bico
igual ao do Psyduck.[34]
— Como o navio está ancorado no píer, a gente pode ficar curtindo a
cidade até mais tarde — Pérola sugere, evitando me olhar como tem feito o
dia inteiro. Ela estava distante na capela, mas agora é como se estivéssemos
em hemisférios opostos. Nem sei explicar o que senti com todo aquele papo
de se afastar. Eu não quero me afastar. Não quero que ela se afaste.
Já me basta a certeza de que temos pouco tempo de viagem. Não quero
reduzir nossos últimos momentos.
— E vamos pra onde todos sujos de areia? — JP indaga só porque quer
se livrar da provocação das duas. Higiene nunca foi a maior preocupação
dele, não ia começar a ser agora.
— A gente pode ir para o Burburinho[35] no Recife Antigo [36]—
Manuela se manifesta. — É um barzinho muito conhecido daqui, tem
música ao vivo, o melhor pastel da região e não precisamos estar muito
arrumados.
— Nossa, me deu água na boca de lembrar daquele pastel, — Pérola
lambe os lábios com um gemido manhoso e meus olhos são atraídos para a
região como se eu fosse pego em um genjutso.[37] Essa mulher deve ter
algum tipo de truque para que tudo que faça, seja tão interessante a ponto de
eu não querer tirar os olhos. Só não digo que é mesmo uma sereia, porque
essas precisam cantar para atrair os homens. Pérola me instiga só de existir.
— Vamos pra lá então — falo de frente para ela, tentando chamar sua
atenção. Não surte muito efeito, porque suas unhas se tornam interessantes
repentinamente, ao ponto de Pérola as analisar uma a uma, ao invés de me
olhar.
— Sou voto vencido, pelo visto? — JP suspira irritado.
— Ainda se surpreende? — Manu debocha, passando por ele
esbarrando em seu ombro.
Deixo as duas irem na frente, nos guiando até a parada de ônibus,
constatando que Pérola não quer muito papo comigo agora.
Respiro fundo, balançando a cabeça.
Como eu estraguei tudo? Estava tudo tão bom, tão… natural. E agora
estamos pisando em ovos.
— O que aconteceu entre você e a Vascaína? — meu amigo cochicha no
meu ouvido. — Ela te olhava como se quisesse sentar no seu pau, mas
agora está agindo como se você tivesse herpes contagiosa.
Faço careta para a comparação.
— Estava tudo indo bem, mas ela veio com um papo de ter que se
afastar de mim para não se acostumar a ser tratada com cuidado, já que eu
vou embora em poucos dias, sei lá… eu não consigo entender, a gente
estava se dando tão bem, do tipo, bem demais e…
Ergo os braços, deixando a frase morrer no ar com uma lufada.
— Ih, será que o mosquitinho da paixão que te picou, também andou
dando umas mordidinhas nela?
— Se Pérola estivesse apaixonada, por que iria querer se afastar? —
Reviro os olhos.
— Primeiro, mulheres são um bicho estranho de se entender. E
segundo... — Ele dá um peteleco dolorido na minha testa. — Ela acha que
você vai se casar comigo, bocó.
— É, tem esse detalhe… — Encolho os ombros.
— Detalhe? — Gargalha. — Isso é só a coisa mais importante que vai
fazê-la fugir de qualquer sentimento por você. Ou acha que Pérola é o tipo
de mulher que escolhe sofrer por homem? Sinto te informar, queridão, mas
não é.
— Eu sei que não é, tá legal? — Ela é o tipo de mulher que não se deixa
ferir e eu quero muito ser o cara que não vai magoá-la. Só que eu meio que
já fodi tudo.
— Se sabe, por que não conta a verdade de uma vez? — diz como se
fosse óbvio. — A gente já sabe que ela não vai correr e contar para os
supervisores.
Nego com a cabeça. O problema não é esse.
— A Manu não acha uma boa ideia contar, porque a Pérola odeia
mentira e vai ficar muito magoada. Ela prefere que eu simplesmente vá
embora e não cause uma dor desnecessária à amiga e…
— Espera, espera, espera! — João Pedro segura meus ombros, me
fazendo estancar no meio da calçada. — Como assim a Manu acha alguma
coisa a respeito isso? — ele pronuncia a abreviação do nome dela com o
desdém de uma criança de cinco anos. — Ela sabe da nossa mentirinha?
Faço uma careta. Merda, Joca! Que boca que sacola!
— Meio que sabe... — Rio de nervoso.
— Como assim “meio que sabe”? Desde quando? E o que ela sabe? Eu
vou matar você!
Ele começa a dar tanto peteleco na minha testa, que uma senhorinha
passa por nós falando sobre eu o denunciar por agressão. Com a raiva que
ele deve tá de mim por contar nosso segredo justo pra garota que ele odeia,
vão ter que denunciar por mim, mas é por assassinato.
— Será que a gente pode ir andando enquanto eu te conto? As meninas
vão perceber que estamos ficando pra trás. — Aponto para elas andando de
braços dados.
— Qual seria o problema? Uma delas quer distância de você e a outra já
sabe de tudo!
Suspiro, enlaçando o braço no dele e o arrastando comigo.
— Não surta, tá bom? Eu contei sem querer, do mesmo jeito que te
contei agora. Só escapuliu.
Traduzindo, eu sou um sonso dos infernos.
Misericórdia, que ódio de mim!
— Me conta como foi isso, com riqueza de detalhes.
Reviro os olhos, explicando tudo que aconteceu naquele dia da praia.
Inclusive que eu fui obrigado a manter segredo dele, o que agora também
virou um segredo que o JP vai guardar, porque se Manuela descobrir que eu
contei, ela vai dar com a língua nos dentes para a Pérola.
É por isso que não se deve mentir.
Não é porque ela tem perna curta, é porque sempre tem alguém com a
língua comprida.
Nesse caso, eu mesmo.
— Você é um traidor desgraçado, como deixou ela me manipular desse
jeito? — Ele me dá um beliscão na costela que faz meus olhos revirarem.
—Ela ficou fazendo a gente ter momentinho de casal de propósito, mesmo
sabendo de tudo.
— Aquela mulher é maquiavélica, você sabe.
— É, sei…, mas eu vou me vingar disso. — JP aponta o dedo na minha
cara, quase sujando as lentes do meu óculos. — Você não vai contar pra ela
que eu sei que ela sabe.
Franzo o cenho.
— Quê?! Entendi porra nenhuma.
— Só fica calado, ok? Não fala que eu descobri.
— Eu não pretendia mesmo falar.
— Ótimo. — Sorri com uma satisfação lasciva, esfregando uma mão na
outra. — Essa valentona vai ter o troco.
— O que você vai fazer? — desconfio preocupado.
— Só vou entrar no mesmo joguinho que ela.

Nós pegamos um ônibus até Recife Antigo, caminhando poucos metros


até chegar ao tal de Burburinho. O barzinho é simples, mas ao mesmo
tempo muito aconchegante e receptivo. O ambiente é um pouco rústico,
com as paredes de tijolinhos e mesas dentro e fora do estabelecimento.
Escolhemos nos sentar do lado de fora, onde está mais fresco e menos
cheio.
A rua de paralelepípedos está repleta de mesas não apenas desse bar,
como de outros em volta, a praça com muita música, dança e o clima
descontraído e festeiro que contagia até os ossos.
Pérola não demora a se sentar, enfiando a cara no cardápio para me
evitar. Isso está começando a me deixar puto. Por acaso eu fiz alguma
coisa?
Além de mentir que eu vou me casar, é claro.
Mas ela não sabe disso!
Suspiro, pronto para me sentar do outro lado da mesa, dando a ela o
afastamento que quer, quando João Pedro me impede.
— Fica com a Pérola, bombonzinho. — Ele beija minha bochecha, me
empurrando para a cadeira ao lado da sereia emburrada. Manuela não tem
opção, se não ficar ao lado dele. Limpo minha bochecha discretamente.
Será que ele não sabe beijar sem babar? Parece um cachorro.
Chuto sua perna por debaixo da mesa, dando um aviso claro sobre não
fazer nenhuma gracinha; só que ao invés de JP esboçar algum sinal de dor,
quem grita é a baixinha encapetada, me devolvendo o chute três vezes mais
forte.
— Foi mal! — Gemo de dor, massageando minha canela. — Foi
espasmo.
— Pois tenha outro pra ver o que te acontece! — Manu joga os cabelos
para trás furiosa e escuto a risada baixinha de Pérola. Falar comigo ela não
quer, mas rir da minha desgraça... e o pior é que eu nem consigo ficar
bravo. Estou mais para preocupado com seu silêncio.
Limpo a garganta, chamando sua atenção.
— Você quer que eu vá embora? — Ofereço sinceramente. — O JP nem
queria vir mesmo. Não quero que perca sua noite porque está com receio de
me chatear ao falar que não me quer aqui. Eu não vou ficar magoado, só me
diga o que eu posso fazer pra você ficar bem e eu faço. Mesmo que seja ir
embora.
— O quê? Não! — Pérola finalmente tira o rosto do cardápio, se
agarrando ao meu braço com força. — Claro que não. Eu não quero que vá
embora, por favor.
Observo seus dedos afundando na minha pele, como se tivesse medo
que eu fosse mesmo embora.
— Eu não te entendo — admito, balançando a cabeça. — Como quer
que eu fique, se nem olha pra mim?
— Pra ser sincera, nem eu estou me entendendo. — Um biquinho se
forma no seu lábio inferior.
Ela está sendo dengosa e fofa. E Pérola não faz o tipo dengosa e fofa.
Algo está mesmo errado.
— Olha, quando estou em um impasse no desenvolvimento de um jogo,
uso a técnica da eliminação. — Giro a cadeira para ficar de frente para ela.
— Como eu não sei o que está errado, elimino todas as opções que estão
certas.
— É uma boa ideia — Pérola assente. — E por onde eu começo?
Sorrio das nossas posições invertidas.
— Você quer que eu vá embora? — dou a ela a opção mais óbvia.
— Não — responde rápido.
— Eu fiz algo que você não gostou?
— Não — novamente uma resposta na ponta da língua.
— Acha que você fez algo errado?
Ela abre a boca para negar novamente, mas a fecha em seguida,
assentindo.
— Fiz.
— O que? — fico curioso.
— Próxima pergunta. — Seus olhos me dizem que não vai adiantar
insistir.
Droga, agora estou curioso.
— Minha companhia está te incomodando de alguma forma? —
continuo.
— Defina incomodar.
Franzo o cenho. Tem mais de uma definição pra isso?
— Está sendo ruim ficar próxima a mim dessa forma? — Acaricio o
braço que ela enlaça no meu, para demonstrar o que quero dizer.
— Não, nem um pouco. Na verdade, tá bom demais — apesar da fala
positiva, seu tom carrega um pouco de inquietação.
— Você falou isso como se fosse ruim.
— E é ruim!
— Por quê?
— Porque você não pode ser meu! — Pérola solta num rompante,
arregalando os olhos em seguida. Abro a boca para dizer algo, porém as
palavras se misturaram como uma sopa de letras na minha cabeça. Pérola se
levanta da cadeira, tirando a mão do meu braço. — Com licença, eu vou ao
banheiro.
Eu a deixo ir, porque meu corpo inteiro paralisou.
Ela quer que eu seja dela?
E como assim eu não posso ser?
Mulher de Deus, volta aqui, que história é essa de não poder?
Bato com a testa na mesa, choramingando.
Sinto dois pares de mãos fuçando meu cabelo, como se fizessem
carinho em um vira-lata.
— Fez merda? — JP questiona.
— Ou ela fez merda? — Manu completa.
— Se você considerar ser sincera como merda, então acho que ela fez
— conto embolado.
— É, nessa situação ser sincera é muita merda.
Só escuto o som de cadeira se arrastando, indicando que Manuela se
levantou para ir atrás da amiga.
— Cara, você arriou os quatro pneus. — JP caçoa e ergo o dedo do
meio para ele.
Eu não arriei os quatro pneus, eu arriei até a porra do estepe.

Pérola voltou à mesa depois de quase meia hora no banheiro, como se


nada tivesse acontecido, sorrindo para mim como antes. Não sei o que
Manuela falou, mas surtiu efeito. Essa é a sereia que conheço: confiante,
sorridente, brincalhona e feliz.
Não ver seu sorriso é um castigo alto demais até para um mentiroso
como eu.
Com o clima menos tenso, pedidos litrão de cerveja e duas bandejas de
pastéis variados.
A banda ao vivo começou a tocar pop-rock nacional e estamos os quatro
quase sem voz, cantando NX Zero e desafinando em todas as notas. A
vergonha foi embora depois do sexto litrão, assim como a quinta bandeja de
pastel. João Pedro relutou em furar mais um pouco sua dieta, mas depois
que Manu o desafiou para ver quem comia mais, ele está quase comendo a
mesa de plástico.
Eu só não sei se ela fez isso pra provocar ou se não queria que ele
deixasse de comer. Algo me diz que essa valentona não é tão valentona
assim e pode ser que haja um coração humano batendo dentro da carcaça de
Charizard[38].
“Essa não é mais uma carta de amor
São pensamentos soltos
Traduzidos em palavras”
Os cantores passam para a próxima canção e quando noto ser Jota
Quest, me ergo da cadeira animado, puxando Pérola para cantar comigo. Eu
sou fã dos caras desde adolescente, perdi a conta de quantos shows deles fiz
minha mãe me levar. Abraço a cintura de Pérola, que ri surpresa da minha
animação.
“Para que você possa entender
O que eu também não entendo
Amar não é ter que ter sempre certeza”
Seguro em sua mão, a girando sobre os calcanhares, ganhando uma
risada gostosa de presente. Pérola envolve meus ombros com os braços,
pulando junto comigo.
“É aceitar que ninguém é perfeito pra ninguém
É poder ser você mesmo e não precisar fingir
É tentar esquecer e não conseguir fugir”
Nós cantamos animados, olho no olho, até que a animação se
transforme em algo mais quando me dou conta da letra da música. Esse
último refrão é exatamente o que eu diria a ela se fosse mais corajoso.
Pérola parece também notar, porque seus dedos fazem um carinho na minha
nuca.
“Já pensei em te largar
Já olhei tantas vezes pro lado
Mas quando penso em alguém
É por você que fecho os olhos”
Minha garganta se move duramente para engolir a saliva e a trago para
mais perto de mim, seus seios contra meu coração. Fico na ponta dos pés
para tentar igualar nossas alturas e nem me importo que as pessoas em volta
estejam vendo. As pálpebras de Pérola tremulam e seu aperto em minha
nuca se intensifica.
“Sei que nunca fui perfeito
Mas com você eu posso ser até eu mesmo
Que você vai entender”
Uno nossas testas, cantando baixinho a letra da música enquanto fito
seus olhos. Sinto o coração dela acelerar contra minha pele.
— Posso brincar de descobrir desenho em nuvens, posso contar meus
pesadelos e até minhas coisas fúteis — canto para ela.
— Posso tirar a tua roupa, posso fazer o que eu quiser, posso perder o
juízo — ela se junta a mim, sorrindo enquanto canta um pouco tímida por
desafinar.
— Mas com você eu tô tranquilo... tranquilo — completo gritando,
mostrando que estou passando mais vergonha que ela. — Agora o que
vamos fazer, eu também não sei. Afinal, será que amar, é mesmo tudo?
Pérola engole saliva, desenhando o contorno do meu rosto com as mãos
geladas.
— Se isso não é amor... — sussurra.
— O que mais pode ser? — sussurro de volta.
Mas tenho a impressão de que nenhum de nós dois estava mais
cantando a canção.
Os olhos dela caem para minha boca e repito seu gesto, travando a
respiração. Nossos lábios estão quase se tocando, quando somos
interrompidos por um homem que se esbarra em nós. Puxo Pérola para que
ele não pise em seu pé.
— Me perdoe.
— Não tem problema — repetimos em uníssono, ambos ofegantes.
Sorrimos sem graça um para o outro, sabendo que o clima foi quebrado.
Coloco os braços dela sobre meus ombros e nos levo para perto de Manu e
JP, que também se levantaram para cantar.
Esse último está completamente encachaçado e foi o que menos bebeu.
Meu amigo se apoia nos ombros de Manuela, que o sustenta sem reclamar
ou deixá-lo cair, para meu completo espanto. Primeiro, porque ela o odeia.
E segundo, porque ela é literalmente metade dele.
— Quer que eu o segure? — ofereço, mas ela nega com a cabeça,
estreitando os braços na cintura dele.
Dou de ombros.
— Você é daqui? — Escuto uma voz masculina desconhecida e me viro
para o lado, vendo um cara puxar assunto com Pérola.
— Não, sou turista. — Sorri gentil, voltando sua atenção para a banda.
— Prazer, meu nome é Breno. — Ele oferece sua mão e Pérola solta
meu pescoço para o cumprimentar.
— Pérola, prazer.
Reviro os olhos. Prazer… hum.
E a história de deixar o prazer para depois?
— Já te disseram o quanto você é linda? — ele sorri galanteador e os
pastéis no meu estômago começam a protestar.
Eu. Eu já disse que ela é linda.
Ajeito meus óculos em um tique nervoso recém adquirido ao me livrar
das lentes.
— Ah, não precisam dizer, eu sei disso — ela brinca, jogando uma
piscadela.
Engulo um sentimento esquisito que me sobe a garganta.
Será que vou vomitar?
Eu nem estou bêbado pra isso…
— O que acha de eu te pagar uma bebida? — ele fica à frente dela e
retiro o braço da sua cintura a contragosto. Se Pérola está falando com ele é
porque se interessou… não posso fazer nada.
Né?
Mas e se ela decidir ficar com esse cara?
Como vou ver isso?
Estico a gola da minha regata, de repente o ar faltando nos pulmões.
Que merda, tô com asma?
Eu tinha bronquite quando era criança, mas faz tempo demais que não
tenho nenhuma intercorrência.
— Não, obrigada — recusa educadamente. — Já parei de beber por
hoje.
— Ah, mas nem um copinho comigo? — ele dá um passo para mais
perto dela.
— Não, eu já disse que não quero mais beber — a voz de Pérola passa
de amistosa para incomodada e sua lateral se aproxima mais de mim,
segurando a barra da minha blusa.
— Qual é, gata! Só mais um copo não mata ninguém. — Seu braço
estica para tenta tocar a cintura dela.
— Só que mais uma insistência sua pode. — Quando dou por mim, já
me meti no meio deles, fazendo o cara dar um passo para trás e trazendo
Pérola para minhas costas. Ela apoia as mãos na minha cintura e as pessoas
em nossa volta param de conversar, formando um silêncio tenso. Eu nunca,
na minha vida, procurei briga com ninguém. Nem mesmo meu assistente
viu meu punho, mas isso não quer dizer que eu não saiba o que fazer com
ele. — Seja um homem esperto e a deixe em paz.
— E quem você é pra falar por ela?
Coço o queixo com o polegar, franzindo o cenho.
— Não estou falando por ela, porque o que ela tinha para te dizer foi
dito. Não. Mas já que você está com dificuldade de compreender, vamos ver
se na minha linguagem fica mais claro.
— Se não sair da minha frente vou partir sua cara em duas! — Ele fecha
as mãos e dá um passo na minha direção com o peito estufado, parecendo
um galo em um ritual estranho de acasalamento. Solto uma risada.
— Eu gostaria de ver você tentar.
Agora eu agradeço que João Pedro tenha me feito treinar como um
psicopata.
— Gui… — a voz de Pérola soa assustada atrás de mim e ela tenta me
puxar para trás, mas meus pés continuam fincados no mesmo lugar. Levo
uma mão até a que ela mantém na minha cintura.
— Fica tranquila, bebê — afago seus dedos.
— Você acha que dá conta de mim, otário? — ele grita mais bêbado que
um gambá, tropeçando nos próprios pés.
— Não vem ao caso o que eu acho, estou te avisando para se afastar.
— Ele aprendeu tudo comigo — João Pedro comenta grogue, jogado no
colo da Manuela, agora sentada na cadeira. Ela revira os olhos, nem um
pouco preocupada com a situação.
— Ei! Eu tô falando com você! — o cara segura minha camiseta em
punho e me afasto na direção contrária de Pérola, a tirando do caminho
dele. — Você vai aprender a não se meter onde não foi chamado.
Seu punho ergue em riste para me bater, mas tudo que preciso fazer para
desviar é girar meu tronco de lado, o fazendo acertar um soco no ar. Reviro
os olhos de puro tédio. Ele cai em quatro apoios no chão, arrancando risada
das pessoas em volta.
— Regra número um: antes de bater em alguém, se certifique de que
sua base está firme no chão… ou você pode acabar passando vergonha —
comento com asco.
— Porra, você de novo causando inferno aqui? — Um dos garçons que
nos atendeu ergue o cara pela camisa, o afastando do estabelecimento. —
Se aparecer de novo aqui, vou chamar a polícia. — Ele vem até nós com um
sorriso de desculpas. — Perdão o inconveniente, a casa vai oferecer um
litrão de cortesia para vocês.
— Não — dispenso com batidinhas nos seus ombros. — Não precisa,
mas agradecemos. Vocês não tiveram culpa.
Ele assente com mais um pedido de desculpas, se afastando.
Me viro para ver como Pérola está, esperando encontrá-la um pouco
assustada ou até mesmo com raiva, mas o que encontro é a mulher me
encarando de cima a baixo, com um dedo sobre o lábio e a expressão mais
tarada que eu já vi na vida.
Dou de ombros, segurando seu rosto entre as mãos. Pode ser choque,
sei lá.
— Você tá bem?
— Bem? — Sorri travessa, segurando ela própria a minha blusa, me
puxando para si, forte o bastante para seu seio ficar esmago contra meu
peito. — Se não estivéssemos em público, eu iria te mostrar o quão bem eu
estou.
Comprimo as sobrancelhas.
— O que deu em você? — analiso seu rosto em busca de algum sinal de
que esteja alta, mas eu apostaria que Pérola está mais sóbria que eu.
— Vontade de dar pra você.
Arregalo os olhos.
— Misericórdia — engulo a seco, olhando em volta. — Como assim,
mulher? Não que eu esteja recusando, mas de onde veio essa vontade de…
dar pra mim?
Minha cara com certeza é um tomate ambulante agora.
Ela mastiga o próprio lábio, chegando pertinho do meu ouvido. Minhas
mãos passam do seu rosto para sua cintura. Eu amo esse lugar.
Principalmente sabendo o desenho que contorna sua pele.
— Você fica uma delícia quando está bravo… e ganhou muitos pontos
comigo ao não ter socado a cara dele para provar alguma coisa.
— Eu não precisava provar nada — respondo fraco porque Pérola
esfrega seu lábio por toda a pele sensível da minha orelha. Acho que eu
também quero dar pra ela… que dizer, eu também quero transar com ela.
Ah, tô confuso.
— Não precisava, mas acabou me provando uma coisa.
— O que?
— Que eu não posso mais esperar para provar você de novo… seu
período de repouso acaba amanhã.
— Já são quase meia noite — corrijo. — Tecnicamente, quase amanhã.
Pérola arqueia uma sobrancelha, massageando meu couro cabeludo com
a ponta das unhas.
— É por isso que eu gosto dos inteligentes.
Estou prestes a beijá-la, quando a voz de Manuela nos interrompe.
Jesus, Maria, José, o presépio inteiro, o que eu preciso fazer para
conseguir beijar essa mulher hoje?
— Oh gente, o Zé Mané tá começando a babar no meu ombro e eu vou
rachar a cara dele!
Nós dois nos afastamos, nos virando para um João Pedro agarrado à
Manuela como um carrapato, cheirando seu pescoço.
Estreito os olhos.
Você a odeia mesmo, JP?
Porque eu estou começando a ter minhas dúvidas.
— Vamos pagar a conta e voltar pro navio — Pérola leva os dedos à
boca, assoviando para avisar do garçom de fechar nossa conta.
— Posso pedir o Uber? — Manuela segura a cabeça de JP que começa a
pender para frente. Inclino o pescoço, olhando assustado para seus dedinhos
que fazem um carinho nos cabelos dele.
Rapaz, tá certo isso?
— Pode ir pedindo do seu celular, mas eu pago.
— É claro que é você que ia pagar, eu só estava me oferecendo para
cuidar da logística, não da parte financeira.
Bufo uma risada.
— A conta, pessoal. Espero que tenham gostado — o garçom traz a
comanda e a máquina de cartão.
— Estava tudo muito bom, obrigado — Sorrio, capturando o papel antes
que Pérola o segurasse.
— Ei, a gente vai dividir. — Ela tenta pegar o papel de mim e o escondo
atrás das minhas costas.
— Meu pai me ensinou duas coisas. A primeira, era pedir um centavo
de troco para todo produto que terminava com 0,99. Mas a segunda, foi a
nunca deixar a mulher pagar a conta, porque além de deselegante, é injusto.
— Esse ensinamento serve pra noivos também, né? — JP sorri
abobalhado e tenho vontade de enfiar a comanda no rabo dele.
— Serve… serve, depois a gente abate na conta do aluguel.
Eu vou deixar esse palhaço pagar um ano de aluguel do nosso
apartamento por tudo que me fez gastar nessa viagem.
— Você tem certeza? Eu posso ser só uma humilde massagista tântrica,
mas ainda consigo pagar minha comida e bebida.
Beijo sua testa, a abraçando de lado.
— Eu sei que consegue, só que vai contra meus princípios.
— Eu gosto dos princípios dele. — Manuela ergue os polegares. — Se
quiser ir passar um mês lá em casa com esses princípios, eu vou adorar.
Pérola pega um guardanapo, o amassando e jogando em cima da amiga.
— Folgada.
— Gostosa — a baixinha rebate.
Em resposta, Pérola passa a mão no próprio corpo.
— Eu sei.
Por que JP e eu não somos assim?
Ele também podia me chamar de gostoso, ao invés de lerdo, burro,
sonso, trouxa e corno.
 
Subo a rampa do navio tendo João Pedro agarrado às minhas costas,
com Manuela o segurando para ele não se jogar para trás. Ele ainda
consegue andar, mas subir uma rampa íngreme é esperar demais do seu
escasso equilíbrio.
— Eu vou levar ele pro quarto e enfiar o bebum debaixo do chuveiro —
faço menção de me despedir das meninas, mas Manu me interrompe.
— Pode deixar comigo… fica aí com a Pérola — ela pisca
discretamente para mim.
— Mas… você vai cuidar dele? — inclino o rosto desconfiado. —
Quem me garante que amanhã vou encontrá-lo inteiro?
— Inteiro eu não garanto, vivo serve? — suas sobrancelhas se
arqueiam.
Penso por um segundo.
Sim, segundo. Eu não preciso de mais que isso para escolher entre ficar
com um JP bêbado e com bafo e uma Pérola sóbria e com hálito de
chocolate com amendoim. Eu queira saber se ela tem um estoque desses
doces, porque sempre sinto o sabor deles em sua boca.
— João Pedro não vai ficar chateado se você não cuidar dele? — Pérola
indaga.
— Você lembra de quando eu passei mal? Ele também fugiu da raia.
— É verdade… — assente, logo em seguida esboçando desconfiança.
— Isso é tão estranho. Vocês têm certeza de que vão se casar?
Arregalo os olhos.
Escuto daqui Manuela engolir a saliva duramente.
— Na verdade, nós… — João Pedro começa a falar, mas logo a mão da
baixinha cobre sua boca, o impedindo de jogar a verdade no ventilador.
— Que isso, Manu?! Vai sufocar o cara. — Pérola vai ao socorro dele.
— É pra ele não vomitar no convés… eu vou levá-lo pro quarto de
vocês, Joca. Passa a noite com a Pérola que acho que vocês têm muito o que
se resolver.
— Você vai passar a noite com o Corinthiano? — Pérola grita para a
amiga, mas essa já saiu arrastando João Pedro para dentro.
Será que é seguro deixar esses dois sozinhos? A gente pode acordar
com o corpo dele flutuando no mar… não, ela não o mataria.
Né?
Por via das dúvidas, faço uma oração em nome do meu amigo. Pode ser
que ele precise.
— Você não tá cansado? — Os braços de Pérola me envolvem por trás e
ela se abaixa para apoiar o queixo no meu ombro. Não vou mentir, ainda
fere um pouco do meu ego ela ser mais alta, mas ao mesmo tempo,
estranhamente, me dá a sensação de estar com a Mulher-Maravilha.
Tipo doce de banana.
É ruim, mas também é bom.
Cubro suas mãos no meu peito, acariciando o dorso com o polegar.
— Não, e você?
— Nem um pouco… — ela fuça meu pescoço com a ponta do nariz
gelado, enquanto suas unhas começam a percorrer meu peito. — O que
acha de conhecer a área restrita, senhor pulseira amarela?
— Você vai me pendurar no teto?
— Não — Gargalha, me virando de frente. — Não hoje, quem sabe
outro dia.
Sorrio, me deixando ser arrastado por ela.
— E o que mais tem nessa área vip? — fico curioso.
— Eu só entrei na sala de massagem até hoje, mas eu sei que tem uma
sala de games, dois quartos para voyeur, um playroom de BDSM, e o quarto
principal com banheira de hidromassagem…
— Acho que me sinto um pouco menos puto com o JP pelas pulseiras
agora.
— Deixa eu adivinhar, por causa da sala de games? — me encara
desconfiada, me pegando no flagra.
— Acertou.
Pérola gargalha enquanto eu fico vermelho.
— Mas eu também gostei da parte da sala de massagem — tento parecer
menos um virgem de vinte e cinco anos.
— Então vou te mostrar o que eu não mostro a ninguém do cruzeiro,
Honey — sou agraciado com seu sorriso travesso e uma piscadela que
ameaça fraquejar minhas pernas.
Pérola sobe comigo até o andar mais alto do navio, logo abaixo do deck.
O andar Royal Pleasure.
O nome do navio.
Assim que o elevador sobe até o andar, para passarmos pela porta, é
necessário aproximar a pulseira da tranca eletrônica. Um clique é dado e a
porta liberada, abrindo caminho para um estreito corredor, com quatro
saletas nas laterais e uma porta ao final, dando para o que só Deus sabe
onde.
Quer dizer, é melhor deixar Deus fora disso. Ele com certeza não viria
a um lugar desse.
Engulo a saliva, conseguindo ouvir meu coração com o silêncio
absoluto.
— Pérola?
— Hum?
— Você disse que veio aqui uma vez… com quem foi? — Eu sei que
nem tenho direito de perguntar isso. Na verdade, nem sei se quero a
resposta, mas eu meio que não quero fazer nada com ela onde já esteve com
outra pessoa.
— Eu fiz uma terapia tântrica com uma passageira dois anos atrás. Ela
tinha problemas para ter um orgasmo, então nós trabalhamos o tantra como
forma de libertar as amarras que ela tinha com o próprio corpo.
— Você… — Arqueio a sobrancelha, sem jeito de perguntar.
— Se eu a fiz gozar? — Ri, negando com a cabeça. — Não, eu não fiz,
não diretamente. Ela fez. O sentido do tantra não é o terapeuta proporcionar
o prazer, mas sim possibilitar que cada um alcance o seu através de uma
conexão maior com seu corpo. Bom… pelo menos a maioria é assim.
— Terapeuta? — Franzo o cenho.
— É, eu sou terapeuta tântrica, mas as pessoas entendem mais fácil se
eu disser que sou massagista. É bem mais atrativo do que acharem que vão
se sentar em um divã e contar da própria vida.
— Entendo… quer dizer, mais ou menos. Sei pouco ou nada sobre isso.
— Vai descobrir um pouco do que eu faço agora. — Ela abre a segunda
porta à direita, onde há um colchonete avermelhado no chão, uma mesa de
massagem e prateleiras cheias de cremes e óleos nas paredes. — Mas com
você eu vou chegar até o final feliz.
Pisca para minha expressão tonta, me puxando para dentro. Tropeço nos
meus próprios pés, escutando “final feliz” ecoar na minha cabeça.
Pérola altera a iluminação da sala para um tom de púrpura, diminuindo
o brilho no máximo, para que enxerguemos apenas as sombras e
penumbras.
Enquanto eu estou olhando tudo com curiosidade, cheirando os cremes
na prateleira e, principalmente, conferindo se está tudo novo e lacrado, ela
já se adiantou em ligar a caixinha de som e escolher uma música.
Um jazz instrumental começa a tocar, parecido com o que ela usou na
sua sessão de tantra que fui com JP. Os sons de violino e saxofone criando
uma atmosfera sensual, que arrepia meus pelos.
Sinto o corpo de Pérola se aproximar às minhas costas e prendo a
respiração, premeditando seu toque. Permaneço estático, deixando a
iniciativa nas suas mãos. Eu sei que ela gosta disso, e eu tive que confessar
a mim mesmo que eu também.
Também gosto de tê-la no controle de tudo.
Fico surpreso ao ser sua testa sobre minha nuca o primeiro toque físico
que sinto. Suas mãos permanecem longe do meu corpo, enquanto ela brinca
com a região do meu pescoço com o nariz, vez ou outra resvalando os
lábios sobre a epiderme sensível.
Seus dedos envolvem a barra da minha camiseta e penso que Pérola vai
puxá-la para cima, mas ao invés disso, sua mão se infiltra sob o tecido,
escorrendo as digitais acima do cós do short, subindo displicentemente até a
região do meu umbigo, onde sua unha o contorna, sem nunca ousar tocá-lo
de fato.
Bom, eu nunca na vida pensei que pudesse querer alguém tocando esse
lugar, nem mesmo passou pela minha cabeça ser algo bom…, mas,
misericórdia, eu estou com a respiração e o abdômen travado apenas pela
ameaça velada de seus dedos envolta da região.
O toque aveludado da sua língua chega até lóbulo da minha orelha, o
sugando para dentro de seus lábios. O som molhado causa uma ardência
que escorre pela minha espinha, se alojando em minhas bolas, que se
tornam pesadas.
Para minha decepção, Pérola desvia sua mão de meu umbigo, fazendo
um caminho crescente. A decepção dura apenas os segundos necessários até
suas unhas contornarem minha auréola, me fazendo arfar de surpresa. Ela
brinca com uma e com outra, provocando e instigando até que eu sinta os
mamilos responderem ao seu ato. Franzo o cenho, ficando vermelho com a
reação do meu corpo. Eu deveria reagir assim? Tento me controlar, fazendo
um esforço para não focar no seu carinho na região.
Como se adivinhasse o caminho dos meus pensamentos, ela segura um
dos pontos agora túrgidos, sussurrando ao meu ouvido.
— Todo, eu vou repetir, todo o seu corpo pode te dar prazer. Esqueça o
convencional, esqueça os dogmas do que um homem pode ou não sentir
para reafirmar sua masculinidade. Esqueça o que você acha que sabe ou o
que te ensinaram até agora. — Ela pressiona novamente o dedo, dessa vez
mais fortemente e o ar escapa completamente pelos meus pulmões. — Eu
vou te mostrar o verdadeiro significado de prazer, Honey… e não vou
poupar nenhum lugarzinho do seu corpo para isso.
— Pérola… — murmuro e sou interrompido.
— Calypso. — A lufada de seu sorriso escarnado me faz contrair os
dedos dos pés. — Não confunda, Honey.
Engulo a saliva, tentando me virar e sendo impedido por seu estalar de
língua.
— Eu não mandei você virar. E você vai fazer apenas o que eu mandar,
entendido?
Assinto fracamente e sua mão livre vai para os fios do meu cabelo, os
puxando sem gentileza, meu queixo se erguendo com o gesto.
— Não te ouvi.
— Entendido… entendido, Calypso.
Sinto seu sorriso contra meu pescoço, logo após suas mãos liberarem
meus fios. Vergonhosamente, sinto falta da pressão.
— Ótimo, querido. Mantenha essa postura e vamos nos conciliar muito
bem aqui.
Merda, essa mulher consegue se transformar em malditos segundos. Em
um momento, está brincalhona e sorridente e no outro parece que vai me
comer vivo e lamber os beiços.
Dos meus mamilos, ela sobe até meu pescoço, envolvendo-o com os
dedos, em uma espécie de colar apertado e estreito. Seu polegar pressiona
uma veia, enquanto o dedo médio faz o mesmo com o outro lado. Contraio
o abdômen com a fisgada que sinto em minha ereção, que com certeza está
longe de ser dor.
— Você gosta — ela sussurra e eu sei que não é uma pergunta. Porém
sinto a necessidade de responder.
—- Gosto.
— Até o momento você tem se mostrado receptivo aos meus comandos
e eu cheguei a cogitar que fosse apenas para aprender e entender o que eu
fazia, mas não é… você gosta de se submeter, querido… gosta que tenham
controle sobre você na cama.
Arfo, agarrando as prateleiras com força à minha frente, porque Pérola
desenha um rastro de fogo com suas unhas, da minha nuca até final da
minha coluna.
— Não gosta?
Assinto, com vergonha demais de admitir isso em voz alta.
Ela sopra uma risada rouca, mordendo a região logo abaixo da minha
orelha.
— Isso não é vergonhoso, Honey.
— Conheço quem pensa o contrário.
Ela leva a mão para a frente do meu corpo, cobrindo meu pau sobre o
short, não se importando em ser delicada ou branda. Ela o segura firme e
possessivamente. Puxo o ar entre os dentes, abaixando os olhos para assistir
à cena.
— Não importa o que os outros pensem… seu corpo se excita com isso,
em ficar à mercê de alguém… e acredite em mim, Honey, eu fico molhada
só de cogitar tudo que posso fazer com você na sala ao lado com essa
informação.
— Então por que não vamos agora? — digo em um lampejo de
coragem.
— Porque você ainda tem vergonha do que seu corpo lhe proporciona.
Se eu te levar para aquela sala, vai reprimir todos os instintos internos por
acreditar que seu prazer é errado ou que não deveriam vir de onde estão
vindo. — Ela beija a linha que liga meu ombro ao meu pescoço — Não
posso admitir que você perca uma gota sequer por limites que não deveriam
existir.
— E como vai resolver isso? — minha voz não passa de um murmúrio
letárgico.
Ela desce um pouco mais suas mãos, envolvendo minhas bolas entre os
dedos, as massageando tão habilmente que meus olhos se jogam para trás
da órbita sem estimativa de quando os farei retornar.
Com certeza não agora, depois da resposta dela:
— Eu vou te fazer gozar tantas vezes e de tantas formas, que quando
você cogitar sentir constrangimento pelo prazer que tem direito, a
lembrança das minhas mãos, da minha língua e dos meus lábios te darão a
certeza que você deve receber tudo que seu corpo estiver disposto a lhe
entregar.
— Merda — praguejo, sentindo uma gota molhar minha glande.
— Se controle. Nós nem começamos. — Pérola torna seu contato em
minhas bolas mais estreito e aperto os dentes. — Já passamos dessa fase. Eu
posso ter o controle aqui do lado de fora, mas por dentro, você tem que lidar
sozinho. — Ela deixa o indicador se esgueirar para baixo, pressionando
meu períneo. Aperto o maxilar, balançando a cabeça. — Sabe que vale a
pena, tirou a prova aquele dia, a forma como gozou, como seu corpo
convulsionou, como nos deixou molhados… e foi você quem ditou quando
o prazer viria.
Pérola libera tanto meu pescoço quanto minhas bolas, introduzindo seus
dedos por entre meus cabelos, me obrigando a pender a cabeça para frente,
enquanto ela faz uma massagem em movimentos circulares e precisos no
meu couro cabeludo, nem forte demais para machucar, nem brando demais
a ponto de não causar efeito.
Meus músculos se tornam gelatina sob suas mãos, não oferecem
nenhuma resistência aos comandos implícitos de Pérola. Do couro
cabeludo, os dedos habilidosos são transferidos para minhas orelhas, onde
descobri ser um local de hipersensibilidade para mim. Ela faz movimentos
circulares, acariciando como uma penugem a fina cartilagem.
Meu lóbulo ganha uma atenção menos delicada, sendo aplicada mais
pressão nos movimentos, suas unhas desenhando na região como se fossem
seus dentes ao me morder.
Da orelha, é a vez da tez do meu pescoço, em um caminho decrescente
pela linha da minha carótida, passando para os ombros, escorrendo por
meus braços, como se várias finas agulhas fossem derramadas sobre mim,
não gerando danos severos, mas superficiais, o suficiente para serem
sentidos.
Ela desce até encontrar minhas mãos, sua palma cobrindo o dorso das
minhas e entreabrindo meus dedos para os entrelaçar com os seus. Quando
já unidos, Pérola faz com que eu leve nossas mãos para dentro da minha
camiseta, erguendo o tecido conforme sobe cada vez mais. Do abdômen
para o peitoral até que ela me faça espalmar meu corpo, sentindo o mamilo
reagir ao meu próprio toque.
— Se desconecte de mim, sinta você. Me deixe apenas ser sua guia.
Arfo, corando desacreditado.
— Não consigo me desligar de você — e nem mesmo quero.
— Eu preciso que você siga meus ensinamentos mesmo quando eu não
estiver mais perto, Honey. Te ensinar… esse foi acordo, certo?
Certo. Era o acordo.
Mas não é mais assim.
E eu tenho a impressão de que Pérola sabe disso tão bem quanto eu.
Com a mão sobre a minha, ela me instrui a deslizar a palma sobre o
ponto cada mais endurecido, o estimulando sem precisar de grandes
manobras.
— Aperte — ela sussurra ao meu ouvido.
Obedeço. Não porque estou de fato raciocinando, mas porque a voz dela
aciona alguns fios dentro de mim como num videogame. Eu sou o
personagem e ela a portadora do Joystick.
Pressiono meu mamilo, surpreendido de conseguir o mesmo efeito que
ela anteriormente. Eu sei me dar prazer, mas isso se resume ao meu pênis.
Nem mesmo as minhas bolas eu sei fazer algo como o que ela fez.
— É bom? — me interroga.
— É diferente, porque…
— Não perguntei isso. Perguntei se é bom.
Assinto devagar.
— É. É bom sim.
— Teste mais forte.
Aumento a pressão, a sensação escorrendo para o pau. Mudo o peso do
corpo, incomodado com a sunga o apertando.
— Eu preciso me livrar da sunga.
— Ainda não.
— Está apertando.
— Eu disse ainda não. Você já esteve em lugares muito mais apertados
que isso e não te vi reclamando.
Inclino o pescoço.
É, razão ela tem.
— Erga os braços.
Faço com ela manda e Pérola retira minha camiseta tão lentamente que
posso jurar que levaram minutos a fio para a peça atingir o chão em um
baque surdo. A caixa de som alterna a música para uma com letra,
mantendo uma melodia sensual nos sons que saem do piano e a voz do
cantor em um ronronar baixo e prolongado.
No chão, vejo apenas o relance da blusa de Pérola ficando sobre o
tecido embolado da minha, assim como seu sutiã. Tento me virar para trás
mais uma vez, mas as mãos dela me interceptam e seus seios se colam às
minhas costas igualmente nuas, pele com pele, calor contra calor.
Umedeço meus lábios, com a língua dançando entre eles, ansioso para
ter seu pontinhos sensíveis entre meus lábios uma vez mais. Dessa, fazendo
certo e sem incidentes.
Porém a mulher às minhas costas tem planos muito diferentes dos meus.
Ela está mais interessada em arrancar cada miligrama de juízo do meu
corpo, lenta e tão provocante quanto conseguir.
Se eu sair vivo dessa sala, já será um belo avanço.
A respiração pesada, embora controlada, de Pérola faz com que seus
mamilos desenhem coisas aleatórias contra minha pele, a pecinha metálica
causando um arrepio pela temperatura gélida. Eu lembro da sensação dela
na minha língua. Merda, eu preciso disso de novo.
— Pérola — Engulo a saliva acumulada. — Me deixe tentar mais uma
vez.
— Tentar o quê?
Coro insuportavelmente.
— O que a gente fez aquele dia no chuveiro.
— Fizemos várias coisas, seja específico.
Rio de nervoso. Ela vai mesmo me fazer falar?
— No seu seio… o que eu fiz no seu seio. Sem toda a bagunça que
virou depois.
— Diga as palavras, querido.
— Não consigo — minhas bochechas estão a ponto de explodir.
— Se não consegue falar, como quer que eu acredite que conseguirá
fazer?
Ai. Bem no meio dos peitos, pegando de raspão no ego.
Se ela fosse jogar Free Fire[39], adoraria uma AK 47[40].
— Eu quero… é, eu quero… — Merda, João Guilherme! Articula! —
Eu quero te chupar.
Aperto os olhos com força, tanta que consigo inibir até a minha audição
com as contrações do músculo do rosto.
Pérola se afasta minimamente, só o bastante para que seus mamilos
fiquem mais livres para deslizar na tez das minhas costas, cada vez mais
vulnerável às suas ministrações.
— Quer me chupar… ok, gosto da ideia. Onde?
Misericórdia, facilita bebê.
— Seus mamilos — confesso de uma vez. — Eu os quero na minha
boca novamente.
Ela me vira de frente para si usando meus ombros para tal e meus olhos
saltam diretamente para seus seios pequenos, com os pontinhos rosados
apontados na minha direção, como se quisessem o mesmo que eu.
Pérola ergue meu queixo para que eu encare seu rosto e fico
malditamente mais rubro.
— Você vai poder fazer o que quiser comigo…, mas se for um bom
garoto e gozar todas as vezes que eu mandar.
— E se eu não conseguir gozar?
Ela ri, prendendo os cabelos em um coque.
— Acredite, você vai. Basta me obedecer.
— Tenho feito isso desde que te conheci.
Ela contorna meu corpo até ficar às minhas costas novamente, me
empurrando na direção do colchonete de couro avermelhado no chão.
— Você não me obedeceu quando o mandei sair da minha mente e do
meu coração — ela sussurra para si mesma e finjo que não escutei,
guardando a frase para mim com um sorriso contido.
Você também não saiu, mas no seu caso eu nem mesmo ousei pedir,
bebê.
— Deita. De bruços. — Olho para trás desconfiado — Confia que eu
não faria nada que você não gostasse?
— Confio. — O problema é eu gostar, minha filha.
— Então deita de uma vez.
Suspiro, me rendendo.
— Braços para baixo, deixe seu rosto virado para o lado da parede.
Fico exatamente como ela manda, esperando que ela me tire do
martírio.
— Alguém já te falou como é difícil acomodar um pau duro deitando de
bruços?
— Um pau já, mas uma espada Jedi não — ela zomba de mim e preciso
segurar com todas as forças para não perguntar se ela já viu Star Wars. Se
sim, provavelmente eu gozaria agora mesmo.
Escuto os sons de alguns recipientes sendo abertos e fechados, então
imagino que ela esteja escolhendo um dos potes de cremes disponíveis.
Finalmente se decidindo, Pérola se ajoelha comigo entre minhas pernas. Eu
a espero começar com uma massagem nas minhas costas, mas a primeira
coisa que ela pega são meus pés.
Meus pés com estrias.
Arregalo os olhos, tentando puxar o pé de sua mão, não obtendo êxito.
— Solta — peço.
— Qual o problema?
Enfio a cara no travesseiro, querendo morrer.
— Eu tenho estrias nos pés — minha voz sai sufocada pelo tecido.
— Não entendi.
— Tenho estrias nos pés — digo claramente, esperando que ela vá soltá-
los e se levantar depressa, mas Pérola apenas fica estética.
— E daí?
— E daí que você não precisa tocar meus pés.
A risada dela chega ao meu ouvido, mas parece até ofendida.
— Eu tenho estria na perna e na bunda, você por acaso teve nojo de me
tocar?
— Nojo? — olho para trás da forma que dá. — Tá maluca? Eu nunca
teria nojo de você.
— Então por que eu teria de você? — Pérola sorri, espalhando o creme
com aroma de baunilha nos meus pés, deslizando o polegar em meu
calcanhar, exercendo uma pressão que me faz gemer de puro alívio.
Minha Nossa Senhora, isso é bom.
Os dedos dela deslizam do calcanhar, passando pelo peito do pé e
seguem ao final de cada dedo, empurrando os nozinhos e tensões, os
desfazendo como mágica.
— Puta merda — grunho quando ela passa para o outro pé, refazendo o
mesmo processo. Mas é quando Pérola sobe para uma das minhas
panturrilhas, que eu suspiro vergonhosamente. Acho que poderia chegar ao
orgasmo bem por aí.
— Vou deduzir que esses sons de gatinho manhoso são sinal de que está
gostoso.
— Tanto que eu poderia chorar de felicidade.
Ela ri do meu exagero, continuando o processo até meu short a
atrapalhar. Pérola o puxa para baixo, mas mantém minha sunga, o que
agradeço nessa posição. Definitivamente não preciso que ela veja a pistola
na minha nádega direita.
Livre da peça, sinto suas mãos se apoiarem em minhas panturrilhas,
jogando o peso de seu corpo em cada uma conforme engatinha sobre meu
corpo. Sua mão direita sobe para a parte superior das minhas coxas, seguida
da direita, em um processo lento e em locais precisos, onde os músculos
cedem para o peso que exerce. Logo seu joelho precisa ser pressionado
contra minha perna para que ela continue sua escalada. Espero a pontada de
dor, mas ela não vem. Pérola não pressiona nada que cause algo além de
demasiado alívio.
Suas mãos tocam minha bunda e ela pressiona a parte mais alta, quase
no meu cóccix.
— Ah, minha nossa, pode colocar força aí — essa região costuma me
matar depois de horas sentado na frente do computador.
Aceitando a primeira sugestão que faço, ela afunda mais seu punho,
tornando minha visão turva com a sensação libertadora. Pérola prossegue
seu caminho, as mãos agora apoiadas no centro das minhas costas e seus
joelhos na parte baixa da minha bunda, apertando em um lugarzinho que me
faz contraí-la. Não é ruim, só é sensível.
Os cabelos dela que se desprendem do coque bagunçado que fizera mais
cedo, agora caem como uma cascata sobre minha pele, fazendo cócegas por
onde passa. Me sinto atraído e estimulado em todos os meus sentidos.
Tudo é sensorial demais. Tudo é ativado ao mesmo tempo. A música
aguçando minha audição, o perfume de baunilha do creme instigando meu
olfato e paladar, a iluminação arroxeada provocando minha visão, seu corpo
hábil sobre o meu testando meu tato… é demais. Demais e bom.
Céus, como é bom.
Sinto sua respiração próxima ao meu rosto e preparo meu espírito para
receber sua voz doce e sussurrada.
— Contraia seu abdômen, para que quando eu fique completamente por
cima, não pressione seus órgãos.
Assinto, tensionando meus músculos e prendendo a respiração. Espero
ansioso seu peso sobre mim, até que os joelhos dela passam a ocupar minha
região lombar. Profiro um suspiro extasiado, quase choramingando quando
ela os gira e pressiona, desfazendo qualquer nó existente da região.
É tudo relaxante demais, tudo feito para tranquilizar…, mas minha
ereção está cada vez mais dolorida, sinto cada vez mais necessidade de ter
mais do que estou recebendo.
A gula pode ser um pecado, mas eu estou disposto a arriscar minha
subida ao paraíso para saciar meu desejo por ela.
Assim que seu corpo abandona o meu, eu resmungo.
— Por que saiu?
— Deixa de ser manhoso.
— Isso tava muito bom.
— O caminho do tigre nunca falha, Honey.
— O quê?
— Caminho do tigre… é o nome para essa massagem.
— Hum, bem que eu senti uma gatinha em cima de mim.
Pérola gargalha da minha cantada brega, batendo no meu ombro.
— Essa foi péssima, João Guilherme.
— Você gosta de piadas ruins e estranhas.
— Por que acha isso?
— Porque você gosta de mim — brinco, esperando que ela ria ou
zombe, mas Pérola só aparenta ficar um pouco tensa e corada.
No entanto, não dura muito.
— Chega de conversa e se sente.
— Mas e a massagem? — eu realmente estava gostando.
— Eu só fiz isso para liberar alguns canais de tensão no seu corpo. Se
sente.
Assim que me posiciono sentado no colchonete de couro, ela me faz
esticar as pernas e se senta com as suas sobre as minhas, exatamente como
fez com que João Pedro e eu ficássemos aquele dia. Com ela, eu gosto.
— Apoie sua testa em meu ombro.
Meu peito se conecta ao dela e me deito sobre seu ombro, fuçando seu
pescoço em busca do perfume de chocolate.
— Abrace meu tronco, mas não me faça carinhos. Apenas sinta.
Aceno positivamente, ficando quieto.
As mãos dela começam na base da minha coluna, as digitais brincando
suavemente na região, circulando, desenhando, indo de uma extremidade à
outra. Com a ponta das unhas, ela as arrasta para cima, arrepiando minha
pele e causando calafrios.
Conforme minha respiração acelera, Pérola adota o mesmo compasso
com a sua, fazendo nossos corpos descerem e subirem no mesmo momento,
como se fôssemos um só. Das costas, suas ministrações atingem minhas
omoplatas e mesmo que eu goste de mais pressão na região, o seu toque
brando me relaxa em níveis que não compreendo.
Pérola mal está me tocando, mas é como se eu sentisse todo o meu
corpo ativo. Nossos sexos próximos, deixando o calor presente, nossas
pernas uma sobre a outra, os corações batendo no mesmo ritmo, as
respiração compassadas. A sinto como se fosse uma extensão do meu
próprio corpo, como se eu mesmo estivesse me proporcionando a carícia.
Seus dedos descem pelo meu braço, acariciando todo ele, não deixando
um único pedaço de pele sem seu toque. Ela é atenciosa, paciente, gentil.
Não entendo o motivo, mas minha garganta se fecha em vontade de
chorar. Talvez ela note pela respiração que eu travo.
— Não tem problema... são seus sentimento saindo, apenas deixe
acontecer.
Reluto no começo, mas conforme ela infiltra os dedos nos meus cabelos
e me faz um cafune tão calmo e cuidadoso, sussurrando ao meu ouvido o
quanto meu corpo é bonito e o quanto minha pele é gostosa de ser sentida,
eu não consigo reprimir. Uma lágrima escorre e não consigo explicar. Não é
tristeza, não é felicidade, é estranho. Mas tão bom, porque sinto como se
um nó estivesse sendo desatado da minha garganta.
Pérola beija meus ombros, um lado de cada vez, me fazendo erguer a
cabeça do dela. Meus olhos permanecem fechados, porque ainda sinto
vergonha de chorar. E também adivinhando meus pensamentos, ela beija
cada uma das minhas lágrimas, assim como cada canto do meu rosto. Testa,
centro das sobrancelhas, cada um dos meus olhos, nariz, boca, queixo. Nada
fica sem seu carinho. Eu me sinto... amado.
Ou melhor, me sinto digno de ser amado.
Suas mãos passam para o meu peito e eu permaneço de olhos fechados,
não mais pela vergonha de que ela veja o que faz comigo, mas porque eu
não quero nenhum outro sentido ativo, que não meu tato e audição.
— Você é tão lindo... — Ela espalma meu coração e mais uma
enxurrada de lágrimas escorrem. — Sempre lindo, mas agora... agora você
parece um anjo entregue dessa forma. Não parece real, Honey.
Ela beija sobre meu coração, inúmeras vezes, tantas e ainda assim tenho
vontade de pedir mais quando cessa.
Meu abdômen ganha sua atenção e ela percorre toda a tez, agora úmida
de algumas lágrimas que escorrem. Pérola acaricia minhas coxas, o interior
e as laterais, contorna minha virilha, mas não em um toque malicioso e sim
carinhoso. Sua mão passa sobre minha ereção coberta pela sunga, e
novamente não encontro luxúria, é apenas gostoso, apenas me faz sentir
cada parte do meu corpo, como se eu próprio o estivesse tocando a primeira
vez.
— Ele também é bonito. E puro. Também é parte do seu corpo, parte de
você... o trate com carinho, Honey.
Faço uma careta, sabendo essa parte é mais difícil de gostar. Eu
realmente não gosto de ter algo desse tamanho. Era constrangedor quando
era um adolescente e não conseguia controlar uma ereção e todos notavam.
Ainda é constrangedor, como agora, que mesmo não estando pensando em
sexo, ele está duro.
Pérola me faz abrir os olhos, me obrigando a olhar nos seus.
— Procure nos meus olhos agora, algo que não seja bom em relação a
você. Procure ver se eu sinto receio, estranheza ou repulsa por ele. — Ela
infiltra sua mão por dentro da sunga e travo o maxilar. — É bonito, João
Guilherme. Não é errado. Não é impuro. É seu corpo. E seu corpo é lindo,
belo e certo. Nunca pense o contrário. Não se sinta mal por ele estar assim
agora... isso é apenas irrigação sanguínea, Honey. Eu estou vendo seu
sentimento real de agora nos seus olhos, nos seus gestos. Não se culpe por
seu corpo reagir naturalmente. Não o reprima.
Ela o massageia de cima a baixo, o toca em cada veia sobressalente,
cada centímetro.
— Olhe para ele. Sem julgamentos, apenas olhe o quanto você é bonito.
Engolindo em seco, abaixo meus olhos, a vendo massagear minha
ereção, seu dedos gentis sobre a pele, o polegar resvalando contra a glande,
fazendo a pele a revelar por completo.
— Segure você — Pérola substitui sua mão pela minha, mas me
conduzindo a me tocar como nunca havia antes.
Sim, eu me masturbo. Mas nunca me acariciei. Nunca sem pensar no
meu sexo como algo que eu atingiria um prazer mundano e que
provavelmente me sentiria errado depois. Perdi a conta de quantas vezes me
toquei e pedi perdão depois. Ela está certa, eu me sentia sujo, pecaminoso.
— Nada do seu corpo foi feito para ser desperdiçado. Tudo tem seu
propósito, cada partezinha existe por alguma razão. E se elas podem
oferecer bem-estar e prazer, não há como ser errado. Não há como o seu
corpo ser sujo em apenas lhe proporcionar algo tão bom como o orgasmo.
Esqueça o que ouviu sobre isso sua vida toda. Se tocar é lindo, é uma forma
de amor consigo próprio.
Minhas pálpebras tremulam e continuo me tocando, de fato reparando
em meu sexo, sem vergonha de achar estranho ou bizarro.
— Você só pode conhecer o corpo de outra pessoa, quando for o melhor
guia pelo seu. Só assim você saberá o que te dá prazer, o que não dá, quais
são seus limites, quais são seus gostos. É você quem dita até que ponto eles
chegam.
Aceno, engolindo a saliva. Uma gota começa a molhar minha glande e
Pérola leva o próprio polegar a ela, recolhendo em seu dedo e a
aproximando de sua boca. Franzo o cenho, a encarando receoso.
Seu sorriso é gentil.
— Eu não tenho nojo de você.
Ela desliza o polegar sujo contra seus lábios e a visão deles molhados
com minha essência tornam minha visão turva.
Pérola passa a ponta de sua língua pelo lábio inferior, provando de parte
do líquido. Eu assisto à cena hipnotizado, incapaz de desviar os olhos.
— Me beija — ela pede. — Me beija e prove de você... não há nada de
errado de conhecer seu sabor, Honey.
Assinto, aproximando o lábio do dela. O capturo com mais afinco e
desejo do que imaginei que sentia, a limpando de toda minha essência.
Pérola geme baixinho, me permitindo deixá-la limpinha. Me afasto da sua
boca ofegante e com a visão embaçada. Mais das gotas escapam da minha
glande, tamanho o prazer que sinto, as veias latejando dolorosamente,
implorando por qualquer libertação. Mas eu ainda não a quero dar. Eu quero
esperar.
Pérola repete o gesto anterior, pegando o gozo com seu dedo, mas o
levando diretamente para meus lábios dessa vez.
— Posso? — confere.
— Pode — consinto.
Meu lábio inferior é melado, logo o superior recebendo a mesma
atenção. Minha língua captura uma gota que começa a escorrer e não me
demoro a puxar Pérola para minha boca, a beijando e deixando que também
me sinta, que sua saliva e sabor se misturem ao meu. Grunho extasiado,
sentindo cala miligrama do meu sangue ferver e cozinhar meus limites,
meus dogmas, meus preconceitos.
Eu quero apenas sentir. Quero apenas aproveitar o beijo regato a mim e
ela. Quero me deleitar na sensação das minhas mãos e delas envolta do meu
pau, trabalhando juntas.
— Me deixa te ensinar — ela interrompe os movimentos
desengonçados.
— Só não para de me beijar, bebê.
Estou sedento por ela. Ela conseguiu desencapar todos os fios que
espreitam meu interior, todos me fazem sentir um choque ao ser tocado,
todos estão prontos para eletrocutar meu autocontrole.
Provando que não vai abandonar minha boca, Pérola chupa minha
língua, seu gesto sendo sentido na cabeça do meu pau, como se fosse ela a
estar sob o domínio da sua carne macia e aveludada. Gemo em sua boca
quando ela envolve minha extensão com as duas mãos, as fechando sobre a
base e girando cada uma em uma direção diferente, como se espremesse
meu pau.
— Puta que pariu — ofego contra sua boca, trincando o maxilar.
— Eu sabia que você não ia conseguir beijar com isso, Honey —
graceja orgulhosa do que faz comigo.
Sem aviso prévio, Pérola empurra meu peito para que eu me deite sobre
o colchão e ela monta sobre minhas pernas. O pote de óleo é aberto e Pérola
o despeja na minha virilha, gota por gota. Assisto a cena esperando que elas
toquem meu pau.
A risada que escuto me garante que ela vai me torturar antes disso.
Pérola joga o pote em qualquer canto, suas mãos escorregadias
descendo pelo meu abdômen, pelo vale dos músculos da minha cintura, até
cada uma de suas mãos deslizar por um lado da minha virilha, pressionando
os pontos no interior da coxa que me fazer puxar o ar com força entre os
dentes e jogar o pescoço para trás.
A risadinha dela me faz sorrir.
— Você adora me ver sofrer, não é?
— Não. — Pérola transfere sua massagem para minhas bolas, as
melando do óleo, que começa a aquecer minha pele. — Eu gosto de te ver
implorar para gozar.
— Não vai demorar muito para eu começar a me humilhar por isso.
— Eu sei.
Seu tom de voz convencido estica meus lábios. Minha mandona.
Pérola despeja mais óleo em suas mãos, as esfregando para aquecer o
líquido. Ela me faz afastar as pernas e confesso que fico um pouco sem
graça com a exposição, mas a mão dela se aproximando do meu períneo
leva embora qualquer constrangimento.
— Lembre-se, seu corpo é lindo... todo ele.
O dedo dela pressiona a região, causando espasmos em minha coxa e
contração do meu abdômen. Mordo o lábio para conter o gemido, mas
também para me controlar. O dedo de Pérola empurra ainda mais,
estimulando minha próstata. Meu pau suja minha barriga com o gozo que
escorre, e Pérola logo trata de segurar minha base e espalhá-lo por toda a
extensão.
— Não se toque apenas aqui — ela aperta minha base e grunho
estrangulado. — Se toque aqui também — ela pressiona minhas bolas. — E
aqui... — movimenta os dedos em círculo sobre meu períneo. — E por que
não aqui...
Eu sei aonde ela está indo. Mas por algum motivo, não a impeço.
Talvez porque eu queira e só não consiga admitir ainda.
Sua digital escorregadia pelo óleo desliza para baixo, tocando minha
entrada. É impossível não retrair e minhas pernas quererem se fechar.
Pérola sobe o olhar ao meu, perguntando silenciosamente se pode continuar.
Eu assinto fraquinho, com as bochechas esquentando.
Mas o sorriso satisfeito que ela me dá é o bastante para deixá-la fazer de
mim o que bem entender.
Pérola não tenta introduzir seu dedo, ela apenas contorna a região até
então inexplorada, brincando como fez com meu umbigo... ah, agora eu
entendi. A mensagem subliminar por trás. Garota esperta.
Ela se diverte em meu provocar, enquanto sua outra mão trabalha no
meu pau, girando na base, só porque a diaba sabe que é muito mais sensível
para mim. Ela bem que podia ter mais uma mão para continuar no meu
períneo... sou obrigado a confessar que a região me dá mais prazer que
qualquer outra.
Completamente aturdido, vejo Pérola me deixar sozinho na sala e voltar
com algumas coisas em suas mãos. Nem ouso perguntar o que são, porque
talvez minha mente fechada ainda me atrapalhe.
E no momento, eu não quero que nada atrapalhe. Quero receber tudo
que essa sereia estiver disposta a me entregar.
Ela me olha de cima, passando seus olhos pelo meu corpo, com um
sorriso mais que satisfeito e predatório. É como estar na mira dos olhos de
uma onça, prestes a te atacar.
 
Eu sempre considerei o corpo humano algo magnífico, de uma perfeição
à parte da natureza. Mas nunca me passou pela cabeça que eu fosse venerar
um da mesma forma que estou me deleitando apenas com a vista que tenho
de João Guilherme deitado sobre o couro vermelho, com sua pele brilhando
escorregadia do óleo, seu membro deitado contra seu abdômen com as veias
saltadas, escorrendo seu pré-gozo, e os olhos famintos e carentes na minha
direção, apenas esperando meu próximo movimento.
Eu adoraria um quadro dessa cena, com o máximo de detalhes que uma
pintura conseguisse representar.
— Apreciando a vista? — zomba de mim.
— Bastante. — Cruzo os braços, virando meu rosto de um lado para o
outro.
— Então será que pode apreciar mais de pertinho? Eu preciso de você,
bebê.
Aperto minhas coxas. Estou começando a ficar numa situação tão
deplorável quanto a dele, mas essa merda de menstruação tinha que vir logo
agora... não que eu tenha receio de me sujar, mas o fato é que fico sensível
de um jeito não agradável nesse período. Sexo para mim nesses dias é mais
doloroso do que qualquer outra coisa. Já não posso dizer o mesmo de Manu.
Ela vira uma coelha.
Agacho-me em sua lateral, deixando ali os dois objetos que busquei no
playroom. Gui não olha para eles, mesmo que eu saiba que está curioso. Me
curvo sobre seu rosto.
— Fique tranquilo, Honey. Não vou fazer nada demais.
— Faça — ele balança a cabeça. — Faça o que quiser fazer.
Solto uma risada descrente, o observando de perto. Não resisto a beijar
seus lábios antes de me sentar entre suas pernas, as afastando o suficiente
para ter acesso ao que quero, sem o deixar exposto demais e causar
desconforto. Não dá para tirar anos de dogmas em uma única noite.
— Você vai sentir algo vibrar — pego um dos brinquedos que escolhi.
— Mas não se preocupe, confie em mim. Eu sei ler os seus sinais.
Ele assente, com uma ruguinha de preocupação na testa.
Ligo o pequeno vibrador, o deixando escutar o som num primeiro
momento. Gui fecha os olhos, parecendo ter mais facilidade em lidar com
seu constrangimento. Eu juro que gostaria de pegar pelo pescoço quem o
fez acreditar que é menos magnífico do que é. Esse homem tem todos os
atributos para ser alguém cheio de si, ou ao menos com um ego
impressionantemente alto, mas ele tem uma imagem deturpada de si
mesmo. Vou acabar com isso hoje.
Levo o vibrador para seu abdômen, querendo que ele se acostume com a
sensação em um local menos sensível. Seu corpo salta no colchonete pelo
toque inesperado, mas se acalma em seguida, percebendo que nada aqui
representa uma ameaça.
— Basta me dizer para parar se for demais.
Ele assente rapidamente, mal se importando com minhas palavras.
Vou descendo displicentemente o objeto vibrante por seu corpo, o
passando em sua virilha, interior das coxas, em sua pélvis, escutando os
grunhidos e gemidos sôfregos. Seu membro se contrai contra o abdômen e o
seguro novamente, com a boca salivando para o ter entre meus lábios. Estou
sonhando com isso desde a nossa primeira noite.
Mas antes, eu preciso fazer ele gozar de outras formas.
Passo o vibrador levemente por suas bolas e seu quadril se eleva, assim
como suas mãos procuram algo em volta ao qual possa se agarrar. Como
não encontra tecido, João Guilherme segura as laterais do colchonete, os
nós de seus dedos tornando-se brancos. Sorrio, movendo a mão em sua
extensão, batendo para ele nem perto do que sei que precisa.
— Pérola... por favor.
Não aumento a velocidade dos meus dedos, mas aumento a velocidade
do vibrador, escutando seu rosnado e a movimentação de seu corpo pelo
couro. O suor começa a aparecer em gotículas por sua testa, pescoço e
abdômen.
Movo o objeto para cima e para baixo, e sei que pode sentir as vibrações
em seu pau, porque minhas mãos captam o leve tremor. Sua glande escorre
cada vez mais gozo e o espalho para ajudar em meus movimentos. Faço sua
pele quase cobrir a ponta, a voltando a esticar até embaixo.
— Merda — ele grunhe nervoso e sei que estou atingindo meu objetivo.
— Calma, Honey.
— Calma o caralho, bate uma pra mim direito.
Gargalho cinicamente. Ele quer atingir meu ego para me incentivar.
Bom, mal sabe ele que me provocar é sempre um caminho perigoso.
Perigoso, mas com certeza delicioso.
— Direito como? Assim?
Estreito meus dedos, sem pena de girar minha mão em sua extensão, o
bombeando sem chegar até a ponta, apenas empurrando para ela toda a
tensão. Conduzo o vibrador para outra região, o posicionando bem abaixo
de suas bolas, contra o pequeno espaço de seu períneo. O quadril de João
Guilherme descola do colchonete, empurrando seu pau contra minha mão e
o objeto a pressionar ainda mais.
— Misericórdia, cacete, meu Deus.
— Está rezando ou praguejando?
— Os dois.
Sorrio, acelerando minha mão, não a deixando sair muito do mesmo
lugar, mas a bombeando tão rápido e firme, que ele começa a dizer coisas
desconexas e a sujar minhas mãos com seu líquido.
Apoio o vibrador com o polegar e o indicador, invertendo minha mão
para que meu mindinho toque sua entrada. Ela tensiona com a pequena
invasão, mas João Guilherme não me afasta. Acaricio em volta, nunca a
introduzindo, mas o deixando querer, o deixando desejar de fato que eu o
foda. E ele vai querer. Até o fim da noite, vai implorar por isso.
— Vamos, Honey, dê o seu primeiro orgasmo pra mim. Goza na minha
mão, querido.
Procuro seu rosto, o vendo jogar a cabeça para trás, as veias de seu
pescoço completamente saltadas e grossas, suas mãos agarrando a beirada
do couro, sua pélvis fodendo a minha mão para ter o movimento que deseja,
ao mesmo tempo que buscando maior atrito com meu dedo.
O empurro brandamente, o escutando xingar alto. Clico no último botão
do vibrador e João Guilherme explode em minha mão, seu gozo atingindo
sua barriga, escorrendo por minha mão e espirrando algumas gotas no couro
vermelho. Aprecio a cena, me sentindo cada vez mais excitada, meu clitóris
latejando e ardendo, reclamando por estar sendo negligenciado.
Não espero que ele tenha os últimos espasmos de seus orgasmo, para
descer minha boca em sua glande, a chupando para recolher seu gozo.
— Porra, Pérola... — ele é pego de surpresa, abaixando o rosto para me
olhar, com as sobrancelhas unidas. Sorrio com a ponta em minha boca,
piscando com um dos olhos. — Eu achei que...
Pressiono meus lábios mais fortemente e ele perde as palavras no meio,
puxando o ar contra os dentes.
— Eu te disse que faria gozar várias vezes e de várias formas... e eu
nunca brinco quanto a isso.
— Percebi.
Ele engole a saliva, afastando meu cabelo da sua frente, para que possa
assistir minha língua rodar a ponta macia e melada, a deixando
completamente limpa. O encarando sob os cílios, faço o percurso inverso
para sua extensão, o lambendo em cada mínimo cantinho em que seu gozo
o molhou. Gui não desvia o olhar da cena um só segundo e eu tenho certeza
de que demorará muito para esquecer esse momento.
Chegando às suas bolas, coloco uma a uma em minha boca, as
chupando e movendo em meus lábios, trabalhando em seu pau com uma das
mãos, enquanto a outra segue para sua entrada, a provocando como antes.
Gui não consegue se manter sobre os cotovelos e cai novamente sobre o
couro, me dando a conclusão de que ele vai sentir muito prazer com o que
pretendo fazer. Deixo a pontinha do meu dedo mindinho se aprofundar e ele
retesa, seus músculos tensos pela invasão até então nova. Volto a boca para
seu pau, os mamando para que se desconcentre de sua mente e foque nas
sensações. Seus dedos se fecham em meus cabelos, os prendendo, mas não
me empurrando para baixo.
Não me importaria se ele o fizesse. Sempre me importei com outros
caras, nunca permiti que ditassem seu ritmo..., mas agora, eu até anseio por
isso. Eu simplesmente não me importo de soltar um pouco as rédeas do
controle. E isso em assustada um pouco.
Meu pescoço sobe e desce, e relaxo a garganta quando sua glande bate
contra ela, o empurrando para dentro o máximo que consigo, até meus
olhos lacrimejarem e eu subir de volta, recuperando o ar. Gui morde o lábio
quase o ferindo, me observando como se eu fosse uma espécie de deusa
inalcançável.
Sorrio, pressionando mais meu dedo, o girando com facilidade pelo
lubrificante. Gui balança a cabeça, sorrindo bobamente, não se importando
que seu prazer esteja vindo de um lugar que até então ele considerava
proibido. Só essa constatação eleva meu tesão à níveis que até mesmo eu
desconhecia.
O mesmo movimento circular que faço com meu dedo, repito com a
ponta da língua em sua glande, brincando com a pequena abertura ao
centro, até o ver desesperado e com o rosto em um vermelho bordô.
— Vamos, Honey. Me peça o que quer. Eu estou aqui para o seu prazer,
me diga como quer chegar a ele.
Ele olha para seu pau, erguendo sua pélvis contra minha mão.
— Meu chupa — murmura quase dengoso.
— Assim? — mamo sua glande, sabendo que não é a isso que ele se
refere.
João Guilherme nega, com seus dedos puxando mais meus fios, se
tornando ousado. Ele empurra minha cabeça contra seu pau, o fazendo
atingir minhas bochechas. Espero que vá mais, mas consigo sentir a dúvida
em seus movimentos.
O encaro, erguendo uma sobrancelha, como quem diz: seja claro,
querido.
— Me deixa foder sua boca — confessa, implorando. — Eu quero foder
sua boca, Calypso.
Cacete. Choramingo o chupando, assentindo para que faça exatamente
isso.
Ele une todo o meu cabelo em punho e quando relaxo minha garganta,
ele ergue sua pélvis para cima, enquanto me faz descer sobre seu pau, não
se importando em ser delicado. Meu olhos reviram de prazer, o vendo se
permitir fazer aquilo que o corpo pede. Minha saliva escorre por sua
extensão, virilha, até aumentar a lubrificação em sua entrada, que eu
mantenho no ritmo de antes. Ele vai ter que se abrir sobre tudo se me quiser
exatamente como deseja.
Os sons dos meus engasgos se unem à música instrumental, assim como
aos rosnados desconexos de Gui, que fode minha boca como eu mereço.
Puta merda, meu maxilar vai ficar dolorido por dias, tamanha a forma como
tenho que abrir minha boca para abrigar a ereção que contrai contra minha
língua. Suas veias latejando aumentam minha excitação e choramingo cada
vez que sua glande ultrapassa a barreira da minha úvula, escorrendo para
baixo e interrompendo qualquer chance de respirar. Meus olhos lacrimejam
e as lágrimas escorrem pelo meu rosto, mas o homem que me assiste não
está nem pouco triste com isso, ele me devolve um sorriso tão satisfeito e
malicioso que eu poderia gozar ao ver essa expressão pela primeira vez.
Meu nerd gosta de estar no controle para foder uma boca. E pela
primeira vez na vida, deixo um homem faze isso.
Eu sinto suas veias cada vez mais cheias e os espasmos mais constantes
e sei que ele está próximo de gozar uma segunda vez. Estico a mão para o
lado, pegando o segundo brinquedo que escolhi, o mostrando para ele o
pequeno plug. Seu cenho se franze em confusão, mas quando o guio para
sua entrada e encaro seus olhos, ele entende para o que serve.
Não é grande e muito menos largo, isso é para iniciantes, mas eu
adoraria que ele aceitasse ver como pode sentir prazer assim.
Me abaixo contra seu pau, o engolindo o máximo que consigo,
esperando que ele me dê o comando.
— Faça — diz estrangulado, se segurando até o último segundo para
gozar.
Empurro a pontinha do plug contra sua entrada e sinto suas pernas se
apertarem ao meu redor, negando a intrusão. Espero que ele relaxe,
voltando a boca para sua glande, a mamando de modo a distraí-lo. Gui volta
a foder minha boca e entendo isso como um sim.
Empurro mais o objeto dentro dele, mal o introduzindo de fato.
Ele está quase, eu sinto. E essa nova invasão o deixou ainda mais
enlouquecido em seu próprio prazer.
— Olha pra mim — ele comanda e o encaro sob os cílios.
— Me fode como eu vou te foder.
Sorrio, o deixando se afundar na minha boca, da mesma forma que eu
afundo o objeto em seu corpo, o girando, torcendo, entrando e saindo de sua
abertura.
— Eu vou gozar — ele tenta me tirar de sua boca, mas empurro mais o
plug, o deixando claro que é exatamente isso que deve fazer. Mas na minha
boca.
Prendo meus lábios ao seu membro, querendo ver quem vai ousar me
tirar daqui.
Meu maxilar estala quando desço e subo ainda mais rápido, ditando o
ritmo que ele vai perdendo por estar tão perdido em suas reações. Ele goza
na minha boca segundos depois, com menos líquido que da primeira vez,
mas ainda o fazendo escorrer pela lateral da minha boca. Paro de mover o
plug dentro dele, mas o deixo ali, não o livrando dessa reação.
Ele me encara ofegante, seu cabelo desgrenhado, a pele encharcada de
suor, os lábios machucados por seus dentes.
— Vem cá — me puxa para um beijo, lambendo seu próprio gozo que
escorre da minha boca. Eu gemo quando ele suga minha língua, montando
sobre ele, sentindo seu pau latejar contra minha boceta.
Levo meu beijo para sua orelha, me aproveitando para saborear cada
parte dele.
— Esse foi o segundo — digo ofegante.
— Tem mais? — ele se surpreende e seguro a risada. — Eu nem sei se
consigo gozar mais alguma vez.
Movo meu quadril levemente contra o dele, sabendo que meu short
pode machucar seu membro descoberto.
— Eu tenho certeza de que ainda tem uma gotinha de mel que falte você
me entregar.
— Você vai me matar — ele ri, completamente abobalhado.
— Morrer de orgasmo... deve ter jeitos piores de partir desse mundo.
— Mas e você? — ele limpa meu lábio com o polegar, de forma
carinhosa. Nem parece o homem que estava fodendo minha boca sem pena.
— Eu quero que você goze também. Me deixa te fazer gozar.
Mordo o lábio, negando com a cabeça.
Pedindo desse jeito, eu deixo até ele me foder no teto.
— Deixo..., mas não do jeito tradicional — pisco.
— Com você nada nunca é tradicional.
Exato, Honey.
Me estico para pegar o vibrador, o acionando na velocidade média.
— Se deite completamente.
Ele me obedece sem hesitar.
— Eu vou colocar o vibrador entre nós dois e você vai ter o que me
pediu mais cedo.
Ele olha para meus seios, entendendo o que quero dizer.
Monto seu corpo, sentando um pouco abaixo de seu membro, para
encaixar o vibrador de modo a estimular meu clitóris e seu períneo. Gui
puxa o ar entre os dentes, muito mais sensível que eu, devido aos orgasmos
recentes e pelo objeto o introduzindo. Inclino corpo para frente e ele agarra
meus quadris, abrindo os lábios para receber meus seios.
Gemo quando sua língua gelada toca a região, mas ele se afoba em
sugá-lo.
— Assim não, querido. — Faço um carinho em seu maxilar. — Sabe
quando você toma um milkshake e o líquido é difícil de subir pelo canudo?
Sua língua pressiona a base dele e faz pouco movimentos, deixando resto
com a pressão da sua sucção, que vai subindo o doce gelado aos poucos até
que se derrame em sua língua. Entende?
Ele acena, apoiando a língua na base do meu mamilo sem o piercing, e
o chupando gradativamente, a carne aveludada produzindo ondulação
enquanto me mama. Meu quadril se move em direção ao vibrador, o
empurrando contra Gui, sabendo que isso faz o plug emitir as mesmas
vibrações. Ele grunhe, fechando sua boca contra meu seio, o chupando uma
única vez, para passar para o real objeto de seu desejo.
A pecinha metálica que ele não cansa de observar. Gui a lambe em um
primeiro momento, percorrendo minha aréola, batendo sua carne molhada
contra o ponto inchado, que se enruga e estica às suas ministrações.
Ah, merda. É exatamente isso, Honey.
Não escondo meus gemidos, para que ele saiba que está no caminho
certo. Ele me faz movimentar o quadril contra si, e abaixo a mão entre
nossos corpos, massageando seu pau conforme ele dita o ritmo com o qual
me movo.
A vibração contra minha roupa é ainda melhor. Nunca gostei das
sensação diretamente contra minha pele, assim é infinitamente melhor, com
o tecido mantendo meu clitóris imóvel e apertado e a vibração indireta o
fazendo tensionar.
Sinto os dentes de Gui contra meu mamilo e seus olhos sobem aos meus
em busca de instrução. Sorrio, segurando seu queixo e o fazendo levá-lo
para trás, para que seus dentes inferiores fiquem na base do meu mamilo,
enquanto os de cima fiquem mais para o meio.
— Sempre morda assim. Não deixe seus dentes alinhados um ao outro
ou vai me machucar. Dessa forma, você pode morder, porque meu mamilo
será pressionado em regiões diferentes e a pressão não vai ser ruim.
Ele assente, testando o que ensinei. Apoio a testa na parede, o deixando
me mamar e morder, procurando pelo botão do vibrador. Gui me ajuda e
aciona a velocidade máxima, nós dois gemendo unidos. Meus corpo
estremece sobre o dele, e meu outro mamilo ganha a atenção do seus dedos,
que puxam e o giram apostando nos movimento circulares.
Eu amo como ele aprende rápido.
— Ah, cacete! — Me agarro aos cabelos dele, soltando seu pau para
buscar o meu próprio prazer. Gui solta meus seios e me ajuda a me esfregar
contra o vibrador, do mesmo modo que o empurrar contra ele.
Irritada com a falta de jeito, me ergo depressa, o deixando confuso.
— Fica em pé.
Eu devo estar maluca, ou o tesão subiu para minha cabeça, mas farei
algo jurei de pé junto nunca fazer. Veja bem, eu sempre fico por cima,
sempre estou no controle, sempre comando. Nunca sequer deixei um
homem me foder estando sobre mim. E principalmente, eu achava que
nunca fosse chegar o dia que um homem me teria de joelhos à sua frente.
Mas esse dia chegou.
Me ajoelho no chão, vendo Gui se erguer ainda que sem entender.
O coloco sobre minha frente, seu pau contra meu rosto. Minha nossa, a
natureza caprichou mesmo nesse aqui. É, ele merece que eu me ajoelhe. Um
pau desse deve ser reverenciado.
Chega a ser injusto.
O encaixo entre meus seios, mesmo sabendo que não existe muita carne
aqui para os pressionar. Mas é sobre manter a esportiva e a pose... o que
meu corpo não contribui, meu entusiasmo compensa.
— Só faltou você gozar nos meus seios, Honey — pisco, ligando o
vibrador e o encaixando entre minhas pernas, agora sim conseguindo o
levar exatamente para onde quero. Gui dobra um pouco os joelhos para
ficar na altura certa e eu aperto meus seios contra seu pau, mamando a
glande avermelhada das nossas brincadeiras.
Ele segura meu cabelo, admirando a cena. Eu apenas sei revirar meus
olhos, concentrada em meus próprio orgasmo. Ele usa sua mão para
acariciar meu rosto, meu lábio e quando vejo que ele está próximo de seu
terceiro orgasmo, o tiro da boca e coloco as mãos dele sobre seu membro.
— Bate uma pra mim, Honey... — Ofego, pressionando o vibrador. — E
não me deixe terminar a noite com os seios limpos.
Pisco, o deixando entender exatamente o que quero.
Gui se masturba para mim e eu pressiono o vibrador contra meu clitóris,
grunhindo quando minhas coxas se contraem. Eu não tiro os olhos das mãos
sobre o membro rígido e grosso, a forma como ele o aperta com força,
como castiga sua glande, como seu pré-gozo suja seu abdômen trincado... e
eu gozo quando ele se derrama sobre meu seio, o sujando exatamente como
pedi. Gui os encara como se visse um baquete pessoal e levo a mão para seu
gozo que escorre do meu mamilo, o recolhendo e levando até minha boca,
chupando meu dedo até o ter limpo de seu prazer.
Gui dá um passo para trás, sem equilíbrio e se vira de costas, apoiado na
parede para não cair. Todo seu corpo solavanca e ele pende a cabeça para
frente, respirando alto. Analiso suas costas marcadas com minhas unhas, o
suor escorrendo, os dois furinhos que ele tem no cóccix e... espera, aquilo é
um sinal de nascença na nádega direita?
Estreito os olhos, me aproximando.
— Isso é uma pistola?
— Ah, merda! — ele se vira depressa, cobrindo a bunda. — Não era pra
você ver.
— Por quê?! — Largo o vibrador, levando alguns segundos para
conseguir me colocar de pé com os tremores nas pernas. — Deixa eu ver.
— Não! — Seu rosto queima.
— Querido, você me deixou colocar um plug na sua bunda, mas não vai
deixar eu ver uma marquinha de nascença?
Ele faz careta, pensando.
— O pior é que você tem razão. Mas, prometa que não vai rir de mim,
nem me chamar de ponto 40!
Seguro a risada. Assim fica difícil.
— Ok, prometo.
Gui suspira, se virando de costas, onde vejo a manchinha em um tom
amarronzado bem mais escuro que sua pele, em formato de pistola.
E eu não me aguento. Ataco.
— Ai, caralho! Você mordeu minha bunda! — Gui tropeça de susto e
acaba pisando no pote de lubrificante, torcendo o tornozelo de um jeito feio.
— Cuidado! — o seguro para não cair, mas é inútil.
Ele cai. De bunda no chão. Com o plug dentro.
Cubro a boca, com os olhos saltados.
Ele vai me matar.
— Pérola Duarte!
— Ai, desculpinha...
Corro para colocar minha blusa, a deixando toda suja, beijando a
bochecha dele depressa.
— Para tirar o plug, é só você se deitar de cócoras e puxar o fiozinho,
ok?
— Pérola, volta aqui! Se eu sair manco vão pensar o quê?
Paro na porta só para soprar um beijo e falar:
— Que você foi bem fodido. E não é uma mentira.
Saio correndo enquanto gargalho e ele grita que se tiver que ir até a
enfermeira vai contar que fui eu. Eu duvido que ele conte que tá com o cu
ardendo.
Fofinho!
 
— Eu não acredito que você vai me obrigar a perder um dia todo de
viagem por causa do jogo do Corinthians.
João Pedro está uma pilha de nervos com a possibilidade de ser
rebaixado para a Série B e está fazendo todos os rituais possíveis e
inimagináveis para garantir a vitória do time contra o Vasco.
É, contra o Vasco. Tem uma certa vascaína que só não está me
perturbando mais que João Pedro porque não divide o mesmo quarto que
eu. Mas Pérola já mandou uma foto usando a camisa do Vasco para o grupo
de nós quatro que ela criou, intitulado “Somos todos vascaínos”. Bom, eu
não sou, mas considerando que o jogo é entre ele e o Corinthians, eu sou
obrigado a torcer pelo Vasco.
Manuela já a xingou três vezes para mudar o nome do grupo.
— Eu tô desesperado, Joca! — Ele fuça mais uma vez a sua mala.
— Com o quê? — indago, esticando a coluna. É incrível como uma boa
massagem pode destravar vinte e cinco anos de tensão acumulada. Isso e é
claro, três orgasmos seguidos. No final, eu já nem tinha mais esperma, acho
que meu pau só chorou de felicidade.
— Eu não tô achando a minha cueca da sorte!
— Deve ser porque você não trouxe.
— Eu nunca esqueço minha cueca da sorte. — Sua cabeça vai parar
dentro da mochila, talvez na esperança de ser a bolsa da Hermione em
Relíquia da Morte.
— Me dá aqui, deixa eu olhar. — Estendo a mão, largando o meu
mangá na cama. Um homem não pode ler seu Detective Conan[41] em paz.
— Se você achar, eu te dou um beijo.
— Isso não é um bom incentivo.
Procuro em todos os bolsos furados da mochila surrada, encontrando de
tudo um pouco, embalagem de chiclete vazia, duas moedas de vinte e cinco
centavos, um panfleto de supermercado com as promoções do dia, uma
caneta sem tampa, e claro, o seu pacote de camisinha, ainda intacto. Minha
língua coça para zoar o fato de até eu estar tendo uma vida sexual aqui e ele
não, mas eu sei que não é muito seguro irritar o JP em dia de jogo do
Corinthians. Ele fica tão pilhado que é capaz de nunca mais falar comigo na
vida por causa de uma simples brincadeira.
— É, você realmente não trouxe sua cueca da sorte.
— Tem certeza?
— Claro, ela é amarela com estampa do Piu-Piu. É impossível não ver
essa coisa.
— Como eu vou ver o jogo agora? — ele empalidece, se jogando na
cama.
— Com os olhos?
— Só porque tá transando fica aí de gracinha.
— Preferia quando eu tava na seca e depressivo?
— Eu preferia achar a porra da minha cueca da sorte.
— Você não trouxe, caralho! Qual a próxima simpatia?
Meu amigo leva a mão ao queixo, batucando seu dedo contra ele.
— Hum… deixa eu pensar. Eu já lavei meu cabelo, tirei a sujeira de
baixo da unha, não tomei café, não posso usar minha cueca da sorte, então
só falta… — Seus olhos dobram de tamanho. — Ah, vê se a Taylor Swift
lançou álbum!
— Quê? — Pego o celular que ele joga nas minhas mãos, me obrigando
a pesquisar a data do último lançamento de álbum da cantora.
— Por que o interesse repentino em uma cantora de pop?
— Não é qualquer cantora de pop, é simplesmente a padroeira do
Corinthians.
— Como assim? Nunca tinha ouvido falar isso.
— Claro, você não é Corinthiano! A gente conta o milagre, mas não
conta o santo, filho.
— Se não me explicar eu não vou pesquisar se ela lançou porra
nenhuma. — Enfio o celular dentro das calças, esperando sua resposta.
— Só pra constar, eu enfiaria a mão aí pra pegar. Depois de conferir o
estado do seu pênis por duas semanas inteiras, eu não tenho mais essa de
espaço pessoal contigo. — Reviro os olhos e cruzo os braços, esperando a
porra da explicação. — Agora aos fatos, na grande maioria das vezes em
que a Taylor lança um álbum na semana de jogos do Corinthians, o timão
ganha.
— Hummm… — Entro no google pesquisando por álbuns próximos,
mas ao que parece ela só fez um lançamento de regravação há duas
semanas. — Precisa ser na mesma semana?
— Preferencialmente.
— Então você se fodeu, porque não tem cueca e nem álbum da sorte.
— Droga, Taylor! — Ele cruza os braços. — Vou tirar sua foto da
minha carteira.
— Você tem uma foto dela na sua carteira? — É piada, né?
— Tenho, vestida com a blusa do Corinthians, olha — ele me abre sua
carteira, e no espaço da foto 3x4 que as pessoas normais colocam a família,
ele meteu a Taylor Swift corinthiana.
— Você é maluco.
— Como se você não ficasse todo eriçadinho quando tem jogo do seu
porco né.
— Eu não preciso ficar. — Sorrio lateralmente, mesmo correndo o risco
de ganhar um soco. — O Palmeiras está muito bem colocado.
— Sai daqui! — Ele me empurra para fora da cabine. — Vai procurar a
sua vascaína esotérica e mandar ela trocar o nome daquele grupo.
— Eu não. — Gargalho enquanto sou enxotado do quarto que eu
paguei. — Hoje eu sou vascaíno mesmo.
— Você vai me trair? Nem Judas, seu pau no cu.
— Entre torcer pro Vasco e torcer pro Corinthians, eu fico com aquele
que não é meu rival de Estado, bombonzinho — debocho.
— Eu vou enfiar o dedo na sua bunda! — A porta bate quase na minha
cara.
— Entra na fila...
Bom, é melhor o dedo, do que um plug.
Não me leve a mal, eu amei cada mísero segundo do que aconteceu há
duas noites, mas tive um trabalho desgraçado para tirar aquele negócio da
minha bunda. Eu tive que recorrer à tática do JP de usar a câmera do
celular. As coisas que ele viu... deve tá traumatizado até agora. E os hackers
que espionam através da câmera nunca mais vão querer invadir meu celular.
Caminho mancando pelo corredor.
Ah, é... além da bunda, eu ainda torci meu pé no tubo de lubrificante e
agora estou mancando. Hoje menos do que ontem.
O pior foi que eu tive que passar na enfermaria para pedir um anti-
inflamatório. Glenda até me deu parabéns por dessa vez ter torcido o pé e
não o pau.
Glenda... o nome da enfermeira é Glenda. Percebi que não tinha
perguntado até aquele momento. Aproveitei que estava sozinho e conversei
com ela, afinal ela é a responsável por eu ainda estar vivo nesse navio.
Descobri que Glenda é uma mulher trans, e nós ficamos umas três horas
conversando sobre como foi todo o processo para ela. Ela também me
contou que é namorada do barman que me deu o pano na primeira festa e
que é comum que as pessoas que trabalham em cruzeiros, namorem outros
funcionários dele, justamente porque é difícil manter uma relação com
pessoas de fora se estão sempre em viagens longas. Ela me mostrou a
aliança em seu dedo que havia ganhado dois meses atrás.
E eu acabei contando a ela a verdade. Sei lá, senti confiança depois que
se abriu tão sinceramente comigo. Eu deitado na maca e ela na cadeira,
parecia uma sessão de terapia.
Contei sobre toda a farsa com JP e Glenda disse que já desconfiava, mas
que adorava zoar com a cara do meu amigo todas as vezes que eu ia parar
ali. Segundo ela, não somos os primeiros a fingir um relacionamento para
subir a bordo.
Glenda também me acusou de ser um péssimo ator, porque ficava na
cara que eu estava mentindo. Já João Pedro ela realmente pensou que fosse
bi. Para ser sincero, eu acho que ele já ficou com alguns caras, por algumas
conversas suas que peguei pela metade, mas não perguntei por que nunca
tocou no assunto comigo. Talvez por achar que eu fosse ser contra.
Como se eu tivesse que achar alguma coisa... mesmo que me coubesse
dar opinião, pra mim não faz a menor diferença com quem ele se relaciona.
Não sendo com uma noiva minha, tá ótimo. Um chifre já é suficiente
pra uma vida.
Bom, mas essa história à parte, revelei para Glenda que eu estava
mentindo para Pérola e o quanto isso me machucava. Sou tão boca de
sacola, que eu até mostrei a ela a comanda do bar que eu trouxe de
recordação, onde anotei o nome da canção que cantamos juntos. Eu a colei
no meu diário de bordo, assim como tenho feito com tudo que é relacionado
a Pérola. Se ela lesse esse diário, perceberia na hora que eu estou
apaixonado.
E que me sinto um lixo do caralho por estar escondendo a verdade.

— Cheetos, pelo amor de Deus, eu não aguento mais tanto incenso. —


Manuela segura a ponta do nariz, fazendo uma careta.
A ignoro, permanecendo na minha meditação.
É meu ritual pré-jogo, eu preciso estar centrada, com os chakras
alinhados e tão calma quanto uma preguiça grudada na árvore. Ao menos a
minha menstruação acabou ontem para me livrar de mais um estresse.
Principalmente porque a chance do meu time ser rebaixado para a
segunda divisão é tão certa quanto o fato de eu estar apaixonada pelo João
Guilherme.
— Você devia se juntar a mim, nesse momento estou alinhando meu
chakra cardíaco, as emoções precisam estar em ordem para lidar com um
momento tão importante.
— Mas não é importante pra mim, eu sou flamenguista. Os dois times
podiam explodir.
Giro meu pescoço lentamente, com os olhos saltados.
— Você é minha amiga!
— Amigas, amigas, futebol à parte! — Seus ombros se jogam nem um
pouco abalados com minha expressão assassina. Deve ser porque eu não sei
fazer uma.
— Mas você vai assistir o jogo com a gente, né?
Os meninos nos convidaram para ver o jogo no quarto principal da área
Vip. Nesse eu nunca entrei, mas estou curiosa para conhecer.
Tenho apenas duas sessões de terapia tântrica e depois estou livre.
— Eu vou, acha que eu perderia uma hidromassagem na área Vip? Me
poupe, eu iria até para ficar olhando na cara do Zé Mané. — Ela tenta fazer
cara de indignação e indiferença ao JP, só que eu não nasci ontem e muito
menos sou burra.
Escondo o sorriso.
— Pra quem passou aquela noite cuidando dele, essa carinha de ranço já
não cola.
— Eu cuidei dele pra que você pudesse ter uma noite descente com seu
nerdzinho, deveria me agradecer por esse sacrifício.
Estreito os olhos.
— Sacrifício? Você se ofereceu de muito bom grado, se bem me lembro.
— Ah, dá um tempo, Pérola. — Manuela pega seu celular, decidida a
me ignorar. — Fecha os olhos e volta pro seu “aum”, tava melhor calada.
— Cavala!
Jogo um beijo na sua direção, realmente voltando para meu “aum”. Só
com muita meditação para não surtar.
Vasco, meu Almirante, se estiver pensando em perder para aquele time
feio, reconsidere os planos. Ou eu vou te afogar numa tampinha de Coca-
Cola!

— Porra, isso que é vida — JP arranca a blusa por cima da cabeça, a


jogando no chão do quarto. Reviro os olhos, dobrando a peça em cima da
cama. Ele entra na banheira que deixei aquecendo, abrindo uma garrafinha
de água com gás, sendo a única bebida que ele ingere em dia de jogo. João
Pedro tem medo de beber álcool e sua embriaguez passar por osmose aos
jogadores.
Puxo a regata para fora do corpo, entrando igualmente de short na água
morna e borbulhante. Ele tem razão. Isso que é vida. Abro os braços na
borda da espaçosa banheira, deitando o pescoço no apoio almofadado.
— Uma dúvida.
— Manda — digo de olhos fechados.
— Você e a Pérola transaram nessa banheira?
— Nós não transamos na banheira e nem em outro lugar… pelo menos
não até a última consequência do ato.
— Por quê?
— Porque estou de alta só hoje.
— Ah, obrigado Deus por não me dar essa decepção.
Abro os olhos, o encarando confuso.
— Como assim?
— Eu achei que você não tinha transado porque ela estava naqueles
dias…
Reviro os olhos.
— Eu sou inexperiente, ruim de cama, lerdo e sonso, mas um babaca
nojento nunca fui.
— Esse é meu garoto! — Bate no meu peito, forte o bastante para
deixar marca.
— Doeu, desgraça! — Bato no dele de volta e acabamos os dois
tentando enfiar a cara um do outro na água.
A porta do quarto é aberta; com as meninas carregando alguns petiscos
que com certeza roubaram da cozinha da tia Fátima.
— Nossa, já começaram a brincadeira e nem nos esperaram — Manu
faz um bico fingido.
— Se quiserem que a gente espere lá fora... — Pérola não nos encara,
ela olha para a varanda, se balançando nos próprios pés.
Mas que porra, eu tenho que contar a verdade, não aguento mais ela
achando que precisa me dar privacidade com o cacete do João Pedro. Ela
tem é que me privar de passar um tempo com ele, isso sim. Sou obrigado a
conviver com a criatura desde a incubadora, mereço um descanso.
— Tá querendo fugir só porque seu timinho vai perder, Pepé? — JP a
provoca e eu vejo exatamente o momento que o demônio a incorpora.
— Pepé é a cabeça do seu pau e se falar que meu time vai perder de
novo, eu te afogo na banheira.
Meu pau reage a fala raivosa dela como um soldado batendo
continência. Eu gosto de ver essa mulher latindo ordens.
— Enquanto vocês discutem qual dos times horríveis vai ser pior no
campo hoje, eu vou tirar minha roupinha e aproveitar essa hidromassagem
de gente rica.
— Só não fica nua, Valentona.
— Não vou realizar seu sonho hoje, Zé Mané.
Ignoro as provocações dos dois, observando Pérola colocar os petiscos
na pedra de mármore ao redor da banheira, tirando sua roupa e ficando
apenas com um minúsculo biquini. A parte de baixo é vermelha e a de cima
riscada de branco e preto. É, o JP pode ter esquecido sua cueca da sorte,
mas definitivamente Pérola trouxe a sua versão da coisa.
Ela chuta seu short pelo chão, exatamente como meu amigo e até penso
em me levantar para arrumar, mas não quero mancar na sua frente.
— Quer ajuda? — ofereço minha mão para ela entrar, mas ao invés de
Pérola a segurar, é Manuela que a toma, entrando na banheira como uma
manada de elefantes, me chutando para ocupar o lugar onde eu estava.
— Eu consigo. — Pérola ri da amiga, sentando-se do meu lado. Seu
rosto sereno se volta na minha direção com um daqueles sorrisos de fazer
corações explodirem nos olhos como nos desenhos animados. — Oi,
Honey.
Pisco tentando sair do transe que ela me colocou, porém não tenho
nenhum tipo de êxito.
— Oi, bebê — a chamo assim porque ela fica um pouco vermelha. Não
tanto quanto eu mesmo fico ao chamá-la dessa forma, mas é um preço que
estou disposto a pagar para ver seu raro momento de timidez.
— Dormiu bem?
Abaixo o rosto, com o calor preenchendo até minhas orelhas.
— Eu não dormi muito, sabe…
— Hum… — A mão dela se apoia na minha coxa sob água. — Algum
motivo específico causou a sua insônia?
Encaro seus dedos brincarem com os pelos das minhas pernas e suas
unhas fazerem uma arte abstrata. As imagens dessa mesma mão trabalhando
em mim há duas noites me vêm à mente com uma precisão de detalhes que
nem mesmo uma inteligência artificial de alta performance seria capaz de
reproduzir.
— É que… — Empurro meus óculos para o lugar. — Eu não conseguia
parar de pensar em você.
Noto a garganta dela se mover duramente.
— Eu também não… não consegui parar de pensar em você.
Meus olhos intercalam entre os dela, escorrendo lentamente para seus
lábios. É uma péssima ideia olhar para eles, péssima do tipo catastrófica. Eu
ainda consigo sentir o toque aveludado da sua língua por toda minha
extensão; brincando com minha glande; a empurrando contra sua garganta.
Um pigarrear faz nós dois nos afastarmos em um pulo.
— A sala de voyeur é no corredor. — Manu sorri provocativa e vejo de
relance Pérola erguer o dedo do meio.
— Mas eu não me importo de assistir aqui mesmo. — JP provoca, se
esticando todo pomposo na banheira. — Fiquem à vontade.
Jogo água na cara dele.
— Tenha respeito pelas meninas.
— Ah, eu prefiro sem respeito mesmo. — Pérola o enfrenta, nem um
pouco abalada com as brincadeiras maliciosas. Ela se ergue na direção dele,
apoiando as mãos nas bordas da lateral de sua cabeça, chegando mais perto
do rosto do meu amigo do que minha sanidade aguenta. Prendo a
respiração, sem conseguir me mexer.
O que ela vai fazer?
— Você gosta de fazer piadinhas, de se mostrar o liberal, mas por que
eu nunca te vejo fazendo nada e só instigando os outros a fazerem? —
Pérola se aproxima ainda mais e eu posso sentir daqui a tensão. João Pedro
perde toda a pose, com seus olhos saltados e as mãos onde eu possa ver,
como se mostrasse que não está fazendo nada.
Eu acho bom mesmo ou vou arrancar os dedos dele.
— Você não vê por que quem come quieto, come sempre.
Ela ri com escárnio.
— Que piadinha mais quinta-série… eu esperava mais de um homem
que coloca malícia em tudo. — Pérola ergue o queixo dele quando JP tenta
desviar. — Por que eu tenho a impressão de que você teria um troço se Gui
e eu de fato começássemos a transar aqui na sua frente? Algo me diz que
você não aguenta, Corinthiano.
— Quer apostar? — Ele ergue uma sobrancelha para mostrar
superioridade, mas conhecendo-o como conheço, está apenas querendo
chamar a mamãe. Ele é igual a um pitbull dócil, só tem cara de malvado,
mas é um bebezinho assustado.
— Adoro apostas… já seria a segunda para eu vencer de você — Pérola
não vacila.
— Que eu saiba, não ensinou o Joca todas as partes do sexo e você só
tem mais alguns dias para isso… algo me diz que não vai dar tempo.
Pérola ri, dando tapinhas na cara dele. Manuela e eu assistimos a cena
concentrados. Ela com uma expressão maliciosa, quase como se a cena a
estivesse excitando e eu… eu estou quase ficando roxo de ciúmes.
— Quando vocês forem para a cama, me conte se eu não o ensinei
direitinho o que fazer… você até vai me mandar um cartão de
agradecimento.
Faço uma careta e noto a força que ele faz para não repetir o mesmo
gesto.
— Você vai querer ouvir minha aposta ou não? — ele muda de assunto
descaradamente.
— Manda, Corinthiano. — Pérola volta para o seu lugar ao meu lado e
finalmente consigo respirar aliviado. Por algum motivo, Manuela também.
Só que ela balança a cabeça, como se afastasse uma imagem da mente, se
abanando com uma das mãos.
Ela tava gostando de ver isso?
— Se o Corinthians ganhar, eu vou assistir você e o Joca na sala de
voyeur.
Arregalo os olhos.
Misericórdia, eu sou mesmo vascaíno.
— E se o Vasco ganhar, eu assisto você e… — Pérola sorri
diabolicamente, se virando para Manuela. — Manu.
— Eu? — Ela coloca a mão sobre o peito.
— É.
— Eu não vou transar com ele.
— Não disse que você iria, eu disse que vou assistir ao dois… façam o
que normalmente fazem, discutam. Eu adoro assistir a um enemies to
lovers.
— Só que vai faltar a parte do lovers, Cheetos. — Manuela a fuzila. —
É mais fácil você assistir a um filme de terror.
— Eu deixo você escolher o gênero… ou tá preocupada? — Pérola e ela
trocam olhares significativos e parecem travar um extenso diálogo
carregado a várias expressões faciais que eu não compreendo.
— Eu preocupada? — debocha, jogando seus cabelos. — Preocupado
deveria tá o Zé Mané em ficar numa sala sozinho comigo.
— Eu fiquei um noite inteira com você enquanto estava bêbado e estou
vivo. — João Pedro joga uma piscadela e Manu desvia a atenção para a
tevê, se fazendo de sonsa.
— Fechado, então? — Pérola estende a mão para João Pedro.
— Fechado — ele aperta, selando mais uma aposta.
Esses dois ainda vão nos meter em uma confusão desgraçada.

Enfio um punhado de pipoca na boca, escutando o JP cantar o hino do


seu time, pronto para enfiar um milho nos meus ouvidos.
— Pérola, você vai tirar toda a água na banheira com essa inquietação
— Manuela belisca sua coxa para que ela pare de se balançar.
— Tô nervosa, preciso extravasar a energia. Sabia que energia
estagnada nos deixa doentes?
— Então faz o pau do nerd de pula-pula de uma vez e gasta essa
energia, porque você tá molhando meu cabelo.
Arregalo os olhos.
— Por que sempre roda, roda, e cai no meu rabo? — faço uma pergunta
genuína.
— Eu falei no seu pau, mas se você preferir levar na bundinha, a Pérola
tem umas táticas todas especiais. — Manu pisca para mim e minha cara
pega fogo.
Eu sei que ela tem.
Misericórdia, eu sei.
— Que táticas? — por um milagre, meu amigo não nota o meu
constrangimento.
Mas espera, por que ele tá interessado? Por acaso está pensando em
levar uma dedada?
Antes, eu teria feito cara de repulsa para isso.
Agora… depois de tudo que Pérola fez comigo, eu estou quase o
recomendando testar.
E não é que o negócio é bom mesmo?
— Seu noivo te ensina depois, agora calem a boca que vai começar. —
Pérola muda de assunto quando percebe meu constrangimento. Ela só não
sabe que não tenho qualquer intenção de chegar perto do orifício anal de
João Pedro.
Eu não confio nem na forma que ele lava as mãos, que dirá a bunda.
Cutuco Manuela.
— Você vai torcer pra quem?
— Por questão regional eu já não ia torcer pro Vasco, com essa aposta
então… eu preciso que o Corinthians ganhe.
— É, eu vou pela mesma lógica, mas ao contrário.
— Vai torcer pro time do seu amorzinho? — ela sussurra debochada.
— Igual você, torcendo pro timão do seu denguinho — jogo a
provocação de volta. — Vai fazer cafuné nele de novo quando perder?
Manuela não responde à minha fala. Ela só belisca a parte de trás do
meu braço, igual ao seu Madruga fazia com o Kiko. E eu me seguro até
com as forças da bunda para não chorar feito ele.
Ela sorri docemente, voltando a olhar a TV como se não tivesse acabado
de me deixar um hematoma.
Esfrego o braço com um bico, esperando Pérola me consolar, mas seus
olhos estão tão vidrados na televisão, que nem se eu ficar nu e fizer um
pirucóptero ela repararia em mim. E olha que o meu helicóptero não é lá
muito fácil de ignorar.
Acho que tô até começando a gostar do tamanho desse querido. Pérola
falou tantas e tantas vezes o quanto adorava isso, que estou pensando em
fazer as pazes com meu pênis.
— Vamos, Roger Guedes, não me decepciona! — JP une as duas mãos,
as esfregando e soprando.
— Esse calvo? — Pérola zomba, rindo alto. — O Pedro Raul vai
ensinar a ele o que é jogar... Eu espero. Se ele jogasse tão bem quanto é
bonito, a gente tinha chance até de ganhar a Libertadores.
Essa última parte ela sussurra no meu ouvido.
Pérola está a pura descrição de: à espera de um milagre.
Só um para o Vasco não ser rebaixado.
Dou tapinhas nos seus ombros, tentando a confortar.
— Deixa o Calvo Guedes em paz. — João Pedro se emburra. — Pelo
menos ele entra no campo pra jogar e não desfilar, diferente desse Pedro
Raul.
— A culpa não é dele se nasceu gostoso, ok? Que preconceito é esse
com gente bonita?
— Mas aquilo não é passarela!
— Mas faz bem pros meus olhos!
Manu e eu intercalamos o olhar entre os dois.
— Será que a gente fica assim quando passa jogo do nosso time? —
pergunto baixinho.
— Não. Eu fico pior — Ela estala a língua. — Eu já teria xingado a mãe
dele.
— Que horror.
— Pois é, eu sou péssima.
Assinto, concordando.
Ainda bem que ela sabe.
— Gente, tá quase fazendo gol! — tento uma brincadeira para acalmar o
clima, mas quando Pérola e JP percebem que a bola está no meio de campo
com os jogadores brincando de zigue-zague, eles empurram meu ombro até
me afogar na banheira. Sacudo os braços esperando que Manuela me ajude,
mas debaixo d’água a vejo comer pipoca calmamente enquanto sofro uma
tentativa de assassinato.
Quando começo a ficar roxo, eles me libertam e eu puxo todo o ar do
quarto de uma vez, esfregando o rosto para tirar o excesso de água.
— Vocês ficaram malucos?!
— Eu contei vinte segundos, bom tempo. — Manu ergue o polegar.
— A gente vai deixar uma hora se brincar assim de novo — João Pedro
diz puto.
— E eu vou quicar tão errado no seu pau, que não vai ter fisioterapeuta
que o coloque de volta no lugar.
Arregalo os olhos e estico o braço para encher a mão de pipoca e enfiar
na minha boca.
É melhor comer e ficar bem calado.
— Só pra constar, ela ainda vai quicar em você mesmo caladinho — a
baixinha zomba.
— A parte do quicar eu estou tranquilo, eu só não quero que ela se
jogue de bungee jump sem tirar meu pau antes.
João Pedro e Pérola se concentram na televisão novamente e eu tento
fugir dos braços e pernas que eles agitam a cada jogada arriscada dos
jogadores em campo. Quando o Vasco quase faz um gol, Pérola se joga no
meu colo, talvez nem se dando conta de que ao invés da banheira, ela
sentou em mim.
— Foi quase! — Pérola me balança pelos ombros, como se eu tivesse
culpa de o cara ter errado.
— Foi, bebê? — enxugo as lentes dos meus óculos pela décima vez.
— Foi... — Faz um biquinho fofo, me abraçando deprimida.
— Não desiste ainda, o jogo mal começou. — A embalo no meu colo,
contornando sua cintura com meus braços, enquanto Pérola abraça meu
pescoço. Algo me diz que eu vou ficar com torcicolo caso o Vasco faça um
gol, mas não tenho coragem de mandá-la se levantar.
— O jogo mal começou e já está mostrando quem vai ganhar... — JP
tenta irritá-la.
— Deixa ela. — Faço carinho nos seus cabelos, a protegendo.
— Isso aqui é uma guerra, Joca! — Manuela enche a mão de água e
joga no meu rosto. — Ninguém tem pena de ninguém.
— É isso aí, Valentona! — JP ergue a mão para ela bater, mas Manuela
só o encara com desdém e bufa, o deixado de mãos erguidas no ar.
Seguro a risada.
Toma, papudo.

Tomamos um gol.
Faltando três minutos para acabar o primeiro tempo.
Não acredito nisso.
Porra, esse goleiro tá precisando de óculos, até eu teria pegado essa
bola.
— Salve o Corinthians, o campeão dos campeões! — João Pedro canta
há plenos pulmões. Pulmões esse que estou pensando em arrancar pela
goela desse cabeçudo.
Cruzo os braços emburrada, deixando o Gui me confortar com seu
abraço quentinho. Ele me empacotou como um embrulho a ser enviado por
Pac entre suas pernas, seus pelos do peito fazendo cócegas nas minhas
costas.
— Chora não, Vascaína, chora não!
— João Pedro, se você não parar de implicar com ela, eu vou chutar seu
saco. — Gui briga com ele pela décima vez. Mas como ainda não cumpriu
com nenhum ameaça, eu mesma dou um tapa na bolas do Corinthiano.
— Ai, porra! — Ele segura o meio das suas pernas.
— O próximo vai ser uma cabeçada. — Dou língua.
— Não seja uma má perdedora.
— Ainda não perdemos — digo na defensiva. — Tem o segundo tempo.
— Que vai ser igual ao primeiro… viu como não adianta ter um
rostinho bonito em campo?
— Gui... — o chamo, cutucando seu braço.
— Hm?
— Se importa de ficar sem noivo?
— Não, vá em frente.
Faço que vou me levantar e JP dá um passo para trás na intenção de
fugir de mim, esbarrando em Manuela, caindo no seu colo logo em seguida.
Cubro a boca com a mão, esperando a merda que vai dar.
— Acho que não preciso mais fazer nada. — Solto uma risadinha.
— Manuzinha, foi sem querer... — Ele ri de nervoso ainda no seu colo e
começo a ver fumaça saindo pelas orelhas da minha amiga.
— Meu. Cabelo. — Ela fecha os olhos, respirando fundo.
— Tá na sua cabeça — para provar, JP bate sobre o topo, molhando a
única parte seca.
— Um — ela conta.
— Um o quê?
— Dois.
— É pra eu correr? — Os olhos dele se esbugalham.
— Três.
— Fui! — JP pula do colo dela para o outro lado da banheira, pegando
o pote de pipoca para se defender.
— Eu vou fazer você engolir essa merda!
Viro de frente no colo do Joca para não ser testemunha de um
assassinato, deitando a cabeça no seu ombro enquanto espero o segundo
tempo. Estou triste demais para aproveitar a discussão ao lado. O Vasco é
tipo meu filho, me sinto uma mãe vendo seu bebê ser humilhado.
Mais apegada a esse time do que eu, apenas meu pai era. Nós sempre
assistíamos aos jogos juntos, ele arrancava sua camisa quando ganhávamos
e chorávamos juntos quando perdia. Da pra entender que a gente chorava
bastante né? Ser vascaína é padecer no inferno.
— O que foi, bebê? — Joca afaga minhas costas.
— Eu não gosto de perder — minha voz sai abafada na pele dele.
— Ninguém gosta. Mas o segundo tempo ainda tá aí e eu não vou
deixar o João Pedro te amolar.
— Se eles não fizeram a porra de um gol quando estavam descansados,
agora que tão tudo resfolegando feito cachorro de rico depois de andar dez
metros, não vai sair nem chute na canela. — Nem me importo em parecer
criança emburrada. Quando se trata de futebol, eu sou mesmo uma.
O corpo dele se sacode sob o meu e imagino que esteja rindo de mim.
— Não ri não — mordo seu ombro em protesto. — Não se esqueça que
se o Vasco perder, você tá incluso na aposta.
Sinto seus ombros serem jogados para cima em claro desdém.
— O máximo que vai acontecer é você acabar comigo naquele quarto
de voyeur. O JP ver isso ou não, não vai fazer diferença.
Ergo a cabeça rapidamente, virando a cara dele de um lado para o outro.
— Quem é você e o que fez com meu nerd tímido e pacato?
— Eu sou o Honey e o nerd tímido e pacato ficou entre o segundo e o
terceiro orgasmo de duas noites atrás.
Sorrio satisfeita, me deleitando com as lembranças. Aquela noite foi...
nossa. Até para os meus padrões, excedeu as expectativas. A massagem, o
toque, como ele se entregou, se libertou, chorou nos braços, se permitiu
sentir, aceitou o prazer de bom grado... nem mesmo na minha melhor sessão
de terapia tântrica, vi alguém tão enredado pelo prazer até então
desconhecido, fascinado com o próprio corpo, curioso com o que sempre
esteve ali para ele, mas que estava sendo desperdiçado.
Eu nunca chego a nenhum ato de fato com nenhum dos meus pacientes,
sempre fui pela linha mais sensorial e menos invasiva, preferindo que eles
aprendessem por si só a se dar prazer e se permitir vivenciar isso. Mas
mesmo nas minhas relações pessoais, nunca cheguei a um nível daquele
com outro homem. Nenhum deles foi tão aberto ao ponto de se deixar lavar
a alma na minha frente e muito menos eu com eles. Nunca deixei ninguém
foder minha boca daquela forma, com tamanho controle sobre mim, ditando
seu ritmo e a profundidade. Para ser honesta, nunca me ajoelhei diante de
um homem. Eu sempre fiz isso por cima deles, porque era um claro aviso
que o poder era eu.
Mas com Gui, eu simplesmente senti que podia abrir mão do controle.
Que não precisava pensar por nós dois, apenas me deixar levar pela
situação. Foi diferente e novo para mim também, de certa forma me
mostrou um lado meu que até então eu não pensava que podia gostar. Não
um lado submisso, porque isso eu nunca serei, mas um lado que eu posso
soltar as cordinhas do jogo por um momento e confiar que o cara que está
comigo não vai se aproveitar disso.
Foi como tirar um peso das minhas costas. Me senti aliviada. Estranho,
porque minha garganta estava sendo muito bem fodida, mas senti alívio.
Simplesmente por não precisar me preocupar com nada. Me fez ter vontade
de viver assim mais vezes. Ser a que as pessoas se preocupam em vez de ser
a que me preocupa com as pessoas.
João Guilherme tem me falado diversas vezes sobre sua dívida comigo,
sobre ele sentir prazer mais do que eu... mas se soubesse quantos caras me
fizeram gozar, sem que meu coração acelerasse um só segundo, sem marcar
nem uma página da minha vida, teria certeza que talvez eu quem saia
perdendo dessa competição. Eu o estou mostrando o prazer do corpo, mas
ele está me mostrando um prazer de alma. E esse eu não tinha conhecido
ainda.
— Você foi incrível aquela noite — elogio, querendo poder falar todas
essas coisas para ele, mas sabendo muito bem que não posso.
— Particularmente, preferi você.
— É? — Desço o olhar para sua boca, limpando com o polegar o sol da
pipoca.
— É. — Ele desce o dele até a minha também.
— Não se arrependeu de nada do que aconteceu lá? — Não que eu
esteja insegura do prazer que ele sentiu, mas não tenho a intenção de o
deixar se martirizando por ele depois.
— Eu estou mais propenso a pedir que aquilo se repita.
Sorrio abertamente, mais feliz do que devia com essa informação.
— Então você gostou de tudo? — Arqueio uma sobrancelha.
— De tudo... principalmente quando você me fodeu. — Ele fala
baixinho, olhando através do seu ombro, talvez para ver se Manu e JP
prestam atenção em nós. Mas eles estão discutindo algo sobre a Mônica ter
razão de bater no Cebolinha... sei lá, só peguei essa parte da conversa e não
sei como eles chegaram até ela. E nem tenho como prestar atenção, porque
a ereção de João Guilherme cava minha bunda e eu começo a ficar molhada
só com a menção de tudo que aconteceu no quarto ao lado. Se não fosse o
jogo, eu o levaria para lá de novo agora mesmo.
Aproximo a boca da sua orelha, brincando com a pele macia.
— Preferiu meus dedos ou um certo brinquedinho em particular? —
Acaricio sua nuca com as unhas e Gui aperta minha cintura.
— Os dois, Pérola... eu gostei dos dois. — Ele beija o vão do meu
pescoço, me fazendo moer sua ereção contra minha boceta. Ofego. — E
você? Você gostou de tudo? Eu sei que não foi tão bom para você quanto
foi para mim, mas... você gostou?
Solto uma risada fraca, balançando a cabeça.
— Você não tem nenhuma noção do prazer que eu senti aquela noite...
principalmente quando você fodeu minha boca até meus olhos
lacrimejarem. Não consigo esquecer a sensação do seu pau no fundo da
minha garganta e das suas mãos nos meus cabelos.
— Merda, Pérola... — ele pragueja, subindo sua mão para se enrolar nos
meus cabelos. As íris azuis me fitam carentes e eu posso sentir todo seu
corpo estremecer sob mim. — Me beija, por favor?
Meu clitóris arde com a súplica. Ele sabe que eu gosto disso. Sabe, mas
ainda é natural, não algo forçado.
— Beijo, Honey... eu beijo.
Suas mãos se apossam da minha cintura e me encaixam corretamente
em seu colo, me esfregando descaradamente sobre seu pau. Quando a
língua dele desenha meus lábios para pedir passagem, não apenas o dou
permissão, como uno a minha à equação.
João Guilherme ondula levemente seu quadril contra mim, fazendo meu
clitóris dançar de um lado para o outro sob o biquini. Eu poderia estar fora
da água que ele continuaria encharcado.
Chupo sua língua o lembrando de como seu pau ficou em minha boca e
seu aperto em meus cabelos se intensifica, assim com um rosnado sai dos
seus lábios, baixinho e incontrolado. Minhas mãos arranham suas costas, o
tentando trazer mais perto do que é humanamente possível. Meus mamilos
deslizam sobre seu peito e sinto vontade de arrancar esse tecido para longe
e o sentir pele com pele novamente.
— Ih gente, vale pegação? Isso é alguma simpatia? Porque se for, vem
aqui Manuela — João Pedro fala e escuto um tapa estalado.
— Vem aqui o cacete!
— Mas eles estão se beijando, se o Corinthians perder é culpa sua.
— E te beijar vai ajudar em que os jogadores?
— Os jogadores eu não sei, mas tem um tempo do caralho que eu não
beijo na boca. Tô começando a desaprender.
— E eu tenho cara de professora? Vai fazer como o Joca e treinar com
uma maçã.
Os dois continuam sua discussão infindável, enquanto Gui e eu
permanecemos no nosso beijo que quisera eu ser igualmente sem fim.
Suspiro sobre os lábios macios, a barba arranhando minha pele, os dedos
calejados descendo para minha bunda e a amassando contra sua palma, me
fazendo mover os quadris de encontro ao seu membro, tão duro que consigo
sentir as veias saltadas latejando.
Ah, que se dane.
Minha pélvis se move sem discrição, rebolando em seu colo enquanto
minha boca é assaltada pela língua que agora sabe exatamente o que fazer.
E melhor, sabe fazer de acordo com meus padrões. Estou o deixando
perfeito para os meus moldes, só para depois o entregar a outra pessoa. Isso
é injusto.
Meus dentes pressionam o lábio inferior e o escuto resfolegar,
impulsionando sua pélvis contra a minha. Sua glande atinge exatamente
meu clitóris e é impossível não deixar o gemido escapar entre meus lábios.
As mãos dele não economizam toque e muito menos pressão. Talvez depois
de ter provado do que um toque é capaz, ele tenha entendido a importância
dele nem que seja em um mísero beijo.
— Tá porra, vocês nem perderam a aposta e já estão se comendo na
minha frente! — João Pedro decide mesmo nos interromper, jogando água
para nos separar.
Nos afastamos ofegantes e completamente frustrados. Quem foi que
chamou esse Corinthiano mesmo?
Manuela o estapeia. De novo.
— Que droga, Zé Mané! Eu tava gostando de assistir, parecia uma
sessão premium de filme pornô. — Ela sorri na nossa direção com o lábio
entre os dentes. — Por mim vocês podem continuar, vou ficar quietinha só
olhando.
Gui enfia o rosto no meu pescoço, ficando até quente de vergonha. Eu
faço uma massagem no seu couro cabeludo, saindo de cima da sua ereção
par ao ajudar, mas me mantendo no seu colo para ninguém o ver. Eu sei que
ele ainda não gosta totalmente dessa parte do seu corpo, principalmente
quando fica excitado.
— Que isso, Valentona? — João Pedro joga pipoca nela. — Tem tara
em assistir os outros transando, é?
— Se eles aceitarem, eu faço mais do que assistir...
João Pedro arregala os olhos. Eu disse que esse Corinthiano tem muita
fala e pouca ação...

Manuela faria mais do que olhar?


Pérola gargalha da reação do meu amigo, mas eu tenho a mesma.
Essas duas são perversas demais para nossa cabeça limitada.
Eu não tô dando conta nem de uma, que dirá de duas. Ainda mais com o
fogo do inferno que elas têm… eu sairia manco. Quer dizer, mais manco.
— Vou ter que recusar, amiga, porque eu acho que não nasceu o homem
que aguentaria nós duas.
Manu faz um bico fingido e Pérola dá um selinho sobre ele.
Inclino o rosto.
Elas se pegam? Porque eu não ando por aí dando selinhos no João
Pedro… quer dizer, só quando a Sara decide foder com a nossa vida. Será
que se a gente desse selinho a convivência seria mais pacata e pacífica? Vou
conversar com ele sobre essa possibilidade depois. Eu descobri que
masculinidade frágil não tá com nada. Depois de gozar com um negócio
enfiado na minha bunda, eu descobri que todas as piadinhas ridículas a
respeito disso são de homens que nunca tiveram a chance de descobrir o
prazer que é.
Ainda bem que eu tenho minha sereia...
— Que isso? Vocês duas vão começar a se pegar aqui também? — João
Pedro fica indignado. — Por que eu sou o único que não ganho beijo?
— Ué, seu noivo tá aí... — Manuela sorri como uma horda de
demônios.
Opa, calma Deus, eu só conjecturei a possibilidade da gente dar selinho,
mas não é uma ideia bem construída ainda! Estou em processo de
desconstrução, dá uma segurada.
— Olha, o jogo começou! — aponto para a tevê. Eu não vou dar selinho
no João Pedro de rola dura. É demais para meu pouco tempo de mente
aberta.
— Graças a Deus! — Meu amigo volta a se sentar na banheira do lado
de Manuela, roubando o pote de pipoca. Pelo menos corajoso ele é. Ou
inconsequente.
O segundo tempo começou mais animado que o primeiro. Não sei se
deram energético Baly ou duas doses de adrenalina na veia, mas os
jogadores começaram a dar o sangue. O Vasco empatou o jogo em 1x1 em
quinze minutos de bola rolando, o que fez Pérola meter o dedo do meio na
cara do JP e esse começar a culpar a Taylor Swift, dizendo que vai rasgar a
foto dela da carteira e tirar “Back to december” da sua playlist.
Faltando apenas cinco minutos para o jogo acabar, eu não sei de quem
mais tenho medo, se é da Pérola tirando cravo das minhas costas para
aliviar a ansiedade ou se é do JP trançando o cabelo da Manuela para se
distrair.
Ele sabe que se der um puxãozinho sequer, fica sem mão né?
Estou disperso demais com as esquisitices dos dois, quando escuto o
narrador berrar um gol, o que faz JP e Pérola se levantarem ao mesmo
tempo, limitando minha visão. Nem mesmo escutar de quem foi o gol do
desempate nos últimos minutos de jogo eu consigo, porque eles começam a
gritar coisas ininteligíveis e fazer água voar para todos os lados. As
camareiras vão nos odiar pro resto da vida.
Eu só tenho a certeza de que foi o Vasco que ganhou, porque a Pérola
simplesmente ergue o biquini para cima, mostrando os peitos, entoando o
hino do time.
Um segundo depois, eu estou afogando a cabeça de João Pedro na água
para ele não ver. Procuro Manuela, achando que a encontraria chocada com
a situação, mas ela só está gargalhando para a cabeça afundada do seu
inimigo.
— Você não vai fazer nada? — Jogo o queixo na direção de uma Pérola
dançando com os peitos de fora.
— Eu não, já estou acostumada. Toda vez que o Vasco ganha, ela
mostra as picadinhas de mosquito.
— Picada de mosquito? — João Pedro se remexe debaixo d’água. —
Calma porra, tô conversando aqui.
— É, as tetas — Manuela explica seu termo.
— E ela mostra até em público?
— Sim, mas como é só quando o Vasco ganha, esse evento acontece
igual copa do mundo, de quatro em quatro anos.
Inclino pescoço, concordando.
De fato.
Pérola cobre de novo seus seios e solto a cabeça de João Pedro, que
emerge como um Shih-tzu[42] molhado e raivoso.
— Quer me matar, caralho?! — ele me empurra.
— Não seria uma má ideia — Manu responde por mim.
Eu gosto um pouco dela. Quando ela se junta comigo contra esse cretino
do meu amigo, eu gosto dela.
— Ganhei a aposta, chupa seu Corinthiano das cantadas ruins! —
Pérola rebola para ele e posso ver a veia de sua testa saltando. — Perdeu a
aposta! Vai ter que ficar na salinha sendo observado por mim... — Ela
cantarola, provocando como uma menina da terceira série. Combina com a
birra que João Pedro dá, batendo o pé no chão.
— Como é, então? A gente vai pra sala de voyeur agora? — Seus
braços se cruzam claramente puto de ter perdido. A pobre da Taylor Swift
vai ser xingada no Twitter hoje.
Pérola para de rir do absoluto nada, ficando séria.
— Claro que não, eu tenho duas aulas de tantra pra dar ainda hoje, acha
que sou desocupada?
Até eu fico confuso com a mudança de humor. Ela sai da banheira já
pegando uma das toalhas, deixando um beijo na testa do João Pedro, um
selinho em Manuela e uma mordida na minha bochecha antes de sair do
quarto como se não tivesse acabado de colocar os peitos para jogo.
João Pedro se aproxima de mim sorrateiramente.
— É dela que você gosta? Tem certeza?
A observo se afastar saltitando, e suspiro com um sorriso.
— É… exatamente dela.
Essa sereia travessa.
— E você, demônio? — Ele se volta para Manu. — Não tem trabalho?
— Eu vou ficar aqui mesmo. — Ela desdenha, colocando o Youtube na
tevê e escolhendo uma música. — Vão me fazer companhia?
— Eu tenho que esfregar o casco do navio. — Saio da banheira
depressa.
— E eu vou limpar a hélice. — João Pedro corre comigo.
Tudo isso é menos arriscado que ficar sozinho com Manuela.
Ainda mais que ela tava tarada num sexo à três.
 
Enxugo o cabelo com a toalha, depois de sair com cuidado da piscina.
JP sorri de orelha a orelha, descendo pela milésima vez no toboágua.
Para alguém que o time perdeu e ainda vai ter que cumprir uma aposta com
a mulher que odeia, ele tá até feliz demais.
Talvez seja porque ele me obrigou a ir na aula de pole dance e nós dois
descemos naquele cano. O filho da puta levou jeito pra coisa, conseguiu
ficar até de cabeça para baixo, quando eu mal consegui dar uma volta
completa pelo aço. O pior foi quando destravam para ele girar e minha
pressão caiu como jaca madura. Enquanto eu saí com uma bolsa de gelo na
cabeça, João Pedro saiu com o número de telefone do professor. Ele tentou
esconder, mas eu vi que guardou no bolso.
O cara tem que começar a se abrir comigo e não ter vergonha disso. Eu
nunca me importaria se ele fosse bi, gay, ou seja lá a orientação sexual
dele... mas a culpa foi minha de ser um idiota que criticava até uma simples
posição diferente. Se eu fosse ele também não me contaria dessas coisas.
Nessa tarde, ele fez amizade com todo mundo da piscina, trocaram
contatos, dançou zumba, participou de uma gincana de pegar argolas na
pisca usando só a boca e ainda saiu convidando as pessoas para o nosso
casamento.
Ele sabe que é tudo mentira, né? Tô com medo de voltar pra casa e ele
enfiar uma aliança no meu dedo. Bom, se quiser, pode usar a do
casamento... não é como se ela fosse ser útil ainda.
Visto minha roupa, assoviando para JP.
— Quer ir para a sala de jogos?
— Qual sala de jogos? Não vou deixar tu me algemar não, porque eu sei
que vai pegar o celular e ligar pra sua ex.
Reviro os olhos, suspirando.
— Só pra você saber, eu nem pensei na Olívia esses dias. Acabei de
pensar agora por que você falou.
— Caralho, o que um chá não faz, hein — ele tem me azucrinado com o
fato de eu estar mancando. Só que ao mesmo tempo tá todo felizinho com
minhas aventuras. O palhaço ama implicar comigo, mas eu duvido que
tenha alguém se importe tanto quanto ele.
— Vai começar?
— Não, você tá bonitinho de bom humor. Não vou estragar.
— Então tira sua bunda da água e vamos jogar. Meus dedos estão
gangrenando de abstinência.
Ele sai da piscina, pronto para irmos.
Porém o pior acontece.
O nosso bipe vibra.
Sara acontece.
— Meu ovo! — João Pedro resmunga. Ele ficou puto, porque quando
estava quase ficando com uma comissária de bordo no corredor do nosso
andar, Sara deu aviso chamando todas elas para uma reunião urgente.
Foi estranho, Sara nunca apareceu para essas coisas. Parece que foi até
premeditada, assim que ele estava quase beijando a mulher, o anúncio veio
mais alto que o de costume.
“Oi, aqui é a Sara, sua comissária de bordo particular.”
— Não, eu não vou nem esperar ela mandar dessa vez! Eu vou mostrar
que eu sou independente!
Sem qualquer aviso prévio, João Pedro me segura nos ombros, me
puxando para si em um abraço apertado, seguido de uma apalpada na
bunda, depois faz uma massagem desajeitada nos ombros, me puxa para
uma dança que se resume a me girar feito peão e quando eu achei que não
dava pra piorar, ele pega no meu pau e me dá um selinho.
Tudo que Sara já nos mandou fazer anteriormente e o que por ventura
ela pudesse pedir lá na frente.
Eu arregalo os olhos, estático, sem ter tido tempo de reação.
João Pedro olha para cima, como se a Sara fosse Deus.
— Mais alguma coisa? Hein? Ou eu posso ir jogar sem você me
azucrinar, malvada artificial?
“Hoje Piriquita e eu não viemos dar nenhuma instrução aos casais, mas
sim dar um aviso de que a nossa instrutura de pompoarismo teve que
cancelar às aulas do dia devido a uma questão de saúde. Esperamos que
ela se recupere logo e vocês possam aprender essa tática mágica. Até
logo, marujos.”
Cruzo os braços, empurrando a bochecha com a língua, encarando João
Pedro com deboche. É preciso muita força para não gargalhar da cara dele
ao perceber que fez tudo desnecessariamente.
— Ah, era só isso que ela ia mandar? — Ele coça a nuca, ficando
tímido. É um enorme prazer o ver passando vergonha e não eu. — Foi mal?
Balanço a cabeça.
— Da próxima vez, escuta o que ela tem pra falar! — Bato no seu
ombro. — E só pra constar, você tá com bafo!
— Eu pago as contas do apê por um ano se você não contar que isso
aconteceu.
— Se da próxima vez que me der um selinho, escovar os dentes, já fico
feliz.
Ele sai me puxando do deck, nos levando para a área vip, morrendo de
vergonha. Escuto algumas pessoas dizendo que vou sair mancando no dia
seguinte, outras que tenho sorte e uma senhora me recomendando terminar
esse relacionamento tóxico.
Essa última eu dei risada.
O relacionamento tóxico que eu tinha já acabou, minha senhora. A
galhada na minha cabeça é prova disso.

— Aqui só tem jogo modinha. — Reviro os olhos, observando os games


disponíveis na sala. Tá parecendo mais um fliperama para festa de
aniversário de criança rica, naqueles salões de festas gigantescos. Ok,
minhas festas de aniversário eram assim, mas eu tinha games legais.
— Para de reclamar, você queria que tivesse o quê? Uncharted?[43]
— Não precisava de tanto, mas algo além dos jogos de Kinect e Fifa.
— Tem Just Dance. — Ele provoca, só porque eu passei vergonha em
um fliperama uma vez. Em minha defesa, eu tropecei nas balinhas que
alguém tinha deixado cair no chão. Eu não dei com a cara no saco de um
senhor de setenta anos porque eu quis, foi puro acidente.
— Prefiro jogar boliche.
Ligo o Xbox à contragosto.
A sala de jogos não é nem de longe como eu esperava. Só tem as coisas
óbvias daqueles fliperamas pequenos dos shoppings. Uma máquina de jogar
basquete, uma de pegar ursinhos de pelúcia, aqueles globos para você enfiar
uma moeda e ganhar um brinde, XBox, boca de palhaço, sinuca e hóquei de
mesa.
Tá, não é tão ruim, mas eu queria algo diferente.
Por três mil reais, eu queria que tivesse um cosplay de Shikamaru pra
jogar uma partida de Shogi.[44]
— Eu não gosto do boliche, prefiro jogar tênis. — João Pedro pega o
outro controle.
— Não lembro de ter te chamado.
— E vai jogar sozinho?
— Eu prefiro, a gente sempre briga jogando um contra o outro.
— Então o que acha de chamar as meninas?
Arqueio a sobrancelha.
— No plural? — Solto uma risada debochada. — Tá querendo passar
mais tempo com a Valentona?
A expressão dele se fecha na hora.
— Não, é que jogar a três é chato, tem que ser de quatro.
Comprimo os lábios.
Quinta série, eu te proíbo, você não vai…
— De quatro é? — droga, não deu pra segurar.
Ganho uma almofadada do Pac-Man na cara.
Tudo bem, eu mereço depois dessa.
— Vai chamar elas ou não, cacete?
— Vou chamar, mas guarda o cacete pra você.
— Eu vou enfiar ele no meio do seu rabo e… oi, Pérola! — Ele estava
pronto para xingar até a minha ascendência egípcia, quando ligo de
chamada de vídeo para Pérola, apontando para o rosto dele.
— O que você vai enfiar no meu rabo? — Ela gargalha
despreocupadamente. A tranquilidade com que ela brinca com a ameaça de
algo lhe ser introduzido no ânus é de ser estudada pela Nasa.
— Nada não, eu tava falando de enfiar no do Joca.
Epa, espera aí…
Tento desligar, mas ele pega o celular da minha mão.
— E me ligaram pra eu ajudar? — escuto a risada de Manuela de fundo.
— Não, a gente te ligou pra você vir aqui.
— Transar?
— Não tarada, jogar videogame. Estamos na sala de jogos Vip. — Ele
gira o telefone fazendo um tour. Aceno quando fico na direção da câmera.
— Eu posso ir junto? — a cara de Manuela aparece no canto da câmera.
— Se eu disser não, você vai obedecer? — JP pergunta entediado.
— Não.
— Então por que perguntou?
— Porque minha mãe me deu educação… quer dizer, minha mãe não,
meu pai me deu educa… quer saber, eu me eduquei sozinha. Estamos indo,
tchau.
A ligação é desligada na nossa cara.
— Era dela que você gostava na escola? — provoco João Pedro com a
mesma pergunta que ele me fez no dia anterior.
— Vai ver se eu tô lá na esquina. — Ergue o dedo do meio.
— E se eu te achar, digo o quê?
— Pra eu te dar uma surra de vara de amora. Palhaço.
É, realmente falta de sexo deixa as pessoas sem senso de humor. Basta
ver que agora o relaxado sou eu e JP que está a ponto de socar alguém.
Bom, mas ele não está transando porque não quer.
Ou talvez porque uma certa pessoa que ele quer, está aqui.

— Eu não vou jogar Just Dance. — Nego com a cabeça pela milésima
vez.
— Por favor, Honey — Pérola faz beicinho segurando meu rosto, mas
nem isso me convence.
— Eu só sei dançar a dois, não me venham com isso.
— Por favor. — Bate os cílios e até tenho vontade de rir, mas não de
dançar.
— Sem chance. Vai você e a Manu.
— É que a gente quer ver vocês passando vergonha, não deu pra
perceber ainda? — a prima de terceiro grau do capeta sorri debochada,
tentando pegar um ursinho da máquina. Manu já gastou cinco reais. Do JP.
Ela pegou a carteira dele como se fosse uma trombadinha.
— Vem, Vascaína. Eu danço com você. — Ele desvia o olhar para mim,
sorrindo ladino. — Posso?
Dou de ombros, fingindo que nem é comigo.
— Ela quem sabe.
— Vai ser bom acabar com você nesse jogo também — Pérola vai
rebolando para a frente da televisão.
— O que acha de mais uma aposta então? — ele propõe.
— Só deixa a gente fora dessa! — Manu e eu gritamos antes de sermos
jogados em mais uma presepada desses dois. Só nessas brincadeiras eu já
ganhei uma instrutora sexual e uma sessão premium para ver ele e
Manuela se matando numa sala.
Poderia ser pior...
— Eles são muito chatos — JP resmunga enquanto escolhe a música.
— Por que andamos com eles? — Pérola finge decepção.
— Eu ando com o Joca porque ele é rico, e você com a Manuela?
— Olha, é uma ótima pergunta — Minha sereia caçoa, ganhando um
gesto obsceno da amiga.
— Me chupar você não quer, né Cheetos?
— Foi mal, amorzinho. Não é minha praia.
João Pedro finalmente se decide por uma música no jogo, me fazendo
gargalhar quando começa a tocar.
— Ragatanga você desenterrou. — Sento ereto no sofá, erguendo o
celular para filmar essa vergonha alheia. Preciso de provas quando eu
contar isso para todo mundo como ele fez com meu chifre. Capaz que eu
mande o vídeo até para a Olívia.
Por incrível que pareça, o cretino sabe mesmo a coreografia e os dois
fazem uma batalha acirrada durante toda a dança. Ao final, João Pedro
ganha porque empurra Pérola com o quadril, a fazendo desequilibrar e errar
o passo no movimento final. Ela pula nas costas dele batendo na sua cabeça,
enquanto meu amigo corre com ela grudada feito chiclete, ambos rindo
como duas crianças que acabam de se conhecer, mas já se consideram
melhores amigos.
Eu não consigo deixar de sorrir vendo os dois. Se eu não conhecesse a
mãe do JP, diria que ela teve uma filha antes dele. É impressionante como
Pérola e ele são a mesma pessoa.
E que também tenham se tornado as minhas pessoas favoritas, mesmo
me deixando de cabelos em pé noventa por cento do meu tempo. Talvez
seja isso que eu mais goste neles. JP e Pérola são adultos, mas não vivem
suas vidas como um.
Eles não tentam ganhar rios de dinheiro, só se preocupam em ter o
suficiente para viver a vida que desejam. Não se preocupam em brincar e
parecerem ridículos, nem em revelar seus gostos infantis, pouco se fodendo
para o que as pessoas vão pensar.
Sorrio, aproveitando a brincadeira deles. É bom de ver. Eles são leves,
livres e me fazem sentir assim. Como se eu também fosse.
Sinto um peso do meu lado e Manu joga um alce de pelúcia no meu
colo.
— Lembrei de você, então é presente.
Encaro os chifres do bicho e empurro o interior da bochecha com a
língua.
— Sacanagem, filha legítima do Sete Peles. Sacanagem…
Manuela gargalha quando eu faço uma expressão emburrada, se
deitando com a cabeça no meu colo. Eu deveria jogá-la no chão.
— Eu gosto dos seus apelidos, sua criatividade combina com a minha.
— É, eu só não uso isso contra ninguém. — A ajudo a puxar seu cabelo
para o lado para que minha perna não o prenda.
— No fundo você gosta de mim, confessa. — Bate seus cílios, os
olhinhos claros e rosto angelical, quase me convencendo de que ainda pode
ter a alma salva. Quase.
— No fundo, quase achando petróleo, encontrando o núcleo da terra, eu
gosto.
— E dela? — Manu joga o queixo na direção da Pérola, que agora está
jogando as bolas de basquete do brinquedo todas em cima de JP. Ele desvia
delas, gritando que é melhor que o Keanu Reeves em Matrix.
Respiro fundo, fazendo um cafuné nos cabelos de Manu.
— Gosto. Eu gosto muito.
— Muito a ponto de fazer essa merda dar certo?
— Que merda quer dizer?
— O amor. A merda que o amor é.
— O amor não é uma merda, Manu. As pessoas são. — Encaro meu
amigo e a garota por quem estou apaixonado, e me corrijo. — Algumas são.
Porém outras são tão boas que mostram que ainda vale a pena sentir.
Manu também os observa por um tempo.
— Eu nunca quis magoá-lo, sabia? — diz baixinho, de um modo que até
eu tenho dificuldade de ouvir.
— Não. Mas ele gostaria de saber disso.
— Só que não vai. — Ela sorri de um jeito triste, parecendo vulnerável
pela primeira vez desde que a conheço. — Deixa ele sentir raiva de mim. A
raiva fez bem a ele, agora está protegido contra as dores do coração.
— Ou ele está com o coração tão dolorido que não deixa ninguém
entrar. — Encolho os ombros.
— Não faça o mesmo com a Pérola — Manu esquadrinha meu rosto. —
Não a machuque, mesmo sem querer.
Fico vermelho. E dessa vez minha vergonha é válida.
— Acho que eu vou magoar de qualquer jeito. Agora é inevitável.
— E se você tentar? Se tentar fazer dar certo?
Franzo o cenho.
— Não foi você mesma que disse que eu podia estar confundindo com
carência, que eu moro longe, que vou magoá-la com minha confusão?
— Foi eu mesma que disse, mas o que eu digo não se escreve a caneta.
Se escreve a lápis e fraquinho, porque eu mudo de ideia como quem muda
de roupa.
Minha veia da testa lateja.
— O que quer dizer com isso?
— Eu quero dizer para você pensar na possibilidade de levar esse
sentimento para além desse navio.
Meu peito infla com algo como esperança. Eu nem cogitei ter uma,
porque nem Manuela achava que podia dar certo.
— Você acha que daria certo?
— Se estou colocando o coração da minha melhor amiga, a pessoa mais
importante do mundo pra mim, em jogo, é porque eu tenho certeza.
Pisco surpreso.
E desconcertado com a confiança dela.
— Ai, no cu não! — João Pedro grita, enquanto Pérola gargalha depois
de dar uma dedada nele.
Manu gargalha e eu faço careta.
Ela não vai chegar nem perto de mim com esse dedo.

— A máquina comeu minha moeda! — balanço a coisa, a forçando a


me dar meu prêmio.
Tudo bem que dentro dela só tem brinde vagabundo, como aquelas
miniaturas de animais, carrinhos de plástico, apitos, anéis e colares que
piscam e uma infinidade de coisas que eu não preciso. Mas já que botei um
real aí, eu vou atrás até do capitão do navio para ter meu prêmio inútil.
— Chuta. — Pérola aconselha, jogando hóquei de mesa com Manuela.
João Pedro está sentado no sofá com a mão dentro do copo de água gelada,
porque foi jogar com a baixinha e ela acertou o disco no dedo dele. Agora
está emburrado, como uma criança.
— Enfia o dedo no buraquinho e tenta puxar. — Manu fala
inocentemente, mas eu fico mais vermelho que pimentão, me lembrando
que foi exatamente isso que fiz naquela noite. Pérola e eu nos olhamos ao
mesmo tempo e caímos os dois na risada, ela até se sentando no chão com
falta de ar. Nossos amigos nos observam confusos, mas eu não tenho a
menor intenção de esclarecer a situação.
Essa humilhação eu vou deixar guardada comigo.
Mesmo rindo, eu faço o que Manuela disse e enfio o dedo na abertura
da máquina, notando que tem um objeto preso dentro dele.
O puxo com força, vendo ser um anel cor-de-rosa, em formato de flor,
daqueles que dão em festas de casamento, que você aperta e eles piscam.
Eu sei que dão em festa de casamento porque eu encomendei deles para
o meu.
Guardo no bolso, não querendo pensar nisso.
— Você realmente ficou bom em tirar coisas do buraquinho — Pérola
graceja e estreito os olhos.
— E você ficou ótima em não me ajudar com isso.
Manuela faz ânsia de vômito.
— Eca, eu acho que entendi o que quiseram dizer... e eca! Nunca mais
te deixo passar essa mão em mim, Cheetos!
Nem ligo para ela, descontraído demais para me importar.
Não é como se eu ainda tivesse alguma dignidade para preservar.
 
4 dias.
Exatamente quatro dias para essa edição do Royal Pleasure Line ter fim.
Para que eu volte para o Rio com Manuela.
Para que o Gui volte com JP para São Paulo.
Eles vão mesmo se casar?
Eles realmente se amam como um casal?
Será que estou tão apegada ao nerd com perfume de mel, que não vejo
o que está na minha frente?
Será que vamos manter contato depois daqui?
Será que tudo que estou sentindo agora, vai desaparecer rapidamente
como foram com todos os outros da minha vida?
Será, será, será…
São muitas perguntas para pouco tempo de resposta.
Durante todas as minhas sessões de tantra, estive desligada pensando
sobre isso. Talvez o fato de o navio ter ancorado em Jericoacoara e eu não
ter tido folga para acompanhar os meninos seja bom ao final das contas. Eu
precisava desse tempo para pensar.
Ontem, depois da noite de jogos, descobri duas coisas que para mim
foram novidades.
A primeira: eu vou sentir muita falta do Corinthiano das cantadas ruins.
E a segunda: Gui vai sentir a minha.
E não são palavras tiradas da minha imaginação fértil. São palavras
ditas pelo próprio João Pedro.
Enquanto Gui jogava hóquei de mesa com Manuela, JP e eu
conversamos algumas coisas. O assunto começou com o Corinthiano
dizendo que nunca tinha visto João Guilherme tão feliz e sendo ele mesmo.
E terminou dizendo que tinha medo de que, assim que o cruzeiro acabasse,
ele voltasse a ser o cara que reprime seus instintos.
Eu não soube o que falar num primeiro momento, até que minha
consciência me fez fazer a pergunta que me assolava.
“Você se sente incomodado com a minha presença em relação a ele?”
JP sabia que eu não estava me referindo a um ciúme de nível físico e
sim a um incômodo sentimental.
“Só fico incomodado que vocês não tenham se conhecido antes”.
Essas foram as palavras dele. E antes que eu fosse capaz de questionar o
que quis dizer com isso, Manuela acertou a boca do estômago de João
Guilherme com o disco. Eu nunca quis tanto enfiar aquela merda goela
abaixo dela.
Só que eu não vivo sem meu Minion, então simplesmente aceitei que
não teria a resposta que queria e corri para ajudar o nerd que já começava a
ficar roxo pela falta de ar.
Eu fico me questionando, se tivessem mais alguns dias de cruzeiro, o
que mais nele sairia machucado?
Gui poderia muito bem ser considerado o Sr. Batata, todo
desmontadinho.
E eu iria querê-lo ainda assim.
— Ah, que confusão do cacete! — Entro na minha cabine por volta das
19h, depois da última sessão. Esperava encontrar o lugar vazio, porém
Manu está jogada na cama lendo seu gibi.
— Que confusão? — Ela tira os olhos do pequeno livro para me encarar
sob os cílios.
— Nada não.
— Por acaso tem a ver com um certo nerd?
— Você sabe que tem.
— Deveria falar com ele, sabia?
— Falar o quê? — Abro um pacote de M&M de amendoim.
— Que tá gostando dele.
— Ele vai se casar, esqueceu?
— Mas se ele gostar de você também…
Rio, negando com a cabeça.
— Eu não tenho a mínima intenção de acabar com o noivado dele. —
Pelo menos a parte correta da minha mente não tem.
— Mas você não acha esse romance um pouco estranho?
Assinto, sendo obrigada a concordar.
— Desde o começo eles agem mais como amigos do que noivos, mas
pode ser só como eles demonstram na nossa frente.
— Duvido muito… — Manu cantarola.
Estou pronta para entrar no banheiro, tomar um banho e cair na cama,
quando recebo uma mensagem do Gui.
Gui: Bebê, seu expediente já acabou?
Ele quer me foder e é sem cuspe. Pra quê me chamar assim?!
Eu: Oi, Honey. Sim, acabei de entrar na cabine.
Gui: então desce aqui na praia, vamos ficar sentados na areia.
Eu: mas você não tá com seu noivo? Não quero atrapalhar.
A resposta dele demora um pouco mais para vir.
Gui: O João Pedro ficou incumbido de comprar as fantasias para a
última noite do cruzeiro. Estou sozinho aqui e estou com saudades de você.
Eu: A gente se viu ontem...
Gui: exato... ontem e não hoje. 24h é tempo demais longe de você.
Eu: você está na praia onde o navio ancorou?
Reprimo a vontade de dizer que também sinto saudade.
Gui: sim. Só desça a rampa, caminhe até o final do píer e vai me ver,
estou te esperando.
Penso alguns segundos, me perguntando se é uma boa ideia.
— Vai — Manu me assusta ao falar.
— Vai o quê?
— Não sei, mas vai.
Essa insegurança em fazer algo está me matando. Eu nunca fui a garota
que pensava demais antes de agir. Eu sempre estive tão ocupada pensando
pelas pessoas ao meu redor, que quando chegava minha vez, já estava
exausta e apenas fazia o que vinha na minha cabeça.
Mas a coisa está mudando de rumo quando eu acho que posso sair com
o coração parecendo uma peneira de tão furado.
Manuela tira o lenço do uniforme do meu pescoço, solta meus cabelos
do coque e abre dois botões da minha camisa branca.
— Agora vai.
Ganho um tapa na bunda para sair do quarto e… e eu saio.
Acho que não vai fazer diferença se eu ficar perto dele mais quatro dias.
Vai doer de qualquer jeito.

Desço a rampa o navio, caminhando pelo píer, até meus pés tocarem a
areia fofa. Me livro das havaianas, as segurando pelas alças. Vejo João
Guilherme sentado na areia, observando o mar. Ele ainda não notou minha
presença, está com as pernas encolhidas ao peito, seus braços as
envolvendo, enquanto parece perdido em pensamentos.
Espero o quebrar de três ondas para me fazer presente, tocando seus
ombros.
Seu corpo se sobressalta levemente, mas logo o sorriso bobo toma conta
do seu rosto.
— Oi — sussurro, me sentando ao lado dele.
— Oi. — Gui me abraça e deito a cabeça em seu ombro. — Como foi
seu dia?
— Cansativo, mas bom. E o seu, curtiu Jeri?
— Passei o dia naquelas redes dentro d’agua, minha bunda tá toda
enrugada.
— Deixa eu adivinhar, lendo?
— Uhum, eu tô terminando um mangá. — Ele puxa um pequeno livro
da sua lateral, me mostrando.
— E é bom?
— Não faz muito meu gênero, mas até que é legal.
— Hum…
Suspiro, aproveitando a brisa mais gélida. Isso é bom para acalmar.
— Você tá muito calada, aconteceu alguma coisa?
Alguma? Aconteceram várias. E todas referentes a você.
— Posso ser sincera?
— Achei que sempre fosse.
— Eu não costumo mentir, mas isso não quer dizer que eu não esconda
algumas coisas que penso.
— Então vai, seja sincera… você pode confiar em mim.
Suspiro, me aconchegando mais à sua lateral.
— Eu estou preocupada com o fim da viagem.
O corpo dele tensiona.
— Com o que exatamente?
— Com o fato de você ir embora e a gente nunca mais se ver.
Admito de uma vez e João Guilherme segura meu rosto com as mãos
quentinhas, me obrigando a encarar o azul das suas íris, pintados de
pequenos pontos pretos.
— Por que tem que ser assim? — a voz dele denota a mesma agonia que
sinto por dentro. — A gente nem mora muito longe, ainda podemos nos ver.
Nego com a cabeça.
Não me faça acreditar que você vai se importar comigo depois que essa
viagem acabar, Honey.
Na vida real, mulheres como eu não são as que você apresenta para a
família. Sou a que você esconde da própria esposa. Ao menos foi assim a
minha vida toda. A porra da segunda opção que transa bem e te faz rir, mas
não é digna o bastante para ser assumida.
No começo, eu achei que era um problema exclusivo dos caras. Depois,
eu achei que o problema fosse comigo. Talvez por eu nunca ter aberto o
livro da minha vida para nenhum deles, ou eu viver como uma adolescente
de vinte e sete anos em busca de recuperar a criança que não pôde ser. Mas
seja como for, culpa deles ou minha, no final todos foram embora.
Estou acostumada a ver o amor como isso. Algo a se passar na minha
vida, mas nunca ficar.
Ou melhor, amor não, porque nunca o senti.
Digamos que eu sou “a garota antes de você”, aquela que apenas
guardou a cadeira para quando chegasse a hora de a verdadeira dona ocupar
o lugar.
Eu só saí inteira de todas as partidas, porque nenhum deles abriu a porta
da minha vida e saiu dignamente. Ao contrário. Mesmo com ela
destrancada, preferiram arrombar com traições e mentiras. É por isso, que
eu nunca chorei por eles. Porque não se chora por quem escolhe te ferir.
— Você vai estar ocupado com a própria vida quando sair daqui. —
Tento não demonstrar a mágoa na minha voz. Ele não tem responsabilidade
com o que outras pessoas causaram. — Eu já não vou ser mais sua fonte de
entretenimento.
— Pérola... — Gui comprime severamente as sobrancelhas. — Nunca
mais diga isso. Nem aqui e nem quando esse cruzeiro acabar, você não é
apenas uma fonte de entretenimento. Eu nunca te tratei assim, por favor não
haja como se eu tivesse.
Acaricio seu cenho para que ele o relaxe.
— Eu não disse que você tratou. Mas já ouviu falar em romances de
carnaval? É basicamente o que está acontecendo aqui. O clima dessa
viagem é propício para romance, mas quando a vida real retomar aos eixos,
você estiver na sua casa, com seu noivo, seu trabalho, seus amigos… eu
vou ser uma lembrança boa. — Forço um sorriso. — E tudo bem, eu quero
que você lembre de mim com felicidade. Meu medo é só não conseguir
tornar você apenas uma lembrança.
— Não torne. — Ele une nossas testas, descendo as mãos para meus
ombros, braços e costas, em uma necessidade de me tocar que ameaça
arruinar minhas barreiras. — Eu não quero ser só uma lembrança na sua
vida. Não importa que seja boa ou ruim, lembrança é passado e ninguém
vive nele por tempo o suficiente.
Fecho os olhos, tentando ignorar o que suas palavras fazem com as
borboletas no meu estômago.
Empurro as pernas dele para baixo, subindo em seu colo, com uma
perna de cada lado do seu quadril. Os braços dele me envolvem tão
rapidamente, que a impressão que tenho é que Gui pensa que sairei
correndo daqui a qualquer momento. Seus dedos se estreitam em minha
cintura e acariciam o desenho de sereia.
Como vou deixar outra pessoa a tocar, se nenhuma vai ter tamanha
devoção?
Como eu sequer vou conseguir olhar essa tatuagem sem lembrar dele?
Fuço o pescoço de João Guilherme com a ponta do nariz, aproveitando
a sensação da sua pele se arrepiando ao meu toque.
— Você quer que eu só chame a você de Honey, quer que eu te
considere mais que uma lembrança, mas é você quem vai embora e eu que
vou ficar nesse navio vendo seu fantasma pelos corredores. Não parece
justo.
Sinto seu suspiro em meus ombros.
— Eu sei. Mas eu não estou conseguindo pensar logicamente agora. Eu
só sei o que eu quero.
Balanço a cabeça.
— E o que você quer? De verdade?
— Você. Eu quero você.
Minha respiração trava no meio da garganta.
Não se emocione, Pérola.
Me querer não necessariamente quer dizer que está apaixonado. Só quer
dizer que gosta de mim o suficiente para aproveitar a minha companhia. Eu
sou uma pessoa muito legal, as pessoas querem ficar perto de mim. Mas
preciso me lembrar que elas nunca permanecem tempo demais.
Enfie isso na sua cabeça!
Me afasto do seu ombro para o olhar.
— Você me quer, porque não conhece muita coisa sobre mim. — Sorrio,
acariciando suas maçãs do rosto. — Eu só te mostrei as partes boas. Não se
esqueça que sombra e luz são apenas dois lados da mesma moeda. Eu te
mostrei a iluminada e feliz, mas tem um ladinho sombrio nela também.
Gui maneja a cabeça negativamente e afasta os cabelos que voam pelo
meu rosto.
— Acha que vou gostar menos de você se tiver defeitos? — ele ri
consternado. — Pérola, eu estou esperando desesperadamente para me
mostrar alguns e eu começar a acreditar que você é real e não um ser
mitológico que eu criei na minha mente.
Engulo a saliva.
Oh, nerdzinho bom com as palavras. O universo fez esse homem tímido,
porque se não fosse, teria uma fila de mulheres atrás.
Tô me sentindo a Lupita tentando resistir ao Santos.
— Eu não acho que você vai gostar menos de mim — explico,
esperando que não refute minha lógica. Não tive muito tempo para formular
uma defesa contra os encantos desse bigodudo. — Mas no meu dia a dia
fora do navio, eu não sou tão interessante quanto aqui. Lá tem os boletos
para pagar, os problemas de adultos, família…
— Então me conte — ele me interrompe. — Me conte sobre seus
boletos, seus problemas de adulta, sua família, seus amigos, sua infância…
eu quero saber tudo. E acredite, isso não vai te tornar menos interessante.
Só vai me dar um pouco mais de esperança de que posso estar na sua vida
sem ser completamente deslocado. — Seu polegar penteia minhas
sobrancelhas. — Confia em mim, me deixa te conhecer.
Confiar... você tem noção do que está me pedindo, Honey? Eu nunca
confiei em ninguém além de mim mesma. Nunca tive essa chance. Bom,
exceto Manu. Ela foi a minha única exceção até o momento. E abrir mais
uma para ele, vai provar pro meu coração que é alguém importante demais.
Mas quer saber? Eu acho que meu coração já sabe disso.
— Tudo bem, eu vou te contar tudo — me rendo, decidida a me abrir
para alguém ao menos uma vez na minha vida. Eu não preciso ter medo que
ele vá embora, porque isso vai acontecer de qualquer jeito. Não tenho nada
a perder, que já não seja meu mesmo. — Mas adianto que a história da
minha vida não é tão feliz quanto eu sou.
— Seu passado não vai me assustar mais do que você já me assustou
nesses dias, maluquinha. Confia em mim, eu ainda estarei aqui no final da
história.
Finjo que suas palavras não me atingem. Mas elas o fazem. Porque no
fundo, quero acreditar. Preciso acreditar que alguém vai ficar.
— Ok, então...
Giro no seu colo, deixando minhas costas coladas ao peito dele,
sentindo seu coração contra minha pele. João Guilherme não abre mão de
ter seus braços ao meu redor, afastando as pernas para que eu me encaixe no
meio delas, me ladeando de todas as formas. Eu o sinto até nos malditos
poros.
Pisco para o mar, indecisa. Nunca fiz isso antes, nem sei como explicar
quem eu sou.
— Começo por onde?
— Que tal pela sua infância?
Ah, a pior parte? Ok.
— Desde que eu me entendo por gente, meu pai bebia muito. — Talvez
Gui espere que eu conte coisas bonitas, mas infelizmente não há muitas
histórias felizes dessa época. — Ele não tinha uma família bem estruturada,
os pais eram pessoas realmente terríveis. Ele tinha uma irmã mais nova,
mas ela foi expulsa de casa depois de engravidar cedo. Descobri anos
depois que tenho quatro primas com nomes de joias como eu… às vezes eu
vejo as redes sociais delas, mesmo que não façam ideia da minha
existência. Acho que eu gosto de pensar que elas também são parte do meu
pai, da minha família.
— Por que não fala para elas quem você é? — sussurra, fazendo um
carinho gostoso nos meus braços.
Encolho os ombros.
— Quando a mãe delas foi expulsa, meu pai já tinha sido antes. Ele
ficou sabendo, mas não fez nada para ajudar e sentia remorso por ter
abandonado a irmã, já que eram muito próximos na infância. Não quis me
colocar na vida dela para ser uma lembrança do irmão que nunca a ajudou.
— Como vocês tem nomes de joias se eles não se falavam mais? Foi
coincidência?
Nego com a cabeça, sorrindo ao me lembrar do nascer do sol do dia que
meu pai me contou essa história.
— Os pais deles realmente eram pessoas amarguradas, então sempre
diziam palavras cruéis aos filhos. Quando eles eram adolescentes,
prometeram que dariam aos seus filhos nomes de pedras preciosas, para que
sempre se lembrassem do seu valor. Eles queriam ser os pais que não
tiveram… essa minha tia deve ter conseguido, pelo que vejo. Já meu pai…
— suspiro. — Ele tentou. Realmente tentou.
Engulo o nó que se forma na minha garganta.
É, eu sei que ele fez o que podia.
— Isso é bonito… e triste.
— Concordo.
— E como ele conheceu sua mãe?
— Bom, quando meus avós o expulsaram, ele se mudou de Brasília para
São Paulo. A minha mãe estava trabalhando na rodoviária de lá
temporariamente e ela me conta que quando o viu descer do ônibus em um
dia de chuva, ela se apaixonou à primeira vista. — Engulo a saliva,
abraçando os braços de Gui ao meu redor. — Sabendo tudo que ela passou
por ele, eu gostaria muito que tivesse olhado para outro lado naquele dia.
Talvez ela tivesse sido feliz.
— Mas você não existiria. — Ele beija meu ombro. — Seja como for,
agradeço sua mãe por ter olhado para o seu pai naquele dia de chuva.
Sorrio, querendo correr para longe dele, ao mesmo tempo que o
implorar para ficar.
Tomo uma longa respiração antes de continuar.
— Eles começaram a namorar em uma semana e com um mês já
estavam morando juntos. A vida em São Paulo não era tão fácil e mamãe
estava lá apenas temporariamente, já que a empresa de transporte oficial
que ela trabalhava era no Rio. Eles vieram para cá e ficaram morando na
zona leste, quando engravidaram de mim depois de seis meses de
relacionamento.
Parando para pensar, meus pais foram intensos demais em seu
relacionamento. Talvez eu tenha tanto medo de me apegar as pessoas por
isso. Prefiro as considerar passageiras do que as colocar num papel da
minha vida onde não consiga as tirar depois. Foi assim com minha mãe. Ela
nunca conseguiu afastar meu pai.
— Sua mãe que sustentava vocês?
— Sim. Meu pai fazia uns bicos aqui e ali, mas sempre perdia o
emprego porque bebia no horário de almoço e esquecia de voltar depois.
— E com quem você ficava? — há preocupação na voz dele.
Bufo uma risada.
— Comigo mesma. — Dou de ombros. — Mamãe não tinha dinheiro
para contratar uma babá. Até os três anos eu ficava com uma vizinha, mas
então ela se mudou e mamãe precisou me deixar em casa sozinha. Ela
ligava a tevê, colocava um DVD pirata dos filmes da Barbie para eu assistir
e tirava o cano do gás do fogão para eu não colocar fogo na casa.
— Como você comia?
— Ela deixava pão com mortadela e suco de laranja de pozinho
dissolvido na água em cima da mesa. — Ainda consigo me lembrar do
sabor daquele pão. Era simples, mas acho que nunca comi nada tão bom. —
Quando sobrava um pouco mais de dinheiro, ela também deixava aquelas
moedas de chocolate para eu comer. Eu sempre comia metade e esperava
meu pai aparecer para comer o resto.
— Por que ele? — sua dúvida é válida.
— Porque doce o deixava menos bêbado.
Gui me aperta mais contra si.
— Eu sinto muito, Pérola.
— Não sinta. Pode parecer triste, mas eu encontrava uma razão para ser
feliz com os gestos da minha mãe mesmo na ausência e nos poucos minutos
que via meu pai conseguindo enxergar apenas uma de mim.
Paro de falar por alguns instantes, deixando o sentimento que quer
irromper minha garganta, voltar para o lugar. Gui me deixa ir no meu
tempo.
— Eu fui crescendo e ficando independente. Cuidava da casa, ia para a
escola, fazia minhas tarefas… até que mamãe foi promovida e nossa vida
melhorou muito. Ao menos no sentido financeiro. Nós nos mudamos para
uma casa melhor, que minha mãe conseguiu financiar e eu também vendia
doces e pulseiras na escola para ajudar. Ela nunca aceitou o dinheiro, mas
papai sempre o achava guardado nas minhas coisas. Bom… você deve
imaginar para o quê ele o queria.
O corpo de João Guilherme estremece.
— Você tem raiva dele?
— As pessoas acham que eu deveria ter…, mas não tenho. Eu tenho
pena, porque ele podia ter sido muito feliz.
— Desculpa, Pérola. Mas eu estou com muita raiva dele agora.
Entrelaço meus dedos aos seus.
— Eu entendo.
— Como pode falar dele com esse carinho na voz?
— Porque quando era o meu pai falando no lugar da bebida, eu me
sentia como uma princesa protegida, que nada no mundo poderia me abalar,
porque eu tinha o meu príncipe ali. Meu pai sempre era o príncipe nas
minhas histórias. O que me salvaria de cavalo branco de todos os perigos.
— Mas ele não foi, não é?
Nego com a cabeça.
— É por isso que eu parei de acreditar em contos de fadas. E em
príncipes. E em cavalos brancos. Mas principalmente, parei de acreditar em
mim como uma princesa. Eu entendi que eu precisava ser como uma sereia,
porque ela se salvaria sozinha ao final do dia. Era ela quem arrastaria para o
fundo do oceano quem ousasse feri-la.
— Por isso a tatuagem?
— Uhum. Essa sereia é meu lembrete diário de que eu estou sozinha no
mar e que preciso fazer o que for preciso para sobreviver nele.
— Você não está sozinha, tem a Manu… — Ele engole a saliva
audivelmente. — E tem a mim, também.
— Só não sei por quanto tempo — confesso. — A vida é um sopro,
Gui. Em um momento as pessoas estão aqui e no outro já não estão mais.
No fim, só nos resta a nós mesmos. E pode parecer triste pensar assim, mas
na verdade foi isso que me salvou em todos os momentos. Porque eu nunca
depositei em ninguém a carga de me fazer feliz. Eu segurei a tapeçaria da
minha vida com as unhas e a obriguei a me entregar a felicidade que eu
merecia.
— E ela entregou?
Sorrio, girando meu rosto o suficiente para ver o dele.
— Você está aqui comigo agora, não é? — Selo nossos lábios em um
beijo rápido. — Então sim, ela entregou. De tempos em tempos a vida me
presenteia. Primeiro foi a Manu, depois o tantra e agora você.
O rosto dele fica ruborizado e consigo enxergar mesmo na penumbra da
noite iluminada apenas pelas estrelas e lua cheia.
— Como foi quando seu pai faleceu?
João Guilherme sempre muda de assunto quando o elogio vai em sua
direção… como pode esse homem não se enxergar? Minha vontade é
segurá-lo pelos ombros até que entenda seu valor.
— Mamãe e eu sempre esperávamos receber essa notícia. Sempre que
ele passava dias fora de casa, a gente congelava quando o telefone tocava.
Mas não foi como esperávamos. Meu pai faleceu de cirrose. Não de um
acidente, de uma briga, não na mão de policiais… isso já foi um alento. Ele
faleceu uma semana antes do meu aniversário de 15 anos, no hospital.
Inspiro e solto o ar devagar antes de continuar.
— Minha mãe tinha dado tudo de si para fazer uma festinha simples
para mim e até me deu a opção de manter tudo, mas não podia fazer isso
com ela enquanto seu mundo desabava. Eu desconvidei todas as minhas
amiguinhas e aprendi que na vida, um sorriso fingido ainda é um sorriso. Eu
o coloquei no rosto e cantei parabéns apenas com minha mãe do lado,
comendo o bolo até lamber os dedos e mostrei a ela a garota mais feliz que
o mundo poderia ver… mesmo que naquele dia, eu não tivesse meu pai para
dançar a valsa ao meu lado. Desde então, eu sou sempre a mulher mais
sorridente do lugar, porque se as pessoas me veem assim, eu também
acredito que sou.
Pigarreio, esfregando o rosto em meu ombro para limpar a lágrima que
escorre depois da fala de Pérola. A seguro tão forte contra mim, que acho
que ninguém conseguiria tirá-la dos meus braços.
— Eu queria ter estado lá. Eu teria dançado a valsa com você.
Pérola brinca com os dedos da minha mão.
— Você dançou. — Ela me corrige. — Me comprou um vestido lindo,
digno de uma princesa, e dançou lentamente comigo ao som de “jeito
moleque”, mesmo que estivéssemos totalmente fora de ritmo. Pode não ser
a música que a Pérola de quinze anos escolheria, mas a Pérola de vinte e
sete não mudaria nada.
Acho que nunca fiquei tão grato por gastar dinheiro como me sinto por
ter comprado aquele vestido.
— Você estava linda. — Beijo seus cabelos. — É linda.
— Eu estava mais que linda.
Rio da sua falta de modéstia.
— Mas falo sério, eu gostaria de ter te conhecido antes — admito.
— João Pedro falou a mesma coisa.
— Que queria ter te conhecido antes? — O sem vergonha tá dando em
cima dela nas minhas costas?
— Não! — Pérola gargalha. — Ele disse que queria que você tivesse me
conhecido antes. Não entendi o porquê disse isso, mas foi o que aconteceu.
Ah… ufa. Não vou precisar colocar pó de mico na cueca dele.
— Isso quer dizer que ele gosta de você… — esclareço. — JP não
gostava nem um pouco da minha ex, então se falou isso, realmente é
verdade.
— Mas ele devia não gostar dela porque gostava de você.
Faço careta. Eu tenho que colocar fim a essa mentira. Se tornou
insustentável. Só preciso achar um jeito de contar sem que ela me odeie.
— Não, Pérola. Ele só nunca gostou dela mesmo. E fico feliz que ele
goste de você… isso é importante.
— Eu aprendi a gostar do Corinthiano também — dá uma risadinha.
Apoio o queixo no seu ombro, observando as ondas quebrarem,
sentindo o cheiro da maresia misturado ao perfume da mulher que roubou
todos os meus pensamentos para si.
Como seria ter ela como namorada? Como seria poder sair com ela e
meu melhor amigo e os dois realmente se darem bem? Como seria ter
alguém que se interessa pelos meus assuntos? Como seria estar com alguém
que eu admire ao ponto de me reverenciar? Como seria estar com alguém
que me sinto completamente livre e aberto a ser eu mesmo? Como seria
ficar com alguém que faz meu coração arrebentar o peito e ao mesmo
tempo meu pau estourar a braguilha da calça?
Parece superficial, mas ela me faz senti-la em tantos sentidos ao mesmo
tempo, que me sinto como uma concha: feito para envolver uma pérola.
— E a Manu, como você a conheceu e começou a trabalhar no navio?
Gosto de ouvir ela falar. Gosto de saber sua história. De a conhecer um
pouco mais.
— Minha mãe não aceitou que eu não fizesse faculdade, então comecei
a fazer arquitetura. Fiz quatro semestres, quando nesse último conheci
Manu. Ela estava no segundo semestre de direito. Nós ficamos amigas
porque minha menstruação vazou e ela me ajudou naquele dia. Começamos
a sair juntas e o pai dela trabalhava com terapias energéticas. Eu me
interessei pelo assunto depois que ele fez o reiki [45]em mim e fui pesquisar
sobre essas áreas. Descobri o tantra e comecei a fazer os cursos escondida
da minha mãe.
— Sua história é tão mais legal que a minha. — Coço a nuca. — Agora
parece que eu nem vivi.
— Isso porque você não ouviu nem a metade — ela gargalha divertida e
fecho os olhos para aproveitar o som gostoso. — Quando eu consegui um
estágio em uma clínica de massagem, fui até a faculdade e tranquei o curso.
Mamãe ficou doida, brigamos feio naquela época. Ela é pessimista demais e
achava que tudo ia dar errado se eu não seguisse seu plano. Não posso
culpá-la, ela sofreu muito, mas era difícil viver com alguém que só falava
de problemas, de contas, de desastres, de coisas que davam errado… e não
importava o que eu fazia, ela não conseguia ver a vida com outros olhos.
Então eu decidi que deveria me mudar.
— Foi com a Manu?
— Sim. Fomos até o banco e pedimos um empréstimo para comprar o
apê. Ele parece uma lata de sardinha, mas Manu e eu somos apaixonadas
por aquele lugar. — Pérola suspira. — Passei um ano sem falar com a
minha mãe por isso, ela não aceitava o rumo que eu estava dando na minha
vida. Depois desse tempo, eu vi que não podia sentir raiva dela. Tudo que
ela via, da forma como via, foi a vida que a obrigou a ser assim. Ela já tinha
perdido o homem que amava e não era justo que eu saísse de sua vida
também. Então eu liguei para ela e disse que mesmo que ela não quisesse
mais saber de mim, eu queria saber dela.
— E surtiu efeito?
— Sim. Ela foi até meu apartamento, levando uma torta de frango com
catupiry e nós choramos abraçadas o dia inteiro, com Manuela no meio. —
Ela ri ao se lembrar da cena. — Ainda não consigo ficar muito tempo perto
dela, porque mamãe continua sendo uma mulher extremamente negativa,
mas nós temos uma relação boa. Eu parei de tentar mudá-la e ela tenta me
criticar o menos possível.
— Mães sendo mães… — Jogo os ombros. — Só muda de endereço.
— Realmente.
— E o navio?
— Ah, isso foi engraçado. — O corpo dela balança com a risada e me
pego querendo rir antes mesmo de saber a história. — Manu e eu estávamos
indo para o shopping aproveitar a promoção do dia no Subway e um cara
nos parou para oferecer um emprego. A gente pensou que era reunião da
Hinode, mas era a empresa de turismo precisando de gente para trabalhar de
camareira. Ficamos duas edições como camareiras e assim que eles
implantaram a Sara no navio, também subiram Manu e eu para esses cargos
que estamos hoje.
— Minha mãe já caiu nesse esquema de pirâmide — conto. — Quando
JP e eu descobrimos, quase choramos de rir, porque ela realmente achou
que ficaria milionária.
— Eu imagino, já fui em uma dessas reuniões. Quando a gente tem um
empréstimo do banco para pagar, infiltração no teto do apê e IPTU,
tentamos de tudo pra ganhar um dinheirinho extra.
Esfrego o rosto no vão do seu pescoço, como um gato querendo ganhar
espaço e beijo demoradamente a tez da região.
— Obrigado por me contar sua história. E só pra saber, ficou ainda mais
interessante pra mim.
— Por que tive um passado sofrido? — ela zomba. — Você é do tipo
que gosta de personagens fodidos nos filmes?
— Não. — Bato na ponta do seu nariz quando Pérola se vira para mim.
— Ficou mais interessante porque apesar do que você já viveu, continua
sendo uma pessoa incrível. Continua sendo alguém que irradia felicidade,
que nos deixa leves, a vontade… não sei de onde você tirou forças para ser
como é, mas agradeço por ter conseguido. Me faz pensar que eu também
posso.
— Mas você pode. — Beija meus lábios. — Não duvide disso.
— Depois de você aparecer na minha vida, eu não duvido de mais nada.
— Sorrio ladino. — Acredito até mesmo em sereias.
Pérola não tarda em unir sua boca à minha, dessa vez em um beijo
demorado e longo. Nós nos deitamos na areia agora gelada da praia, nos
braços um do outro, ora se beijando, ora conversando sobre o passado, ora
em silêncio observando as estrelas... até que o novo dia comece a dar sinais
no horizonte, tomando nossa visão com os tons de alaranjado.
— Quer voltar para o navio? — sussurro sobre seu cabelo, enquanto ela
se deita no meu peito.
— Eu vou ficar para ver o nascer do sol… sempre acordo cedo para ver.
— Por algum motivo? — esfrego seus braços que se arrepiam por uma
brisa que passa por nós.
— Papai assistia ao nascer do sol comigo. E mesmo cheirando a Velho
Barreiro, são as minhas melhores lembranças com ele.
Velho barreiro? Então é por isso que…
Fecho os olhos, a abraçando mais forte.
— Vou ficar com você até o sol nascer completamente.
Sinto um beijo dela no meu peito.
— Então agora a presença do sol vai representar os dois homens que
mais gostei e que tiveram que me deixar cedo demais.
Não ouso abrir minha boca até que ela possa ver o levantar do sol
através do mar, ascendendo até resplandecer acima do oceano. Quando sua
trajetória tem fim, decido que é a hora de contar a verdade. Ela tem que
saber que eu não preciso deixá-la.
— Pérola…
Minha voz é interrompida pelo alarme do navio, anunciando que os
passageiros devem retornar a ele.
Pérola se ergue, limpando seu corpo da areia, estendendo a mão para
mim.
— Vem, Honey. Precisamos voltar. — Seu sorriso é feliz…, mas seus
olhos são tristes ao mesmo tempo. E depois da sua história, eu sei… ela está
sorrindo para se convencer de que está bem.
Seguro sua mão.
E a deixo me levar para o navio.
Ainda sem a verdade.
 
Antes…
Eu vou matar o Joca.
Aquele infeliz desalmado me mandou em uma missão quase impossível
em busca da fantasia que ele queria. E com isso, eu tive que pegar um carro
de aplicativo duvidoso e visitar não uma, não duas, mas três cidades
vizinhas para achar a porcaria da roupa que ele queria.
Alerta de spoiler: não achei.
Como ele queria encontrar uma fantasia de Shikamaru em
Jericoacoara?! Até em São Paulo seria difícil de achar essa merda, que dirá
em uma vila pequena. O que me conforta é saber que ele vai vestido de
Chaves. O que me desespera é saber que eu vou vestido de Kiko.
Foram as menos ruins que eu achei.
Eu ia brigar com ele assim que chegasse aqui, mas aí o vi de longe na
praia com a Pérola e desisti. O cara merece ser feliz por mais esses dias.
Não sei como vai ser quando voltarmos para São Paulo.
Até que o Joca lidou bem com o término com a Olívia; fora o consumo
exagerado de carboidrato e os papos de corno manso, ele sobreviveu. Mas
com a Vascaína é diferente, ele gosta dela e ela também gosta dele, do tipo
gostar mesmo e não estar junto só pra não ficar só. Não quero nem pensar
no clima de merda que vai ficar aquele apartamento, principalmente porque
vamos ter que lidar com todo mundo sabendo a verdade sobre o casamento.
Ainda fico puto de pensar que ele não contou a verdade para a tia Das
Dores.
A porta da cabine é aberta vinte minutos depois de eu entrar, e nem me
dou ao trabalho de tirar a cara do travesseiro.
— Achei que você fosse ficar mais tempo com a Pérola. Estavam tão
agarradinhos lá na praia, me deu até sede de tanto doce.
— Sou eu, Zé Mané.
Dou um pulo na cama, me virando ao escutar a voz da Valentona.
Encontro Manuela me encarando debochada, provavelmente muito contente
da minha reação.
— Quer me matar de susto?
— Te matar sim, de susto não.
— O que você quer, Manuela? Dormir abraçadinha de novo? — ela
pode achar que eu não lembro de nada da noite que cuidou de mim depois
de irmos àquele bar em Recife, mas eu me lembro de tudo.
Manuela me levou para o banheiro, me deu banho, me ajudou a colocar
uma roupa limpa e me abraçou até Joca voltar para o quarto com o dia
quase amanhecendo. De vez em quando, ela sussurrava um pedido de
desculpas ao meu ouvido, mas essa última parte não sei se foi fruto da
minha imaginação ou se foi real.
Seja como for, não toquei no assunto.
Não toquei, porque ela negaria até a morte e eu prefiro ter alguma
recordação dela sendo a garota que conheci na biblioteca anos atrás por
mais algum tempo.
— Dá pra parar de gracinha? Eu vim aqui para falar da Pérola e do Joca,
não da gente. Não que existe “a gente”, mas você entendeu.
— Então fala de uma vez e vai embora porque eu estou cansado.
— Que cavalheiro — debocha, se sentando na ponta da cama.
— Precisa mesmo sentar?
Eu não gosto de ficar perto dela quando estou sozinho.
Na verdade, eu não gosto de estar perto dela em momento nenhum.
— Escuta, a gente precisa ajudar Peroca — ela ignora minha pergunta.
— Peroca? Quê?
Seus olhos reviram.
— Pérola e Joca... Peroca.
— Isso parece outra coisa, Valentona.
— Foda-se o shippe deles, tô dizendo que a gente precisa ajudar os dois
a ficarem juntos.
Estreito os olhos, segurando o sorriso.
— Por que eu ajudaria sua amiga a ficar com meu noivo? — é agora
que eu vou te fazer sofrer um pouco com isso, sua cascavel.
— Ah, é... você não sabe que eu... droga. – Manuela discute consigo
mesma e cruzo os braços, apreciando sua gafe.
— Eu não sei o quê? Que a Pérola tá apaixonada pelo cara com quem
vou me casar?
— Faça-me o favor! Como consegue mentir tão descaradamente?
— Mentir? — levo a mão ao peito. — Mentir sobre o quê?
Vamos, Manuela. Diga de uma vez que sabe de tudo.
— Não se faça de sonso.
— Talvez eu seja sonso.
— Não, esse posto é do seu amigo e não seu. Você é um babaca, otário,
mauricinho, playboy, metido, creti...
Antes que ela termine sua sessão de xingamentos, eu me ergo da cama,
segurando seus ombros e a puxando para mim. Seu corpo pequeno colide
contra o meu em um choque mudo e Manuela espalma a mão no meu peito,
arfando e me olhando assustada.
— O que tá fazendo? — arqueja, suas íris intercalando entre meus olhos
e minha boca.
Expresso desdém, erguendo os ombros.
— Te dando a chance de continuar sua lista de xingamentos olhando nos
meus olhos, como a mulher cruel que você gosta que as pessoas acreditem
que é. — Sorrio amargurado. — Não tem ninguém aqui para te assistir ser
uma vaca do caralho, então apenas pare de atuar, Manuela. Ou será que nem
na minha frente consegue mais mostrar a pessoa aí dentro desse
personagem?
Ela pisca aturdida, seus lábios se movendo à procura das palavras.
Minhas mãos em seus braços passam para seu rosto, não a deixando desviar
nossos olhares.
— Você não consegue, não é? Não consegue dizer essas coisas olhando
dentro dos meus olhos, exatamente como não conseguiu naquele dia no
pátio daquela escola de merda. Até sua brilhante atuação tem um limite.
Vejo o maxilar dela travar de raiva e suas mãos se fecham sobre minha
regata, me puxando para mais perto. Seus olhos, tão claros que é difícil
definir a coloração, uma combinação perfeita entre azul e verde, me fitam
raivosos e coléricos.
— Eu odeio você. — Diz pausadamente.
Sorrio com escárnio.
— Eu também odeio você. Pra caralho. Mas me odiar só prova que você
não acha nada dessas coisas que fica dizendo. Você me odeia porque eu te
vi de verdade e por algum motivo tem raiva disso. Raiva de mim.
Eu vejo sua pose vacilar, mas não sinto pena.
Ela também não sentiu de mim.
Me afasto, dando dois passos para trás, não confiando em meu próprio
controle perto dela. Não devia, mas Manuela me atrai como um maldito
ímã.
— Fala de uma vez o que veio dizer, com todas as letras e para de me
enrolar.
A observo ofegar e se recompor, aos poucos recolocando sua máscara
de frieza e deboche.
— Eu sei que você e o Joca não estão juntos de verdade.
Assinto, entediado.
— E o quê mais?
— E que ele está gostando da Pérola.
— Parabéns... – bato palma. — Você continua muito inteligente.
— Chega de ironia, merda. Nós estamos falando de duas pessoas legais
e não de dois bostas como nós.
Dessa vez, é a minha pose que se perde. Quer dizer então que agora eu
me equiparo a ela? Só pode ser piada.
— O que você quer que eu faça? Dê uma de cupido? — arqueio a
sobrancelha.
— Quero que a gente pague o preço da aposta perdida.
Franzo o cenho.
— No quarto de voyeur? — Ela bebeu? — No que isso vai ajudar
aqueles dois?
— Escuta, eles ainda não chegaram aos finalmente na cama depois
daquela noite do acidente, e eu sei que é porque a Pérola acha que você vai
se importar.
— Mas eu já disse a ela que não me importo.
— Ela só vai acreditar se ver que você é tão livre para fazer as coisas
como o Joca é.
— Espera! — Ergo a mão. — Você tá querendo que a gente transe
naquela sala com paredes vidro para ela e o Joca poderem foder de verdade
de uma vez? É isso?
— A gente não vai transar! — Joga seus cabelos para trás com ar de
superioridade. — Eu nunca transaria com você. A gente só... se pega.
Depois de começarem, Pérola e Joca vão estar ocupados para perceberem
que não fizemos nada demais.
Não ouvi mais nada depois que Manuela falou para a gente se pegar.
Meu cérebro simplesmente recusou todo o resto e rebobinou a fita para
aquele dia chuvoso na escola.
Lembro da biblioteca ficando escura com a queda de energia.
Lembro de como nós fomos nos aproximando gradativamente.
Lembro da sensação do primeiro toque dos nossos lábios.
Lembro da textura da boca pequena sumindo entre a minha.
Lembro das suas mãos no meu cabelo e de como seu hidratante labial de
cereja era gostoso.
Só que também me lembro da forma como Manuela correu de lá, me
deixando sozinho no chão frio. E de como tudo virou uma merda depois
disso.
Mas ainda assim, eu a beijaria. Mesmo que soubesse de tudo naquele
dia, eu ainda a beijaria. E beijaria agora, mesmo sem o pretexto de ajudar
nossos amigos.
Porque... porque eu a odeio pra caralho, mas essa mulher me
enlouquece. Me enlouquece de raiva, de medo, de decepção... e de desejo.
Não dá para mentir para mim mesmo. Eu a desejo como nunca desejei
nenhuma outra mulher na minha vida. Desde a porra da escola.
Para de olhar para a minha boca.
Desgraçado, para de me olhar assim!
Com raiva o bastante para me foder, e com desejo o suficiente para ser
do jeito bom.
Consigo ver sua língua se movendo pelo interior de seus lábios e
minhas pálpebras pesam sedentes para se fechar e recordar com riqueza de
detalhes do beijo que ele me deu na biblioteca.
Um beijo. Apenas um, nada mais que isso. E foi o bastante para me
deixar obcecada por anos.
— Um beijo? É isso que quer? É isso que vai ajudar nossos amigos? —
Ele dá um passo na minha direção e eu dou outro para trás. João Pedro não
para por aí, dando mais alguns até que eu esteja com as costas contra o
guarda-roupa.
Ergo o queixo para o enfrentar, nem um pouco disposta que ele perceba
que pode me abalar. Eu morro negando.
— Eu não quero beijar você, que fique claro. É só o que eu acho que é
necessário para os dois se acertarem.
Uma mentira do caralho.
Eu quero beijá-lo. E a forma como encara meus lábios, eu diria que ele
quer exatamente a mesma coisa. Para ser sincera, acho que nenhum de nós
dois nos importaríamos de foder contra esse armário.
João Pedro coloca uma mão de cada lado do meu rosto, aproximando-se
sorrateiramente, nossos narizes a um fio de se tocarem. Travo a respiração
na garganta, não querendo sentir seu aroma tão de perto.
— Você quer fazer um teste de compatibilidade antes? — ele inclina o
rosto, resvalando seu lábio contra minha bochecha. — Ou ainda se lembra
de como é meu beijo?
Fico em silêncio, me concentrando em proibir meu corpo de esboçar
qualquer reação ao dele.
— Hum? Ainda se lembra do sabor dos meus lábios? Do calor da minha
língua tocando a sua? Você ainda se lembra como eu lembro, Manuela?
Filho da puta, desgraçado.
A raiva sobe no meu corpo como água fervente.
Empurro seu peito para longe, passando a mão no pescoço para me
livrar do suor.
— Não preciso de teste de compatibilidade para saber que vou odiar
cada segundo que estivermos naquela sala. — Falo virada de costas, porque
nem mesmo se eu fosse uma atriz conseguiria esconder o que a lembrança
me causou. Sorte a minha não ter um pau para ficar duro, porque se tivesse,
estaria igual ao Joca.
— Como eu falei, você nunca consegue mentir olhando para mim — ele
se vangloria.
O tom vitorioso me deixa quente de raiva, mas sou obrigada a confessar
que ele tem razão.
Uma razão odiosa, mas tem.
— Fale com o Joca. — O ignoro. — Amanhã, depois do meu
expediente e da Pérola, o leve para a área vip.
Me encaminho para a porta, e estanco segurando a maçaneta quando
João Pedro diz uma última coisa.
— Você pode até odiar cada minuto, mas eu vou adorar descobrir se seu
beijo ainda consegue deixar meu pau babando, Lontrinha.
Fecho os olhos, não sabendo se o mando se foder ou se o faço me foder.
Lontrinha... ele me chamava assim na escola. João Pedro dizia que era
porque eu era perigosa e pequenininha.
Ergo o dedo do meio para ele, escutando sua risada ao passo que bato a
porta e corro de volta para a minha cabine, talvez para tomar um banho frio.
Ou me tocar pensando na primeira parte da sua fala.
 
Agora...
— Manuela, o que você tá fazendo? — Tento me livrar da sua mão no
meu braço. — Eu quero dormir, tô morrendo de sono.
— Só me acompanha, pode ser?
— Se você me falar para onde eu tenho que te acompanhar, facilita.
Além disso eu estou pelada, cacete.
— Você nem vai precisar de roupa para onde estamos indo — desdenha.
— Mas veste esse roupão aqui.
Ela joga o tecido felpudo em cima de mim e o visto sem entender nada.
— Como assim? Manuela seja clara! — A impeço de me tirar da nossa
cabine. Qual é, eu trabalhei o dia todo, só quero dormir. Ela se esqueceu
que eu passei a última noite em claro com o Gui na praia?
— A gente vai pra área vip para eu sofrer a penalidade por JP ter
perdido a aposta.
Estreito os olhos, desconfiada.
— Você não tá animada demais para alguém que tá chamando isso de
penalidade?
— Estou feliz porque você vai ter um momento legal com seu nerd.
Gargalho com essa.
— Eu tenho tido vários momentos legais com ele, mas você tá animada
justamente em um que vamos observar você e JP fazendo sabe se lá o que?
— Posso ser sincera? — ela move as mãos nervosamente.
— Eu agradeço se for.
— Eu preciso beijar ele e colocar um fim nesse “e se” da minha vida.
Preciso beijá-lo e perceber que não é nada demais, que essa idealização de
melhor beijo da minha vida foi apenas um sentimento criado por uma
adolescente boba.
Melhor beijo? Ela nunca me falou dessa forma.
— E se você comprovar exatamente o contrário? — fico preocupada. Já
basta uma iludida aqui.
— Não existe essa possibilidade — Manu cruza os braços.
— Cuidado para não se queimar brincando com fogo, Mônica.
— Magali, Pérola.
Ela não me dá mais chance para recusa, usando nossos atalhos para
chegar até o elevador de serviço. Dentro do cubículo, paro para pensar no
que estamos fazendo.
— Você sabe que os dois vão se casar, né? — Coço a cabeça. — Que
merda a gente tá indo fazer? Você vai pegar o noivo número um e eu o
número dois?
Manu dá de ombros.
— Mais ou menos isso. Quer desistir?
Ela me encara. Eu a encaro de volta.
— Não — a gente nega em uníssono.
Já que estamos no inferno, vamos abraçar o capeta.
Ou melhor, os nerds.

— Pra onde você tá me arrastando? — Tento me livrar do aperto dele no


meu braço. — Se for me matar, eu não deixei nada no testamento para você.
— Se alguém for te matar hoje, vai ser a Pérola.
Meu Deus, no primeiro dia normal nesse cruzeiro, que eu acho que vou
só ficar com a bunda na água e depois dormir tranquilo, esse panaca me tira
da cama só de cueca, me arrastando pelo corredor. Três pessoas já
assobiaram pra mim.
— Espera, como assim a Pérola vai me matar? Ela descobriu a verdade?
— minha espinha gela.
— Não, descobriu porra nenhuma. A gente só vai pagar a aposta.
— A gente quem? — JP me enfia dentro do elevador como se eu fosse
um saco de batatas.
— Manuela e eu, porra! Seu cérebro tá dormindo ainda?
— Eu não dormi essa noite, queridão. Tô morto de sono.
— Não dormiu porque ficou fazendo saliência na areia parecendo um
bife à milanesa.
— Eu não fiz saliência nenhuma. — Cruzo os braços. — Pérola e eu só
conversamos.
— Pois agora vão fazer mais que isso enquanto olham a Valentona e eu.
— Calma aí... a gente tá indo pra sala de voyeur?
— Exato.
— E por que você tá tão animado com a possibilidade de ficar numa
sala com a Manuela?
— Posso ser sincero? — Ele mexe nas mãos nervosamente.
— Por favor.
— Eu preciso beijar ela mais uma vez e tirar a porra dessa mulher da
minha cabeça.
Arqueio a sobrancelha.
— Da de baixo ou da de cima?
— Das duas, Joca. Das duas.
— E vão ficar só no beijo? — desconfio.
Eu sei que a questão toda de observar pode me dar certa curiosidade,
mas não tenho certeza se quero ver o João Pedro transando.
— O beijo vai ser ruim, não vai encaixar, então vou acabar com essa
obsessão de adolescente e seguir minha vida. — Ele passa as mãos sobre o
rosto. — Além disso, Pérola vai ficar mais tranquila de transar com você se
ver que eu também fico com outras pessoas... palavras da Manuela.
— E quando vocês conversaram? — perdi alguma coisa?
— Ela foi até nossa cabine ontem de noite... — Estala seu pescoço,
claramente ansioso. — Quando você estava com a Pérola na areia, sabe?
— Sei... e aí?
— E aí que ela me contou que sabe a verdade sobre nós dois e que quer
ajudar você e a Pérola...
— E o que mais? — eu tenho certeza de que não foi só isso, ele parece
prestes a explodir.
— E que a gente se provocou, eu quase a beijei contra o guarda-roupa,
tudo porque ainda acho que ela foi meu melhor beijo. Hoje é para provar a
mim mesmo que isso foi só a lembrança de um garoto idiota.
— E se não for? — me preocupo.
— Não quero pensar nessa possibilidade.

Alguém deveria tirar uma foto dessa situação.


Gui e eu na sala da direita, sentados na cama redonda, com as mãos
repousadas nas pernas, encarando a parede vidro que nos separa de
Manuela e JP, sentados da mesma forma, nos encarando igualmente sem
saber o que fazer.
— E então? — Gui sussurra para mim.
— E então? — é tudo que tenho para responder.
— Eles não vão fazer nada?
— Tô me perguntando isso faz vinte minutos.
Arregalo os olhos para Manuela e ela arregala os dela de volta.
Reviro os meus, bufando entediada.
— Quer brincar de pedra, papel ou tesoura? — Gui propõe depois de
um bocejo.
Dou de ombros.
— É melhor do que ficar vendo esses dois feito estátuas.
Nós nos sentamos de frente um para o outro, fechando as mãos em
punho.
— Pedra, papel ou tesoura!
Jogamos a primeira rodada, comigo escolhendo pedra e Gui papel. Nem
ligo de perder agora, tamanho o meu sono. Gui também não para de
bocejar, me fazendo repetir o seu gesto. Estamos os dois pescando, quase
batendo a testa apagados, quando escutamos sons de respirações e ofegos.
— Eles estão se beijando? — murmuro baixinho com medo de me
escutarem e pararem o que quer que estejam fazendo.
— Não sei, tô com medo de olhar e eles estarem roncando.
Tusso uma risada, virando o pescoço discretamente para conferir. Um
gritinho sai da minha boca quando vejo os dois se engolindo e Gui cobre
minha cara com sua mão para abafar o som.
— Shhhi, escandalosa!
Dou uma lambida na palma da sua mão e João Guilherme a solta com
uma careta.
— Tá com nojinho da minha baba? — provoco. — Não lembro de ter
ficado assim quando eu chupei o seu…
— Misericórdia, mulher! — Ele tapa novamente minha boca. — Eu fiz
careta porque usei um elevador, você não deveria lamber a minha mão. Vai
tá cheia de bactéria.
Espero ele me soltar para falar de novo.
— Honey, eu chupei seu pau, o que é uma mão?
— Meu pau é limpo, nem vem. — Seus braços se cruzam emburrados.
— Eu sei, nenenzinho da Pérola. — Me jogo sobre ele, o fazendo deitar
na cama. O monto com uma perna de cada lado, segurando suas mãos e as
prendendo acima da cabeça.
— O quarto de BDSM é ali na frente, bebê.
Mordo um sorriso contido, fingindo me ajeitar sobre seu colo, só para
me encaixar sobre sua pélvis. Ele puxa o ar entre os dentes, estreitando seus
olhinhos azuis desconfiados.
— Quer ir pra lá agora? — Gui propõe e mesmo com as bochechas
adotando o tom de rosa, eu sei que se dissesse sim, ele me levaria até nos
ombros, gritando “upa cavalinho”, mas não é justo interromper o que tá
acontecendo na sala ao lado.
Eu sei que os dois só usaram o pretexto da aposta para se pegarem, sem
precisar admitir que simplesmente queriam dar uns beijos na boca um do
outro.
— Acredite, Honey, eu estou ansiosa para te amarrar na cama e sentar
no seu pau até ele afinar, mas se a gente sair daqui agora, eles vão parar de
se engolir e vão ficar com um humor de merda, do qual nós dois teremos
que lidar pro resto da vida.
Olho para o lado e João Guilherme faz o mesmo.
JP acaba de jogar Manuela contra a parede, enquanto essa arranha o
braço dele com as unhas e a outra mão puxa seus cabelos com força, de
modo que os nós de seus dedos ficam brancos.
— Só uma dúvida, eles tão se pegando ou se matando?
Inclino o rosto, analisando.
— Se pegando… eu acho.
Arregalo os olhos quando ele puxa as pernas dela para se prenderem em
seu quadril e no movimento, a cabeça de Manuela bate sem delicadeza na
parede. No entanto, minha amiga sorri maliciosa, mordendo o lábio dele
com um total de zero cuidado. Isso com certeza vai ficar roxo amanhã.
— Dá pra mudar minha resposta? — Seguro a risada.
— A gente interfere? — A voz do Gui é realmente preocupada.
— E perder esse cinquenta tons de cinza em tempo real? Nem fodendo!
— Arqueio a sobrancelha para quando Manuela agarra o Corinthiano pelos
cabelos e leva a boca dele para seu pescoço, ditando onde ele deve beijá-la.
Essa é minha garota. — Eu aceitaria uma pipoca agora.
— Você não fica com vergonha de ver sua amiga transando? — João
Guilherme está fazendo de tudo para não ficar encarando a cena na sala ao
lado, mas eu posso sentir o cheiro da sua excitação com a situação.
— Não, Manu e eu moramos juntas. Já a presenciei transando com um
cara, com uma garota, com dois caras, com um cara e uma garota… enfim,
eu conheço bem os orifícios dela e a recíproca é verdadeira.
Seus olhinhos de jabuticaba sem casca me fitam curiosos.
— Você já ficou com mais de uma pessoa? Quer dizer, já fez…
— Ménage à trois? — Bufo uma risada. — Querido, eu só nunca transei
com uma mulher, mas todo o resto que é permitido por lei, eu fiz... —
Penso melhor. — Quer dizer, eu transei em local público, que não é permito
por lei, mas você entendeu.
— Me sinto um virgem perto de vocês.
— Tudo bem, tem sido ótimo te desvirginar. — Aperto suas bochechas.
— Daquele lugar eu era virgem mesmo — diz com um biquinho sob o
bigode.
— Você nunca deixou o JP…
— NÃO! — o grito dele me assusta. — Vamos mudar de assunto?
— Tipo qual?
— Tipo eles estarem arrancando as roupas. — João Guilherme aponta
para a parede de vidro, onde a camisa de JP acaba de ser atirada.
— Puta merda! — xingo ao ver a mordida que Manuela deixa na
clavícula dele, e em resposta a isso, João Pedro desfere um tapa estalado na
coxa dela, que ele segura enrolada ao seu quadril. — Só tapa de qualidade...
— Quais as chances de eu acordar amanhã com a polícia batendo na
nossa cabine, querendo levar o JP?
— Honey… é mais fácil a própria Manuela aparecer na cabine de vocês
amanhã, pedindo um round dois.
— Mas ele não tá… machucando ela? — Sua carinha confusa, mas ao
mesmo tempo curiosa, ameaça levar embora a minha sanidade. E a minha
calcinha... se eu estivesse usando uma.
— Sim. Essa é a intenção. E ela gosta.
— Isso de prazer com dor ainda é estranho para mim. Eu não entendo
direito.
— Você não entende por que não consegue sentir prazer com um certo
nível de dor, ou por que sente e não acha que deveria?
— Bom, eu acho que exorcizei esses limites naquela noite...
Estalo a língua, negando.
— Eu não te causei nenhuma dor aquele dia. Eu te mostrei prazer em
lugares que você considerava errado. Mas eu definitivamente não incitei seu
corpo com pitadas de dor, Honey.
Ele pisca várias vezes, assimilando minhas palavras. Seguro seu queixo,
o fazendo virar para o lado e observar o casal na outra sala. Manuela tem os
lábios presos ao corpo de João Pedro sem a mínima intenção de sair dali
sem deixar sua marca. Ela captura os mamilos dele com os dentes e os puxa
para si, o encarando sob os cílios.
— Você acha que ele está apenas sentindo dor? — sussurro ao ouvido
de João Guilherme, meus lábios acarinhando a pele macia de sua orelha. —
Se fosse, a reação automática do corpo dele seria a tirar dali. A sua
expressão facial encolheria, um de seus pés dariam um passo para trás, a
mão que ele tem em punhos no cabelo dela a puxaria, mesmo sabendo que
os riscos dos dentes delas pressionarem mais ao ser puxado, fosse maior. —
Meu quadril se movimenta lentamente sobre o colo dele, seu pau latejando
sob mim há mais tempo do ele próprio tem consciência. — O corpo não
mede consequência quando se sente unicamente atacado, ele vai fazer o
possível para sair daquela situação… agora acrescente uma gota de prazer, e
o jogo muda. Olhe para ele…
Continuo segurando o queixo quadrado na direção da outra sala, embora
eu saiba que mesmo retirando minha mão, Gui permaneceria encarando a
cena.
— A maioria das pessoas olharia o pênis para saber se ele está sentindo
prazer, mas isso é uma ideia muita errada. Um pênis fica ereto quando a
pessoa que o possui acorda. Tem quem fique com uma ereção ao sentir frio.
Outras ao sentir calor. Há quem fique assim ao se sentir simplesmente
animado com uma coisa. — Deslizo a ponta do nariz pela linha de seu
pescoço, sentindo a carótida latejar pelo ritmo cardíaco descompassado. —
Vou te ensinar o certo. Não olhe o óbvio. Repare o interior das coxas dele,
se contraem de modo a se fechar e ele permite porque suas bolas são
pressionadas no processo, para conter o latejar. As mãos no cabelo dela a
aproximam mais do seu mamilo, em um claro aviso para que ela não pare.
Os dedos dos pés dele se encolhem contra o chão, mas ao invés da ação de
dar um passo, ele projeta seu quadril para frente, uma reação natural do
corpo em busca de mais prazer… — solto uma risada divertida ao seu
ouvido. — Exatamente como você está fazendo comigo agora.
Olho para baixo, vendo João Guilherme repetir meu gesto, notando que
suas mãos foram parar em meu quadril, me puxando para si. Suas coxas
estão pressionadas e contraídas, com sua pélvis moendo sua ereção contra
minha entrada. E por fim, mas não menos importante, seus dedos
contraídos, como um dançarino que precisa ficar na ponta dos pés.
Ele franze o cenho ao perceber que tem as mesmas reações que JP,
mesmo com este último tendo uma amostra de dor.
— Me leva. — Ele ergue o olhar para mim, com suas pupilas dilatadas.
— Me leva para o playroom.
Sorrio lateralmente, conferindo uma última vez se o casal ao lado irá
parar o que está fazendo caso a gente saia.
Chego à conclusão que eles só parariam se alguém estivesse morrendo.
 
Eu assisti cinquenta tons de cinza uma vez.
Estava trabalhando, ajudando um gamer independente a desenvolver a
parte gráfica do seu jogo, e senti falta de um som de fundo. Liguei a
televisão em qualquer canal, interessado apenas em ter algo meramente para
escutar enquanto trabalhava nos números.
Acontece que um movimento na televisão me chamou atenção e num
primeiro momento acreditei ter colocado um filme pornô. Mas não era o
caso.
Na cena, a mulher estava em uma cama de lençol vermelho, vendada,
seus braços e tornozelos amarrados aos quatro cantos da cama, enquanto o
homem deslizava sobre o corpo dela um chicote de montaria.
Naquele dia, eu desliguei a televisão rapidamente, não por ser uma cena
de sexo, mas porque aquela cena, me fez pensar em como eu me sentiria,
naquele nível de vulnerabilidade, à mercê de alguém.
Achei que eu estivesse sendo tentado pelo diabo.
Mas agora eu vejo que o diabo é fichinha perto da mulher que fecha a
porta da sala em tons de vermelho e preto, e caminha na minha direção com
uma expressão que me garante três coisas.
A primeira, essa não é a Pérola. É a Calypso.
A segunda, ela vai desafiar todos os limites que me restam.
E a terceira, eu vou amar cada parte disso.
Eu me balanço sobre os calcanhares, olhando em volta. A sala não é
nem de perto tão mirabolante quanto a que eu vi no filme. Só tem uma
cama com dossel, lençol de cetim em um tom de preto reluzente, uma
cômoda pequena com várias gavetas e um “x” gigante pregado na parede.
— Decepcionante… — Pérola faz uma careta ao olhar em volta. — Três
mil reais para isso?
— Decepcionante para qualquer outro passageiro que só tenha a sala e
não você dentro dela. Porque eu pagaria mais três mil para estar com você
aqui.
Fico surpreso com minha própria fala. Não sei de onde veio isso.
Acho que deve ter vindo do meu pau, porque meu cérebro
definitivamente não concorda com o que saiu da minha boca. Mas é como
dizem, nós homens temos apenas um neurônio, ora ele tá na cabeça de cima
e ora na de baixo. Ao mesmo tempo é exigir demais do rascunho de Deus.
— Olha... — Pérola pisca, saindo momentaneamente do seu álter ego.
— Se você quer me comer, cê fala. Nem precisa de tudo isso.
Abaixo a cabeça com o rosto pegando fogo.
Eu acendo a fogueira e depois não consigo apagar o fogo. Da última vez
eu acabei com um plug na minha bunda.
Não que eu esteja reclamando.
— Você fica falando isso, mas a gente ainda não… quer dizer, a gente
fez tudo, menos envolvendo você. Você me tocou com suas mãos, com sua
boca, com sua língua, com objetos inanimados…
Escuto sua risadinha na última.
Ela segura meu queixo e o empurra para cima.
Pérola definitivamente gosta de um olho no olho. O foda é eu ter que
erguer o queixo sempre, porque a mulher é mais alta que eu.
— Esse acordo começou para que eu te ajudasse a se tornar mais livre
com sua sexualidade. E você se tornou.
— Foda-se esse acordo, eu quero transar com você como se ele nunca
tivesse existido. Como se você fosse apenas a mulher que eu desejo e eu o
homem que você deseja. — Inclino o rosto. — Pelo menos a primeira parte
disso é verdadeira e não uma fantasia.
— Acha que a segunda não? — As sobrancelhas finas se arqueiam. —
Me lembro muito bem de já ter te mostrado o quanto eu fico molhada com o
que você faz.
— Mostrou — aceno positivamente. — Mas assim como você acabou
de me ensinar que um pênis pode ficar duro por motivos não
necessariamente ligados ao prazer, você pode ter tido apenas uma reação
natural do corpo…
Envolvo a cintura delgada com as duas mãos, a trazendo para mim com
olhos pedintes. Eu poderia me inspirar no que João Pedro estava fazendo na
outra sala, mas Pérola se interessou por quem eu sou. Então ela sabe que
não vou jogá-la contra a parede... eu vou deixar que ela faça isso comigo.
— Eu quero ver suas coxas se contraíram, suas pernas se fecharem para
conter os espasmos, suas mãos me puxarem para mais perto e seus dedos
dos pés retesarem. Eu quero fazer você sentir isso, mesmo que o controle
não esteja nas minhas mãos.
Pérola fecha seus olhos, manejando a cabeça negativamente. Fico
apreensivo de que eu tenha falado algo que ela não gostou, mas quando
suas pálpebras voltam a se abrir, e o que antes era castanho nas suas íris, foi
completamente tomado por suas pupilas, eu sei que não disse nada de
errado.
Em uma resposta muda à minha pergunta interna, Pérola desata o nó da
faixa do roupão que vestia, o fazendo se abrir e revelar seu corpo nu. Não
tenho tempo hábil de a admirar, porque a sereia usa a faixa para cobrir meus
olhos, me deixando na completa escuridão.
Meus pelos se arrepiam com a falta desse sentido, enquanto todos os
outros parecem entrar em pane para se aguçarem e compensar a falta da
minha visão. Pérola enlaça os dedos no elástico da boxer, a tirando do meu
corpo e me ajudando a sair de cima do tecido.
— Se deite de costas na cama. — Meu corpo sobressalta ao sentir a voz
dela tão próxima ao meu ouvido. — Não faça mais nada, apenas se deite e
me espere.
Ela me ajuda a chegar até a cama, o interior dos meus joelhos batendo
contra o colchão, me fazendo cair de costas sobre ele. Repouso minhas
mãos sobre o estômago, esperando.
Eu ouço a porta se abrir e fechar uma vez, sabendo ela que ela saiu da
sala. Eu poderia tirar a faixa dos olhos, mas não quero arriscar irritar essa
mulher justamente nesse quarto.
Controlo minha ansiedade, até escutar a porta se abrir novamente e o
som de um objeto sendo colocado sobre um móvel. Um farfalhar de tecido
chama minha atenção e me pergunto se Pérola se livrou do roupão pesado.
Uma música que não conheço começa a tocar pelos pequenos alto-
falantes, que se eu não estiver engano, estão estourados. Três mil reais pra
um alto-falante estourado é de foder. Com certeza farei uma reclamação.
Meus pensamentos voltam para a realidade ao sentir o hálito de Pérola
na minha orelha. Meu tato e audição estão infinitamente mais aguçados
com meus olhos vendados.
— Preciso saber algumas coisas antes de começar.
— Tudo bem.
— Você quer ser submetido?
— Sim — murmuro fracamente.
— Mas quer fazer isso focando no meu prazer?
— Sim! — Esse sim é muito mais preciso e forte que o outro.
— E quer testar um pouco dos seus limites para a dor?
— Sim... — Esse sim é um pouco duvidoso. Eu não sou muito forte pra
dor, se Pérola fizer o que Manuela está fazendo com João Pedro, acho que
eu choro.
— A dor pode ser sentida de várias formas, Honey — a voz de Pérola já
não é próxima ao meu ouvido. Sinto o colchão se afundar e suas pernas
ficarem uma em cada lado do meu quadril, equilibrando o peso no tecido
preto. Ela espalma a mão sobre meu peito, sentando-se com minhas pernas
entre as suas. Mesmo com minha boxer, seu calor ultrapassa a camada fina
de tecido e minhas bolas ardem em expectativa.
— O que vai fazer? — quero saber.
— Se fosse para você saber, eu não teria te vendado. — Ih, grossa. —
Mas só para que você se tranquilize, não vai se parecer em nada com o sexo
da sala à frente. Não que haja algo de errado, mas não é sua praia e nem a
minha. Eu não sou nenhuma sádica e isso definitivamente não é uma das
cenas que você já deve ter visto a respeito. Não vou te morder, não vou te
bater, mas vou te privar de algumas coisas. Até chegar o momento em que
eu ordenar que você as tome de volta para si.
— Você não vai deixar eu gozar, não é? — deduzo.
— Acertou, Honey. E só por isso não vou amarrar suas mãos, mas você
vai ter que obedecer e ficar com elas paradas na sua lateral. Entendido?
— Uhum...
— Ótimo, porque eu vou sentar na sua cara e você não vai poder me
tocar com nada além dos seus lábios e da sua língua.
Se eu tivesse com líquido na boca, agora seria o momento que eu o
cuspiria inteiro para fora.
Como eu vou fazer isso sem tocá-la com as mãos?
— Mas… como eu vou… como eu vou fazer isso se…
— Querido, você aprendeu o que fazer com a boca. Se concentre nela e
deixe o resto comigo.
E não é pra eu gozar?
Alguém além de mim gargalhou?
Porque devia.
— Você já fez isso antes? — ela pergunta com a boca na minha.
— Se já repousaram na minha face? Não.
— Se já chupou uma boceta, João Guilherme?!
Nossa, delicada…
— Já. — Bom, Olívia não gostava, mas eu também devia fazer isso mal
pra cacete, nem posso culpá-la. — Quer dizer, para os seus padrões não, né.
Sinto seu corpo balançar em uma risada.
— Lembre-se, movimentos circulares, eles sempre acertam. De resto…
— Pérola estala a língua. — Apenas acompanhe o meu ritmo.
Forço meus braços na lateral do corpo quando ela engatinha mais para
cima, tentando me controlar a não tocar seu corpo. Os joelhos de Pérola
repousam um de cada lado da minha cabeça e o aroma da sua excitação
nubla o restante dos meus sentidos. Ela deve ser deliciosa. Fecho mais
minhas pernas, tentando qualquer atrito para aliviar a ardência em minhas
bolas.
Ergo o rosto para tomá-la para mim de uma vez, mas sua mão empurra
minha testa de volta para o colchão, me repreendendo. Pérola se abaixa
sobre mim quando já me torturou a ponto de eu implorar.
— Por favor… — ofego.
— Por favor o que?
Solto uma risada desesperada.
— Por favor, me deixa ter você na minha boca.
— Que parte de mim?
Grunho frustrado. Oh mulher difícil.
— Me deixa chupar sua boceta, bebê — digo as palavras que sei que ela
quer ouvir. Fazer o quê se ela curte umas palavras sujas?
— Agora sim, Honey. Mas não sou seu bebê aqui, me chame pela
pessoa correta.
Misericórdia, tá mais difícil fazer ela sentar na minha cara, do que
passar no Enem.
— Calypso… — corrijo. — Me deixa te chupar, Calypso.
O sorriso satisfeito dela vem na minha mente com exatidão de detalhes
e eu sei que Pérola o está dando para mim agora.
Não tenho tempo de perguntar, porque seus lábios internos tocam minha
boca, em um primeiro momento de forma branda e passageira, como se me
desse tempo para conhecer o terreno. Eu não sei o que fazer, nunca fiz isso
nessa posição. Devo colocar a língua para fora? Abrir os lábios? Ficar
parado?
Que fruta se usa para treinar um oral em uma vagina? Porque vou
precisar de mais uma dúzia.
Pérola evapora meus pensamentos ao se abaixar mais, esfregando sua
carne molhada contra minha boca. Não consigo conter à vontade e deslizo a
língua pelos meus lábios, em busca de descobrir seu sabor.
E como em um lampejo, eu já não penso mais no que fazer.
Eu só penso em uma coisa.
Quero mais.
Mais dela. Mais do seu sabor.
Reprimo o instinto de levar as mãos para seu quadril e apenas sigo o
ritmo lento que ela impõe. Minha língua começa tímida na sua entrada,
deslizando por seus lábios, os abrindo para mim, desprotegendo seu nervo
sensível da pelinha que o cobre. Quando a ponta da minha língua o atinge,
sinto a contração da coxa de Pérola contra meu rosto.
E isso me deixa ainda mais sedento.
Quando impulsiona sua pélvis para frente, ergo meu queixo, minha
língua se aprofundando em sua entrada, provando da sensação do interior
do seu corpo em todos os sentidos. Ela agarra meus cabelos e eu fico
maluco para arrancar essa faixa dos meus olhos e ver seu rosto sendo
tomado pelo prazer.
Não satisfeito, abro a boca sobre seu sexo, a beijando como se estivesse
em seus lábios, sugando a pele quente e aveludada, deslizando para cima e
para baixo, entrando e saindo de seu corpo, a deixando quicar sobre minha
língua, gemendo deliciosamente para o prazer dos meus ouvidos. Sinto uma
gota pingar em minha barriga e sei que meu pau já está em um estado
deplorável.
Percebendo minha distração, Pérola leva sua mão até ele, o segurando
pela base, me fazendo gemer sobre sua boceta e chupar seu clitóris como
um incentivo para que continue. E ela continua. Bate uma para mim
lentamente, girando sua mão, quase se aproximando da glande e voltando
para baixo.
Não consigo entender meu corpo, basta estar com ela, que fico próximo
da borda, não precisando de mais que um olhar seu para ficar prestes a
gozar.
Ter sua boceta ao meu dispor como um banquete pessoal, seus gemidos
e murmúrios desconexos, somado à sua mão habilidosa e a privação dos
meus instintos mais básicos de tato e visão, torna tudo ainda mais difícil de
controlar.
É como encarar um lugar muito alto e ter o impulso de se jogar, mas a
sanidade te preservar com os pés no chão.
Ela primeiro.
Pérola precisa gozar primeiro.
Minha língua gira sobre o clitóris inchado, e fazendo jus ao desenho que
carrega no corpo, Pérola se move com ondulações elegantes, como se de
fato nadasse no oceano. Testando meus conhecimentos recém adquiridos,
meus dentes se fecham sobre o aglomerado de nervos, retraindo minha
mandíbula de modo que meus dentes de baixo não pressionem na mesma
direção dos superiores. Quando tenho seu clitóris sobre meu domínio, de
modo que não escape para as laterais com o passar da minha língua, o
chupo como se provasse de uma bebida em um canudinho. A referência é
ridícula, mas foi a que ela me deu.
Em resposta ao meu gesto, Pérola aperta mais forte que o normal a base
do meu pau e rosno em seu clitóris com a pitada de dor, o fazendo vibrar
junto ao timbre da minha voz. Consigo sentir o contrair dos músculos
internos de sua coxa, que pulsam a cada bater da minha língua em sua carne
aveludada.
— Merda… faça isso de novo — a voz manhosa, mas ao mesmo tempo
autoritária, me faz contrair os dedos dos pés.
As coxas de Pérola prendem meu rosto em um movimento involuntário
e continuo produzindo sons que causem a vibração em seu sexo. A liberto
dos meus dentes quando seus movimentos começam a acelerar, a deixando
livre para se esfregar contra minha boca da maneira que desejar. Penso em
perguntar se meu bigode não a machuca, mas eu tenho impressão que
Pérola esfrega sua boceta mais avidamente justamente por ele. Talvez ela
ter grunhido “bigodinho é sacanagem” seja um sinal de que aprecia a
irritação que ele causa em sua pele.
Os dedos esguios apertam firmemente meus cabelos, e prendo minha
respiração, me concentrando apenas em provocar os lugares certos, de
acordo com a direção do seu quadril. Ao ir para frente, me concentro em
sua entrada escaldante, penetrando minha língua nas paredes que se tornam
cada vez mais apertadas. Ao ir para trás, dou atenção ao ponto carente, que
se expande ao passo que o mamo. Pra que respirar? Nem é tão necessário!
Suas coxas se contraem, me sufocando em sua boceta, a mão em meu
cabelo me dirigindo. Escuto seu gemido prolongado, no momento que sua
boceta ordenha minha língua, que recebe algumas gotas do seu gozo.
Sequer consigo mover meu maxilar com a pressão de suas pernas, então me
limito a oferecê-la minha língua para se satisfazer. A incapacidade de me
mover e o fato de estar completamente à sua mercê, me causam um
formigamento por todo o corpo, em uma onde de prazer que eu nunca
poderia imaginar sentir ao simplesmente ter a boceta dela em meus lábios.
Eu poderia deixa-la rebolar em minha língua por horas, apenas para ter a
sensação de dar à sereia o controle total e irrestrito dos meus sentidos.
Pérola choraminga alto, quicando em minha boca, até perder a força de
seus próprios músculos e se de derramar em minha língua.
Não sei o que as pessoas chamam de orgasmo, mas se isso não foi um,
então é enfarto.
Assim que ela consegue respirar com tranquilidade, suas coxas se
desprendem do meu rosto e eu busco o oxigênio com desespero, talvez
porque estivesse começando a ficar tonto.
A sinto sentar em minha barriga e anseio ver seu rosto.
— Calypso… — não preciso pedir mais nada e Pérola arranca a faixa
dos meus olhos, me permitindo observar seu rosto transfigurado em prazer.
Só me preocupa a lágrima escorrendo pelo seu rosto. Quando fodi sua boca,
sabia que seus olhos poderiam lacrimejar..., mas agora? — Eu te
machuquei?
Pérola sorri deliciada, negando calmamente.
— Não, querido. Eu chorei porque você me fez gozar de um jeito que
geralmente só eu consigo. — Seu cenho se aperta e Pérola leva o polegar à
minha boca, o enxugando dos nossos líquidos misturados. Ela os direciona
até a própria boca, provando da minha saliva junto ao seu prazer. A cena
quase me faz gozar ao lembrar do momento parecido que compartilhamos
no outro dia.
Quase.
Porque ela estende para trás sua mão livre, envolvendo meu pau e
cobrindo a glande com seu polegar, me impedindo de ejacular. Contraio ao
abdômen com a privação física, sentindo a fisgada que desce por minhas
pernas.
— Espera… ainda não — diz olhando em meus olhos, recolhendo mais
um pouco do gozo nos meus lábios e o levando para suas coxas abertas
sobre meu tronco, espalhando o líquido por seu clitóris, se tocando na
minha frente. Toda a área em volta de sua boceta está irritada pelo atrito
com minha barba, mas isso apenas torna tudo ainda mais delicioso, porque
sei que fui eu a deixar essa tonalidade em sua pele. É um sentimento
possessivo e irracional, mas faz meu pau contrair ainda assim. Pérola separa
os lábios que estiveram sobre minha boca, me deixando ver por onde minha
língua deslizou, e principalmente, o que esse ato fez com ela. Seus lábios
estão inchados, avermelhados e escorrem o gozo que ela captura
habilidosamente para se estimular. Meus olhos querem se fechar, mas eu
não permito. Não com essa imagem sendo oferecida para mim
Seus seios apontando na minha direção, a pecinha metálica brilhando
com a luz fraca do quarto; a tatuagem de sereia parecendo emergir da água
com o suor que escorre por sua cintura e ela… a maldita tatuagem se
sagitário. Fixo minha atenção nela, minha boca enchendo d’água para
prová-la tendo minha visão permitida.
— Me deixa te chupar com você deitada — murmuro sem me conter.
Ela não me impede quando a viro para baixo e sugo seus mamilos sem
delicadeza, dando uma atenção maior ao enfeitado com o brinco, mordendo
e o puxando para mim até me sentir saciado. Beijo a tatuagem de sereia, a
lambendo, adorando, até chegar à razão da minha loucura.
Passo a língua pela flecha em sua virilha, a vendo se contrair contra
meu toque. Beijo o interior da coxa de Pérola, me demorando a chegar
aonde ela mais quer. Olho para cima, a vendo se apoiar nos cotovelos para
assistir a cena.
E eu a enrolo.
A deixo se contorcer, assim como sempre faz comigo. Me aproximo e
me afasto. Introduzo lentamente meu dedo e o tiro antes que ela o possa ter
inteiro dentro de si. Quando Pérola já tem o pescoço jogado para trás, as
coxas me prendendo e as mãos agarradas ao lençol, eu abro minha boca
sobre sua boceta, vibrando minha língua contra seu clitóris e a penetro com
dois dedos, que são esmagados em sua gruta. Porra, eu preciso do meu pau
dentro dela. Preciso sentir novamente sua boceta o engolindo. Ou ao menos
preciso gozar.
Entendo o que ela quis dizer sobre várias formas de sentir a dor, porque
minhas bolas estão a ponto de me matar. Reprimo o gozo contraindo meu
abdômen, suando e sentindo o líquido implorando para ser liberado.
Dói. Mas saber que apenas posso gozar quando ela deixar, faz a dor
ser... gostosa. Instigante.
Seu grito me faz agradecer que as paredes são a prova de som, porque
não quero que ninguém além de mim tenha o prazer de escutá-la se entregar
aos desejos do seu corpo.
Pérola me olha através dos cílios, ainda absorvendo as últimas
contrações do seu orgarmos.
— Goza pra mim, Honey.
Merda, até que enfim.
Levo a mão até meu pau, o masturbando em oscilações violentas,
apenas me preocupando em gozar e liberar a tensão que contorce minha
pélvis. Não demora até que eu ejacule sobre a barriga lisinha de Pérola,
molhando a sereia com minha essência. A cena, misturada ao tempo que me
segurei, me proporcionam um orgasmo que rompe qualquer equilíbrio no
meu corpo.
Caio sobre Pérola, ambos ofegantes e suados, esparramos pelo lençol
enegrecido.
A primeira a se recompor e conseguir controle das próprias pernas é
Pérola, que se levanta e me entrega uma taça com um líquido transparente.
— O que é? — pergunto enquanto me sento sem forças.
— Tem álcool — é a explicação que me dá. E com a sede que estou,
viro todo o líquido na boca, me dando conta apenas ao final do que se trata.
Meu olhos arregalam.
— Pérola... — seguro minha garganta, largando a taça na cama. — Isso
não é vinho, né?
— É… vinho branco, por quê?
— Porque eu sou alérgico a uva.
— Como é? — ela grita, pulando da cama.
Massageio minha garganta, sentindo a glote reagir muito mal ao que eu
ingeri.
— Como você nunca me disse isso?! — Pérola dá pulos desesperados
enquanto eu começo a tossir.
— Achei que não fosse precisar. — Merda, minha voz sai abafada.
— O que eu faço agora? — ela se desespera, vestindo seu roupão.
— Chama o JP e me levem para a enfermaria.
Pérola se atrapalha para abrir a porta da cabine e dá um grito ao chegar
no corredor.
— Porra, que posição é essa? Por que nunca me ensinou, Manuela?
— O que você quer, Cheetos? — a voz da baixinha é ofegante e raivosa.
— Eu preciso do JP.
— Que foi, o Joca não deu conta? — ouço sua risada.
— Não… eu dei vinho pra ele.
— VOCÊ O QUÊ?! — JP berra.
— Eu não sabia! — a voz dela começa a ficar chorosa.
— O que tem o vinho gente? — Manuela questiona.
— Ele é alérgico a uva — JP responde.
— E já tá ficando roxo ou dá pra esperar eu gozar?
— Manuela! — Pérola repreende.
— Ok, vamos levar o nerd para a enfermaria… de novo.
Olho para cima.
Deus, eu tô pagando meus pecados não é nem no débito mais, é no
depósito adiantado.
 
Normalmente, eu faço a minha mala de qualquer jeito, só enfio as
roupas ali de um modo que caiba, para pegar o avião e voltar para o Rio.
Hoje é o último dia de viagem, porque amanhã até às 16h da tarde, todos os
passageiros deixam o navio e pegam voo para suas respectivas casas no
aeroporto de Canoa Quebrada.
Normalmente, eu disse. Mas como essa é a primeira vez que meu
coração está na mão por entrar de férias, eu enrolo a vida para dobrar cada
peça de roupa.
— Desde quando você é organizada? — Manuela me assusta,
esfregando os olhos.
— Desde hoje.
— Quantas horas? — ela procura a janelinha do quarto, vendo que
ainda não clareou o dia.
— Quatro e cinquenta.
— Por que você tá arrumando mala às 4h da manhã?
— Quase cinco… — Dou de ombros. — Estou me convencendo de uma
vez que hoje é o último dia.
— Do cruzeiro? A gente vai vir de novo, Cheetos. Trabalhamos aqui,
esqueceu?
— Não, hoje é o último dia que vou ver o João Guilherme.
Ela geme, voltando a se deitar.
— Já ouviu falar de ônibus, avião, whatsapp e google meet?
— Ele vai se casar, Manu. Não vou manter contato com o cara que eu
estou apaixonada, sendo que ele é comprometido. Além disso, a minha
parte do acordo com JP eu cumpri… ao menos em partes.
— Como assim em partes?
Respiro fundo.
— É que… a gente não foi até os finalmente.
— Você não sentou?! — Ela joga o cobertor longe.
— Não.
— Um pau daquele e você não sentou? — Manu despenca ao meu lado
no chão.
— Manu, eu não vejo o Gui como um pau ambulante.
— Deveria, o pau é quase do tamanho dele.
Reviro os olhos.
— Tô falando sério.
— Ok, então por que não sentou?
— Porque eu tinha impressão de que se rolasse isso, então eu não
precisaria ensinar mais nada a ele, e aí não teria desculpa para ficar perto.
Brinco com os brilhinhos do vestido que João Guilherme me deu,
perdida em pensamentos. Eu enrolei até morte esse momento, mas só me
dei conta do motivo quando acordei com o coração doendo. A última vez
que fiquei chateada assim, eu ainda era uma adolescente.
— Você ainda tem hoje — tenta me animar.
Nego com a cabeça.
— Não quero gastar minha última noite com ele fazendo sexo.
— Como é? — Manuela coloca a mão na minha testa. — Você não tá a
fim de sexo? Como assim?
Estapeio a mão dela.
— Não é que eu não tô a fim, é só que eu prefiro me divertir com ele de
ouras formas. — Deito a cabeça no ombro dela. — Ficar perto. Olhar pra
ele. Perguntar mais da sua vida. O escutar falando sobre a terceira guerra
ninja, ou seria a segunda? Eu não sei, mas adoro ouvir aquele nerd
desengonçado falar sobre coisas que não entendo.
— Nossa, se um dia eu ficar falando de macho com essa cara de bocó
que você tá, por favor, dê na minha fuça.
Cruzo os braços irritada.
— Falou a galinha da angola que ficava gritando “tô fraca” na cama
com o Corinthiano.
— A minha pressão tinha abaixado, Pérola. Tenha dó. — Bufa
debochada, me empurrando do seu ombro. — E como você ouviu, se a sala
é à prova de som?
— Foi na hora que eu fui buscar o vinho, eu saí e escutei vocês.
— Nem me lembra dessa sua ideia, por culpa dela eu fiquei sem meu
orgasmo.
— Manu, o João Guilherme teve que tomar injeção de adrenalina e você
tá preocupada com seu orgasmo?
— Ok, eu realmente fiquei preocupada com ele.
Preocupada é pouco, eu achei que tinha matado o homem.
João Pedro com a cueca vestida do avesso, jogou um João Guilherme nu
nos ombros e corremos com ele para a enfermaria. A pobre da enfermeira
sequer se surpreendeu. Ela só aplicou a injeção e depois ainda tivemos que
explicar qual a merda que fizemos dessa vez.
Como o nome do Corinthiano já estava manchado com ela, eu disse que
ele usou uma camisinha de uva e que quando o Gui foi fazer um boquete, a
alergia atacou.
JP parou de falar comigo.
Não sei por que…
— Você pelo menos vai na festa à fantasia, né? — averigua.
— Vou. A propósito, eu até esqueci de perguntar, aquele dia você achou
a fantasia que pedi?
Ela joga o pescoço para trás, gargalhando falsamente.
— Tá bom que eu ia achar uma fantasia da Lupita de última hora na vila
de Jeri. Eu comprei uma gravata preta. Você veste meu blazer vermelho, faz
cara de sonsa e tá perfeito.
— Ei! — estapeio seu braço. — Não fala assim dela.
— Ela é sonsa sim e você também tá sendo.
Choramingo, deitando sobre as roupas.
— Não começa, Manu.
— Mulher, pelo amor de Deus, cadê seu otimismo?
— Estou usando todo o estoque dele para não chorar.
— Cheetos... — Manu segura minha mão. — Lembra o que você
sempre me diz? Não há uma coisa tão ruim, que não haja uma coisa boa por
trás.
Dou de ombros.
— Não estou conseguindo ver nada de bom em ficar longe do cara que
gosto.
— Olha, apenas viva o que tiver para viver hoje, como se amanhã vocês
fossem continuar nessa melação do caralho.
Respiro fundo, assentindo.
— Ok, você tem razão. — Forço um sorriso no rosto.
Não posso ter uma recaída por causa de uma paixão. Foi assim que as
coisas complicaram para minha mãe. Eu fugi da mesma realidade por 27
anos e não vai ser agora que eu vou ficar sofrendo.
— Pronto, passou, tô ótima… — Bato no meu rosto para acordar, me
levantando do chão. — Quer ir meditar comigo no convés? — continuo
sorrindo. É falso. Mas uma hora vira verdadeiro.
— Eu vou é dormir, sua cretina. São cinco horas da manhã!
— Ok.
Beijo sua testa quando ela se deita na cama e puxo seu cobertor até o
peito, ligando a luz antes de sair.
Vou meditar até essa tristeza sair de mim.
Hoje não é um dia triste, não pode ser.
Vou fazer essa última lembrança com ele valer a pena.

Último dia de viagem.


Estou triste. E feliz. E confuso.
Estou triste porque os momentos com a pessoa por quem me apaixonei
podem não se repetir ao voltar para minha casa.
Estou feliz porque imagino que se passasse mais um dia nesse navio, eu
sairia direto para o IML. Não há mais partes do meu corpo para quebrar.
E estou confuso porque não faço ideia do que acontecerá quando eu
contar a verdade para Pérola.
Seguro meu diário de bordo nas mãos, folheando cada página, lendo
cada anotação, sorrindo para as palhaçadas que vivi, mas principalmente,
sentindo meu coração arder pelo que Pérola despertou em mim.
O cara que escreveu a primeira folha desse diário não é o mesmo que
escreve essa última. Definitivamente não é.
O João Guilherme da primeira página era inseguro, confuso, machucado
e se privava de tudo aquilo que era novo.
O João Guilherme da última página ainda tem suas questões internas,
mas sabe que é digno de uma boa pessoa, é esclarecido sobre os próprios
gostos e não tem mais medo do novo.
Na verdade, eu diria que depois de três semanas ao lado da mulher que
me provou que sereias existem, eu tenho medo é da maré baixa. Ondas
pequenas são confortáveis, mas elas não te impulsionam para além do que
você consegue ir sozinho.
Suspiro, colocando o diário em cima da mesa, decidindo por guardá-lo
apenas amanhã quando for ao aeroporto. Pode ser que eu tenha anotações
extras para fazer.
João Pedro sai do banheiro com a toalha amarrada na cintura e vejo que
eu não fui o único danificado na noite passada. O peitoral e abdômen dele
estão repletos de marcas de pequenas mordidas e arranhões.
— Já arrumou tudo? — ele indaga sem se importar que eu veja as
marcas.
— Já — aceno.
— E como você tá? — Segura meu rosto nas mãos, analisando o
inchaço causado pela alergia. Não fiquei com grandes estragos depois da
injeção. Meu lábio já está quase todo desinchado.
— Melhor — o tranquilizo
— Ótimo. Então já posso fazer isso.
Não tenho tempo de perguntar o que seria “isso” porque ele dá um
senhor peteleco na minha testa, que com certeza ficará dolorido.
— Por que fez isso? — esfrego a região.
— Porque por culpa sua, eu não gozei ontem. Tô com a porra entalada
no meio do pau.
Reviro os olhos.
— Eu meio que tava morrendo, desculpe se não esperei você terminar
seu sexo.
— Pelo menos você vai ter mais chance com a Vascaína, mas e eu?
— Primeiro, que a Pérola provavelmente vai me odiar pro resto da vida
quando souber a verdade. E segundo, você quer ficar com a Manu de novo?
Sorrio debochado e ele vem para me dar outro peteleco, mas fujo a
tempo.
— Eu só não gosto de deixar as coisas pela metade… ela também não
gozou e vai sair por aí espalhando que eu sou ruim de cama.
Estreito os olhos, não acreditando em uma palavra que sai da sua boca.
— Sei… — Bufo uma risada.
— Sua fantasia tá ali — muda de assunto, apontando para o embrulho.
— É de quê? Achou do Shikamaru?
Ele me devolve meu sorriso debochado.
— Nem de perto.
Respiro fundo, olhando dentro do pacote. Arqueio a sobrancelha.
— Chaves?
— Era isso ou coelhinha, qual prefere?
— Chaves tá ótimo.
— É, reclama não.

Regulo a gravata da fantasia improvisada no pescoço, abraçando meu


corpo em pé sobre o convés. Hoje não tive nenhuma sessão de tantra e
fiquei na cozinha ajudando a tia Fátima. O dia se arrastou como nunca e eu
não sei se acho ruim ou agradeço. Houve algumas trocas de mensagens
entre Gui e eu, mas ambos estávamos monossilábicos e sem saber o que
dizer.
Observo o crepúsculo banhar o mar em tons de amarelo, laranja e
vermelho.
A festa vai ser aqui no convés ao invés do salão de festa, como nas
outras edições, devido ao bom tempo. As chances de chover são remotas,
então foi decidido que ocorreria ao ar livre.
Luzes de led foram acionadas, bolas coloridas jogadas sobre a piscina e
balões fluorescentes espalhados no porcelanato que imita madeira. Garçons
se ocupam do serviço do local, passando vez ou outra com drinks e canapés.
Não consigo beber ou comer nada.
— Pensando na morte da bezerra?
Manu toca meu ombro e giro o pescoço, rindo da sua fantasia de
Mônica.
— Não tinha da Magali?
— Não. — Faz bico. — E então, você meditou?
Nego com a cabeça.
— Não consegui me concentrar.
— Vai dar tudo certo, Cheetos. De um jeito ou de outro, no fim você
fica bem. Sempre fica.
Sorrio fracamente, assentindo.
— Eu só queria uma vez não precisar ficar bem. Só… estar bem de
verdade. — Tento empurrar para baixo o nó na minha garganta, mas ele se
impregnou ali e não quer sair. — Acho que eu passei tanto tempo dizendo a
mim mesma que não podia me apegar a ninguém como minha mãe se
apegou ao meu pai, que o amor machucava, que só atraí exatamente esse
tipo de coisa. Pessoas desapegadas com a intenção de me machucar. Só que
agora… — Balanço a cabeça.
— Agora você achou alguém que não te machucaria — completa por
mim.
— É. — Inclino o rosto para cima, retrocedendo as lágrimas. — Só que
esse alguém já é de outra pessoa. Uma pessoa, que mesmo torcendo para o
Corinthians e sendo escorpiano, é um cara incrível. Os dois são.
Ao que parece, o destino me reservou o papel de coadjuvante na
comédia romântica da minha vida. Eu não sou a garota que é erguida nos
braços ao final do filme. Sou a que quase separou o casal principal.
E por falar neles, João Pedro e João Guilherme sobem as escadas
laterais, entrando no nosso campo de visão vestidos de Chaves e Kiko. Eu
tento rir, juro que tento, mas não sai.
— Eu vou indo — Manu escapa pela tangente, assim como JP observa
as laterais para não a encarar.
Que merda de situação nos metemos. Isso tá parecendo mais um
quadrado amoroso.
— Deixa eu adivinhar… Lupita? — Gui se aproxima de mim sem
receio, beijando os lados do meu rosto. Ainda lembro de quando eu precisei
pegar seu rosto e o levar ao meu para ganhar um beijo assim. Ele se tornou
confiante, ao final das contas. Talvez essa seja a parte boa da parte ruim
dessa história.
— Acertou. — Ajeito o chapéu torto em sua cabeça. — Bela fantasia.
— Nem precisa mentir, eu sei que tô ridículo.
Olho através das costas dele, acenando para João Pedro. Ele está
olhando um prato de canapés, indeciso em pegar alguns.
— A tia Fátima os fez o mais light possível — grito para que me escute
e ele parece ficar sem graça. Depois de girar os canapés nos dedos, os come
por fim, pegando mais três antes de o garçom se afastar.
— Obrigado por isso. — Gui sussurra para que o noivo o não escute.
Aceno, notando a preocupação em sua voz.
Eles são importantes um paro o outro. Mesmo que de um jeito torto, se
cuidam, se protegem. Basta ver a forma como João Pedro não hesitou em
ajudar o Gui na noite de ontem. Ou em como ficou quando a ex dele entrou
em contato. Ou em como se propôs a me deixar ajudá-lo com o sexo. Eu
achei que era falta de interesse da parte do Corinthiano, mas acho que era
apenas o jeito que ele soube lidar com a situação.
A única errada da história sou eu. Eu não podia ter me apaixonado.
Estou prestes a dar uma desculpa para sair dali, quando a voz da Sara
chega aos meus ouvidos.
“Oi, aqui é a Sara, sua comissária de bordo particular”.
Ela mal termina de falar e Gui dá um passo para longe de JP, se
colocando em uma posição de luta braçal. Sou obrigada a rir. Eles são o
casal mais estranho que eu já vi na vida.
— Não vem, hein. Espera ela falar dessa vez!
JP fica vermelho, erguendo os braços.
“Para começarmos a festa de hoje, Piriquita e eu escolhemos uma playlist
toda especial. Dando a largada, recolham seus pares ou trios e aproveitem
coladinhos ao seu amor a última noite do navio”.
Droga, Sara.
Para minha surpresa, João Guilherme não tira a mão do noivo para
dançar e sim caminha na minha direção, me convidando. No entanto, eu
dou um passo para trás, negando com a cabeça. Ele franze o cenho, me
oferecendo sua mão. Me machuca mais do que consigo expressar o recusar.
— Dance com seu noivo, Honey.
Sua mão fica mais um tempo estendida na minha direção, até que eu
pegue uma taça de champagne da bandeja do garçom, a virando na boca.
João Guilherme deixa seu braço cair com uma expressão que não
consigo decifrar. Ele segura a mão de JP desengonçadamente e os dois
travam uma batalha para ver quem lidera a dança. E eu me obrigo a olhar.
Me obrigo a me lembrar que eles estão juntos. E que eu não tenho o direito
de estragar isso.
Eles se balançam afastados, mas se provocam, brincam um com o outro,
como melhores amigos. A base de uma boa relação de amor é a amizade,
não é? Eles serão muito felizes juntos. E de verdade, torço para que sejam.
Esses nerds de uma figa não tinham o direito de me fazer gostar deles
assim. Principalmente o nerd com pistolinha na bunda. Esse quebrou as
barreiras que eu nem mesmo sabia que existiam.
Só para ir embora depois...
— Com licença. — Peço e coloco a taça vazia na mesa, me afastando
dali o mais rápido que consigo.
Antes que eu chegue às escadas do convés, as lágrimas já escorreram
pelos meus olhos. Eu odeio chorar. Odeio sentir meus olhos arderem, odeio
o gosto salino das lágrimas, odeio como meu nariz fica vermelho e
inchado... odeio ser fraca.
Corro depressa para o andar Mistaken, em busca do meu lugar secreto.
Pulo o parapeito do navio, me sentando no banco traseiro da lancha
alaranjada. Esse era o lugar que eu vinha para esquecer do mundo, apenas
para olhar o mar, às vezes alguns golfinhos que brincavam próximos ao
navio, contar as estrelas, deixar meus pensamentos fluírem livres... agora eu
só consigo pensar na noite que tive com João Guilherme aqui nesse mesmo
banco.
Eu adoraria que a parte mais importante tivesse sido o sexo, mas não
foi. O depois contou muito mais. As coisas que ele me disse, e como me
disse.
Abraço minhas pernas encolhidas, apoiando a testa em meus joelhos.
Que droga! Eu não deveria ter trazido ele aqui. Agora não tenho para
onde fugir.
Rio em meio às lágrimas. Quem eu quero enganar? Para fugir dele eu
preciso fugir do meu coração; e acho que ele cansou de eu tentar o jogar
para escanteio.
Mamãe avisou que um dia ou outro o amor iria bater à minha porta. Só
que quando eu respondi a ela que a fecharia na cara dele, não imaginei que
doeria mais em mim.
Um balançar na lancha me faz erguer os olhos assustada, vendo João
Guilherme pular o parapeito e se sentar ao meu lado.
— Ah, agora deu mesmo! Tô tendo alucinação? — Esfrego o rosto,
esperando que a imagem suma da minha frente.
Mas ela não some. Porque não é só uma imagem. Não é alucinação.
E o fato de ser ele mesmo aqui, me deixa mais apavorada do que se
fosse só uma miragem.
— Sou tão feio assim pra me confundir com uma alucinação? — Ele
brinca, empurrando seu óculos contra o nariz.
— O que tá fazendo aqui? — ignoro sua pergunta.
— Eu vim atrás de você.
— Por quê? — Engulo a saliva, me encolhendo mais no cantinho do
banco. Eu não tenho receio dele. Mas tenho receio de mim mesma, porque
tudo que eu quero no momento é beijá-lo e não precisar parar de fazer isso
amanhã.
— Acho que você sabe por que estou aqui, Pérola.
Suas pernas balançam no assoalho, claramente ansioso. A testa suando,
mãos inquietas, pernas balançantes...
— Imagino que tenha vindo perguntar o que eu quero por vencer a
aposta contra seu noivo.
O cenho dele franze.
— Como?
Dou de ombros, tentando não parecer amargurada. Ele não tem culpa
por eu ter me apaixonado.
— Te tornei bom de cama, afinal... no prazo exato de três semanas.
— Ah, isso — Gui tira o chapéu da sua cabeça, o segurando com as
duas mãos. — É, você tornou... eu acho. Mas não é sobre isso que eu vim
falar com você.
— Eu já sei o que quero de prêmio — não o deixo desviar do assunto.
— O quê? — sua voz parece decepcionada, como se a menção a essa
aposta o magoasse. Ironicamente, machuca a mim também, porque eu
queria que fosse mais do que isso. — Qual o prêmio que você deseja?
Meu coração acelera e engulo todo o bolo que ameaça subir minha
garganta.
— Eu quero que você seja feliz. — Forço um sorriso a sair, acariciando
o rosto quadrangular; suas grossas sobrancelhas; seu bigode ainda maior do
que quando o conheci; os cabelos que eu cortei; os lábios que beijei... é, eu
vou sentir falta. Muita falta desses olhos azuis piscina me encarando tão
pidões e manhosos. — É tudo que eu quero como recompensa. Que você
seja feliz.
João Guilherme pisca quando seus olhos começam a se tornar
vermelhos.
— Isso está parecendo mais uma despedida do que um prêmio, Pérola.
Assinto, piscando ainda mais rápido que ele.
— Se parece com uma, porque é uma. — Me arrasto para mais perto,
segurando ambos os lados do seu rosto. — Todo clichê bobo de sessão da
tarde, não importa o quanto seja bom, sempre tem um final. E hoje é o final
do nosso clichê invertido, Honey.
— Não — ele se segura em meus braços, negando com a cabeça
enquanto uma lágrima escorre por sua pele. — Não é. Não precisa ser. Será
que eu sou o único que percebe o que está acontecendo aqui?
Enxugo a gota fujona, selando meus lábios nos dele brevemente.
— Eu já não sei de nada e não percebo nada desde que você apareceu na
minha vida, João Guilherme.
— Para mim foi ao contrário. — Sua testa se une a minha e seus dedos
se infiltram em meus cabelos. — Eu comecei a entender tudo depois de te
conhecer. Tudo que está acontecendo aqui.
Indica nós dois.
Mas não existe nós dois.
Tiro suas mãos de mim com delicadeza, desviando o olhar para o
horizonte, esperando que ele vá embora para que eu possa chorar até lavar
minha alma.
Só que pelo visto, os papéis se inverteram, e é ele que não vai me deixar
fugir. Seu dedo segura meu queixo, me fazendo o encarar. As mãos quentes
de João Guilherme desenham o contorno da minha pele e beija cada uma
das minhas bochechas, a ponta do meu nariz, minha testa e por fim meus
lábios, me arrancando o ar.
— Eu posso ser lerdo, desatento, desengonçado e tão nerd que até
Sheldon Cooper teria vergonha de andar comigo, mas até mesmo eu
consigo ver o que está acontecendo aqui.
— E o que é? — o enfrento, querendo ver se terá coragem de dizer.
— Você está apaixonada por mim.
Arregalo os olhos.
E não é que ele disse mesmo?
Solto o ar que eu prendia, abrindo e fechando a boca, pensando em mil
e uma desculpas para dar. Só que eu não encontro nenhuma. Nem se eu
passasse dias aqui, saberia como o convencer de que não estou apaixonada.
Porque porra, eu estou. Tão, mas tão apaixonada por ele, que nem mesmo
sei definir em que momento esse sentimento me invadiu. Eu só sei que não
encontro a porta para o expulsar.
Então falo a verdade. Não é como se eu tivesse algo a perder.
— Estou, merda! Esse é o problema, porque eu não deveria estar
apaixonada por um homem que vai se casar! —Meus lábios estremecem e
não consigo conter as lágrimas que insistem em sair. — Eu estou
apaixonada por você, pela primeira vez de verdade, com todos os sintomas
e indicações... e você vai se casar.
Sorrio, fechando os olhos. Porque apesar de doer, estou aliviada por
finalmente falar.
— Eu não vou! — Suas mãos seguram meus ombros. — Eu não vou me
casar, era tudo mentira! Nós somos amigos. João Pedro e eu nunca fomos
noivos. Só amigos...
Meu sorriso vai morrendo aos poucos, em cada palavra que sai da boca
dele. Abro meus olhos devagar, negando com a cabeça.
— Mentira? — Diz que não. Retire tudo que disse, por favor.
— É... — acena rapidamente, tornando inúteis minhas súplicas internas.
— Era tudo mentira... menos o fato de eu também estar apaixonado por
você.
João Guilherme me abraça, porém meus braços permanecem estáticos
ao lado do meu corpo.
Mentira?
Só amigos?
Também está apaixonado por mim?
Pisco sem reação, completamente paralisada.
Repasso cada mísero segundo dessa viagem na minha cabeça, tentando
encontrar em que momento fui tão cega e ingênua. E eu encontro muitos
deles.
Aperto os dentes a ponto de doer.
De novo não... ele não.
Por favor. Eu pensei que... pensei que ele nunca mentiria para mim.
Pelo menos ele. Ao menos uma vez, alguém não tentaria me enganar.
— João Pedro e eu somos melhores amigos desde bebês. Nossas mães
são amigas. — Ele conta fazendo um carinho nas minhas costas e me
apertando contra si, enquanto minhas lágrimas rolam pelo meu rosto,
caindo sobre seu ombro. — Eu ia me casar, mas descobri uma traição uma
semana antes e já estava tudo pago... lua de mel incluída.
Fecho os olhos, ouvindo o som do meu coração se partindo.
Agora tudo faz sentido... a ex, as mensagens, a raiva do João Pedro, a
forma como João Guilherme era inseguro...
Como eu ignorei tudo isso?
— JP deu a ideia de fingirmos ser um casal para entrar no cruzeiro... eu
nunca tive intenção de conhecer ninguém aqui, sequer achei que eu fosse
conseguir ficar com outra pessoa depois daquela decepção, mas..., mas ai
você chegou. — Seus braços se estreitam ao meu redor e João Guilherme
não deixa de beijar meus ombros a cada palavra dita. — Você chegou e
naquele dia não contei a verdade por medo de você contar aos supervisores
que nós não éramos um casal.
Comprimo o maxilar, deixando a raiva caminhar pelas minhas veias. Ela
é bem-vinda. Foi assim que lidei todas as vezes em que fui enganada.
Raiva. Não tristeza.
— E depois? — consigo dizer, reparando no tom frio da minha voz. Um
tom que não costuma estar aqui. — Depois que me conheceu, por que
continuou mentindo?
Todo esse tempo. Todas as vezes que me senti culpada. Toda a
angústia... por uma mentira. Fecho as mãos em punho.
Ele suspira profundamente.
— Porque tive medo de você me odiar e eu perder o tempo que me
restava ao seu lado. Eu não podia perder isso, Pérola. Não podia te perder
antes mesmo de te conquistar.
Seguro em seus ombros, o afastando de mim.
— E achou que eu fosse preferir ser enganada? — minha risada é
puramente cínica, querendo arrancar cada lágrima no rosto dele com
violência. — Esperava o que? Ir embora e me deixar acreditar nessa mentira
o resto da vida?
— Não! Quer dizer, no começo sim, porque eu ainda não sabia que
estava apaixonado por você, mas depois não. — Os gestos desajeitados das
suas mãos me mostram seu desespero. — Eu tentei te contar aquele dia na
praia, mas aí o navio soou o alarme e nós precisamos voltar, e...
— Chega! — Obrigo meus lábios a se esticarem em um sorriso
impenetrável. — Não continue. Não continue dando desculpas, porque você
teve três semanas para me contar. Três semanas, e preferiu me enganar. —
Gargalho, enxugando as lágrimas. — Eu realmente achei que era você,
sabia? Achei que você era a pessoa que no fundo eu sempre busquei. Que
seria você o homem a me fazer confiar nesse sentimento, que não me
enganaria como todos os outros. Mas você foi pior que todos eles. Porque
enquanto eles traíram meu corpo, você traiu meu coração.
Me levanto do banco, agarrando a bainha do blazer da fantasia para me
conter. O rosto de João Guilherme começa a se manchar com as próprias
lágrimas e eu beijaria cada uma delas, se ele não fosse a razão das minhas.
— Pérola...
— Não! — Balanço a cabeça. — Não, você não vai me dizer mais nada.
Não quando você não disse quando deveria.
— Eu queria, eu...
— Você me fez confiar em você! — o interrompo. — E não digo no
sentido amoroso, eu confiei na amizade que criamos! Merda, você disse
coisas que eu nunca tinha escutado em toda minha vida, coisas que só
dizemos às pessoas importantes. Me fez acreditar que pela primeira vez, eu
podia me permitir ser cuidada, porque não precisava temer nada enquanto
estivesse com você, principalmente não precisava temer me magoar. E tudo
pra quê? — Ergo os braços, furiosa. — Pra permanecer no cruzeiro? Para
transar comigo? Aproveitar do acordo até o fim?!
— Não! — João Guilherme se ergue, negando desesperadamente. —
Não, Pérola, essa nunca foi a razão. Eu nunca me aproveitei de você. Tudo
foi real. Tudo que te contei, tudo que te disse, foi real. Eu quis dizer cada
uma daquelas coisas, quis cuidar de você apesar do acordo, quis estar ao seu
lado porque nunca me senti tão bem e tão próximo a alguém como de
você... foi tudo real.
— Tudo menos você — retruco com o amargor cobrindo minha língua.
— Tudo foi real, mas você não era...
— Eu sou o Gui que você conheceu. O mesmo homem que você chama
de Honey. Sou ele, por inteiro.
— Não é. — O asco retorce minha expressão. — Porque o homem a
quem eu chamei de Honey, não teria escolhido, por livre e espontânea
covardia, me magoar.
Dou um passo para sair da lancha e ele segura em minha mão, me
fazendo olhar para trás.
— Pérola, não estou mentindo. Eu quis te contar. Me sentia um lixo por
continuar com essa farsa, mas eu tinha tanto medo de você ter raiva de mim
que... eu cedi. Cedi à covardia e não me orgulho. Mas acredite, eu estou
apaixonado por você. Apaixonado de um jeito que não consigo explicar,
que não consigo sequer entender.
Nego, puxando minha mão.
— Você, mais do que ninguém, deveria saber a dor de ser enganado.
Traição vai muito além de compartilhar seu corpo com outra pessoa.
Traição é você escolher magoar alguém, mesmo tendo a escolha de não o
fazer. E você escolheu se arriscar a me magoar, escolheu ser covarde.
Ele dá um passo para trás, como se o tivesse atingido em seu ponto
fraco.
— Não se engane, não estou assim pelas coisas que eu criei na minha
cabeça ou pelos devaneios que meu coração produziu sobre nós dois. Não te
culpo por eu estar apaixonada. —Respiro fundo, reunindo as palavras. —
Mas te culpo por você ter ficado calado todas as vezes que o questionei
sobre seu noivado. Por ter olhado nos meus olhos e dito para eu confiar em
você, por ter escutado as histórias que eu nunca contei a nenhum outro
antes, enquanto mentia para mim... — Bato palmas, com um sorriso de
escárnio. — Parabéns, João Guilherme. Você é o segundo homem a
conseguir me machucar. E acredite, muitos outros tentaram.
Dou as costas para ele e dessa vez não sou impedida. Vou embora dali,
inicialmente a passos lentos, mas que logo se desenvolvem para uma
corrida até o convés.
Encontro João Pedro no meio do caminho e minha decepção se torna
dupla. Porque eu acabei de perder duas pessoas das quais aprendi a gostar.
Ele se assusta com as lágrimas no meu rosto, mas antes que fale algo, eu
quebro o silêncio.
— Para alguém que culpa minha amiga por quebrar seu coração, você
até que fica muito feliz em ajudar a quebrar outros.
JP suspira.
— Ele contou, não foi? — não respondo. — Escuta, Pérola, eu sei que
parece uma merda, mas o Joca nunca quis te magoar. Ele realmente queria
te contar, eu fui testemunha do quanto ele sofreu esses dias querendo te
dizer a verdade e do quanto ele gosta de você.
— E espera que eu acredite em algo que saia da boca de vocês?
Rio irônica.
— Pérola! — Manuela corre na nossa direção, com a expressão
preocupada. E eu desabo quando ela me abraça.
— Era tudo mentira, Manu... tudo mentira. De novo, tudo mentira...
— Shhhi, não pense assim, Cheetos — ela me embala, afagando meus
cabelos. — A situação é completamente diferente. Eu entendo você estar
magoada, mas quando esfriar sua cabeça, vai conseguir ver com mais
clareza. Eu sei que ele errou, mas eu acho que agiria da mesma forma, e
também eu ferrei com tudo pedindo pra ele não contar para não te machucar
e...
Comprimo as sobrancelhas, a afastando.
— Você sabia? — murmuro num fio de voz.
Eu aceito uma facada nas costas de qualquer um, menos dela.
É como levar uma facada de mim mesma.
A expressão de Manuela me faz dar um passo para trás, balançando a
cabeça.
— Pérola, eu posso te explicar...
— Vão todos se foder.
Me afasto sem rumo, correndo escadaria abaixo, entrando na primeira
sala que encontro no corredor. Fecho a porta do que vejo ser uma dispensa,
escorrendo pela parede, até me sentar no chão com as mãos nos cabelos.
Não de novo.
Por favor, não eles.
Eu só queria acreditar. Nada além disso.
Um dia, confiar.
 
 
 
 
 
 
 
 
Eu estraguei tudo.
E o pior, é que eu sabia que isso aconteceria.
Eu sabia que não tinha o direito de mentir para ela, não quando ela se
abriu para mim, não quando contou sobre sua vida, seus segredos e seus
medos.
Acho que nunca me senti tão mal em toda minha vida. Meu coração está
apertado, ardendo e não importa o que eu faça, não passa. Será que foi
assim que Olívia se sentiu? Não sou muito diferente dela agora, não é?
Eu quis ir atrás da Pérola ontem à noite mesmo e me ajoelhar na frente
dela para pedir perdão, mas Manuela não permitiu. Parece que Pérola não
voltou para a cabine e mesmo a procurando por todo o navio, não a
encontramos.
A angústia de não saber como ela está me corrói.
Não tenho o direito de pedir perdão, mas eu preciso pedir. Eu não posso
deixá-la acreditar que tudo que eu fiz e disse, foi apenas para usá-la por
mais tempo. Meu sentimento é verdadeiro. Manuela já teria me matado se
achasse que não fosse.
Não é carência, não é tesão, não é interesse, é apenas... ela.
Nunca conheci alguém como ela. Que um sorriso é capaz de melhorar o
meu dia, que consegue me fazer corar, ao mesmo tempo que me dá coragem
para agir. Que me instiga o instinto de proteção, mas ao mesmo tempo me
dá a liberdade de ser vulnerável.
Escrevo tudo isso no diário de bordo.
Agora eu odeio estar certo sobre ter que escrever mais algumas coisas
na última página.
Esse cruzeiro foi a coisa mais louca que vivenciei. Eu não queria ter
vindo. Não toparia fazer algo assim voluntariamente nem no meu momento
de menor lucidez. Mas eu vim. Vim e mesmo que eu tenha fodido com
tudo, não me arrependendo de nenhum momento que vivi aqui. Porque sim,
eu vivi. Pela primeira, eu vivi, sem pensar em mais nada.
E tudo foi graças a ela. Foi graças a mulher que eu magoei.
— Merda, merda, merda! — puxo meus cabelos, escutando sinal do
navio para desembarcarmos.
— Joca... — a voz tensa de João Pedro se faz presente. — Manu avisou
que a Pérola voltou para a cabine. É sua chance.
— Cacete! — Me levanto correndo, recolhendo minhas malas e o
diário, quase atropelando as pessoas no caminho para chegar até ela.
Manuela está me esperando no corredor, com o rosto inchado de chorar.
Meu Deus, o que foi que eu fiz?
— Desculpa, eu não queria estragar a amizade de vocês, Manu. Eu vou
explicar tudo a ela, você só quis a proteger, a culpa foi toda minha.
Manuela me pega de surpresa ao me abraçar. Abaixo meu tronco e a
envolvo da forma que dá, com o diário em mãos.
— A gente errou junto, eu não devia ter escondido isso dela. Mas eu
não imaginei naquele dia que vocês pudessem ficar tão próximos assim.
— Nem eu, Manu. — Suspiro. — Nem eu.
— Então não desiste dela. — Ela se afasta, me fitando seriamente. —
Prova pra Pérola que o que você sente é real.
— Como eu faço isso se ela não fala comigo?
— Ela não vai te responder, mas vai te ouvir. — Manu balança a cabeça.
— Pérola se acostumou a ser tratada como a segunda opção dos caras, a
garota intermediária até que eles achassem a ideal. Então se ela é sua ideal,
não a deixe pensar que foi apenas ume estepe, porque eu sei que não foi.
— Não foi mesmo, Manuela. Eu te garanto isso. Eu... — interrompo,
engolindo a seco. — Eu sou apaixonado por ela. Nem sabia que dava pra
me apaixonar tão rápido, tão arrebatadoramente, ao mesmo tempo que tão
leve e natural. Eu só não sei como consertar as coisas. Nunca precisei
consertar nada, eu sou o tipo de cara que nem mexe em algo se tiver a
chance de quebrar.
Eu devia ter pensado isso sobre o coração dela também. Porque apesar
da mulher forte, Pérola ainda tem dores. Assim como eu. Só que ela
respeitou as minhas. Me ajudou a curá-las.
— Quando uma coisa quebra, tem que ter paciência para colar os
pedaços. Seja paciente e continue colando os caquinhos que você mesmo
estilhaçou.
— E se ela não me perdoar?
— Isso será um problema seu, pelo menos Pérola vai ver que alguém
realmente lutou por ela. — Manu sorri fracamente. — Desculpa, Joca, mas
eu não estou tão interessada nos seus sentimentos quanto nos dela. Eu não
me importo que você saia magoado se isso significa que pelo menos a
minha amiga não vai achar que é sempre o que sobra, o resto. Lute para ter
o seu perdão, mas não deixe de pedir só porque pode ouvir um não.
Ela se estica para dar um beijo na minha bochecha e me deixa sozinho
no corredor, encarando a madeira fria.
Levo cinco minutos para ter coragem de bater. Dou três toques, mas não
obtenho nenhuma resposta.
Suspiro, colando a testa à superfície rígida.
— Eu sei que você está aí e que pode me escutar, então eu vou falar
mesmo que não abra a porta.
Espero um milagre acontecer e ela me responder, mas como não
acontece, eu faço um monólogo.
— Escuta, eu entendo que esteja com raiva, eu também estaria no seu
lugar. Mas fique com raiva apenas de mim, ok? A Manu achou que era
melhor não te contar por que ela não queria te ver magoada. Pensou que eu
seria só uma pessoa qualquer na sua vida e que você não precisava passar
por um estresse assim. Acontece que assim como ela, eu não esperava que
você fosse me arrastar para as profundezas do seu mundo, Pérola.
Viro de costas, me sentando com elas apoiadas na madeira.
— Eu gostei de você de cara, me senti bem com você, me diverti como
nunca antes. Me senti como um adolescente, um bem diferente do que eu
fui. Você me fez feliz em dias, o que eu não fui feliz em anos. E não digo
em relação ao meu relacionamento, porque eu percebi que o estava apenas
empurrando com a barriga, eu me refiro a ser feliz comigo mesmo, sendo
livre... você desatou todos os grilhões da minha mente que eu mesmo
mantinha trancado.
Esfrego o rosto, corando com algumas pessoas que passam no corredor
e veem a cena. Nesse momento, eu não ligo. Podem presenciar o quanto eu
sou patético.
— Eu comecei a sentir algumas coisas por você que não conseguia
explicar. Eu não podia chamar de paixão, porque eu nunca a tinha vivido
assim. Foi uma novidade para mim, esse furor, essa ânsia em estar junto, o
ciúme, a liberdade, intimidade... eu poderia passar horas falando sobre tudo
que você despertou em mim, que eu só tinha ouvido falar em músicas e
filmes.
Misericórdia, que brega.
Eu deveria começar a ver dorama ao invés de só anime. Acho que isso
me daria uma ideia melhor do que dizer agora.
— Pérola, eu sou péssimo com palavras, meu negócio é número,
computador, software, games... eu não consigo te explicar de forma fácil
sem envolver isso. Então me desculpe, mas vou te falar na língua que eu
entendo. — Inspiro o ar com calma para não me embolar. — Você apareceu
para mim como aqueles vírus que saltam na tela quando entramos em
algum site, que é tão interessante, que mesmo sabendo que vai bagunçar
todo seu sistema, aceita clicar por pura curiosidade. Foi assim que
começou. Curiosidade.
Coloco as unhas na boca, as roendo. Eu sei que é cheio de bactéria, mas
tô nervoso, diabo!
— Depois, você foi como aqueles posts patrocinados do Instagram, que
oferecem cursos para ficar milionário em uma semana, e que mesmo você
sabendo que não tem capacidade para isso, compra aquela porra para se
desafiar. A segunda coisa que senti foi isso. Desafio.
Paro de falar, organizando minhas ideias.
— Logo em seguida, foi como ganhar um game totalmente aleatório,
um do qual eu normalmente não escolheria para jogar, mas que me
surpreendeu ao, além de ter todas as coisas que eu gostava, ter todas aquelas
que eu desconhecia serem essenciais para me tornar viciado. — Bato a
cabeça na porta, angustiado. — Quando joguei a primeira vez, eu soube,
naquele momento, que nenhum outro teria graça. Essa foi a terceira coisa.
Vício.
Que o João Pedro nunca saiba do que estou falando aqui.
— Então... espera, tô tentando pensar em uma metáfora à altura. — Por
favor, abre essa porta, Pérola. — E então... então chegou a uma fase, que
eu não conseguia ultrapassar, porque o monstro era grande e forte demais. E
eu precisei entender que para ganhar aquele nível, eu não precisava de
armas ou escudos... eu só precisava me esquivar, me render, me permitir
passar pelo monstro sendo o cara que eu sou, tímido, encolhido e que tem
um pé grande, bom para correr.
Mesmo de relance, escuto uma risadinha.
Ela riu! Isso é um bom sinal, né?
— Essa foi a quarta coisa. Me senti livre com você, livre para ser quem
eu sou. — Respiro fundo, brincando com meus dedos. — E por fim, Pérola,
quando me vi livre das amarras, dos escudos e das paredes, eu percebi que
nada disso era um jogo. Percebi que era real. Que tudo que eu estava
sentindo, não era uma realidade inventada. E que a paixão que eu sentia
pela heroína da história, não era um atalho para chegar até a fase final. Até
porque a fase final sem você, não existe. Você é meu endgame. Meu fim de
jogo. Meu começo da realidade.
Enxugo o rosto com raiva, fungando.
 
— Eu sei que você pensa que tudo foi uma mentira, mas talvez você
seja a pessoa que mais me conhece, Pérola. Talvez nem mesmo o amigo que
tenho desde o berçário tenha me visto por dentro como você viu. A única
parte minha, que eu menti, é que era noivo do JP. — Rio, negando com a
cabeça. — Você deveria ter adivinhado que eu escolheria um cara mais
limpinho.
Novamente, outra risadinha.
Mas nada da porta se abrir.
Espalmo a mão na madeira e fico ali por cinco minutos, dando a ela a
chance de abrir a porta. Pérola não o faz.
— Eu estou indo, mas isso não é um adeus. — Sorrio para a porta. —
Até porque eu lembro do dia que me disse que só fugiria de mim, quando
tivesse a certeza de que eu a perseguiria de volta. E eu vou. Vou correr por
todas as cinco Grandes Nações Ninjas[46] se necessário, Pérola. Só tente não
chamar a polícia para mim, eu apanharia muito na cadeia.
Mais uma risadinha. E essa eu guardo com cuidado no coração. Pode
ser a última.

Desencosto a testa da porta, ouvindo os passos dele se distanciarem.


Apoio as mãos na cintura, sem saber o que pensar. Ou melhor, o que
fazer.
Eu acabei dormindo na dispensa e além de estar com o coração
bagunçado, agora meu corpo dói miseravelmente.
Manuela entra no quarto pouco tempo depois, recolhendo sua mala para
irmos embora. Eu evito fazer contato visual, mas assim como foi com João
Guilherme, ela não se importa.
— Cheetos, eu sei que você tá puta da vida comigo. E eu até te dou
razão. Mas eu sou humana e erro, além disso minhas intenções eram as
melhores... essa desculpa não cola com macho, mas eu sou sua irmã. Irmãs
fazem merdas uma com a outra de vez em quando. Tipo quando você
manchou meu cropped branco.
Reviro os olhos.
— Não tem comparação, Manuela. Você mentiu pra mim.
— Não, eu omiti. — Subo o olhar para ela com uma careta e ela tem
uma igual a minha no rosto. — Credo pareci um hétero top agora. Enfim, eu
fiz caquinha, quis evitar que você se magoasse e só piorei a situação. O
foda é que realmente o Joca queria te contar e eu o fiz desistir, então não
culpe só a ele, ok? Eu dei um conselho errado pra porra.
Jura? Não tinha percebido.
— Primeiro ponto, vocês combinaram de se eximir da culpa? Porque ele
também me pediu para não te culpar. E segundo ponto, o João Guilherme é
adulto, escolhe as coisas que faz.
— Pelo amor de Deus, o cara não sabia nem beijar direito, você acha
mesmo que ele tem algum traquejo com relacionamento?! — Manu bate o
pé no chão. — Ele namorou por oito anos e não aprendeu nada, jura que
pensa que três semanas fossem o tornar mega inteligente emocionalmente?
— Não quero falar desse assunto. Ele foi embora, acabou.
— É mesmo? Se tivesse acabado, se fosse só uma coisa de momento,
ele teria escrito todo esse diário à mão sobre os momentos de vocês? —
Manuela joga um caderno de capa de couro manchada sobre a cama.
— O que é isso? — tento não demonstrar curiosidade, mas é inútil.
— O diário de bordo que ele fez da viagem, ou mais especificamente de
você, porque só tem seu nome nisso aí.
— Como conseguiu isso? — Faço careta. — Ele te mandou me entregar
para eu sentir pena?
— Claro que não, né! Acho que ele morreria de vergonha se você lesse
as coisas que tem aí. Até eu ruborizei de tanta melação.
— Então como você tem isso?
— Encontrei ele na porta, com o diário em mãos e fingi que queria
confortar ele com um abraço. Peguei o diário sem ele perceber e ainda saí
de boa moça — Manu pisca os olhos com inocência.
— Trombadinha — acuso.
— Foda-se, foi o JP que me avisou para tentar pegar. Ele não aguentava
mais ver o amigo ler esse diário como um cachorrinho abandonado.
Encaro o caderno como se as páginas pudessem me absorver.
— Não vai fazer diferença o que estiver aí dentro.
Manuela ri, porque nem eu mesma acredito nisso.
— Leia e me fale depois. Mas faça isso rápido.
Ela sai da cabine levando sua mala e me sento na cama, fitando o
caderno.
Com as mãos trêmulas, abro nas primeiras páginas, o lendo contar sobre
como descobriu que o cruzeiro era erótico e que JP o contou apenas de
última hora. Também fala sobre o casamento fracassado e o quanto se sentia
mal em relação a isso. Sobre uma moça bonita que ele beijou em uma festa.
E sobre como ela fraturou seu pênis. Mas também sobre como ela foi legal
com ele e ouviu tudo que ele falava, mesmo que fosse coisa de nerd.
Também leio sobre como ele se sentiu envergonhado por não saber fazer as
coisas, mas que estava contente em isso ser uma desculpa para ficar perto
da garota com nome de joia.
Enxugo o rosto rapidamente com as costas da mão ao encontrar o caule
da maçã que o ensinei a beijar, pregado na folha com fita adesiva. Uma
página escrita períneo errado, explicando onde ficava. Outra com a foto que
tirei dele em morro de São Paulo, e mais uma com uma foto que ele tirou
minha em cima de uma pedra. Eu tinha um braço erguido acima da cabeça e
fiz uma pose provocativa, só para ver seu rosto corar. Eu não sabia que ele
tinha impresso essa foto.
Está do lado da dele, com sua tatuagem de henna.
Passo a mão por elas juntas, criando coragem para folhear mais.
Nas seguintes, ele pregou com fita um tufinho do seu cabelo que eu
cortei, assim como o nome do bolo que caiu sobre sua cabeça. Após elas, a
nossa comanda no bar do burburinho em Recife, com o nome da música
que cantamos juntos rabiscado em caneta azul.
O que mais mexe comigo, é que em todas elas, absolutamente todas,
João Guilherme escreveu que sentia muito por mentir para mim. Em todas,
está escrito: me perdoe. Absolutamente todas. Em cores diferentes, em
locais diversos, em fontes cursivas e de forma.
Respiro fundo para conter a emoção.
Mas é na última página, na qual a escrita está bem mais falhada, que
meu coração sobressalta e os sentimentos me bombardeiam.
“Eu disse que pularia no oceano atrás dela de bom grado, logo que nos
conhecemos. Eu só não podia imaginar que estar envolto em pérolas em
alto-mar, fosse ser a minha ideia de planos para o futuro. Eu me apaixonei
pela joia do mar. E eu torço, para que quando eu revele esse sentimento,
ela também esteja por mim.
Mas além disso, depois de saber a verdade sobre meu erro, que ela
ainda esteja apaixonada por mim. Ainda goste de mim, bebê. Por favor.”
Seguro o livro contra meus braços, lembrando de algo que mamãe
sempre me dizia: nunca deixe para dizer depois, uma coisa que você
precisa que alguém importante saiba da sua boca. O arrependimento dói
mais que o orgulho ferido.
Ela nunca deixou de dizer ao meu pai que o amava. Mesmo quando
sentia raiva, ela o deixou saber. Ainda que não merecesse, meu pai se foi
com a certeza que foi amado incondicionalmente por sua esposa. E por
mim.
Porque assim como minha mãe, eu nunca deixei de dizer que o amava.
Levanto da cama depressa, recolhendo minhas malas e correndo para a
zona de saída do navio, precisando apenas que esse desgraçado, mentiroso,
sonso dos infernos, saiba que eu ainda estou apaixonada, apesar da verdade.
Ofego ao chegar na rampa, vendo Manuela acenar para os dois, que
entram em um carro rumo ao aeroporto. Meus ombros encolhem, ao passo
que a ficha cai de que cheguei tarde demais.
Me sento no píer, abraçando o caderno contra o peito, assistindo o carro
se afastar.
— O que tá fazendo aqui? — Manu me interroga debochada, sentando
do meu lado.
— O que eu ia fazer... — corrijo. — Eu ia dizer que também sou
apaixonada por ele, mesmo depois de saber de tudo. Porque essa era a
dúvida final do seu diário.
— E por que não faz isso?
— Porque ele foi embora, ué! — Aponto o carro se afastando.
E ganho um beliscão no braço.
— Pérola, a gente não tá numa comédia romântica e dramática. Ele foi
embora, mas ainda existe telefone, sabia? Só pega e manda a merda da
mensagem. — Seus olhos reviram tanto que quase não voltam. — Povo
difícil pra trepar, difícil pra falar, só facilita em fazer merda! Eu vou virar
terapeuta, o que seria deles sem mim?!
Ela resmunga para si mesma, saindo estressada, me deixando de olhos
arregalados para trás.
E com razão.
Por que os protagonistas de comédia romântica nunca mandam
mensagens? Eles deveriam ser mais inteligentes.
Tipo a Manuela, porque eu claramente seria a garota chorosa no
aeroporto, vendo o amor da vida indo embora, sendo que tudo poderia ser
resolvido com um: oi, sumido.
Pego meu celular no bolso da calça, decidindo quebrar esse paradigma
dramático. Digito o texto o mais rápido que consigo, para que a mágoa não
me impeça de apertar o enviar.
Eu: você me magoou. Eu ainda estou brava, chateada e decepcionada.
Ainda não quero te ver. Ainda quero que você vá se foder na casa do
caralho com essa mentira idiota, mas... eu ainda estou apaixonada por
você, apesar da verdade. Ps: seu caderno me pertence agora. Tem mais
coisas sobre mim do que sobre você mesmo...
Aperto enviar e tenho a intenção de guardar o celular e só o olhar
quando chegar ao Rio. Mas a resposta dele vem na velocidade da luz.
Gui: que tática antiga de ficar com o livro do garoto da escola só para
falar com ele..., mas tudo bem, eu vou cair no seu papinho, sereia. E eu vou
ter meu caderno de volta, assim como reconquistarei a garota cujo nome
aparece em todas as páginas dele.
Eu: boa sorte com isso. Eu não sou fácil de perseguir.
Gui: nunca gostei de jogos fáceis, mesmo.
Solto uma risada irônica e brava.
Eu criei um monstro.
Guardo o celular depois da sua resposta, encerrando o contato.
João Guilherme é incrível e isso eu nunca poderia negar, mas quebrou
minha confiança como todos os outros. Ele vai ter que se esforçar se quiser
que eu acredite nas suas palavras de novo.
Eu posso estar apaixonada por ele, mas me amo mais. Muito mais.
Afinal, um homem pode ir embora e levar consigo uma parte nossa.
Mas cabe a nós garantir que ele tenha acesso apenas àquilo que é
descartável: nosso amor por eles. Porque a chave da porta que guarda o
amor que sentimos por nós mesmas, mantemos dentro dos bolsos, para que,
em um descuido, eles não carreguem consigo ao partir.
 
2 meses depois...
— Ai, cacete!
Entro na cozinha com a escova de dente na boca e coçando a picada de
muriçoca na minha nádega direita.
— Se queimou de novo? — pergunto, vendo Manu chupar o dedo ferido
e encarar a nossa sanduicheira com raiva.
— O dia que eu não me queimar com essa coisa, vai ser o dia que eu
terei jogado ela pela janela.
— A culpa não é do eletrodoméstico. — Jogo uma piscadela, indo para
o tanque da nossa minúscula área de serviço terminar de escovar meus
dentes. A pia do nosso banheiro entupiu ontem e a gente gastou o dinheiro
extra comendo sushi no último fim de semana. Então agora a pia é aqui.
Alguns chamariam de pobreza, mas eu acho de rústico.
Enxaguo a boca rapidamente, usando o braço para me secar.
— Sua mãe vai vir mesmo pra cá hoje? — Manu pega um pano de prato
para tentar abrir a sanduicheira que grudou com o queijo saindo pelas
laterais.
— Vai. — Vasculho nossa geladeira, pegando dois ovos para fritar. — E
ela disse que não precisamos fazer almoço, porque vai trazer de casa.
— Ah, graças a Deus! — ela exagera, erguendo os braços para o alto.
— Até que enfim comida de verdade.
— O estrogonofe que eu fiz ficou bom, para!
— Aquela sopa?
— Ok, ficou um pouco aguado.
— Aguado?! Cheetos, o frango tava nadando.
— Mas matou a fome, não matou?
— É, matou a fome, as lombrigas, as bactérias... eu.
Jogo o pano de prato em cima dela.
— Da próxima você cozinha então.
— Pérola, pior que a sua comida, é a minha.
Assinto, tendo que concordar. Até hoje eu não sei como ainda estamos
vivas. Eu só sei cozinhar porque tinha que me virar quando era criança, mas
isso não quer dizer que a comida seja boa. Eu só sei fazer uma coisa bem:
pudim. De resto, é no máximo comível.
— Você vai pro petshop hoje? — ligo o fogão, colocando uma colher de
margarina na frigideira antes de quebrar os ovos.
— Vou — ela confirma mordendo seu pão quase queimado. — Como
falta um mês pra próxima edição do cruzeiro, eu vou ficar lá pelo período
de experiência. E você? Vai pra rodoviária hoje?
Nego com a cabeça, mexendo o ovo.
— A Márcia pediu pra eu trocar de turno com ela, então pego amanhã.
— Sei... — dá um suspiro cansado. — Quando é que a gente vai poder
ter só um emprego sem precisar de cinco bicos pra cobrir as contas?
— O dia que for nossa hora.
Salpico sal, esperando que não fique demais.
— Eu acho que roubaram o relógio do responsável pelo meu sucesso
então.
— Deixa de ser boba, a nossa vida não é tão ruim assim.
— Não é ruim, mas podia ser melhor.
— Melhor do que morar com sua melhor amiga, viajando em um
cruzeiro de três em três meses, comendo sushi com o dinheiro de pagar a
manutenção da casa e ainda sendo gostosa? Eu duvido.
Manuela me encara com tédio.
— São seis horas da manhã, Pérola. Seu otimismo agora me ofende.
— Então deixa eu ir tomar meu banho, minha mãe merece uma filha
limpinha.
— Não enxarca minha toalha! — ela me grita quando já fechei a porta
do banheiro.
Você pode pensar que andei rápido até lá, mas a verdade é que da
cozinha pra ele, são apenas dois passos.

Mamãe tenta se livrar do meu abraço apertado e eu claramente não


deixo, porque sou um bichinho que precisa de calor humano e Manuela me
belisca quando eu grudo demais nela.
— Filha, eu também te amo, mas eu estou tentando passar da porta tem
cinco minutos.
— Ok, quando eu sumir vai sentir minha falta — a solto a contragosto.
— Essa frase não deveria ser minha?
— Liga não, tia — Manu dá dois beijos nela, mais interessada em pegar
a travessa de lasanha das suas mãos. — Pérola tá carente porque tá na seca.
— Manuela... — aviso antes que comece.
— Minha filha está sem ficar com ninguém? — mamãe se senta no sofá
me encarando em choque.
— Nossa gente, mas assim eu me sinto até uma galinha, sempre
ciscando. Eu posso muito bem ficar sem ninguém.
— Claro que pode, mas eu nunca te vi ficar muito tempo sem sexo.
Mas que porra, até minha mãe enchendo o saco com isso agora? Não
quero transar com ninguém, estou dando um tempo de homem, é isso.
— Se a preocupação de vocês é que eu não esteja gozando, fiquem
tranquilas, meus vibradores são ótimos.
— Vibrador não dá na sua cara e nem te joga na parede — Manu
provoca.
Não, eles não fazem isso, mas um certo dono de olhos azuis e óculos
redondos também não. E eu não reclamava.
Balanço a cabeça, afastando o pensamento.
— Filha, tá acontecendo alguma coisa? Pode me contar, você sabe que
eu estou aqui para te ouvir, eu sei que a vida é muito difícil, cansativa,
desanimadora...
— Mãe! — Arqueio a sobrancelha. — Já entendi. Mas a minha vida não
é assim. Eu só estou aproveitando um tempo só.
— Mentira, tia. Ela tá assim por causa do nerd.
Ok, ela conseguiu acabar com meu bom-humor.
— Manu, você não tem que ir pro petshop?
— Mas e a lasanha? — ela encara a travessa quase chorando.
— Põe numa vasilha e leva, mas sai daqui antes que eu a jogue na sua
cabeça — digo tudo sorrindo.
E minha amiga me conhece bem o bastante para saber que quando
minha paciência esgota, é bom não provocar.
— Tchau, tia. Tchau celibatária.
Joga beijos, carregando sua marmita.
Nego com a cabeça, sentando do lado de mamãe.
— Esse é o rapaz que você contou que mentiu para você?
Ligo a tevê para me distrair, mas pelo visto não vou conseguir fugir
desse assunto.
— É, mãe.
— Você ainda gosta dele?
Gosto.
— Não.
— Vocês ainda conversam?
— Não.
Não é mentira. A gente não conversa, está mais para um monólogo da
parte dele. Desde que mandei aquela última mensagem para João
Guilherme no píer, eu nunca mais respondi nenhuma das suas ligações ou
mensagens de texto. Ainda assim, todos os dias, cinco horas da manhã, meu
celular toca pelo tempo de três chamadas e depois vibra com a notificação
de uma mensagem.
“Bom dia, sereia. Já estou aqui sentado na varanda vendo o nascer do
sol...”
Ele a começa assim todos os dias, mas o conteúdo varia de acordo com
o humor ou o que aconteceu na sua vida. Há dias que ele elogia o nascer do
sol, outros que diz sentir saudade do céu límpido do Nordeste, outros em
que diz quase ter perdido o horário por ter dormido muito tarde, ou que
conseguiu acordar sozinho sem despertador, ansioso para poder me ligar; ou
ainda quando me contou que acordar cedo realmente faz bem, que seu dia
tem sido muito produtivo devido a isso.
E assim como o começo da mensagem é sempre o mesmo, o final segue
a mesma linha.
“É isso, acho que te contei tudo, bebê. Espero que seu dia seja feliz e que
amanhã você finalmente me atenda. Assinado, Honey”
Esse amanhã ainda não chegou.
Eu poderia o bloquear, poderia mandá-lo parar, mas nunca fiz isso. Eu
gosto dessas ligações às cinco da manhã, porque significa que ele se lembra
do motivo de eu acordar esse horário. Gosto das suas mensagens me
contando da sua vida, porque significa que o mundo real não o fez esquecer
da sereia. E gosto do fato de ele ter cumprido sua palavra sobre me
perseguir. João Guilherme sabe que se eu não gostasse, já o teria parado. E
eu nunca parei.
— Por que não manda uma mensagem para ele? O quão ruim poderia
ser?
— Poderia me magoar.
— Você já está magoada, mas é porque está o evitando.
— Mãe, por favor... você sabe que a gente não concorda sobre muita
coisa em relacionamentos.
— Pérola... — ela desliga a televisão e me faz virar de frente para me
encarar. — Você sempre foi uma força da natureza, incontrolável e veloz
como um furacão. Mas até um, tem seu momento de desacelerar.
— Não vou desacelerar por causa de um homem.
— Nem todos são seu pai, querida — ela diz com pesar e me sinto mal
por deixar esse assunto me irritar tão facilmente. — Nem todos vão te
deixar.
Minha garganta aperta.
— Todos deixaram até agora. — Dou de ombros. — E tudo bem,
porque eles não eram importantes o suficiente.
— Acredito em você. Eles não eram, porque nunca te vi realmente com
saudades de uma pessoa, como estou vendo agora.
— Não estou com saudade do João Guilherme — cruzo os braços.
— Eu não tinha citado ele — mamãe me cutuca.
— É por isso que eu não chamo a senhora aqui mais vezes — faço
graça, deitando no seu colo. Mamãe penteia meus cabelos com os dedos.
— Por que eu te falo a verdade?
— Nem sempre, às vezes você só vem aqui, reclama da sua vida e da
minha junto e vai embora levando minha paz. Mas tudo com muito amor,
claro.
Ganho um tapa na bunda.
— Não seja malcriada. Eu sou sua mãe, tenho direito de reclamar.
Antes que eu diga a ela que uma coisa não tem nada a ver com a outra,
meu celular vibra. Meu corpo tensiona mesma hora. Procuro o relógio na
parede em cima da televisão, vendo que são 13h. É o horário de almoço do
João Guilherme.
Como sei disso?
Porque ele também me manda uma foto do seu almoço, todos os dias,
há dois meses.
Talvez não saiba, mas esse é um dos motivos que eu ainda tenho raiva
dele, porque só fico passando vontade vendo a comida bem-feita que ele
faz. Tem dia que tenho vontade de mandar ele se foder, enquanto como um
miojo.
— É ele? — mamãe adivinha.
— É.
— Não vai responder?
— Eu nunca respondo.
— E ele continua mandando mensagem?
— Continua.
— Há quanto tempo?
— Dois meses.
— Então você não é só malcriada, é burra também.
— Mãe! — Me ergo do seu colo. — Xingamento de graça?
— Escuta, menina, agradeça você já ser grandinha e não ganhar uns
tapas, porque essa era minha vontade.
— Por que eu não quero responder um cara? — arregalo os olhos.
— Porque você está fugindo da sua felicidade, se borrando de medo de
repetir a minha história. Mas assim como esse rapaz não é seu pai, você não
é como eu.
Olho para baixo, analisando minhas unhas. Acho que elas acabaram de
se tornar interessantes.
— Eu sei disso...
— Sabe uma ova! Fica aí se fazendo de mulher feliz que não precisa de
ninguém, mas tá com o coração sangrando por puro orgulho e covardia.
— Eu não sou covarde!
— E que nome se dá à pessoa que foge dos próprios sentimentos, por
medo de um dia, acabar como sua velha mãe?
Respiro fundo, negando com a cabeça.
— Não fale de si mesma assim, eu tenho orgulho de tudo que você
conquistou na vida mãe. Eu só não me orgulho do relacionamento que se
sujeitou. Eu sei que papai te amava, mas ele te fazia infeliz.
— E esse rapaz te faz infeliz?
Abro a boca achando que tenho a resposta pronta, mas não tenho. Ou
melhor, não tenho a que eu queria dar.
— Ele me fez feliz todos os dias desde que nos conhecemos, menos no
que eu soube da sua mentira.
— Será que essa mentira foi tão grave quanto você a está
transformando? Será que ele não merece uma segunda chance? Nem que
seja para tentar te conquistar?
— Não sei, mãe. Ele foi o primeiro homem a quem eu dei a primeira
chance, que dirá a segunda.
— Pense nisso quando eu for embora. Deite sua cabeça na cama e
pense. Porque se eu voltar aqui e você tiver com esse humor azedo, eu vou
te bater com havaiana.
— Você tá sempre de humor azedo e nem por isso eu te bato —
desdenho.
— Vai me responder, Pérola Rodrigues Duarte? — ela faz a voz de
mamãe alfa e eu me deito caladinha no seu colo.
— Não senhora.
Mamãe é meio doida, ela pode mesmo tirar as havaianas dos pés.

Termino de enviar a foto do meu bife à parmegiana para Pérola,


largando o celular para comer. João Pedro entra na sala com a toalha
enrolada na cintura, se jogando na cadeira para se servir.
— Vai comer pelado?
— Não enche, Joca — ele esfrega sua têmpora.
— Eu te falei para não beber Skol beats, você não me ouviu...
— Cara, mas eu só tomei uma!
— Só que essa bebida é forte, pra você é como se tivesse tomado um
peck inteiro.
— A minha cabeça dói tanto que parece a voz da Manuela gritando aqui
dentro.
Arqueio a sobrancelha, empurrando o óculo contra o nariz.
É a primeira vez que ele cita o nome dela desde que o cruzeiro acabou.
Eu até tentei intermediar uma conversa dos dois, mas a baixinha me
mandou sossegar meu cu. Com essas palavras. Pelo menos ela me responde,
diferente da amiga.
Como nunca sei se Pérola está gostando das mensagens ou pensando em
me denunciar como stalker, eu conto com a ajuda da encapetada para me
iluminar. Até agora, tudo que ela falou é que eu devo continuar tentando.
E tudo bem, tenho medo é se ela disser que minhas chances acabaram.
Porque definitivamente, se existia algum miligrama dentro de mim que
duvidava que meus sentimentos eram reais, acabaram quando eu estou há
dois meses sem vê-la, escutar sua voz ou conversar com ela e ainda assim
me sinto terrivelmente apaixonado.
Não consigo parar de pensar no seu sorriso de adolescente travessa, nos
seus olhos curiosos, na sua língua afiada, no seu jeitinho feliz de ver o
mundo... sinto falta até de ela quase me matar.
Solto uma risada. Tem tanto tempo que não vou parar numa enfermaria,
acho que vou visitar alguma para lembrar os velhos tempos.
Respiro fundo, indo até a cozinha para buscar um comprimido de
analgésico, o colocando na frente de JP.
— Toma.
— Obrigado, bombonzinho.
Reviro os olhos para o apelido antigo. Acho que até dessas brincadeiras
sinto saudades.
— A minha mãe vai passar aqui mais tarde, é melhor você vestir uma
roupa.
— Tia Das Dores já limpou minha bunda, não tem nada aqui que ela
não tenha visto.
— Você quem sabe — jogo os ombros.
— O que ela vem fazer aqui?
— Advinha? — minha cara retorce em uma careta.
— Os papéis da dissolução? — ele acerta.
— É. Isso mesmo.
No navio, eu havia recebido uma mensagem de Olívia. Na época,
quando ainda era um corno manso, cheguei a cogitar que fosse ela tentando
voltar. Mas não. Era apenas ela avisando que estava entrando com uma ação
para reconhecer a nossa união estável, porque eu não tinha o direito de
cancelar nosso casamento e a deixar desamparada daquela forma, sem uma
pensão gorda pela separação.
É de cair o cu da bunda, eu sei.
Primeiro, que eu cancelei o casamento porque fui corno, não é como se
eu a tivesse abandonado sem motivos ou explicação. Ela esperava que eu
entrasse na igreja com as alianças penduradas no chifre? O velho Joca até
faria isso, mas não o Joca depois da Pérola.
E segundo, que o apartamento que eu comprei sozinho para morarmos
juntos, eu deixei com ela. Mobiliado e tudo, até com a cama que ela quicou
no Igor. A única coisa que eu recuperei foi meu XBox e dois joysticks.
Porque foder minha noiva beleza, mas daí eu deixar meu videogame pro
Igor jogar, é demais.
Bom, o fato é que a primeira coisa que fiz quando pisei em São Paulo,
foi me encontrar com minha mãe para contar a verdade. Ela puxou tanto a
minha orelha, que agora tenho certeza que é torta. E também xingou a
Olívia, a mãe dela, o pai, o tataravô e se brincar até o papagaio.
E não foi porque me traiu, foi porque mamãe deu a ela um vaso de
murano que era da minha avó.
Prioridades, segundo ela.
Pelo menos consegui que minha mãe intermediasse as coisas entre nós
dois, porque não tinha o menor interesse de ver Olívia novamente. Eu não
contestei a ação que ela entrou, mas não porque sou bonzinho e sim porque
quis mostrar a ela a burrada que fez. Se tivesse ficado quieta, o apartamento
todo seria dela, porque eu não tinha interesse nele. Agora, com a divisão de
bens, metade dele é meu.
Inclusive, soube que ela o está colocando à venda para me entregar
minha parte.
João Pedro gargalhou tanto no dia que encontrou ela fazendo a mudança
no elevador, que eu achei que ela fosse grudar no pescoço dele.
— Você vai fazer o quê com o dinheiro do apê? — meu amigo morde
um pedaço do bife.
— Nem sei, eu não tinha intenção de pegar isso, não faço ideia do que
fazer com ele.
— Dá pra mim — sorri com a boca cheia.
— Você teria chance se tivesse engolido a comida primeiro.

Minha mãe atravessa o apartamento com seus saltos alto, jogando a


papelada na minha mesa.
— Oi pra você também, mãe.
— Não brinca comigo não, assina isso aí que eu vou lá em cima buscar
o murano da sua avó.
Caio na gargalhada. Mamãe exigiu o vaso de volta em troca de eu
deixar a mobília do apartamento toda com Olívia.
— É só um vaso, mãe.
— Vou fingir que não ouvi o que disse para não irritar minha pele.
— Fez botox?
— Claro, ou você acha que eu bebo formol pra continuar jovem assim?
Balanço a cabeça.
— Você já é linda, não precisa disso — beijo sua bochecha.
— Sou linda justamente porque uso isso. Mas deixa de me enrolar e
assina isso.
— Ok!
Pego a primeira caneta que encontro, assinando as cinco laudas.
— Maravilha — ela puxa o papel da minha mão. — Agora trate de
arrumar outra noiva porque eu quero netos.
Tusso o pulmão fora.
— Quê? Que netos, mãe?
— Os seus filhos, ora!
— Eu acabei de assinar uma dissolução de união estável e você quer
que eu saia por aí engravidando uma mulher?
— Uma mulher qualquer não — ela ergue seu dedo. Lá vem, quando
faz isso, vou levar sermão. — A mulher que conheceu no navio religioso e
que te ajudou a superar o trauma.
Sorrio amarelo.
Eu disse que contei tudo a ela?
Eu meio que omiti a parte do navio ser erótico.
Realmente minha mãe não precisa saber disso e até JP concordou.
Porque se a mãe dele soubesse que ele se meteu nisso, ia atrás dele com um
balde de água benta.
— Eu te disse que essa mulher está chateada comigo porque eu fiz uma
besteira.
Ganho uma bolsada no peito.
— Eu falei quantas vezes pra você nunca magoar uma mulher, garoto?
— ela me bate mais uma vez. — Não foi assim que eu te criei, ela deve
pensar que você não tem mãe.
Oh Deus, me dá paciência.
— Mãe, ela sabe que a senhora é incrível, não se preocupe. — Começo
a levá-la para a porta.
— Eu quero conhecê-la.
— Ela não tá falando comigo. — Abro a porta.
— E quero ter um casal de netos.
— Boa sorte com seu murano. — Fecho a porta depois de mamãe sair,
respirando aliviado.
— Netos, é? — João Pedro gargalha, saindo do seu quarto depois de se
esconder da minha mãe. Ela também tá brava com ele por ter escondido
tudo.
Ao que parece, as mulheres da nossa vida estão putas com a gente.
— É mais fácil eu me casar com você e adotarmos uma criança do que a
Pérola dar netos pra minha mãe.
— Se eu ficar com a parte do apartamento, assino os papéis agora.
— Vai tentar tirar leite de pedra, vai!
Jogo os braços pra cima, batendo a porta do meu quarto.
 
 
São 4:55 da manhã e eu encaro meu celular ansiosa.
Faltam cinco minutos para João Guilherme me ligar.
E se logo hoje que eu vou atender, ele não ligar?
E se desistiu?
Rolo na cama, parecendo uma lagartixa com cãibra.
Manu ainda está roncando no beliche de cima e eu nem consegui pregar
os olhos essa noite. Culpa da minha mãe. Quem mandou ela me falar para
pensar? Ela tem noção do quanto meus pensamentos podem ir longe?
Imaginei todos os cenários possíveis para essa ligação.
Desde ele não me ligar, até me ligar para falar que era a última vez.
Eu enfiei o otimismo na orelha, só pode.
Ok, Pérola. Você consegue se acalmar, basta mentalizar. Me sento na
cama com as pernas dobradas, tentando uma meditação para acalmar minha
mente. O pai da Manu teria vergonha de mim agora, onde foi parar a Buda
ambulante que ele instruiu? Culpa do João Guilherme, antes dele eu era
bem calma e centrada.
Ok, centrada é exagero, mas eu era calma.
Estou na décima tentativa de contar de cinquenta a um para me acalmar,
quando o celular começa a tocar. Dou um pulo na cama, o procurando
debaixo do travesseiro, mas a coisa parece ter sido engolida por um buraco
negro. Jogo todos os travesseiros no chão, encontrando o celular no meio
cama.
Como foi parar aí?
Pego o aparelho correndo, com o coração espancando meu peito, pronta
para atender... até a bateria acabar.
— Não! — Bato na tela várias vezes e aperto o botão de ligar, mas o
celular desencarnou. Como não dormi à noite, fiquei mexendo no tiktok e
me esqueci de colocar pra carregar... — Eu não acredito nisso!
Procuro o carregador no meio da bagunça da penteadeira que divido
com Manuela, achando três fios estragados, mas nada do que funciona.
Estou pronta para acordar a minha amiga do seu sono da beleza para saber
do carregador, quando o celular dela começa a tocar.
Subo na escada da beliche, tirando aparelho de cima da bochecha dela.
Na tela, o nome “Nerd terceira perna” com um emoji de óculos,
beringela e régua, aparece ligando.
— Se é nerd e pirocudo, só pode ser o meu nerd pirocudo.
Atendo a ligação e levo o celular ao ouvido.
— Alô? Manu? — a voz rouca de sono dele me faz fechar os olhos. —
Desculpa te ligar essa hora, mas é que o celular da Pérola está dando sem
sinal e fiquei preocupado. Ela está bem?
Sento no chão da varanda, abraçando o Cebolinha de pelúcia que dei de
presente para Manu no aniversário passado.
— Alô? Manu? Você tá acordada? Pode pelo menos grunhir pra eu
saber que tá tudo bem?
Solto uma risadinha, cobrindo a boca em seguida.
João Guilherme fica em silêncio e quero pedir para que continue
falando, mas como não saberei o que falar depois, apenas permaneço
calada.
— Não é a Manu, né? — o timbre da voz dele muda no mesmo instante.
É infinitamente mais manhosa e carinhosa. — É você, bebê?
Dou um grito interno, mordendo meu lábio. Que saudade de escutar ele
me chamando assim.
— Ou será que é a Calypso? — brinca, dando uma risada gostosa. —
Talvez seja a Pérola?
Sorrio boba para o Cebolinha, que me encara debochado.
Eu posso jurar que ele ergueu a sobrancelha para mim.
— Se eu chamar pela sereia, será que essa me responde?
Nego com a cabeça, ridiculamente.
— Ok, acho que vou desligar então...
— Não! — tão logo falo, cubro minha boca. Que merda, Pérola.
A risada dele me mostra que fez de propósito.
— Prefere que eu fique falando então? Não precisa me responder.
Balanço a cabeça positivamente.
Meu cérebro sabe que ele não pode ver né? Acho que não.
— Como você não desligou na minha cara, vou considerar um sim. —
Limpo as mãos suadas no pijama. — Primeiramente, me deixe começar
essa ligação direito.
Ele pigarreia.
— Bom dia, sereia. Já estou aqui sentado na varanda vendo o nascer
do sol...
Meu coração reage ao escutar na sua voz a mensagem que me manda
pela manhã todos os dias.
— Ontem eu assinei os papéis do reconhecimento e dissolução de união
estável. Você lembra que te contei sobre isso, certo? Acho que foi na
segunda semana depois do cruzeiro. Não sei se você lê tudo que eu escrevo,
mas te expliquei com detalhes sobre o pedido da minha ex.
Faço careta.
Ah, eu me lembro. Mesmo puta com ele, eu fiquei tão brava com o que
aquela mulher fez, que quase o respondi para pedir o número dela. Eu ia
recomendar uma terapia e um bom óleo de peroba para sua cara de pau.
E burrice, porque ela ia ficar com o apê inteiro para ela, se bem me
lembro.
Sim, Honey, eu leio todas as suas mensagens... mais de uma vez.
— Então, ontem eu assinei os papéis, minha mãe foi atrás do seu vaso
de murano e exigiu conhecer a mulher que me ajudou no cruzeiro religioso.
Ele ri nessa última parte e meus olhos rolam na órbita. João Guilherme
contou em uma das mensagens que omitiu essa parte da sua mãe. Na época
eu estava no auge da minha raiva, então quis mandar ele à merda, mas a
verdade é que mamãe também não sabe que o cruzeiro que eu trabalho é
erótico, então eu não posso julgar.
— Ela também me pediu netos.
Espera... o quê?
Tusso depois de me engasgar com a própria saliva, batendo no meu
peito.
— É, essa foi minha reação também — o cretino ri. — Minha mãe está
brava que eu te magoei. Ela me bateu com sua bolsa da Prada.
Riquinho metido...
— Eu sei que você deve tá revirando os olhos, não tente me enganar.
Nem tava, bobão. Eu fiz foi cara de debochada.
Droga, queria dizer a ele que errou.
Mas estou gostando de ouvir sua voz.
Por hoje, vou me contentar só com ela. Quem sabe outro dia eu crie
coragem para falar.
Antes de desligar, ele repete seu enredo final, com uma pequena
alteração.
— É isso, acho que te contei tudo, bebê. Espero que seu dia seja feliz e
que amanhã você finalmente me responda. Sempre seu, Honey.

Há duas semanas estou conversando sozinho com o celular. Bom, pelo


menos agora eu consigo escutar a respiração da Pérola do outro lado da
linha. É melhor do que só ver os risquinhos azuis de mensagem visualizada.
João Pedro até pegou o celular um dia, para ver se ela realmente tinha
atendido — ou se era só ilusão da minha cabeça —, e começou a conversar
com a Pérola, se desculpando pela nossa mentira. Acontece que o erro do
meu amigo foi infinitamente menor pelas circunstâncias, então ele, ela
respondeu.
Estou sendo zoado por isso desde então.
Vou para cama cedo, como tem sido desde que comecei a acordar 5h da
manhã. Sou obrigado a admitir, meu rendimento no trabalho dobrou; a
única coisa ruim é que dá nove horas da noite e eu já estou babando no
travesseiro. Como agora.
Meu celular desperta 4:50 da manhã, anunciando que é hora de escovar
meus dentes, colocar água na máquina de expresso e esperar na varanda até
dar a hora de ligar para Pérola. Tomo dois goles do café sem açúcar, quando
o segundo despertador toca às 5h.
Disco seu número, me acomodando na rede que pendurei na varanda
desde que ela começou a me atender.
— Bom dia, sereia. Já estou na varanda assistindo o nascer do sol...
Mesmo que eu sempre converse sozinho, gosto de dar um tempo entre
minhas falas, na esperança de que esteja me respondendo ao menos em sua
mente.
— Bom dia, Honey. Eu também estou na varanda assistindo o nascer
do so...
Nossa, mas a mente dela tá alta ao ponto de eu escutar?
Tiro o celular do ouvido conferindo se liguei para o número certo.
— Eu imaginei que você respondeu, ou você respondeu mesmo? —
ainda não estou acreditando nos meus ouvidos. Eu posso muito bem tá
tendo alucinações pelo tanto de balinha de café que comi ontem enquanto
trabalhava.
— Você costuma imaginar as respostas que eu dou para suas ligações?
— a voz divertida com pitadas de deboche me garante que sim. É ela.
Minha sereia.
Sento na rede com as duas mãos segurando o celular, com medo que ele
caia e eu perca essa chance.
— Eu tento... quer dizer... — droga, quando ela fica calada eu converso
feito um papagaio, agora quando a mulher me responde, eu travo. — Eu...
espera, eu ainda estou me recompondo de você ter falado comigo. Dá um
minuto pra eu fazer o download da atualização.
A risada dela preenche meus ouvidos e todo meu corpo reage. Aperto o
celular no ouvido, precisando de mais da sua voz.
— Eu deveria ter avisado que ia responder, mas a verdade é que não
estava nos meus planos fazer isso. Só aconteceu.
— Eu gosto quando “só acontece”. — Aceno para mim mesmo. —
Porque quando “só acontece”, geralmente tem você envolvida.
— Isso foi um jeito disfarçado de dizer que sou impulsiva?
— Foi.
Nossas risadas se misturam e me fazem lembrar o quanto elas são boas
juntas. Suspiro, reunindo coragem para falar. Com ela me respondendo me
sinto muito mais tímido do que antes.
— Eu senti sua falta. De verdade, Pérola. Falta da sua voz. Da sua
risada fácil. Do seu deboche. Das suas implicâncias... eu senti falta de tudo.
Quando ela fica em silêncio por um longo tempo, imagino que vá parar
de me responder de novo. Mas Pérola me surpreende com o contrário.
— Eu tentei não sentir. Tentei te tirar do meu coração, não vou mentir.
Mas eu não consegui. Não consegui e isso me deixou muito brava com
você, porque desafiou tudo aquilo que eu acreditava. Foi contra tudo que
eu dizia a mim mesma. Contra a realidade que eu já tinha tomado como
certa para mim.
— Qual realidade? — novamente, seu silêncio perdura por um tempo.
— Se não quiser me dizer agora, está tudo bem. Eu sei esperar. E eu vou
esperar.
Escuto sua respiração longa do outro lado da linha e uma última ainda
mais profunda antes da sua voz voltar a preencher meu ouvido.
— Eu sempre considerei o amor passageiro, como uma brisa gostosa de
verão, que chega de repente, mas que vai embora quando já nos apegamos
a ela, só para nos fazer sentir saudades e esperar ansiosos pela sua
próxima chegada.
Aperto minhas mãos, tendo que guardar o impulso de a abraçar como
naquele dia da praia. Essa distância é uma merda. Mas também serviu para
que agora eu a compreenda melhor.
Nesses meses que se passaram desde nosso afastamento, reuni tudo que
Pérola me disse ao longo da viagem, mais os complementos que Manuela
me deu e entendi o porquê da minha mentira a ter magoado tanto. Pérola
não foi tratada como merecia. Nem pelo pai, e nem pelos homens que
passaram em sua vida. Talvez nem por mim. Mas isso é algo que eu
pretendo mudar.
— Você acha que vou embora tão logo se apegue a mim?
Meu coração pulsa para saber sua resposta. Porque acho que através
dela, posso saber se ao menos esse tempo serviu para ela entender que,
apesar da mentira, tudo que vivemos foi real. E que eu não vou embora.
— Não. Porque eu me apeguei há muito tempo e você continua aqui.
Você é a prova em contrário da minha ideia errônea sobre o amor, Honey.
Fecho os olhos, deixando uma lágrima cair no meu rosto. Uma lágrima
de alívio. De felicidade. De esperança.
— Eu estou aqui. E não vou embora. Não importa o tempo que levar
para me querer por perto, eu ainda vou estar aqui, como uma concha à
espera da sua Pérola.
— Ai, que brega — ela gargalha, mas ao final começa a chorar. — Que
droga, você sempre me faz chorar com declarações estranhas.
Sorrio para o telefone, me lembrando da nossa noite no seu lugar
secreto.
Pérola e eu conversamos por mais meia hora, até as obrigações do nosso
dia nos faça parar de observar o nascer do sol.
— É isso, acho que te contei tudo, bebê. Espero que seu dia seja feliz e
que amanhã você continue me respondendo. Sua eterna concha, Honey.
— Eu vou contar pro JP que você fica falando essas coisas!
 
 
 
 
— Já contou ao Joca que voltamos para o cruzeiro semana que vem? —
Manu joga um pacote tamanho família de batata palha no nosso carrinho.
— Contei ontem — troco o tamanho família por um menor. — Tá
querendo viver de batata, cacete? Não podemos comprar comida demais,
você mesma falou que só falta uma semana para embarcarmos.
Manu troca mais uma vez os pacotes.
— Deixa minhas batatas aí, inferno.
— Então a gente não vai comprar Yakult.
Ela cruza os braços, resmungando baixinho.
— Ok, troca a merda da batata.
Pego novamente a média, sabendo que ainda vai acabar murcha dentro
do armário. Manuela com fome vindo no mercado, acha que a gente
alimenta um batalhão em casa. Ou pior, que tem dinheiro pra isso.
— Como vai ficar esse relacionamento de vocês? Vão ficar só no sexo
por telefone?
Um sorriso predatório estica meus lábios ao me lembrar da conversa de
ontem à noite. Começou com algo inocente, contamos sobre nossos dias, e
quando dei por mim, eu já estava nua no banheiro, com os dedos afundados
na minha entrada e a ligação não era mais de áudio. Não vou nem comentar
que tive que mandar o Gui se afastar mais da câmera, porque o pau tava
cobrindo tudo.
Por que tem que morar longe? As pessoas acham que São Paulo é
muito perto do Rio, mas são mais de 400 quilômetros. Não é como se desse
para eu ficar indo e voltando, assim como João Guilherme também não
consegue abandonar a vida que tem lá a hora que bem quiser.
Nós ainda não rotulamos nada da nossa relação e tem sido melhor
assim. Estamos aparando todas as pontas soltas que foram deixadas e nos
conhecendo longe do ambiente cem por cento neutro do navio.
— Terra chamando Pérola! — Manu passa um pacote de macarrão na
frente da minha cara.
— Ah, eu não sei como vai ficar ainda. A gente só tá deixando rolar...
— É, eu escutei o quanto vocês deixaram rolar. Se não me deixaram
dormir com um sexo virtual, não quero nem saber quando resolverem fazer
isso na beliche de baixo.
— Fica tranquila, Manu. Não tem a mínima chance de o João
Guilherme sair da casa dele de última hora para me ver antes de
embarcarmos. Ele é o senhor econômico, lembra?
— É, mas te deu um vestido caro, lembra?
— Pois é, eu já obtive o milagre nessa vida. Agora ele só vai gastar
assim em outra encarnação.
— O que sua mãe tá achando dessa história? — ela interroga enquanto
viramos no corredor de produtos de limpeza. Sendo sincera, a gente só
compra água sanitária, detergente e desinfetante. Esse último eu pego o
maior que tiver, porque toda vez que vou passar um simples pano na casa,
gasto metade.
— Ela já está chamando o Gui de meu genro — reviro os olhos, me
lembrando da chamada de vídeo que fizemos há três dias. Mamãe insistiu
para conversar com ele e como Gui não se opôs, eu coloquei os dois para se
conhecerem.
Foi o primeiro cara que apresentei para minha mãe. Bizarro, mas é
verdade.
— Tá zoando? — Manu gargalha.
— Quem dera, minha mãe me manda mensagem agora só pra poder
saber dele. Eu mesma ela nem pergunta se estou viva.
— Ah, que gracinha. Com ciúmes da mamãe?
Manu aperta minha bochecha.
— Eu estou, a mãe é minha. — Pego um saco de 1kg arroz na
prateleira, sabendo que dá e sobra para essa última semana em terra firme.
— O que ele achou sobre o cruzeiro? Ficou preocupado de você achar
outro nerd e trocá-lo?
Bufo uma risada. Eu não sei o que fiz com esse homem, mas inseguro
ele não é mais. Continua corando feito um tomate maduro, mas pelo menos
não se acha o bagaço da laranja chupada pelo bandido.
— No fim de semana, ficamos até três horas da manhã assistindo o
filme do Naruto, porque eu queria ver ele e a menina de olho branco se
beijarem... ele não só é nerd, como me fez gostar dessas coisas. O Gui sabe
que venceu na vida.
Mas tudo bem, porque ele passou o outro dia inteiro vendo Rebeldes
comigo, mesmo trabalhando. Nós ligamos a câmera, ele no computador
trabalhando e eu deitada na cama. No outro dia, quando acordei, a chamada
ainda estava ligada e ele dormia com rosto virado para a câmera,
balbuciando algumas coisas. Meu nome foi uma delas.
Eu te amo, foi outra.
Ele não sabe que me disse isso. E vou esperar que repita quando estiver
acordado para eu acreditar. Mesmo assim... foi bom ouvir.
— O dia que eu encontrar quem leia meus gibis da Turma da Mônica,
vou vencer também.
— Manu... — empurro seu ombro. — Tem um certo Corinthiano que já
fez isso, ou se esqueceu da biblioteca?
Ela fecha a cara.
— Ele não conta.
Estreito os olhos. Sei... não conta mas fica chamando o nome dele
enquanto dorme. Manu e Gui tem mais em comum do que pensam. Dois
fofoqueiros que gostam de contar segredos durante o sono. Sorte a minha de
vê-los dormir.
Quatro dias para a minha sereia voltar para o mar.
Dessa vez, sem o marinheiro bocó que vos fala.
Eu sei que estamos longe um do outro de qualquer forma, que continuo
não sentindo o cheirinho de chocolate com amendoim, mas saber que ela
vai estar ainda mais distante do que os 400km ao qual me acostumei, aperta
meu peito.
Não tem sido fácil. Achei que quando voltássemos a nos falar, tudo
seria mais simples, mas a saudade aperta ainda mais agora que as coisas
voltaram a ser como antes. Na verdade, ficaram melhores do que antes,
porque não há nada que eu precise esconder dela agora.
Pérola e eu demos um jeito na nossa vida corrida para que mesmo na
distância, estarmos juntos. Há cinco dias, foi seu período menstrual. Fiquei
a ponto de enlouquecer quando liguei para ela e escutei sua voz engasgada
pelo choro. A única coisa que me impediu que pegar o primeiro avião para
o Rio de Janeiro foi que eu tinha que acompanhar a minha mãe em um
exame de endoscopia. Mas como eu não pude estar lá, liguei para a
farmácia perto da casa delas, que Manu me passou o número, e mandei
entregar tanto remédio de cólica, que talvez eles vençam antes que ela seja
capaz de tomar. Também pedi uma caixa de M&M de amendoim, que
Pérola comeu inteira em dois dias.
O inverso também aconteceu. Tive uma crise de ansiedade com o prazo
apertado para entregar o gráfico de um game e Pérola fez chamada de vídeo
comigo por toda a madrugada. De uma em uma hora, me fazia parar, ir até a
varanda, observar o ponto mais distante que eu pudesse, para que meus
olhos descansassem do foco excessivo, além de me fazer escutar um áudio
para alinhamento do chakra plexo solar... acho que é esse o nome. O fato é,
mesmo tendo que trabalhar no outro dia, ela passou a noite em claro para
me ajudar a entregar tudo no prazo. E eu entreguei.
Mandei um buquê de flores para ela naquele dia. E chorei de rir quando
ela me mandou um áudio me xingando por tê-la feito chorar com meu
cartão brega escrito: flores para uma flor.
São pequenas coisas que eu não estava acostumado a ter em uma
relação. Nem sabia o que era reciprocidade dentro de um relacionamento.
Não que eu espere que ela retribua meus gestos, mas a questão é
exatamente essa. Mesmo não esperando, mesmo não exigindo, ela retribui.
— Já tá quase na hora de ligar pra sua dona — João Pedro passa na sala
para chegar até a cozinha.
— Eu sei, estou só terminando de enviar os cálculos para o estagiário da
empresa.
— E quando vai deixar de ser um bunda mole e ir logo encontrar sua
garota?
— Ela embarca no navio em quatro dias, então combinamos de nos
encontrar quando ela voltar.
Daqui três semanas. Acho que vou ali me enforcar num pé de alface.
— Vai aguentar todo esse tempo? — Ele se senta na mesa depois de
pegar um copo de água.
— Eu aguentei dois meses do mais absoluto silêncio, acha mesmo que
vou desistir dela só por causa de umas míseras semanas? — Bufo incrédulo.
— Vai precisar de muito mais que tempo e espaço para que eu abra mão da
Pérola.
— E como vai ser se esse namoro, ou seja lá como vocês chamam, for
pra frente? Você vai se mudar pra lá? Ela vai vir pra ca?
Dou de ombros, balançando a cabeça.
— Eu não faço ideia, JP. Por enquanto, eu sei que nenhum de nós dois
tem como abandonar a vida para trás para mudar de estado. Além disso, eu
tenho minha mãe aqui, Pérola tem a dela lá, é complicado.
— Não te preocupa que a relação esfrie por causa disso? Sei lá, não tô
falando isso pra te desanimar, é só que eu não sei como um namoro à
distância possa dar certo.
Fecho a página do computador ao terminar meu trabalho, me virando
para meu amigo.
— Eu estive frente à frente com uma mulher por oito anos da minha
vida. A vendo, tocando, ouvindo sua voz, respirando o mesmo ar que ela. E
do quê adiantou? — manejo a cabeça negativamente. — Mesmo do lado de
Olívia, eu me sentia sozinho. Era como ter uma pessoa na minha frente,
mas não sentir sua presença.
— Difícil não sentir a presença com aquele perfume forte que me dava
rinite — ele coça o nariz para provar.
Reviro os olhos.
— Deixa de implicância, esquece ela. — Dou tapinhas no seu ombro.
— No fim, Olívia me deu aquilo que ela tinha dentro de si. Talvez fosse o
melhor que ela tivesse para me entregar no momento. Eu também não fui
alguém que me entregou a esse relacionamento de coração aberto, era mais
minha cabeça que impulsionava meus gestos, meus carinhos, meus
presentes... não sentia uma vontade de rasgar o peito para fazer algo que me
presenteasse com o sorriso dela. Eu fazia porque na minha cabeça, deveria
ser feito. Porque eu vi meu pai fazer pela minha mãe...
— Eu achava que você era só contido, mas depois de te ver com a
Vascaína, percebi que só não tinha gostado de alguém ainda.
— Penso a mesma coisa. Eu realmente acreditava que amava a Olívia,
mas não amava. Quando ela me traiu, me doeu mais refazer todos os planos
que eu tinha para o futuro do que de fato pensar que ela não estaria mais
neles. Seria totalmente diferente se acontece algo assim com a Pérola...
— Mas não vai. Ela gosta de você. Por um milagre, mas gosta.
— Você tem crise de abstinência se não implicar comigo, né?
— Por aí.
JP bagunça meu cabelo, indo para o seu quarto quando meu despertador
avisar que já deu tempo de Pérola chegar em casa, tomar banho e se deitar
para falar comigo. Normalmente sou sempre eu a fazer as ligações, mas
dessa, é meu celular que vibra. Aceito a chamada de vídeo com o sorriso
que só tenho para ela, mas ele morre quando vejo seus olhos inchados.
— O que aconteceu? — Levanto da cadeira, andando pela sala
segurando o celular na altura do rosto.
— Nada demais, Honey — ela tenta um sorriso, que não é nem de perto
os que costuma me dar. Quando Pérola sorri de verdade, consigo ver toda
sua arcada dentária.
— Quer enganar logo a mim? Me diz, por que chorou?
Pérola faz um biquinho, suas bochechas se tornando rosadas. Na maior
parte do tempo, sou eu quem coro, quem sou manhoso e pareço um
cachorrinho abandonado, mas às vezes, em momentos raros, ela inverte
nossos papéis e é fofinho de ver. Acho que não tem uma única versão dessa
mulher que eu não goste. Seja meu bebê, minha Calypso ou simplesmente
minha Pérola.
— Seria muito ridículo dizer que eu chorei de saudade de você?
Ai meu coração. Aguenta, queridão, você tomou uma pancada bem
certeira agora, mas precisa continuar batendo.
— Seria ridículo o fato de você achar que é ridículo.
— Então eu chorei. — Confessa com um jogar de ombros. — Estava
tudo bem, mas aí entrei no elevador com um casal de velhinhos. A senhora
estava pedindo desculpa porque não parava de pressionar a bengala no pé
dele enquanto andava. Aí o senhor se virou para ela, empurrou seu óculos
contra o nariz, e disse que o pé dele estava sempre à disposição para que ela
pudesse se apoiar. — Os olhos dela voltam a encher de lágrimas. — Isso foi
tão brega, que eu pensei em você na mesma hora. É sua cara me deixar dar
bengaladas no seu pé e ainda achar bom.
Acabo rindo, porque sim, é verdade.
— Quando ficarmos velhinhos, vou deixar você me dar quantas
bengaladas quiser. Só vai precisar manter elas longe da minha bunda.
Pérola umedece os lábios, pensativa.
— Acha que vamos ficar velhinhos juntos? — pergunta sem encarar a
câmera do celular.
— Não.
Seus olhos sobem aos meus rapidamente, incrivelmente magoados.
— Eu não acho. Tenho certeza.
Pérola solta o ar que prendia, balançando a cabeça.
— Se continuar fazendo essas gracinhas, não vai viver até lá.
Jogo um beijo para ela, iniciando outros assuntos que não nós dois. Não
quero que ela fique triste. Me aperta o peito saber que está chorando por
minha causa, mesmo que seja de saudade.
Ficamos em ligação por duas horas, até que os olhinhos castanhos
estejam quase se fechando.
— É isso, bebê. Acho que te contei tudo. Espero que sua noite seja
tranquila e que se lembre que amanhã falta menos um dia para nos vermos.
— Vou contar os segundos — diz grogue, desligando a chamada.
Pérola parece ter ficado mais tranquila, mas eu não. Se estava
angustiado com a distância antes, agora sequer consigo deitar a cabeça no
travesseiro.
Ao entrar no banheiro esperando que um banho me ajude, o celular
vibra com uma notificação de mensagem dela. Pérola me enviou um vídeo
no youtube de uma música, escrevendo abaixo:
“É exatamente assim que me sinto”.
Abro o link, aparecendo a música “Ao vivo e à cores”. Como nunca
escutei, dou play no vídeo.
“Por que você não sai daí e vem aqui
Pode invadir, pode chegar, pode ficar
No meu quarto, no meu abraço apertado
Duvido que cê vai querer ir embora”
Sento sobre o assento do vaso, segurando o celular com força enquanto
a letra falta me espancar.
“Eu não aguento mais
A tela fria desse celular
Só ver sua foto não vai me esquentar
Amar você de longe é tão ruim”
Misericórdia, estou tendo taquicardia.
“Te quero ao vivo e a cores, aqui
Aqui”.
Saio do banheiro como um furacão, pegando a mala em cima do meu
guarda-roupa e a jogando aberta sobra a cama. Abro o armário de qualquer
jeito, pegando as primeiras roupas que acho pela frente.
João Pedro entra no meu quarto confuso pelo barulho.
— Tá fazendo o quê?
— Indo pro Rio de Janeiro.
— O quê?! — ele grita, segurando meus ombros. — Agora? São 22h.
— É, agora. — Me livro das suas mãos, jogando as roupas dentro da
mala sem as arrumar.
— Por quê?
— Porque minha garota sente minha falta e me quer ao lado dela.
— Mas você sabe que passagem de avião de última hora é o preço de
um rim, certo?
Fecho a mala toda bagunçada, a colocando no chão. Olho para meu
amigo, assentindo.
— Sei. Mas foda-se o dinheiro, ele serve exatamente para eu fazer
minha sereia feliz.
— Puta merda, eu vivi pra ver isso. — Ele ri sem acreditar, me dando
um abraço. — Vai lá, garanhão, vá atrás da sua dona.
Caminho até o corredor, parando no meio do caminho. Viro para trás,
olhando JP.
— Quer vir comigo?
— Eu? — coloca a mão no peito. — Por que eu iria?
— Porque não sou só eu que tenho uma garota lá que tem me feito uma
falta do caralho.
Arqueio a sobrancelha e ele sabe que me refiro à Manuela.
— Vou fazer minha mala.
Sorrio, entrando no aplicativo de viagem. O sorriso não dura muito
tempo.
Puta merda! Ainda bem que Olívia entrou com aquela ação e eu ganhei
metade do apartamento, porque essa viagem vai ser quase o preço de um.
 
 
Meu celular vibra no meio da madrugada. Meu corpo contrai com o
susto e aperto as pálpebras, tentando entender o que está acontecendo. Será
que estou sonhando? Não é possível que já seja hora de acordar, eu posso
jurar que não dormi mais que três horas.
— Desliga isso, Cheetos! — Manuela resmunga da beliche de cima.
— Se eu achar eu desligo.
Enfio a mão debaixo do travesseiro, encontrando o celular que vai parar
lá do outro lado do quarto se não parar de gritar. Esfrego os olhos para
desembaçar minha visão, me surpreendendo ao ver Honey piscando na tela.
Meu coração dá um salto de imediato, com medo que tenha acontecido
alguma coisa.
Atendo rapidamente.
— Oi? Aconteceu alguma coisa?
— Oi, bebê — a voz dele não parece preocupada.
— Por que tá me ligando a essa hora? — afasto o celular rapidamente
para ver o horário.
1h da manhã. Eu espero mesmo que seja importante ou vou matar ele.
— É que tá frio aqui.
— Ué, então se cobre.
— Caralho, calem a boca! — Manu pragueja acima de mim.
— Não dá pra me cobrir, estou sem cobertas.
Franzo o cenho. Ele bebeu, por acaso?
— Gui, eu tenho que desligar ou a Manu vai me esguelhar se não calar a
boca.
— E vai ter coragem de me deixar plantado aqui fora?
— Ahn? — dou tapinhas na minha cara, tentando acordar. — Não estou
entendendo.
— Abre a porta da sua casa.
— Por que eu abriria a porta da minha casa agora?
— Só faz o que tô pedindo.
Gemo de frustração, jogando a coberta longe. De fato, hoje está frio.
Caminho como um zombie pelo apartamento, destrancando a porta sem
pensar muito no porquê.
— Só pra você saber, eu vou te dar um beliscão quando te ver por me
acordar.
— Então pode dar agora.
Assim que abro a porta, João Guilherme aparece do outro lado, parado
no meu corredor, com um velho barreiro em uma mão e um pacote de
M&M na outra.
Pisco confusa, abrindo e fechando a boca.
— Mas... como você... como você tá aqui... você tá mesmo aqui?
Como para me provar que de fato não estou sonhando ou alucinado, ele
larga as coisas de qualquer jeito no corredor, dando um passo largo para
seus braços me envolverem em um abraço apertado, que me arranca o ar.
Levo alguns segundos para assimilar o que está acontecendo, mas
quando finalmente minha mente aceita que ele está aqui, comigo,
respirando o mesmo oxigênio e ocupando o mesmo espaço, esfrego o rosto
contra contra seu pescoço, buscando tanto espaço quanto consigo, não me
importando em molhar sua pele com minhas lágrimas.
Não quando sinto as dele pingando em mim.
— Você está aqui — digo agarrada contra sua pele, com as mãos
fechadas em punho na sua camisa.
— Você me fez ver a tela fria do celular e minha foto não iriam te
esquentar... então vim te oferecer o calor ao vivo e a cores.
Apoio os braços em seus braços, impulsionando minhas pernas para se
prenderem em seu quadril. Gui segura minhas coxas, espalhando beijos
pelo meu pescoço, ombro, queixo, bochechas, nariz, testa... e por fim, sela
meu lábio ao seu demorada e fortemente.
Sara estava errada. Selinhos são sim considerados beijos, porque eu
posso afirmar que nada foi melhor do que este.
Ele salpica vários deles em meus lábios, dizendo o quanto sentiu falta
do meu beijo, do meu cheiro, da minha pele.
Seguro seu rosto nas mãos, balançando a cabeça.
— Você é louco de ter pegado um avião de última hora para me ver.
— Sou. Sou louco. Mas não por pegar um avião de última hora. E sim
por não ter feito isso muito antes para te ter nos meus braços.
— Oh, gente, eu tô aqui fora e com frio também!
Ergo o rosto num pulo, vendo João Pedro acenar da porta, abraçando
sua mochila de costas.
Gargalho, descendo do colo do Gui e pulando no dele. Meu agora amigo
me recebe nos braços, rindo junto comigo.
— Aposto que nunca ficou tão feliz em ver um Corinthiano na vida, né?
— Você é o único, acredite.
Desço do seu colo, olhando para os dois homens ainda sem acreditar.
— Que barulheira do caralho é essa, Pérola? Eu preciso dormir, porra!
Manuela vem para a sala com a máscara fácil verde e uma expressão de
poucos amigos.
— Misericórdia, tá repreendido — Gui dá um passo para trás.
— Eu sabia que ela era o capeta, mas não que parecia com ele — JP ri
alto.
Manu arregala os olhos ao ver os dois, buscando em mim uma
explicação. Só dou de ombros, porque nem eu estou entendendo.
— Eles estão mesmo aqui ou estou tendo um pesadelo?
— Oi pra você também, baixinha.
João Guilherme se aproxima para cumprimentá-la e Manu o abraça no
automático, ainda grogue do sono. Desvio a atenção para JP, que se balança
nos calcanhares, tentando evitar contato com minha amiga. Sorrio,
segurando a mão do Gui.
— A gente vai pro quarto, vocês se virem em dormir na sala.
Puxo meu nerd antes que os dois possam protestar, nos trancando dentro
do quarto. A última coisa que escuto vindo de lá é:
“Oi, Lontrinha.”
“Oi, Zé Mané.”
Deixo que a química explosiva dentro deles se resolva sozinha e me
concentro no homem que fuça meu pescoço com o nariz, puxando para si
todo o meu perfume. Me agarro aos seus braços, agradecendo ao universo
pelo corpo desse nerd marombeiro.
— Você tem morado na academia? — tateio seus bíceps e músculos das
costas.
— Eu precisava gastar minha energia já que não tinha uma massagista
tântrica pra isso.
Gargalho, batendo no seu braço.
— Acho bom você não ter procurado uma mesmo.
Gui segura meu rosto, se demorando em esquadrinhar cada pedacinho
da minha pele com seus olhos azul piscina. Um sorriso doce sobe seus
lábios sob o bigodinho e ele fica em silêncio por minutos, apenas me
olhando.
— O que foi? — começo a ficar tímida.
— Nada — sussurra, negando com a cabeça. — Só quero olhar para
você o quanto eu puder, para suportar a saudade quando estiver longe.
Acaricio seu rosto, o decorando igualmente.
— Eu ainda vou estar a uma ligação de distância.
— Não, Pérola. Você estará aqui.
Ele segura meu pulso, levando minha mão para espalmar seu coração. O
meu bate tão forte quanto o dele.
Não suporto mais esperar, reivindicando sua boca com um suspiro de
saudade. O gosto de mel continua aqui nos seus lábios que beijam os meus
com a maestria que o ensinei. Acho que até melhor do que eu esperava que
o fizesse.
Minhas pernas vão parar envolta do seu quadril novamente e ele me
segura pela carne da minha bunda, apertando o que consegue encontrar.
Não é muito, mas não o escutei reclamar. Gui caminha um pouco perdido
pelo meu quarto, tentando achar a cama. Sua cabeça bate na parte de cima
da beliche, se dando conta que não é a luxuosa king size que tem em seu
apartamento. Rimos na boca um do outros e tiro os óculos do seu rosto, o
jogando por qualquer canto do chão do quarto.
Ele se abaixa para nos deitar me minha cama, deixando meu corpo
sobre o seu. Sorrio com os lábios presos entre os dentes.
— Você ainda se lembra que eu gosto de ficar por cima... isso é bom.
— Pérola, você em cima de mim é algo que dificilmente eu esqueceria.
João Guilherme não me deixa continuar com as provocações,
envolvendo minha nuca com a mão e trazendo minha boca à sua. Ele chupa
meus lábios com gemidos de satisfação e sua mão livre trabalha em meu
quadril que já dança sobre seu colo. Mordo seus lábios, arranho seus braços
com as unhas, ofegando quando o sinto sugar minha língua.
Acho que estamos os dois desesperados demais de saudade, nem um
pouco preocupados em fazer isso ser devagar.
Minhas mãos logo vão parar na barra de sua camiseta e João Guilherme
se senta comigo em seu colo, me ajudando a arrancar a peça pela sua
cabeça. É o tempo limite que ele consegue manter a boca longe da minha.
Sua língua me invade possessiva, carente e a minha a recebe de igual modo.
Meus seios ficam esmagados contra meu peito agora nu e sinto falta do
contato pele com pele.
— Tira minha blusa — sussurro depressa em meio ao beijo que ele
desce para meu pescoço.
Gui ergue a parte de cima do meu pijama, o dando o mesmo caminho da
sua blusa. Ele contorna minha cintura descoberta com as mãos e se afasta
de mim por um momento para esquadrinhar sua obsessão número 1. A
sereia.
Seu polegar acaricia as linhas do desenho até onde meu short o impede
de prosseguir, sorrindo para minha tatuagem.
— Estava com saudade dela também.
— É a única sereia além de mim que vou aceitar que diga isso —
gracejo, o vendo subir seu olhar para meus seios, mais especificamente o
com a pecinha metálica, sua obsessão número dois.
— Também senti falta desses — ele não se intimida em tocar meu
mamilo, suas digitais o beliscando.
Praguejo, moendo minha pélvis contra sua ereção, o sentindo tão duro
como eu já estou molhada.
— Gui — chamo seu nome como uma súplica. Ele sobe as orbes
azuladas para meu rosto. — Eu prometo que te dou horas de preliminares
mais tarde, mas agora, eu apenas preciso ter você dentro de mim.
Não aguento mais esperar, não consigo ficar mais um segundo sem me
sentir preenchida por ele. Adiei tanto esse momento no cruzeiro, que ele só
aconteceu na primeira noite em que estivemos juntos. Eu quero de novo.
Preciso de novo.
Gui sorri lateralmente, me erguendo do seu colo tempo suficiente para
tirar uma camisinha do bolso, desfazer o botão e descer o zíper do seu
jeans, empurrando a calça juntamente com a boxer para baixo. O ajudo a se
livrar do tecido e quando acho que vai infiltrar os dedos no cós do meu
shortinho do pijama para me ter nua, ele me surpreende ao se deitar e me
trazer para cima do seu corpo, desenrolando a camisinha em sua extensão e
chegando a barra do short para o ladinho, com pressa demais para se livrar
decentemente da peça.
Isso eleva minha excitação a níveis constrangedores, porque quando sua
glande encontra minha entrada, ela não oferece qualquer resistência para
que seu pau se afunde em minhas paredes encharcadas, o fazendo
escorregar para dentro de mim em um único movimento.
Ambos gememos a sensação, ele sendo esmagado por minhas paredes
que se fecham à sua volta e eu com o preenchimento completo, seu pau
abrindo caminho até a ponta tocar meu útero. Minhas coxas se fecham ao
redor dele e Gui se agarra ao meu queixo, o fazendo olhá-lo.
— Está batendo em seu útero?
— Está, obrigada.
— Não está machucando? Quer que eu tire um pouco e...
Agarro seu rosto, até seus lábios formarem um biquinho torto. Me curvo
para chegar à sua orelha.
— Se você ousar sair de dentro de mim um centímetro sequer, eu te
mato. Ouviu?
— Sim, senhora.
Solto uma risada falha.
— Ótimo — ofego sentindo meu líquido escorrer pelo interior das
minhas coxas. — Porque agora eu vou montar em você e acho bom
aguentar mais de uma.
João Guilherme solta uma risadinha, segurando meus quadris, o
puxando para baixo, enquanto impulsiona sua pélvis para cima, fazendo seu
pau se afundar impossivelmente mais dentro de mim.
Soluço com ato, mordendo o dedo para conter meu grito.
— Acho que pode parar de falar e me montar então, Calypso.
Abro os olhos desnorteada, o encarando sob mim com uma expressão
viperina.
Ah, garoto, você vai se arrepender de me provocar.
Capturo as mãos que ele mantinha em meus quadris e o faço soltar,
levando seus braços para trás, onde a madeira que sustenta a beliche de
cima se encontra.
— Talvez você tenha esquecido quem manda aqui, Honey. Mas eu terei
o prazer de te lembrar. — O faço segurar de cada lado da madeira. — Não
solte até eu permita.
Ele assente, seus olhos brilhando em expectativa.
Apoio as mãos em seu peitoral, movendo meu quadril pela primeira vez,
precisando morder os lábios para não dizer à JP e Manuela exatamente o
que está acontecendo aqui. Subo e desço lentamente por sua extensão,
escorregando com facilidade com minha lubrificação natural. João
Guilherme tem os olhos no ponto que nos une, me assistindo cavalgar seu
pau devagar, subindo até a ponta e descendo até minha bunda encontra suas
bolas. Contraio os músculos internos e ele grunhe, segurando a madeira
com força o suficiente para fazê-la ranger.
Permaneço nos movimentos lentos, aproveitando a sensação de
alargamento, a forma como me toca em cada cantinho escondido, como
meus útero é empurrado deliciosamente, gemendo a cada contração do
membro contra minha boceta.
Minhas unhas se arrastam pelo peitoral com alguns pelos, ferindo os
gominhos de seu abdômen, descendo até tocar a união dos nossos corpos,
estimulando sua base e meu clitóris ao mesmo tempo.
João Guilherme xinga algo desconexo ao me ver girar o dedo contra o
nervo pulsante, enquanto seu pau é engolido pela minha carne cada vez
mais quente. Abaixo os olhos para também assistir a cena, choramingando
com o quanto é delicioso o ver sumir dentro de mim por completo.
Não aguento o ritmo lento quando ele começa a impulsionar seu quadril
para cima. Me apoio contra seu peito, subindo e descendo mais depressa, o
cavalgando sem inibição, o fazendo me foder como deveria ter sido desde a
primeira vez.
Vejo sua luta para manter as mãos agarradas à madeira e gosto observar
sua expressão pedinte, só esperando meu comando para poder me tocar.
Ainda não.
Rebolo quando seu pau está enterrado até a base, o fazendo tocar o
ponto interno logo atrás dos meu clitóris, o que faz tanto eu quanto ele
gemermos alto. Minha boceta mastiga seu pau infernalmente rígido.
Incandescida de prazer, chupo meus dedos, os molhando e esfregando
meu clitóris em movimentos rudes, mas necessários para acompanhar a
forma que o pau dele me empala, tornando minha visão turva.
— Pode soltar — choramingo prestes a gozar, unicamente porque
sequer consigo ter controle dos meus próprios movimentos.
Gui não demora a tomar meu quadril e me ajudar a montá-lo, erguendo
sua pélvis, beliscando meus mamilos, esfregando meu clitóris, até que eu
esteja soluçando seu nome sem me importar com quem possa escutar. Sinto
a camisinha me preencher logo depois, mas ao invés de ele sair de dentro de
mim e simplesmente se deitar para dormir, Gui me ergue do seu colo,
amarrando a camisinha e a descartando pelo chão, colocando outra logo em
seguida.
Ele não me dá tempo para pensar e me joga contra o colchão, seu corpo
vindo para cima do meu e prendendo minhas pernas envolta do seu quadril.
Meus olhos saltam para sua atitude e minha boceta baba ao ter uma das suas
mãos prendendo as minhas duas acima da cabeça, enquanto a outra guia seu
pau novamente para minha entrada, me penetrando sem aviso, fazendo
meus olhos rolarem para trás da órbita.
Nunca transei com um homem por cima de mim.
Nunca.
Mas agora vou fazer questão dessa posição em todas as vezes.
Acho que comecei a acreditar em paraíso.
Ele toma minha boca para si em um beijo lento, na mesma medida que
me fode dolorosamente devagar. Sua mão livre se infiltra entre nossos
corpos, recolhendo meu prazer para o levar até meus clitóris e o esfregar
igualmente paciente.
Tento elevar meu quadril para ter mais dele, porém Gui se afasta,
ditando seu próprio ritmo. Mordo com força seu lábio inferior, contraindo
minha boceta contra sua extensão, tentando levar embora o seu juízo.
— Me fode — murmuro necessitada.
— O que mais? — ele sorri debochado e eu o xingaria, se não estivesse
tão interessada em gozar.
— Por favor. Me fode por favor.
— Boa garota — Gui me provoca e sei disso, calando minha boca antes
que eu o mande a merda.
Até porque os próximos sons que saem de mim são gritos e murmúrios
ininteligíveis, enquanto ele me fode rudemente, os choques dos nossos
corpos produzindo um som luxuriante. Ergo uma perna até seu ombro,
sentindo uma lágrima escorrer do meu olho com o quanto seu pau vai fundo
dentro de mim.
Dói, mas é fodidamente bom.
É a porra do paraíso.
Ele pinga suor sobre mim, mas não para os movimentos do seu quadril
um minuto sequer, não dando trégua à minha boceta, a castigando com
estocadas fundas e rápidas. Arqueio a coluna quando o orgasmo faz arder
cada miligrama do meu sangue. Ele se enterra uma última vez, quando nós
dois gozamos juntos, cada qual perdido em seu próprio momento de prazer.
Abaixo a perna de seu ombro e ele desce o peito sobre o meu, ofegando
com a testa colada à minha. Nossas respirações se misturam e nossos olhos
lutam para manter-se abertos para não perder o contato visual.
Ele afasta o cabelo do meu rosto, apoiando seu peso com um dos
cotovelos, ainda se movendo lentamente dentro de mim, prolongando meu
prazer. Acaricio seu rosto, cabelos e braços, beijando suas bochechas, nariz
e lábios, o adorando com muita mais calma agora que a saudade nos deu
uma trégua.
— Eu não vou embora. — Gui reafirma o que tem me dito desde então,
tentando exorcizar todos os fantasmas do meu passado. Minha respiração
trava no meio da garganta e não consigo dizer a ele que agradeço o fato de
todos os outros terem ido, mas que apenas ele ficasse. — Não precisa dizer
nada. Eu apenas preciso que saiba, que eu vou ficar, Pérola. Não importa o
quê, eu vou ficar.
E ele realmente ficou.
Nos amamos naquela noite outras duas vezes, ambas com calma e
carinho, olho no olho, respiração contra respiração, bocas coladas, corações
próximos, saciando uma parte dentro de nós que não estava ligada ao prazer
de nossos corpos, mas de nossas almas.
Naquela noite, eu fiz amor pela primeira vez.
E mesmo que não tenha conseguido dizer, eu também... eu também o
amo.
Amo como nunca amei ninguém.

Tomamos o café da manhã num clima de constrangimento capaz de se


cortar com uma faca.
Bebo o café quase ficando vesgo para evitar encarar Manuela. Depois
do que vi ontem, acho que eu explodiria se olhasse nos olhos dela.
Pérola sentiu sede no meio da madrugada e pediu que eu fosse até a
cozinha buscar, mas o problema é que a cozinha delas é no estilo americano
e dá de frente para a sala, o que resultou em eu pegar Manuela tentando
desentupir a garganta com o pau de João Pedro.
Na hora, eu paralisei, sem saber o que fazer. Eu sabia que se abrisse a
geladeira, eles me notariam ali e eu teria que abrir um buraco no chão para
me esconder, então corri de volta para o quarto, sem os interromper.
Foi um erro.
Antes eu tivesse interrompido e evitado o que aconteceu a seguir.
Como não peguei a água que Pérola queria, ela decidiu me castigar
sentando no pau inúmeras vezes. Foi o melhor castigo da minha vida, mas
isso não vem ao caso. O que vem, é que escutamos um barulho alto vindo
da sala e logo João Pedro e Manuela abriram a porta do quarto, perguntando
se podiam dormir na beliche de cima, porque tinham quebrado o sofá.
Não deu tempo de fazer nada além de puxar a coberta pra cima do nosso
corpo, já que Pérola estava no meio de uma aula de equitação, e grunhir que
sim, eles podiam ficar na cama de cima.
Nunca uma beliche foi tão forte quanto aquela.
Porque nenhum de nós quatro conseguiu refrear o próprio tesão e
transamos cada qual em um andar da pobre cama. Teve até uma hora que
eles ficaram sem camisinha e João Pedro jogou o braço para baixo, pedindo
uma para mim. Na hora eu estava quase gozando, então nem senti o
constrangimento, só que agora que o tesão passou, os quatro rostos na mesa
estão o puro pimentão.
— Vou escovar os dentes — JP se levanta quando não aguenta mais os
olhares cruzados.
— Tem que ser no tanque da área de serviço — Pérola avisa, sendo a
menos constrangida entre nós. Na verdade, a única coisa que faz ela ter
vergonha, é que quando o dia já estava amanhecendo, ela foi fazer xixi e
encontrou o João Pedro tendo a mesma ideia. O cretino não tranca a porta lá
em casa e achou que aqui poderia fazer a mesma coisa.
— Por que tenho que escovar no tanque?
— Porque a pia do banheiro está entupida — explica.
— Pobre! — Ele caçoa, a fazendo erguer o dedo do meio.
— É, sou pobre e você ainda quebrou meu sofá, filho da mãe!
— Tô indo pro tanque — ele corre para lá e Manu se levanta da cadeira.
— Vou sair.
— Pra onde? — Pérola pergunta, mas Manuela já correu porta a fora.
Não demorou muito para meu amigo fazer o mesmo, dando uma
desculpa qualquer.
Esses dois ainda vão dar casamento...

Pérola e eu passamos o dia vendo Rebeldes no sofá quebrado, mesmo


sabendo que nossas colunas sairiam tortas. Também discutimos pelo fato de
eu preferir o casal Diego e Roberta do que Lupita e Santos, mas quando ela
disse que ia virar fã do Sasuke, eu concordei na hora com sua opinião. Eu
definitivamente não posso amar uma mulher fã do Sasuke.
Só quando a noite foi chegando, que eu precisei usar meu notebook para
trabalhar, afinal nem viajando eu deveria estar. Me sentei à pequena mesa
quadrada em frente à cozinha, com o computador sobre ela e Pérola no meu
colo, com uma perna de cada lado, seu peito colado ao meu e o rosto
deitado em meu ombro. Ela passou horas assim, apenas dormindo em cima
de mim, comigo vez ou outra largando o mouse para acariciar suas costas e
coxas.
Ela acorda depois de quase três horas, com o som do meu telefone
tocando. Vejo ser uma chamada de vídeo da minha mãe e tenho certeza que
ela ligou assim para poder conhecer a mulher que eu vivo falando.
— É minha mãe — beijo o rosto inchado de Pérola, que se torna
assustado ao ouvir o que falo.
— Vou sair então. — Ela tenta se levantar, mas seguro seus quadris.
— Pode ficar, não precisa sair.
— Tem certeza? Eu tô toda descabelada e desarrumada.
— Minha mãe não vai ligar pra isso. Ela só quer muito ver você, não
para de falar nisso.
— E se ela não gostar de mim? — Pérola tenta arrumar os cabelos e
apertas as bochechas pra dar um pouco de cor.
— É impossível não gostar de você, bebê.
Atendo a ligação antes que ela desligue e mamãe dá um grito quando
percebe que Pérola está comigo. Sinto as mãos geladas da sereia se
tornarem úmidas de nervosismo, agarrando minha mão onde não apareça na
câmera. Eu também fiquei apavorado ao falar com a mãe dela, mas deu
tudo certo ao final.
— Nem acredito que estou finalmente conhecendo a famosa Pérola.
— É um prazer, dona Das Dores.
Observo a interação das duas, contendo a risada para como Pérola se
remexe inquieta no meu colo. Não interfiro na conversa delas, as deixo se
conhecer livremente, rezando para que minha mãe realmente goste dela.
Mesmo sabendo que se isso não acontecer, nada vai mudar para mim.
— Você trabalha com o quê, querida?
Pérola retesa no meu colo, claramente tensa.
— Eu... eu sou... eu trabalho com...
— Ela é terapeuta tântrica, mãe — explico por fim.
A garota no meu colo me olha surpresa, como se eu fosse querer que ela
escondesse o que faz. Não vejo motivo para esconder isso da minha mãe,
até porque a profissão dela é tão digna quanto qualquer outra.
— Ah... — mamãe força um sorriso e eu sei que isso não a agradou.
Mas ela é educada o bastante para não deixar Pérola constrangida. —
Espero que esteja indo tudo bem na carreira.
— Está sim, obrigada — Minha garota respira aliviada, mais tranquila
para conversar com mamãe.
O que não dura muito, porque a senhora que me colocou no mundo, não
cansa de querer que eu coloque outras pessoas no mundo.
— E quando vocês vão providenciar meus netos?
Pérola e eu tossimos a garganta fora.
— Mãe, vou ter que desligar, beijo!
— Tchau, foi um prazer falar com a senhora.
Desligo o telefone sem dar tempo de resposta, encarando Pérola em
seguida.
A gente cai na risada de puro nervosismo.
— Filhos agora não — ela me avisa.
— Com certeza não — concordo, segurando sua cintura, a puxando para
se sentar sobre minha ereção que começa a dar alguns sinais de vida. —
Mas o que você acha da gente fingir que tá tentando... pra não decepcionar
minha mãe.
Pérola rebola no meu colo com um sorriso safado.
— Claro, tudo pela minha sogrinha.
É a última coisa que conversamos antes de transar na cadeira, com ela
me montando sem pressa de ter fim.
 
 
Três semanas depois...
 
Nunca chorei tanto na vida como no dia que João Guilherme me levou
até o píer para eu embarcar no navio. Eu estava com saudades de trabalhar
lá, claro, mas os quatro dias que passamos juntos não foram suficientes para
matar a minha saudade. Foram quase três meses longe um do outro, agora
quase um inteiro que vamos passar longe, sem chance para encontros
surpresa.
Ele também estava querendo chorar, mas foi forte por mim, não
derramando nenhuma lágrima até eu ter subido a bordo com Manu. João
Pedro também nos acompanhou e esses dois últimos se despediram sem
jeito, dando apenas um abraço breve, como se não tivessem transado feito
coelhos na cama acima da minha durante aqueles quatro dias seguidos.
Manu e eu nos ocupamos logo no primeiro dia de viagem com mil e
uma coisas, ambas querendo ocupar a cabeça e também ganhar mais
dinheiro. Quase todas as noites, fizemos turno extra no restaurante ou no
bar, indo para o quarto já acabadas.
Por alguma razão, Sara quase não apareceu nessa edição. Pelo visto ela
estava tão cansada quanto minha amiga e eu.
Estar de volta ao Royal Pleasure Line sem o Gui foi estranho. Era como
se cada lugar que estivemos juntos, tomasse para si um significado especial.
Mas ao contrário do que pensei, não senti tristeza. Para ser sincera, estar
nesses lugares que compartilhei de momentos ao lado dele, me fez sentir
mais próxima, mesmo na distância.
Além disso, não há como ficar triste com Manu do lado. Nós curtimos
as festas, passeamos quando o navio ancorava e até fomos novamente ao
Burburinho. Naquela noite, eu pedi a banda que tocasse “O que eu também
não entendo” e mandei um vídeo para João Guilherme, de Manu e eu
cantando desafinadas e bêbadas. Ficou um desastre, mas meu nerd foi
educado o bastante para dizer que cantamos super bem.
Todos os dias pela manhã, eu subi até o convés do navio, como era de
costume e assisti o nascer do sol. Ao meu lado, o celular mostrada o homem
que também estava acordado na sua varanda, observando o mesmo evento
natural que eu. A gente não falava nada, apenas ficávamos olhando até a
noite dar lugar ao dia.
Às vezes Manu se juntou a mim, quando tinha algum pesadelo e
ficávamos os três juntos em um silêncio reconfortante. À noite, a gente
fazia chamada em grupo incluindo o Corinthiano e jogávamos adedonha
pelo aplicativo no celular.
Nem quero me lembrar de quando a letra era “i” e eu escrevi
ipopótamano na aba de animais. JP caçoa da minha cara até hoje, mas eu
não lido bem sob pressão. Pelo menos não escrevi chícara como Manuela
na aba de objetos. Os meninos com certeza devem ter se questionado se
queriam continuar conversando com a gente depois disso.
— Ansiosa? — Manu entra na cabine já desabotoando sua camisa de
uniforme.
— Claro, na última festa à fantasia não aproveitei nada.
O cruzeiro ancorou em Jericoacoara hoje pela manhã, o último dia
oficial de atrações. Amanhã a esse horário, Manu e eu estaremos
embarcando para São Paulo. João Guilherme pediu que eu passasse a
primeira semana de férias lá e como ele sabe que eu não ando sem meu
chaveirinho, Manu também foi convidada.
Não faço ideia de como JP reagiu a isso, mas não duvido que eles se
atraquem pelos corredores como fizeram na nossa casa. O que duvido é que
passe disso, porque além do sexo, eles sequer conversam um com outro sem
jogar uma alfinetada desnecessária. Mesmo nas nossas ligações em grupo, a
conversa sempre termina em briga e em ambos emburrados.
Estou começando a perder as esperanças de que eles tenham alguma
coisa, talvez a raiva que sintam seja realmente maior que todo o resto.
— Vai vestir sua fantasia agora? — Manu se encaminha pro banheiro.
— Pode ir primeiro, depois eu me arrumo.
— Ok, Cheetos — Manu entra carregando sua fantasia da Magali.
É, acho que essa festa vai dar mais certo que a última.
Não gosto nem de lembrar como aquela noite terminou mal.
Por pouco, por uma mentira e por um trauma, quase não me permiti ser
feliz como estou sendo hoje.
Mamãe tinha razão. Odeio admitir isso, mas ela tinha.
O amor nem sempre machuca.

— Mãe, eu não acredito que você fez isso! — brigo com ela no
telefone, me encarando no espelho. Isso com certeza não se parece em nada
com a fantasia que eu pedi a ela para encomendar.
— Ficou linda, né?
— Mãe, isso aqui não foi o que eu pedi.
— Eu sei, mas eu lembrei que meu genro gosta dessa personagem e
achei que seria legal dar esse presente pra ele.
Reviro os olhos.
— Só que ele não tá aqui... e a senhora tá me dando de presente? Que
rapidez é essa em querer se livrar de mim?
— Você já tem vinte e sete anos, Pérola. Eu vou ajudar meu genro,
porque quero netos!
— Ah, meu cacete mesmo! Eu não vou mais deixar a senhora conversar
com a dona Das Dores.
Essas duas nos convenceram a passar seus telefones para que pudessem
conversar e desde então elas já planejaram meu futuro e do Gui com riqueza
de detalhes. Ao que parece, vamos nos casar daqui um ano em Paris, ter um
casal de gêmeos, morar seis meses em São Paulo e seis meses no Rio, e não
menos importante, deixar as duas escolherem os nomes dos bebês.
Eu tive vontade de pular da ponte.
Gui por pouco não desmaiou.
— Para de resmungar só porque está vestida como a personagem
favorita do seu namorado.
— Mãe, a gente nem é namorado. Nunca houve um pedido.
— E precisa?
— Sim? Tá me achando com cara quê? Sem pedido, nada feito.
— Ah, como você dificulta, Pérola.
— Mãe, na verdade pra ele eu facilitei. Dei na primeira noite.
— Ai, tchau. Não quero saber da sua vida sexual.
Ela desliga na minha cara.
Me encaro no espelho, vestida de Temari, imaginando que João
Guilherme bem que me pediria em namoro se me visse assim. Tenho que
lembrar de tirar uma foto e mandar para ele.

Acho que vou desmaiar.


Não, eu tenho certeza.
Vou desmaiar.
Quando Pérola embarcou no cruzeiro, eu tinha certeza de duas coisas.
Uma, é que não havia mais volta para o que eu estava sentindo.
E duas, que eu a queria como minha namorada.
Essas três semanas que se seguiram, serviram para eu organizar tudo.
Com a ajuda de Manuela e JP, claro. Eu corro o risco de levar um fora na
frente de toda uma tripulação, mas para quem já foi traído uma semana
antes do casamento, isso meio que não me assusta.
Peguei um avião com meu amigo, desembarcando em Jericoacoara. Nós
dormimos em um hotel na última noite, tudo para esperar a festa à fantasia
de último dia do cruzeiro. Eu meio que ferrei com tudo na última e sei que a
única coisa que me falta consertar é isso.
Quero que em todas as outras edições, quando chegar essa data, Pérola
se lembre do momento que eu a pedir em namorado e não do momento que
eu quebrei seu coração. Não importa o tempo que passe, eu vou todos os
dias me redimir por isso. Fazer essa mulher chorar é algo que ainda não me
perdoei. E algo que nem mesmo quero me perdoar.
Assim vou me lembrar sempre de nunca repetir aquele dia.
João Pedro para na minha frente, alinhando a fantasia de Shikamaru que
a mãe da Pérola me deu. Não entendi nada quando isso chegou pelos
correios, mas ela me disse que tinha feito uma de Temari para Pérola e que
ela iria usar na festa dessa edição. Bom, eu tenho que me preocupar com
duas coisas agora: a ansiedade para a pedir em namoro e a o infarto ao vê-la
vestida como uma ninja da aldeia da areia.
— Está pronto? — meu amigo bate no meu peito e eu respiro fundo,
estático sobre o convés, com os nervos a flor da pele.
— Não.
— Mas vai sem estar então, porque ela tá vindo aí.
Ele dá um passo para o lado, abrindo caminho para que eu veja Pérola
subir a escadaria do convés, trajada com o vestido preto sem mangas e com
fenda nas duas laterais da perna; uma faixa vermelha contornando a cintura;
meias de arrastão que chegam até metade de sua canela, com as sandálias
abertas nos dedos dos pés. Em sua testa, para completar a fantasia, está a
bandana da aldeia da folha.
Eu acho que morri e fui parar no céu.
Seguro meu coração, com medo de que ele salte para fora do meu peito.
João Pedro vem para minhas costas, apoiando as mãos nela para caso eu
caia. É bom mesmo, porque as chances não são pequenas de isso acontecer.
Inicialmente, Pérola não me vê. Ela não mesmo sonha que eu possa
aparecer aqui, até porque na noite de ontem, avisei que teria reuniões com
meus chefes durante todo o dia.
Respiro fundo, quase furando o chão de tanto bater o pé, esperando que
ela me note. E quando o faz, meu joelho falha. João Pedro me sustenta,
beliscando minha bunda para manter eu virar gente.
— Se morrer ela não vai poder ser sua namorada, então se controla.
Minha sereia inclina o rosto confusa, talvez imaginando que está tendo
alguma alucinação de me ver aqui. Não seria a primeira vez.
Minhas mãos suam e só consigo ficar paralisado, enquanto ela caminha
na minha direção abrindo o sorriso mais lindo que a merda desse mundo já
viu. Logo não sãos os braços de João Pedro que me mantém em pé e sim os
da garota que envolvem meu pescoço em um aperto de ferro.
— O que você tá fazendo aqui? — ela salpica beijos no meu pescoço
enquanto eu ainda estou reaprendendo a respirar corretamente.
— Eu vim... eu... é que... — limpo a garganta, mas nada coerente sai.
João Pedro bate na minhas costas, tentando me fazer desengasgar, mas o
nervosismo me consome por completo. Pérola acena para ele, um pouco
confusa.
— O que tá acontecendo?
— Desembucha, Joca! — É a vez de Manuela me dar um cutucão,
vestida de Magali. Ela se confundiu, deveria ter vindo de Mônica.
— Eu... é que eu queria... ah, minha Nossa Senhora! — Exaspero
irritado de as palavras não saírem. E em um movimento de puro desespero,
eu me ajoelho.
— Puta merda, você tá me pedindo em casamento? — os olhos dela
saltam.
— Eu desisto desse garoto! — Manu bufa irritada.
— Não fui eu que ensinei isso a ele! — João Pedro lava suas mãos.
— Vocês querem calar a boca?! — exclamo irritado para os dois, mas
ao olhar para Pérola minha expressão se desmancha. — Menos você. Você
pode falar.
— Eu não sei o que falar porque não sei o que tá acontecendo.
Suspiro, balançando a cabeça. Não foi assim que eu ensaiei para fazer.
Fico de pé novamente, parando de ser ridículo. Nada foi da forma
tradicional que Pérola e eu começamos nosso romance.
Não foi comigo a convidando para um jantar, ou nos esbarrando em
uma cafeteria em um dia de chuva, muito menos sendo apresentados por um
casal de amigos. Nada entre nós dois foi convencional. Nada foi como eu
planejei que seria na minha vida.
Então não adianta chegar aqui e a pedir em namoro assim, porque
claramente não daria certo.
Por isso, ao invés de me ajoelhar, entregar a ela um buquê de rosas e
fazer uma declaração que com toda certeza Pérola chamaria de brega, eu
apenas dou passos para trás, até ficar a uma boa distância dela e dobro um
pouco meus joelhos, firmando os pés no chão.
Todos em volta me encaram confusos quando eu ergo os braços como se
fosse segurar alguma coisa. Todos menos Pérola.
Porque ela sabe o motivo de eu fazer isso.
— Você confia em mim para realizar o seu sonho bobo de criança?
O sorriso de Pérola ilumina seu rosto, assim como seus olhos me fitam
com uma mistura de emoção e confusão. Antes que ela aceite ser minha
namorada, preciso saber se recuperei sua confiança. Ela não pulará nos
meus braços, arriscando seu sonho, se não confiar. É por isso que eu espero,
de braços estendidos, ela tomar sua decisão.
Meu coração ameaça atravessar o peito quando Pérola segura as laterais
do seu vestido e corre na minha direção, sem proferir uma só palavra, mas
revelando a sua decisão ao, sem um pingo de receio ou hesitação, saltar
sobre os meus braços.
Minhas mãos apoiam sua cintura e eu a ergo o máximo que consigo,
dobrando minhas costas até escutar os estalos. Ela ser mais alta realmente
não ajuda, mas eu subiria na porra de um banquinho se preciso fosse para
escutar sua gargalhada de adolescente inconsequente, ver seu pescoço sendo
jogado para trás e o vento soprar seus cabelos, enquanto seus olhos se
fecham para aproveitar o momento.
Eu só a solto quando os músculos do meu braço começam a gangrenar e
a coloco sobre seus próprios pés. Pérola apoia as mãos em meus ombros,
com uma expressão que eu não sei descrever, apenas sentir.
— Quando eu te contei nesse mesmo convés, qual era meu sonho bobo
de criança e que pensei ser difícil de se realizar, você respondeu que não
seria. Não para o homem que me amasse de verdade. Isso quer dizer que...
— Que eu amo você — confesso. — Eu amo você, Pérola Rodrigues
Duarte. Amo todas as suas versões, desde a minha bebê dengosa, passando
pela Calypso mandona, pela sereia hipnotizante e por fim a mistura de todas
elas. Você. Minha Pérola. Minha joia do mar.
Tiro do bolso o anel pisca-pisca que ganhei da máquina no dia que nos
divertimos na sala de jogos, pedindo sua mão.
— Não é uma aliança. Não ainda. O meu pedido hoje, é que você aceite
ser minha namorada, mas não para garantir o meu espaço na sua vida e sim
para mostrar que o seu está garantido na minha. — Engulo a saliva, suando
frio. — Você aceita? Aceita ser minha namorada?
Pérola toma meu rosto nas mãos, com os olhos castanhos levemente
avermelhados ao redor.
— Se alguém me perguntasse algum tempo atrás, qual era a minha
linguagem do amor, eu diria que é toque físico.
Franzo o cenho, estranhando o rumo da conversa.
— E agora? Se te perguntassem, qual seria sua resposta?
Ela empurra meu óculos contra o nariz antes de falar.
— Agora eu diria, que depois de te conhecer, o amor deixou de ter uma
linguagem. Porque eu não preciso te tocar para te sentir na minha pele. Não
preciso falar com você, para ouvir as afirmações do seu amor dentro do
meu coração. Não preciso estar ao seu lado para termos tempo de
qualidade, porque você me mostrou que a distância não se mede em
quilômetros e sim em vontade de estar junto. Não preciso receber presentes
além da confiança e fé que você me deu de que sim, príncipes encantados
existem e eles usam óculos de grau, têm cabelos brancos antes dos trinta,
estria nos pés e reprisam Naruto trezentas vezes. — Ambos caímos na
risada, mesmo com o choro preso na garganta. — E por último, não preciso
de atos de serviço, porque o maior deles, você faz ao acordar a 434,9 km de
distância, às cinco horas da manhã, só para fazer uma chamada de vídeo e
ver o sol nascer comigo, para me lembrar que a cada um que chegue, é um
dia a menos para ficarmos longe um do outro. — Ela enxuga uma lágrima
que escorre no meu rosto. — Eu diria a pessoa que me perguntasse, que o
amor não é um sentimento. É um pessoa. E a minha é você.
Pisco aturdido, só conseguindo fitar o castanho dos seus olhos,
refletirem o azul do meu.
— Como eu sou lerdo, vou precisar perguntar. Isso quer dizer que você
aceita namorar comigo?
— Puta que pariu, meu filho! — Manuela desce o tapa na minha nuca.
— Mais cinco minutos e ele nascia uma mula! — João Pedro se
indigna.
Pérola é a única que gargalha, achando graça da minha mente movida à
manivela. E mais importante, ela estende sua mão para eu colocar o anel de
borracha cor-de-rosa, em formato de flor. Assim que o coloco, aperto para
que pisque.
— Agora eu posso te beijar? — pergunto ansioso.
— Você vai é me levantar de novo, porque eu amei ser erguida nos
braços.
— Eita, Deus. Ajuda a coluna aqui! — Faço graça, mas não perco um
segundo antes de levantá-la uma segunda vez.
Esse é apenas o primeiro sonho dela que quero tornar realidade. Porque
para realizar o meu sonho bobo de criança, a mulher da minha vida tem que
ter realizado todos os dela.
Pérola une nossos lábios com euforia tão logo seus pés tocam o chão. E
para não perder nosso costume, ela acaba quebrando meu óculos no
movimento.
— Ops! — cobre sua boca com a mão, escondendo a risada travessa.
Nego com a cabeça, pensando se vou sobreviver a ela. Mas não importa.
Porque como pensei logo que a conheci, vale a pena pular no oceano atrás
da sereia, ainda que eu não tenha chance de retornar à superfície.
Arranco a armação quebrada do rosto, a jogando para o mar, trazendo
seus lábios de volta para os meus.
Beijando a Temari do meu Shikamaru.
Nerd, eu sei. Mas uma certa joia do mar me amou exatamente assim.
Porque há dois momentos decisivos na vida de um homem, que mudam
toda a sua perspectiva de futuro.
O primeiro, é quando ele ama alguém pela primeira vez.
E o segundo, é quando ele descobre que esse alguém também o ama de
volta.
Com nerdissses e tudo.
 
 
3 anos depois...
 
João Guilherme e eu observamos nossos melhores amigos com as
caixas de madeira em mãos, esperando há cinco minutos a resposta ao que
está escrito nas cartinhas dentro delas.
“Aceitam ser nossos padrinhos de casamento?”
Nove meses atrás, participei da minha última edição do cruzeiro. Manu
e eu estávamos há muito tempo procurando um espaço para alugar e dar
nossas aulas e terapias, então quando João Pedro inaugurou sua academia,
deixando de dar aulas na escola, e nos convidou para abrir o nosso espaço
lá, nós aceitamos.
Isso nos fez mudar para São Paulo.
E também resultou em João Guilherme me pedindo em casamento no
meio do Morumbi[47], no jogo do Palmeiras contra o Flamengo. Eu, claro,
estava torcendo fortemente para o time dele, porque torcer para o Flamengo
é sacrilégio na minha língua de vascaína. O mais engraçado, foi Manuela,
com a camisa do time dela, no meio de milhares de palmeirenses. Segundo
o JP, ela descobriu como os nerds se sentiam no ensino médio.
O fato é, aceitei me casar.
Assim que João Guilherme estendeu um envelope para mim e eu o abri,
encontrando ingressos para a última turnê de RBD, depois que eu tinha
achado não ter conseguido por passar horas na fila eletrônica, eu
simplesmente gritei sim.
Ah, ele me deu uma aliança também, mas o show é mais importante.
Nossos amigos já sabiam que um dia iríamos nos casar. Só não sabiam
que já tínhamos tudo planejado.
— Vocês vão se casar no Royal Pleasure Line? — Manuela encarada o
convite com as passagens do navio.
— Na semana que vem?! — João Pedro fala como se fôssemos loucos.
— Isso! — Gui me abraça lateralmente. — E queremos que vocês sejam
nossos padrinhos.
— E entrem juntos na cerimônia — complemento.
Eles giram seus rostos na direção um do outro lentamente, com fumaça
saindo pelos ouvidos ao fazerem contato visual. Porque os anos podem ter
passado. Mas a briga entre eles não.
Estendo minha mão discretamente para Gui e ele bate na minha,
comemorando. Porque sabemos que eles não podem recusar esse pedido.
Me jogo no colo dos dois, sorrindo travessa.
— E então... SOS padrinhos a bordo?
 
FIM?
 
 
Primeiramente, gostaria de agradecer a todos que deram uma chance
para Pérola e Joca e leram sua história. Espero de verdade que tenham
gostado, que possam ter se divertido e se apaixonado junto com eles.
Esse livro me desafiou mais do que imaginei, porque não estou
acostumada a escrever com pouco drama, como foi com essa história, mas
devo admitir que esse casal me prendeu mais do que esperava.
Imaginei que eles não fossem me fazer sentir como os outros livros que
escrevi, mas que adorável surpresa ao descobrir que estava errada. Pérola e
Joca ocuparam seu lugar no meu coração de fato.
Vou continuar meus agradecimentos, fazendo uma menção honrosa para
a pessoa que se encontra em todos os finais dos meus livros, exatamente
nesse espaço, minha assessoria/revisora/psicóloga/amiga: Camille Gomes.
Eu não preciso me arrastar em palavras aqui para expressar o quanto eu
devo a você por nossa amizade, pela profissional que é, por vibrar e chorar
junto comigo, por apoiar e brigar quando necessário. Mais uma vez, você
pegou na minha mão, não me deixou desistir, e garantiu que tudo ficaria
bem ao final. E não é que ficou? Obrigada, Camicass, por nunca ter deixado
de ser uma pessoa a qual eu devo agradecimento aos finais dos meus livros.
Te amo pra sempre.
Também não poderia deixar de agradecer a todas as leitoras do meu
grupo do whatsapp, que são minha força motriz sempre que o desânimo e a
insegurança batem. Vocês sempre tornam meu dia mais feliz e meu trabalho
mais divertido. Obrigada, suas maluquinhas.
Por fim, mas não menos importante, agradecer à minha mãe e minha
avó, que ficavam vindo no meu quarto conferir se eu estava comendo,
dormindo e bebendo água, durante todo o processo de escrita. Vocês são
minha base e eu não seria nada se não fosse pelas mulheres incríveis que
são. As amo incondicionalmente.
 
Com amor; Bruna Borges.
 
 
 
 
 
[1]
Expressão usada para denominar àqueles ninjas que traíram suas aldeias (Naruto).
[2]
Videogame, também conhecido pelo nome “come come”.
[3]
Golpes poderosos do jogo Mortal Combat.
[4]
Como também é conhecida a Vila Madalena, um bairro badalado da zona Oeste de São Paulo.
[5]
Livro nacional, da autora K.A Peixoto – disponível na Amazon.
[6]
Livro nacional da autora Hayesha di Maffei – disponível na amazon.
[7]
Mangá/anime do mesmo universo de Naruto, focado nas próximas gerações.
[8]
Posição sexual do Kama Sutra
[9]
Técnica ninja referente ao anime “Naruto”.
[10]
Música de funk
[11]
Jogo de tiro
[12]
Personagem feminina de Naruto, da aldeia da areia. Par romântico de Shikamaru.
[13]
Referência à Dragon Ball. Transformação poderosa.
[14]
Referência ao “monstro” poderoso que Naruto tem dentro de si.
[15]
Saga do mangá One Piece
[16]
Mangá escrito por Eiichiro Oda
[17]
Personagem de Naruto
[18]
Técnica de alívio da ansiedade
[19]
Livro nacional da escritora Amanda Alonso, disponível na Amazon.
[20]
Posição sexual do Kama sutra
[21]
Personagens de Rebeldes – versão mexicana
[22]
Desenho animado que conta as aventuras de dois ratos de laboratório e seus planos mirabolantes
para dominar o mundo.
[23]
Medicamento calmante.
[24]
Personagem feminina de Naruto, par romântico de Shikamaru.
[25]
Local perigoso no mangá One Piece
[26]
Livro nacional da autora Kel Costa – disponível na Amazon
[27]
Personagem de Naruto
[28]
Marca de maquiagem nacional
[29]
Vilão do universo Marvel
[30]
Livro nacional da autora K.A Peixoto – disponível na Amazon
[31]
Trança feita geralmente em uma mecha do cabelo, com linhas coloridas.
[32]
Pistola de uso restrito aos policiais.
[33]
Música infantil.
[34]
Pokémon que se parece com um pato.
[35]
Bar em Recife com Jazz, Rock e Blues ao vivo.
[36]
Bairro da cidade do Recife, localizado na parte leste do centro histórico.
[37]
Técnica ninja do anime Naruto, que consiste em induzir o oponente à uma ilusão/alucinação
[38]
Pokémon que se parece com um dragão.
[39]
Jogo de ação e Aventura
[40]
Fuzil presente dentro do jogo
[41]
Mangá de mistério Japonês, escrito por Gosho Aoyama.
[42]
Raça de cachorro.
[43]
Série de videogame de ação e aventura.
[44]
Conhecido como xadrez japonês, é o jogo preferido do personagem Shikamaru de Naruto
[45]
Terapia energética
[46]
Referência ao território do anime/mangá Naruto
[47]
Estádio de futebol

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