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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra pode ser
reproduzida ou usada de qualquer maneira ou por qualquer meio, eletrônico
ou físico, inclusive fotocópias, gravações, ou sistema de armazenamento em
banco de dados, sem permissão por escrito da autora, com exceção de
citações curtas utilizadas em resenhas críticas, artigos ou divulgação em
mídias sociais.
Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, nomes, localidades e
acontecimentos histórico e/ou atuais retratados neste romance são produto
da imaginação da autora e utilizados de modo fictício, sem qualquer
referência à realidade.
Capa: Larissa Chagas (@lchagasdesign).
Diagramação: Bruna Borges (@autorabrunaborges) Leitura crítica:
Heloísa Fachini (@readbyhelo) Revisão gramatical: Camille Gomes
(@k.millereditorial) Ilustração dos personagens: Aline Silva
(@heeyalline) e Lane (@artesmedusa) Demais imagens: Canva
SUMÁRIO
NOTAS DA AUTORA
PLAYLIST
EPÍGRAFE
DEDICATÓRIA
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
Sejam bem-vindx a mais uma história do Brunaverso, dessa vez
navegando por mares brasileiros. Espero que essa comédia romântica
arranque risadas e suspiros durante a leitura e que possam se apaixonar por
Pérola e Joca como eu me apaixonei.
Antes de iniciar a leitura, é válido lembrar que se trata de um livro leve,
com personagens que vão viver sua vida dessa forma, ainda que sejam
adultos. Não espere encontrar personagens extremamente responsáveis ou
sérios como um adulto engravatado dentro de um escritório. É muito
provável que um adolescente de quinze anos tenha mais juízo que todos
eles juntos.
Para preveni-los de qualquer desconforto durante a leitura, segue abaixo
a lista de possíveis gatilhos presentes no livro. Ressaltando que não há
como prever toda e qualquer situação que possa os deixar aflitos, portanto,
caso ocorra, interrompam a leitura e preservem sempre sua saúde mental.
O livro contém menção a luto, alcoolismo, consumo de drogas lícitas e
ilícitas, violência física e verbal, palavras de baixo calão, cenas de sexo
explícitas e sem censura, relacionamento familiar conflituoso, menção à
transtornos alimentares, assim como menção à bullying.
A classificação indicativa é para maiores de 18 anos.
Boa leitura;
Com amor, Bruna Borges
Se assim como eu, você gosta de escutar música enquanto faz a sua
leitura para entrar no clima da história, então basta clicar no link abaixo
para acessar a playlist exclusiva de SOS Nerd a Bordo.
https://acesse.one/PLAYLISTSOS
“Entre razões e emoções
a saída é fazer valer à pena
se não agora
depois não importa
por você
posso esperar”
ENTRE RAZÕES E EMOÇÕES│NX ZERO
Para todos aqueles que já foram cornos, porque apesar do chifre, ainda
são gente.
Ps: não desistam do amor. Continuem procurando a sua metade fiel da
laranja.
Sabe uma coisa que não deixa as pessoas tranquilas? Treinamento para
emergências. Eu sei que o objetivo é justamente evitar que a gente morra
caso essa coisa gigantesca afunde, mas eu não vou lembrar nem de como se
anda, que dirá como afivelar um colete caso o navio queira descobrir os
mistérios do fundo do oceano.
Fomos enfileirados em um auditório para ouvir os avisos, onde na tela
branca à frente, uma mulher com traços computadorizados aparece vestindo
o uniforme do navio e um quepe de marinheiro com a logo do Royal
Pleasure Line. Ela tem a pele negra retinta, trança nos cabelos e um
papagaio sobre o dedo. Sua voz robotizada não demora a ecoar nos alto-
falantes.
“Oi, aqui é a Sara, sua comissária de bordo particular. Serei sua fiel
amiga enquanto navegarmos por essas águas misteriosas. Vocês me
carregarão consigo 24h por dia em seus bipes… quando menos
esperarem, eles irão vibrar e eu vou aparecer.”
— Não tô gostando disso — JP cochicha no meu ouvido. — Eu já vi
“Eu, Robô” e a culpada era o computador gigante.
— Cala a boca, me deixa escutar.
“Antes de iniciarmos nossa viagem, precisam saber que nosso navio está
equipado e preparado para incidentes que possam vir a acontecer. Temos
lanchas ao redor da embarcação em caso de emergência e botes
infláveis.”
— Aposto que os ricos vão ficar com as lanchas — meu amigo
resmunga.
— Ainda bem que ganho mais que você. — Tusso uma risada e JP tosse
um palavrão.
“Vocês possuem coletes nas cabines e também espalhados pelas
dependências do navio. Em caso de emergências, ressoaremos o sinal de
alerta e todos deverão colocá-los e seguir para o andar Mistaken[5], onde
os colocaremos nos barcos. Por favor, em hipótese alguma se atirem no
mar.”
— E se o navio pegar fogo? — JP ergue as mãos e pergunta como se
estivesse falando com uma pessoa. Para minha completa surpresa, Sara o
responde. Estranho… um navio investiria tanto assim em uma inteligência
artificial? Ou há uma pessoa por trás de Sara, escondida por uma imagem
computadorizada?
“Em caso de incêndio, sigam para o andar Mistaken e embarquem nos
botes. Se pularem no mar, poderão morrer de quatro formas. Número
1: comidos por tubarões. Número 2: hipotermia. Número 3:
afogamento. Número 4: se o navio afundar e vocês estiverem perto,
serão sugados junto com ele para o fundo, com a força da água.
Entendido?”
— Eu não caio na água! — JP diz com a voz tremida. — O tubarão me
come aqui dentro, mas eu não pulo.
Seguro a risada, ouvindo o restante dos avisos, que duram mais meia
hora de um monólogo sobre como podemos morrer de formas
diversificadas. Super encorajador! Quando saímos do auditório, minha
bunda já tomou o formato retilíneo dos bancos.
João Pedro coça a cabeça enquanto procuramos pela nossa cabine, sem
qualquer senso de direção. Se os andares tivessem número, seria mais fácil,
mas são definidos por nomes de livros com conteúdo erótico, dos quais
nunca cheguei nem perto. Nesse momento, estamos no andar “Atração
Fatal[6]”. Os quartos também não possuem números, mas se diferem do fato
de que os nomes são posições sexuais, das quais eu também nunca fiz.
Acabamos de passar pelo “frango assado”, “canguru perneta” e “carrinho
de mão”.
— Uma pergunta — JP abre a boca e já quero socar a cara dele.
— Não sou o passivo e se você disser isso a alguém de novo, vou te
matar enforcado com as fivelas do colete.
— Eu só falei pra comissária porque ela estava com cara de quem
desconfiava do nosso relacionamento amoroso.
Paro de andar, indignado. Acho que tenho que fazer um exame do
coração. Eu vou infartar antes dos trinta.
— Ela só tinha perguntado se a gente queria ajuda para achar a cabine.
— Exatamente!
— E você disse que sim, porque estava ansioso para transar com seu
noivo passivo.
Minha cara ainda está ardendo. O mais surpreendente foi que a mulher
sorriu como se fosse algo comum de se escutar por aqui. As coisas que ela
deve ver... será que eles oferecem terapia para os funcionários?
— Vai me deixar fazer uma pergunta ou não, porra?
— Desembucha. — Reviro os olhos.
— Caso isso aqui afunde, quem vai ficar com a sua coleção de funkos?
Considerando que eu sobreviva, é claro.
— Se você sobreviver, quer dizer que me deixou morrer, então o
máximo que vou te deixar é um ódio eterno como alma penada e ir te visitar
todas as noites.
— Você puxaria meus pés?
— Nem morto eu pegaria nessas coisas nojentas. — Faço careta.
— Não sou eu que tenho estrias nos meus.
Arregalo os olhos, olhando em volta para conferir se alguém o escutou.
— Você sabe que esse é um tema sensível pra mim. — Cruzo os braços
emburrado. — Eles cresceram rápido demais!
— Desculpe tocar no assunto, foi insensível da minha parte.
Apresso meu passo, ignorando esse babaca. Ele não se arrepende porra
nenhuma!
Cruzamos mais um corredor repleto de portas, até acharmos finalmente
a cabine “69”. Ergo as sobrancelhas.
— Não dava pra você ser menos óbvio?
JP gargalha, passando nosso cartão de acesso.
— Podia ser pior, a gente podia ter ficado com a do “beijo grego” —
Ele aponta para a cabine atrás de nós.
Coloco minhas malas no canto da cabine, suspirando.
— Eu deveria saber o que é beijo grego? — Franzo o cenho. O que tem
demais em dois gregos se beijando?
— Você precisa passar mais tempo vendo pornô, cara.
— E você precisa passar mais tempo dentro da igreja!
— Para de ser careta! Vai me dizer que nunca fez um 69 antes...
Eh, então… desvio o olhar, assobiando para tentar mudar de assunto.
— Ca-ra-lho... — diz pausadamente cada sílaba. — Não acredito que
você nunca chupou uma boceta enquanto seu pau era feito de picolé.
Minha cara retorce com a imagem, porque imagino ele nessa situação.
Oh visão dos infernos.
— Nunca, Olívia dizia que queria guardar algumas coisas para depois
do casamento.
— Ah, 69 para depois do casamento, mas chifre antes dele... entendi.
Fecho a cara.
— Você poderia ser menos inconveniente.
— E você menos puritano. — João Pedro enlaça meu pescoço com o
braço. — Não vai sair desse cruzeiro sem fazer um 69.
Minha risada é de puro divertimento.
— Eu não vou transar com ninguém, pode esquecer. Só vou ler meu
mangá na proa do navio e comer o máximo que eu conseguir porque a
comida está inclusa no pacote.
— Ah claro, com certeza alguma garota aqui deve ter fetiche por nerds
antissociais viciados em quadrinhos e com a boca suja de farelo de pão.
Bato no seu braço para me livrar do aperto no meu pescoço.
— Não estou te impedindo de se divertir do jeito que quiser, então faça
o mesmo por mim.
— Vamos ver se você vai continuar com esse pensamento aberto
quando eu trouxer uma garota para o quarto... ou duas.
— O quarto é zona proibida. Só tem uma cama, caso não tenha visto. —
Aponto para o colchão redondo, tipicamente de motel. Não que eu já tenha
ido em um, porque a título de informação, nunca fui. É higienicamente
precário. E não me venha com esse papo de que tudo se limpa com um
pouco de água sanitária, porque só de imaginar todos os fluidos corporais
que passaram por lá, eu tenho urticária.
Além disso, acho que é pecado. Vou perguntar ao padre da próxima vez.
— Eu não preciso de uma cama pra transar. — JP dá de ombros.
— João Pedro Valadares, se eu encontrar seu pau enfiado em algum
orifício dentro dessa cabine, banheiro incluso, vou te transformar em
eunuco.
Meu amigo ergue as mãos em concordância, mas tenho o
pressentimento que nossa amizade vai ter a data limite dessa viagem. Tudo
bem, foi traumatizante enquanto durou.
Ele se joga na cama com os braços abertos, me chamando com um dedo
enquanto morde os lábios. Assustador.
— Se acha que está sexy, sinto te decepcionar. Essa visão é quase tão
ruim quanto Boruto[7].
Definitivamente esse anime não deu tão certo quanto pretendiam.
— Deita aqui comigo, bombonzinho. — Ele bate no colchão
balançando as sobrancelhas. É assim que ele conquista as mulheres? Se
alguma cai nesse papo, só pode tá carente.
— Se eu deitar, você para de me chamar assim?
JP assente com um bico e reviro os olhos. Tão logo me deito, o infeliz
pula para cima de mim, beijando meu rosto.
— Sai, filho da...
— Não xinga minha mãe — ele puxa minha orelha e ergo meu joelho,
acertando suas bolas. Enquanto rola no colchão de dor, eu sorrio satisfeito.
— Eu ia dizer filho de uma pobre mulher que merecia algo melhor que
você.
— Se me deixar incapacitado de gerar descendentes, quem vai se tornar
o próximo galã da Globo?
— Seu filho só se tornaria um galã se você se casasse com a miss
Brasil. E talvez nem os genes dela resolvessem.
— Tudo bem que eu era feio no ensino fundamental...
— E no médio — complemento.
— Tá, porra, e no médio, mas fiquei um gostoso. — Ele segura as bolas
doloridas com uma das mãos, enquanto a outra ergue sua camiseta. — Você
já viu meu abdômen, sou uma delícia.
Jogo os ombros.
— Você malhou o corpo, mas a cara continua a mesma.
João Pedro passa mais alguns minutos tentando me convencer de que é
o Reynaldo Gianecchini da nossa geração e eu finjo estar escutando
enquanto leio o itinerário de eventos do navio. É assustador como a maioria
das coisas envolve sexo. Mas isso é um cruzeiro erótico, seria estranho se
não envolvesse.
— Não precisa olhar esse papel, eu já nos inscrevi para o evento de hoje
— Ele pega o papel da minha mão.
— Por favor, me diz que não foi para o “primeiros passos no
pompoarismo” — aponto para o folheto onde mostra que haverá uma aula
de uma hora de contração dos músculos internos.
— Não, esse negócio de ficar piscando o cu não é pra mim.
Faço careta.
Ele é nojento.
— Então... o que vamos fazer? — Que fique claro que estou com medo
da resposta.
— É apenas uma festa, pode destrancar suas nádegas. Você não vai
precisar usá-las a não ser para fazer quadradinho.
— Eu não sei dançar essas coisas.
— É por isso que eu salvei alguns tutoriais, a gente precisa decorar as
dancinhas do TikTok até às 19h.
Arregalo os olhos.
Acho que o navio afundar é uma boa ideia.
Eu moro com a Pequena Sereia antes de sacolejar minha bunda por aí.
Geralmente, uma mulher sonha com um cara que abra a porta do carro,
que puxe a cadeira para ela se sentar, que a presenteie com flores e
chocolates, que seja compreensivo e, principalmente, que seja bonito.
Não sou essa garota.
Eu me contento com um cara que não tenha uma namorada secreta,
noiva em outro estado ou uma esposa raivosa.
É, eu sei que não estou esperando muito, mas mesmo com as
expectativas baixas, não achei a metade da minha laranja. Porque ela era
sempre a metade chupada de outra pessoa. A minha sorte é que eu
desapaixono tão rápido quanto os caras gozam.
— Eu tenho cara de amante? — pergunto para Manuela, enquanto me
encaro através do espelho da cabine para funcionários.
— Quer que eu seja sincera? — Ela luta para fechar o zíper enferrujado
da sua calça… também, essa calça está tão velha, que me admira não ter
rasgado ainda.
— Deixa pra lá — dispenso. — Eu só queria entender por que atraio
tanto homem comprometido.
— Não é culpa sua, você não tinha como saber que o Felipe era casado.
Suspiro, amarrando o lenço no pescoço.
Eu queria me sentir menos culpada, mas a verdade é que eu deveria ter
adivinhado que todas aquelas ligações de noite não seriam da avó dele.
Felipe, meu ex-namorado, dizia que a velhinha ligava para avisar que estava
bem sempre que ele saía de casa. Eu achava que era um neto preocupado,
mas descobri que, na verdade, era a mulher dele muito brava porque o
marido a estava traindo... comigo.
Só descobri por que ela apareceu na minha casa, em uma noite de
sábado, muito disposta a levar alguns fios do meu cabelo consigo. O pior é
que eu estava nua, com chantili nas tetas e a calcinha presa na cabeça do
marido dela. Eu nem tive tempo de raciocinar e já estava sendo xingada de
todos os nomes feios já criados pelo homem.
Em um primeiro momento, pensei que ela tinha errado de apartamento,
afinal meu namorado não podia ser casado…, mas alerta de spoiler: ele era.
Por sorte, nosso porteiro colocou os dois para fora antes que ela destruísse o
apartamento, o que não impediu de sujar minha fama pelo prédio. A
senhorinha do 202 faz sinal da cruz sempre que me vê.
Eu nunca sei se ela está orando pela minha alma ou tentando proteger a
sua de mim.
— Pode não ser culpa minha, mas já é a terceira vez que isso acontece.
— Já tive um namorado que tinha outro namorado e um noivo que já era
noivo de outra mulher. Todos esses, eu descobri por amigas que me
contaram. Essa foi a única que a flagrada fui eu. — Agora além do
Instagram, vou ter que fazer uma busca pelo CPF do cidadão para ver seu
estado civil?
— Isso resolveria com os casados, mas e os que só namoram? — Manu
levanta o questionamento.
Boa pergunta…
— Esses eu deixo um fio de cabelo no carro... se ele aparecer no Cidade
Alerta como manchete “homem é morto a facadas, após namorada
encontrar fio de cabelo desconhecido no carro”, então não é pra mim.
— Boa tática, Cheetos.
— Para de me chamar assim, a cor já tá saindo!
Observo minha pele com vontade de chorar. Talvez eu tenha errado no
bronzeamento e ficado um pouco alaranjada, mas não chego a parecer esse
salgadinho fedido.
— É, agora você não parece mais um Cheetos e sim anêmica.
Comprimo os lábios.
— Acho que prefiro Cheetos.
— Escuta... — Ela segura minha mão, me fazendo levantar da cama. —
Você não tem culpa desses caras serem um bombom de alho.
— Bombom de alho?
— É, sabe... quando você une duas coisas que são maravilhosas
separadas, mas juntas não dão certo... pênis e fidelidade.
Caio na risada, abrindo a porta da cabine.
— Sou sua amiga há anos, mas ainda não entendo metade do que você
fala.
— Esse é meu charme. — Manu passa por mim rebolando, parecendo
uma criancinha saltitante com todos os seus 153 centímetros de altura.
Que Manu não sonhe que contei isso, mas ela não tem tamanho
suficiente para ir no toboágua do parque aquático. Uma vez ela tentou usar
meias dentro do sapato, mas isso só causou a sua queda no meio do saguão
principal. Foi hilário.
— Seja como for, fiz uma promessa a mim mesma para me livrar do
dedo podre pra homem — conto orgulhosa quando a alcanço no corredor.
Precisei de duas meditações para chegar a essa solução e uma garrafa de
Velho Barreiro.
— Qual?
— Não vou transar com ninguém pelos próximos dois meses.
Manu me encara séria por alguns segundos, mas logo cai em uma
gargalhada esquisita.
Ela ri tempo suficiente para eu perceber que não tenho muita moral.
Não posso julgá-la, sou conhecida por pagar minha língua. Sempre que eu
falo que não vou fazer algo, sou vista poucas horas depois fazendo. O
inverso também é verdadeiro. Já perdi as contas de quantas vezes prometi a
mim mesma que iria à academia se pagasse o plano anual, e cá estou eu
pagando oitenta reais todo mês para um lugar que frequentei apenas nas
duas primeiras semanas.
— Já está satisfeita ou quer mais cinco minutos de volta ao passado e
bullying com os amigos? — Pelo que me contou, Manu não foi uma boa
pessoa na adolescência enquanto morava em São Paulo. Mas ela não é
exatamente uma boa pessoa até hoje. É seu charme ser malvada e
pequenininha. Tipo um Minion.
— Eu aposto meu bônus salarial que você transa antes do cruzeiro
ancorar na primeira parada. — Ela ergue o queixo cheia de si. Não disse?
Cruel!
— Fechado. — Estendo minha mão, disposta a ganhar a aposta.
— Nunca ganhei dinheiro tão fácil na vida — graceja.
Vamos ver, queridinha... vamos ver. Eu posso controlar minha vagina.
Não é ela que me controla…
Ao menos não na maior parte do tempo.
Achar algo barato? A coisa mais em conta que eu achei nesse navio foi
uma presilha de cabelo. Ela pode ir nua, com o cabelo arrumado?
Forço um sorriso na cara para não demonstrar que sou um belo de um
mão de vaca, como JP gosta de me chamar. Isso é culpa do meu pai, ele
economizava em tudo, como um bom contador. A única pessoa que não
sofria com suas economias era mamãe, porque ela tinha tudo que queria.
Ele me ensinou a economizar até colocando água no shampoo, mas nunca,
em hipótese alguma, economizar com a mulher que você ama.
Não amo a Pérola.
Mas ela tem sido uma boa amiga.
Conta, não é?
— Eu desisto! — Pérola suspira cansada depois de passarmos pela
terceira loja.
— Ainda tem uma última. — Inclino o rosto na direção da última
vitrine.
— Aquela é a mais cara.
Engulo a saliva.
— Mas é nossa última opção.
— Você não deveria tá usando esse tempo para se aproximar do seu
noivo? — suas íris avaliativas me estudam.
Merda… ela tem razão.
— É que… bom, a gente combinou de se conhecer sozinhos antes de
nos conhecermos como casal.
— Vocês deveriam ter feito isso antes de aceitarem casar um com o
outro, mas ok… — ela desdenha claramente confusa com nossa relação. Se
soubesse da missa a metade... — E ele não vai sentir sua falta?
Seguro a risada.
— Pode apostar que ele não é do tipo apegado.
— Deve ser um pouco difícil pra você.
— Por quê?
— Porque você faz o tipo apegado.
— Como sabe? — Tá tão na cara assim?
— Você é romântico, atencioso e prestativo, deve esperar isso de volta
também.
É, esperar eu sempre esperei, agora receber em troca nunca me
ocorreu.
— Tudo bem, JP e eu lidamos bem um com o outro. — A gente não ter
se matado em 25 anos de convivência é uma ótima prova disso.
Pérola me observa avaliativamente e me sinto como um bicho dissecado
sendo estudado por uma universitária. Ela é observadora e tenho que tomar
cuidado com isso.
Pelo menos ela aceita me acompanhar até a última loja de vestidos, sem
fazer mais nenhum questionamento sobre meu noivado.
— Eu vou dando uma olhada por ali e você procura por aqui — Pérola
ordena, como sempre querendo ter o controle de tudo. Como ela consegue
ser calma e mandona ao mesmo tempo? Ela é aquele tipo de fúria contida
que você tem medo de cutucar e passar por cima de você.
— Eu não sei o que procurar — digo a verdade. Não sou a pessoa com
mais senso de estilo se ela não notou.
— Escolha algo que faria você se interessar por uma garota caso a visse
vestindo.
Fantasia de Temari[24]?
Eu penso, mas não falo. Ela nem saberia quem é, de toda forma.
Olho em volta, coçando o queixo.
Que tipo de vestido me atrairia em uma mulher? Eu nunca pensei sobre
isso. Me senti atraído por Olívia no momento que me deu “oi” e não revirou
os olhos para mim.
Disfarçadamente, observo as peças que Pérola analisa por mais tempo,
antes de seguir para a próxima.
Ela gosta de coisas brilhosas. Ok.
Então vou procurar brilho.
Fico de frente para a arara de vestidos longos, perdido com tanta cor e
opção. Cruzo os braços, batendo o indicador no queixo. Quando estou
travado durante o desenvolvimento de algum game, eu fecho os olhos, fico
nessa posição e tento me imaginar jogando com ele já pronto.
Agora, eu só troco o jogo por Pérola descendo uma escadaria, porque
foi isso que vi em todos os filmes que minha mãe assistia na sessão da
tarde. Era o único horário que ela me deixava ver tv, já que não passava
nada de putaria.
Esses conhecimentos fizeram falta…
Talvez se eu tivesse assistido a mais filmes, não precisasse que uma
mulher me ensinasse com uma maçã.
Foco, Joca! — Shikamaru grita na minha cabeça.
Ok, foco. Achar um vestido que a deixe bonita.
Não… achar um vestido digno da beleza dela. Porque Pérola com
certeza não precisa de uma peça de roupa para ficar deslumbrante. Por mim
ela iria com seu pijama e ainda assim se destacaria.
Ao voltar a abrir os olhos, um tecido dourado e reluzente me chama
atenção ao final dos cabides. O retiro com cuidado, notando seu peso leve
em comparação a todos aos outros pesados demais. Eu acho que isso
combinaria muito mais com o jeito extrovertido dela do que algo
extremamente formal.
Limpo a garganta, a chamando. Pérola gira o pescoço com uma
sobrancelha erguida e mostro o vestido. Seus olhos brilham mais do que o
tecido.
— Cacete, que vestido lindo!
Comprimo os lábios para não rir.
Boquinha suja…
— Fica parada. — Com as mãos em seus ombros, a posiciono de frente
para mim, estendendo o vestido diante dela. Quando o tecido leve chega aos
seus pés em um farfalhar, o ar escapa dos meus pulmões.
Minha nossa… isso é…
É…
Abro a boca tentando pronunciar um adjetivo suficiente para o que essa
cor faz com a pele dela, mas só consigo dizer uma única coisa plausível.
— Experimenta! — entrego a ela o vestido dourado de alças finas
— Ficou maluco? — ela exclama depois de olhar a etiqueta. — É muito
caro, e se eu estragar?
— Não tem problema, porque ele já é seu.
— O quê? Como assim meu? — Pérola gargalha, negando com a
cabeça. — Eu nunca teria dinheiro suficiente para comprar esse vestido.
— Que bom que eu tenho, porque eu não consigo admitir ninguém mais
vestida com ele do que você. — Não sei de onde vem essa vontade de
gastar e muito menos a necessidade de vê-la dentro desse tecido, mas não
consigo evitar que minhas palavras saiam atropelando minha língua.
— Eu não posso aceitar um presente tão caro, me desculpe — Pérola
recusa educadamente, empurrando o vestido para mim.
Dou um passo para mais perto, segurando em seu antebraço e a fazendo
esticá-los diante de si mesma, onde repouso o tecido brilhante.
— Não só pode, como deve, já que me presenteou com um ainda mais
valioso.
— Não entendi — ela me observa confusa. — O que eu dei a você que é
mais valioso que este vestido?
— O melhor beijo da minha vida.
Pérola pisca aturdida.
E eu começo a calcular quão forte eu teria que bater a cabeça na parede
para fingir desmaio. Onde foi parar o meu filtro mental?
— Você… — Ela limpa a garganta, seu rosto adotando um tom rosado.
Está tímida? Por que ficaria? Já me disse coisas bem mais reveladoras do
que um simples beijo. — É… você não precisa me retribuir por isso, eu te
beijei porque quis e…
Pouso o polegar sobre o lábio dela, segurando o inferior para que não
diga mais nada. Os olhos de Pérola saltam e meu rosto esquenta.
— Por favor, não estou tentando te pagar pelo beijo, eu jamais te
ofenderia dessa forma — liberto seu lábio, o massageando para não ficar
dolorido. — Eu só quero muito presentear uma pessoa que tem me feito
bem em um momento difícil.
Não me importo de relevar essa segunda parte agora e Pérola me deixa
confortável o bastante para não questionar o porquê de eu ter dito isso.
— Você sabe que somos amigos agora, não é? — averigua. — Não
precisa me presentear.
— Eu sei — manejo a cabeça afirmativamente, afastando uma mecha de
cabelo dela para longe do seu rosto. — Mas eu ainda quero… por favor, não
recuse meu presente.
As pálpebras dela se estreitam, como se tentasse entender o que enxerga
em sua frente. Ela passeia a língua por seus dentes superiores, em uma
mania que notei desde que a conheci.
— Ok — Sorri ao final, suspirando. — Mas com uma condição.
— Você não pode deixar de ter o controle um só segundo, não é? —
arquejo.
— Não. — Ela bate no meu peito. — Sou viciada em mandar. Agora
fique quieto e escute minha condição.
Finjo fechar um zíper na minha boca, esperando seu veredicto. Seja lá
qual for, eu vou aceitar. Eu apenas preciso ver essa mulher dentro desse
vestido ou não vou viver em paz.
— Só vou aceitar se for alugado, não comprado.
— Mas… — começo a contestar e ela ergue uma sobrancelha como
quem diz: ouse me contrariar… eu não ouso. E nem deveria querer, afinal
ela está querendo que eu economize. Eu não deveria querer o mesmo? —
Ok.
Me rendo.
— Ótimo, vou experimentá-lo — Pérola dá gritinhos e pulinhos de
adolescente animada, me presenteando com seu sorriso travesso.
Cristo, eu me sinto realmente um jovem de 16 anos com ela, mesmo que
Pérola seja mais velha que eu. Em que parte da minha vida eu perdi esse
espírito infantil e feliz? Eu sequer já tive ele dentro de mim?
João Pedro e eu encaramos meu celular, e não sei o que está mais alto,
os meus batimentos cardíacos ou a mastigação de unha dele. Quando entrei
na cabine, pensei que já estaria aos gritos com minha ex, mas nem ele teve
coragem de abrir as mensagens.
Talvez tenha medo que ela me peça para voltar e eu aceite. Nessa altura
do campeonato, acho que eu não aceitaria. O que me fez mudar de ideia
desde que subi a bordo, eu não sei. Mas algo mudou.
— O que você acha que pode ser? — murmuro.
— Não sei. — Dá de ombros. — Pode ser desde ela te pedindo
desculpa, até mandando o convite de casamento com seu assistente.
Faço careta.
— Espero que seja a primeira.
— Eu espero é que ela se foda.
— João Pedro…
— João Pedro meus ovos, para de defender essa mulher, caralho.
— Não estou defendendo. A gente vai continuar tendo essa discussão
por quanto tempo? — o encaro entediado.
— Até você criar um pouco de autoestima e dignidade.
Ah, então vai demorar.
— Lê logo de uma vez.
— Se sua mãe parar de mandar mensagens eu olho, toda vez que vou
clicar no nome da Olívia vem uma notificação pra atrapalhar.
— Me dá aqui! — Tento arrancar o celular da mão dele, contudo o que
consigo é clicar justamente em uma das infindáveis notificações de mamãe,
dando de cara com a foto que ela encaminhou.
Com Olívia. Abraçadas.
O JP vai me matar.
— Por que sua mãe tá mandando foto com a cascavel sete peles? — Ele
amplia a foto para ver se é antiga, mas assim como eu, descobre que é de
agora pela mensagem seguinte de dona Das Dores.
“Com minha norinha aguardando a volta do nosso príncipe”.
Eu não sei se morro de vergonha da minha mãe chamar ela de norinha
ou de me chamar de príncipe.
— A tia Das Dores enlouqueceu?! Por que ela tá chamando a Olívia de
nora ainda? — meu amigo olha para mim esperando uma reação como a
sua, mas é impossível esboçar o mesmo choque. Porque eu sei o motivo
pela qual ela chamou Olívia assim. Na cabeça da minha mãe, por culpa
completa minha, ela realmente pensa que ainda tem nora.
Será que ela enfarta se eu disser que sua nora agora é o JP?
— Joca? — Ele me balança pelos ombros. — Fala alguma coisa! Por
que sua mãe tá chamando sua ex de norinha?
Respiro fundo, tirando os óculos e fechando os olhos.
Ele vai socar minha cara.
E eu mereço.
— Nãoconteipraminhamãequeleveiumchifre — falo tal e qual ele falou
para mim sobre o cruzeiro ser erótico.
— Quê?! Cospe o pau pra fora antes de falar.
Merda, ele vai mesmo me socar.
— Não contei pra minha mãe que levei um chifre — admito devagar e
com a cara pegando fogo de vergonha própria.
Podem atualizar as definições de trouxa de zero à Joca. Sendo Joca um
nível não aceitável.
Abro os olhos quando o silêncio se perpetua de forma tão macabra que
escuto até mesmo os nossos corações batendo.
— Eu entendi errado... — Ele ri de nervoso. — É isso, eu com certeza
entendi errado. — Meu amigo começa a gargalhar, batendo no meu ombro.
— Essa piada foi realmente boa, você quase me pegou. Agora fala a
verdade.
Comprimo os lábios, dando de ombros.
— Essa é a verdade. — Engulo a saliva que mais parece uma pedra
pontiaguda rasgando minha garganta. — Eu disse a minha mãe que adiei o
casamento porque precisava fazer uma viagem urgente de trabalho que
surgiu de última hora e que Olívia não se importou de esperar algumas
semanas para o casamento.
Novamente, silêncio.
Ergo os olhos com medo da reação do João Pedro, mas ele só me
encara. Perplexo e incrédulo. Sua cabeça se move negativamente, não
querendo acreditar, e eu movo a minha positivamente, dizendo a ele que
sim, deve acreditar.
Meu amigo se ergue e começa a andar em círculos pela cabine, pelo que
imagino ser uns dez minutos inteiros. Quando seus pés finalmente fincam
no lugar, seu dedo aponta em riste na minha direção.
— Por quê?
— Primeiro, porque eu achava que meu relacionamento teria volta,
então não queria preocupar minha mãe atoa. Depois, porque senti vergonha
de ter sido traído, vergonha de que ela soubesse que não consegui manter
meu noivado. E por último, porque mamãe sempre gostou da Olívia, não
queria estragar a relação das duas...
— Você está querendo me dizer, que além da sua mãe achar que você é
um otário que adia um casamento por causa de uma reunião de trabalho, ela
ainda pensa que Olívia é um anjo na terra por ser compreensiva a esse
ponto?!
Ele começou falando baixo, só que a essa altura até os vizinhos do
andar de cima devem ter escutado.
Assinto sem jeito.
— É isso aí.
— Escuta... — Ele aperta a ponta do nariz. — Desde que eu me entendo
por gente, você é alguém bom, Joca. É uma pessoa de coração puro, que
mesmo depois de sofrer bullying pra caralho, mesmo depois de perder seu
pai para um mal súbito, mesmo depois de ter que ser o alicerce da sua mãe
ainda com quinze anos, não permitiu que o mundo quebrasse seu coração.
— Por que está dizendo isso?
— Porque eu sempre tive medo que uma hora ou outra, algo o fizesse
mudar. Algo quebrasse aí dentro de você, como quebrou em mim. Algo que
te fizesse desacreditar do amor, de felicidade, e de todas essas merdas que
as pessoas sonham. — Ele apoia as mãos na cintura. — Desde que você
conheceu a Olívia, esse medo triplicou. Porque eu sabia que ela podia ser a
pessoa que te faria desacreditar de tudo isso.
— Olívia não tem culpa das minhas inseguranças, João Pedro — tento
explicar. — Na verdade, eu acho que ela não tem muita culpa nem por ter
me traído. Eu devia ser muito distante, frio, ruim de cama... ela buscou
alguém que fosse o contrário.
Dou de ombros.
— Eu juro que tentei te entender. — Ele bufa uma risada decepcionada.
— Eu realmente tentei entender quando você a pediu em namoro, quando a
pediu em casamento e até quando pagou a viagem dela com os amigos sem
que ela quisesse que você fosse junto… eu tentei entender inclusive a porra
do seu sofrimento por ela ter te traído, mas isso não. Isso eu não consigo
entender! Você está comprometendo sua imagem com sua mãe, por uma
mulher que te traiu! Está se rebaixando, para justificar a escolha que ela
tomou. Porque acredite, ela podia só ter terminado com você...
Levanto do sofá com a vergonha sendo substituída pela raiva. Eu quem
deveria me importar com isso e não ele.
— E por que você tem que entender algo? É a minha vida! — grito de
volta.
— É a nossa, porque eu te considero como meu irmão, porra!
— Se te deixa mais leve, então não me considere mais um irmão. —
Ergo os braços. — Me deixa viver minha vida como eu quero, porque não é
como se você soubesse o que está fazendo da sua!
Tão logo as palavras saem e a expressão dele se transforma em mágoa,
eu me arrependo. Mas já é tarde demais para voltar atrás.
Droga. Que merda!
— É isso que vou fazer. — Acena chateado. — Vou te deixar em paz.
Só não venha chorando quando o mundo cair em cima da sua cabeça de
novo. Ligue para a Olívia... quem sabe ela te deixa assistir a mais um sexo
com seu assistente.
João Pedro pega a mochila de mão que levou para a viagem, joga as
minhas cuecas limpas dentro dela e sai da cabine depois de quase arrancar a
porta das dobradiças.
Solto todo o ar dos meus pulmões, me jogando na poltrona com as mãos
na cabeça.
Eu fodi com tudo.
Vou ligar para um dos desenvolvedores de The Sims e avisar que não
mereço ser um dos tester’s da nova atualização.
Não sou digno o suficiente.
Eu estava na metade do meu Fandangos quando bateram à porta da
cabine. Olhei para Manuela e ela para mim, sem a mínima ideia de quem
pudesse ser. Nós mandamos entrar depois de eu colocar um short e ela parar
de arrancar os pelos encravados da axila com uma pinça.
Realmente não esperávamos ninguém, mas encontrar João Pedro do
outro lado da porta, foi uma surpresa à parte.
Ele entrou com uma expressão assassina e eu quase perguntei o que
Manuela tinha feito, até que o Corinthiano se sentou na minha cama,
roubou meu salgadinho e começou a falar sobre como queria amarrar o Gui
na hélice do navio e vê-lo girar até criar vergonha na cara.
Agora, meia hora depois do desabado, eu sei que eles brigaram por algo
relacionado à sua ex, que João Guilherme gosta de ser pisado, e que João
Pedro não dorme no mesmo quarto que ele porque quer preservar o réu
primário.
— E você quer ficar aqui?! — Manuela o interroga em choque depois
que ele propõe dormir no nosso quarto.
— Pelo menos por dois dias, até o Joca pensar nos próprios erros. Ele
pediu para ser deixado em paz e eu vou deixar. — O Corinthiano limpa a
boca com as costas da mão. — Desde pequenos eu o defendi, apanhei no
lugar dele incontáveis vezes, o protegi de coisas que eu sabia que as pessoas
falavam..., mas acho que eu só o deixei mais vulnerável. O cara não sabe se
defender nem dos próprios pensamentos. Eu o convenci a malhar o corpo,
mas deveria ter mandado malhar a dignidade.
Não sei o que rolou com essa ex. Mas ao que parece não mexe só com o
Gui, como também com JP. Não parece ciúmes, mas há raiva o suficiente
para eu imaginar que a história dos dois não terminou nada bem.
Suspiro, voltando atenção para Manuela. Ela finge não prestar muita
atenção na conversa, mexendo no celular, mas eu quase posso ver sua
orelha se esticando para captar todos os detalhes.
— Tudo bem ele dormir aqui, Manu?
— Hum? — Me encara fingindo desentendimento.
— O Corinthiano pode dormir aqui?
— Por mim… — Joga os ombros indiferente. — Ele pode ficar, mas eu
vou procurar outro lugar.
— Que outro lugar? — indago confusa.
— Ora, o quarto dele. Com certeza a cama é melhor do que a nossa.
— Não precisa sair do seu quarto, Manuela. — Ele revira os olhos. —
Se não quiser que eu fique, fale de uma vez.
— Não preciso, você sabe que não te quero perto de mim… — Ela se
levanta da cama, tirando o short de pijama e colocando um jeans, tudo na
frente de nós dois. — Mas falei sério sobre ficar no seu quarto. Eu mereço
uma noite de rainha.
— Lá só tem uma cama — ele avisa depois de limpar a garganta para a
cena de seminudez que ela o ofereceu. Eu sei que essa safada fez isso de
propósito para vê-lo sofrer.
— Mas tem poltrona, e como você mesmo disse, o nerd precisa pensar
na vida… deitado o cérebro não funciona bem.
— Isso não faz sentido, Manu.
— Eu também não, Cheetos, mas é a vida. — Ela beija minha bochecha
depois de pegar escova de dente e uma muda de roupa no armário. — Volto
para cá daqui dois dias.
— Dois? — Franzo o cenho.
— É, eu vou fazer um programa de reabilitação anti-ex com o pirocudo
— Manu sopra um beijo antes de sair da cabine.
— Acho que eu tô com um pouco de pena dele agora — JP resmunga,
se deitando na cama.
— Não tenha pena dele, tenha de você. — Sorrio diabólica. — Porque
você ficou no meu quarto e eu acordo cinco da manhã.
Ele arregala os olhos, pronto para correr da cabine, mas eu a tranco e
guardo a chave entre os peitos. A chave cai direto no chão, obviamente,
mas até que minha intenção foi boa. Pego novamente o objeto metálico,
enfiando na minha gaveta de absorventes. Aqui eu sei que ele não vai
mexer.
— Pronto para maratonar Rebeldes comigo? — Bato palma animada, ao
passo que João Pedro encara o céu pela janelinha.
— Eu já entendi, Deus… eu mereço.
Tomamos um gol.
Faltando três minutos para acabar o primeiro tempo.
Não acredito nisso.
Porra, esse goleiro tá precisando de óculos, até eu teria pegado essa
bola.
— Salve o Corinthians, o campeão dos campeões! — João Pedro canta
há plenos pulmões. Pulmões esse que estou pensando em arrancar pela
goela desse cabeçudo.
Cruzo os braços emburrada, deixando o Gui me confortar com seu
abraço quentinho. Ele me empacotou como um embrulho a ser enviado por
Pac entre suas pernas, seus pelos do peito fazendo cócegas nas minhas
costas.
— Chora não, Vascaína, chora não!
— João Pedro, se você não parar de implicar com ela, eu vou chutar seu
saco. — Gui briga com ele pela décima vez. Mas como ainda não cumpriu
com nenhum ameaça, eu mesma dou um tapa na bolas do Corinthiano.
— Ai, porra! — Ele segura o meio das suas pernas.
— O próximo vai ser uma cabeçada. — Dou língua.
— Não seja uma má perdedora.
— Ainda não perdemos — digo na defensiva. — Tem o segundo tempo.
— Que vai ser igual ao primeiro… viu como não adianta ter um
rostinho bonito em campo?
— Gui... — o chamo, cutucando seu braço.
— Hm?
— Se importa de ficar sem noivo?
— Não, vá em frente.
Faço que vou me levantar e JP dá um passo para trás na intenção de
fugir de mim, esbarrando em Manuela, caindo no seu colo logo em seguida.
Cubro a boca com a mão, esperando a merda que vai dar.
— Acho que não preciso mais fazer nada. — Solto uma risadinha.
— Manuzinha, foi sem querer... — Ele ri de nervoso ainda no seu colo e
começo a ver fumaça saindo pelas orelhas da minha amiga.
— Meu. Cabelo. — Ela fecha os olhos, respirando fundo.
— Tá na sua cabeça — para provar, JP bate sobre o topo, molhando a
única parte seca.
— Um — ela conta.
— Um o quê?
— Dois.
— É pra eu correr? — Os olhos dele se esbugalham.
— Três.
— Fui! — JP pula do colo dela para o outro lado da banheira, pegando
o pote de pipoca para se defender.
— Eu vou fazer você engolir essa merda!
Viro de frente no colo do Joca para não ser testemunha de um
assassinato, deitando a cabeça no seu ombro enquanto espero o segundo
tempo. Estou triste demais para aproveitar a discussão ao lado. O Vasco é
tipo meu filho, me sinto uma mãe vendo seu bebê ser humilhado.
Mais apegada a esse time do que eu, apenas meu pai era. Nós sempre
assistíamos aos jogos juntos, ele arrancava sua camisa quando ganhávamos
e chorávamos juntos quando perdia. Da pra entender que a gente chorava
bastante né? Ser vascaína é padecer no inferno.
— O que foi, bebê? — Joca afaga minhas costas.
— Eu não gosto de perder — minha voz sai abafada na pele dele.
— Ninguém gosta. Mas o segundo tempo ainda tá aí e eu não vou
deixar o João Pedro te amolar.
— Se eles não fizeram a porra de um gol quando estavam descansados,
agora que tão tudo resfolegando feito cachorro de rico depois de andar dez
metros, não vai sair nem chute na canela. — Nem me importo em parecer
criança emburrada. Quando se trata de futebol, eu sou mesmo uma.
O corpo dele se sacode sob o meu e imagino que esteja rindo de mim.
— Não ri não — mordo seu ombro em protesto. — Não se esqueça que
se o Vasco perder, você tá incluso na aposta.
Sinto seus ombros serem jogados para cima em claro desdém.
— O máximo que vai acontecer é você acabar comigo naquele quarto
de voyeur. O JP ver isso ou não, não vai fazer diferença.
Ergo a cabeça rapidamente, virando a cara dele de um lado para o outro.
— Quem é você e o que fez com meu nerd tímido e pacato?
— Eu sou o Honey e o nerd tímido e pacato ficou entre o segundo e o
terceiro orgasmo de duas noites atrás.
Sorrio satisfeita, me deleitando com as lembranças. Aquela noite foi...
nossa. Até para os meus padrões, excedeu as expectativas. A massagem, o
toque, como ele se entregou, se libertou, chorou nos braços, se permitiu
sentir, aceitou o prazer de bom grado... nem mesmo na minha melhor sessão
de terapia tântrica, vi alguém tão enredado pelo prazer até então
desconhecido, fascinado com o próprio corpo, curioso com o que sempre
esteve ali para ele, mas que estava sendo desperdiçado.
Eu nunca chego a nenhum ato de fato com nenhum dos meus pacientes,
sempre fui pela linha mais sensorial e menos invasiva, preferindo que eles
aprendessem por si só a se dar prazer e se permitir vivenciar isso. Mas
mesmo nas minhas relações pessoais, nunca cheguei a um nível daquele
com outro homem. Nenhum deles foi tão aberto ao ponto de se deixar lavar
a alma na minha frente e muito menos eu com eles. Nunca deixei ninguém
foder minha boca daquela forma, com tamanho controle sobre mim, ditando
seu ritmo e a profundidade. Para ser honesta, nunca me ajoelhei diante de
um homem. Eu sempre fiz isso por cima deles, porque era um claro aviso
que o poder era eu.
Mas com Gui, eu simplesmente senti que podia abrir mão do controle.
Que não precisava pensar por nós dois, apenas me deixar levar pela
situação. Foi diferente e novo para mim também, de certa forma me
mostrou um lado meu que até então eu não pensava que podia gostar. Não
um lado submisso, porque isso eu nunca serei, mas um lado que eu posso
soltar as cordinhas do jogo por um momento e confiar que o cara que está
comigo não vai se aproveitar disso.
Foi como tirar um peso das minhas costas. Me senti aliviada. Estranho,
porque minha garganta estava sendo muito bem fodida, mas senti alívio.
Simplesmente por não precisar me preocupar com nada. Me fez ter vontade
de viver assim mais vezes. Ser a que as pessoas se preocupam em vez de ser
a que me preocupa com as pessoas.
João Guilherme tem me falado diversas vezes sobre sua dívida comigo,
sobre ele sentir prazer mais do que eu... mas se soubesse quantos caras me
fizeram gozar, sem que meu coração acelerasse um só segundo, sem marcar
nem uma página da minha vida, teria certeza que talvez eu quem saia
perdendo dessa competição. Eu o estou mostrando o prazer do corpo, mas
ele está me mostrando um prazer de alma. E esse eu não tinha conhecido
ainda.
— Você foi incrível aquela noite — elogio, querendo poder falar todas
essas coisas para ele, mas sabendo muito bem que não posso.
— Particularmente, preferi você.
— É? — Desço o olhar para sua boca, limpando com o polegar o sol da
pipoca.
— É. — Ele desce o dele até a minha também.
— Não se arrependeu de nada do que aconteceu lá? — Não que eu
esteja insegura do prazer que ele sentiu, mas não tenho a intenção de o
deixar se martirizando por ele depois.
— Eu estou mais propenso a pedir que aquilo se repita.
Sorrio abertamente, mais feliz do que devia com essa informação.
— Então você gostou de tudo? — Arqueio uma sobrancelha.
— De tudo... principalmente quando você me fodeu. — Ele fala
baixinho, olhando através do seu ombro, talvez para ver se Manu e JP
prestam atenção em nós. Mas eles estão discutindo algo sobre a Mônica ter
razão de bater no Cebolinha... sei lá, só peguei essa parte da conversa e não
sei como eles chegaram até ela. E nem tenho como prestar atenção, porque
a ereção de João Guilherme cava minha bunda e eu começo a ficar molhada
só com a menção de tudo que aconteceu no quarto ao lado. Se não fosse o
jogo, eu o levaria para lá de novo agora mesmo.
Aproximo a boca da sua orelha, brincando com a pele macia.
— Preferiu meus dedos ou um certo brinquedinho em particular? —
Acaricio sua nuca com as unhas e Gui aperta minha cintura.
— Os dois, Pérola... eu gostei dos dois. — Ele beija o vão do meu
pescoço, me fazendo moer sua ereção contra minha boceta. Ofego. — E
você? Você gostou de tudo? Eu sei que não foi tão bom para você quanto
foi para mim, mas... você gostou?
Solto uma risada fraca, balançando a cabeça.
— Você não tem nenhuma noção do prazer que eu senti aquela noite...
principalmente quando você fodeu minha boca até meus olhos
lacrimejarem. Não consigo esquecer a sensação do seu pau no fundo da
minha garganta e das suas mãos nos meus cabelos.
— Merda, Pérola... — ele pragueja, subindo sua mão para se enrolar nos
meus cabelos. As íris azuis me fitam carentes e eu posso sentir todo seu
corpo estremecer sob mim. — Me beija, por favor?
Meu clitóris arde com a súplica. Ele sabe que eu gosto disso. Sabe, mas
ainda é natural, não algo forçado.
— Beijo, Honey... eu beijo.
Suas mãos se apossam da minha cintura e me encaixam corretamente
em seu colo, me esfregando descaradamente sobre seu pau. Quando a
língua dele desenha meus lábios para pedir passagem, não apenas o dou
permissão, como uno a minha à equação.
João Guilherme ondula levemente seu quadril contra mim, fazendo meu
clitóris dançar de um lado para o outro sob o biquini. Eu poderia estar fora
da água que ele continuaria encharcado.
Chupo sua língua o lembrando de como seu pau ficou em minha boca e
seu aperto em meus cabelos se intensifica, assim com um rosnado sai dos
seus lábios, baixinho e incontrolado. Minhas mãos arranham suas costas, o
tentando trazer mais perto do que é humanamente possível. Meus mamilos
deslizam sobre seu peito e sinto vontade de arrancar esse tecido para longe
e o sentir pele com pele novamente.
— Ih gente, vale pegação? Isso é alguma simpatia? Porque se for, vem
aqui Manuela — João Pedro fala e escuto um tapa estalado.
— Vem aqui o cacete!
— Mas eles estão se beijando, se o Corinthians perder é culpa sua.
— E te beijar vai ajudar em que os jogadores?
— Os jogadores eu não sei, mas tem um tempo do caralho que eu não
beijo na boca. Tô começando a desaprender.
— E eu tenho cara de professora? Vai fazer como o Joca e treinar com
uma maçã.
Os dois continuam sua discussão infindável, enquanto Gui e eu
permanecemos no nosso beijo que quisera eu ser igualmente sem fim.
Suspiro sobre os lábios macios, a barba arranhando minha pele, os dedos
calejados descendo para minha bunda e a amassando contra sua palma, me
fazendo mover os quadris de encontro ao seu membro, tão duro que consigo
sentir as veias saltadas latejando.
Ah, que se dane.
Minha pélvis se move sem discrição, rebolando em seu colo enquanto
minha boca é assaltada pela língua que agora sabe exatamente o que fazer.
E melhor, sabe fazer de acordo com meus padrões. Estou o deixando
perfeito para os meus moldes, só para depois o entregar a outra pessoa. Isso
é injusto.
Meus dentes pressionam o lábio inferior e o escuto resfolegar,
impulsionando sua pélvis contra a minha. Sua glande atinge exatamente
meu clitóris e é impossível não deixar o gemido escapar entre meus lábios.
As mãos dele não economizam toque e muito menos pressão. Talvez depois
de ter provado do que um toque é capaz, ele tenha entendido a importância
dele nem que seja em um mísero beijo.
— Tá porra, vocês nem perderam a aposta e já estão se comendo na
minha frente! — João Pedro decide mesmo nos interromper, jogando água
para nos separar.
Nos afastamos ofegantes e completamente frustrados. Quem foi que
chamou esse Corinthiano mesmo?
Manuela o estapeia. De novo.
— Que droga, Zé Mané! Eu tava gostando de assistir, parecia uma
sessão premium de filme pornô. — Ela sorri na nossa direção com o lábio
entre os dentes. — Por mim vocês podem continuar, vou ficar quietinha só
olhando.
Gui enfia o rosto no meu pescoço, ficando até quente de vergonha. Eu
faço uma massagem no seu couro cabeludo, saindo de cima da sua ereção
par ao ajudar, mas me mantendo no seu colo para ninguém o ver. Eu sei que
ele ainda não gosta totalmente dessa parte do seu corpo, principalmente
quando fica excitado.
— Que isso, Valentona? — João Pedro joga pipoca nela. — Tem tara
em assistir os outros transando, é?
— Se eles aceitarem, eu faço mais do que assistir...
João Pedro arregala os olhos. Eu disse que esse Corinthiano tem muita
fala e pouca ação...
— Eu não vou jogar Just Dance. — Nego com a cabeça pela milésima
vez.
— Por favor, Honey — Pérola faz beicinho segurando meu rosto, mas
nem isso me convence.
— Eu só sei dançar a dois, não me venham com isso.
— Por favor. — Bate os cílios e até tenho vontade de rir, mas não de
dançar.
— Sem chance. Vai você e a Manu.
— É que a gente quer ver vocês passando vergonha, não deu pra
perceber ainda? — a prima de terceiro grau do capeta sorri debochada,
tentando pegar um ursinho da máquina. Manu já gastou cinco reais. Do JP.
Ela pegou a carteira dele como se fosse uma trombadinha.
— Vem, Vascaína. Eu danço com você. — Ele desvia o olhar para mim,
sorrindo ladino. — Posso?
Dou de ombros, fingindo que nem é comigo.
— Ela quem sabe.
— Vai ser bom acabar com você nesse jogo também — Pérola vai
rebolando para a frente da televisão.
— O que acha de mais uma aposta então? — ele propõe.
— Só deixa a gente fora dessa! — Manu e eu gritamos antes de sermos
jogados em mais uma presepada desses dois. Só nessas brincadeiras eu já
ganhei uma instrutora sexual e uma sessão premium para ver ele e
Manuela se matando numa sala.
Poderia ser pior...
— Eles são muito chatos — JP resmunga enquanto escolhe a música.
— Por que andamos com eles? — Pérola finge decepção.
— Eu ando com o Joca porque ele é rico, e você com a Manuela?
— Olha, é uma ótima pergunta — Minha sereia caçoa, ganhando um
gesto obsceno da amiga.
— Me chupar você não quer, né Cheetos?
— Foi mal, amorzinho. Não é minha praia.
João Pedro finalmente se decide por uma música no jogo, me fazendo
gargalhar quando começa a tocar.
— Ragatanga você desenterrou. — Sento ereto no sofá, erguendo o
celular para filmar essa vergonha alheia. Preciso de provas quando eu
contar isso para todo mundo como ele fez com meu chifre. Capaz que eu
mande o vídeo até para a Olívia.
Por incrível que pareça, o cretino sabe mesmo a coreografia e os dois
fazem uma batalha acirrada durante toda a dança. Ao final, João Pedro
ganha porque empurra Pérola com o quadril, a fazendo desequilibrar e errar
o passo no movimento final. Ela pula nas costas dele batendo na sua cabeça,
enquanto meu amigo corre com ela grudada feito chiclete, ambos rindo
como duas crianças que acabam de se conhecer, mas já se consideram
melhores amigos.
Eu não consigo deixar de sorrir vendo os dois. Se eu não conhecesse a
mãe do JP, diria que ela teve uma filha antes dele. É impressionante como
Pérola e ele são a mesma pessoa.
E que também tenham se tornado as minhas pessoas favoritas, mesmo
me deixando de cabelos em pé noventa por cento do meu tempo. Talvez
seja isso que eu mais goste neles. JP e Pérola são adultos, mas não vivem
suas vidas como um.
Eles não tentam ganhar rios de dinheiro, só se preocupam em ter o
suficiente para viver a vida que desejam. Não se preocupam em brincar e
parecerem ridículos, nem em revelar seus gostos infantis, pouco se fodendo
para o que as pessoas vão pensar.
Sorrio, aproveitando a brincadeira deles. É bom de ver. Eles são leves,
livres e me fazem sentir assim. Como se eu também fosse.
Sinto um peso do meu lado e Manu joga um alce de pelúcia no meu
colo.
— Lembrei de você, então é presente.
Encaro os chifres do bicho e empurro o interior da bochecha com a
língua.
— Sacanagem, filha legítima do Sete Peles. Sacanagem…
Manuela gargalha quando eu faço uma expressão emburrada, se
deitando com a cabeça no meu colo. Eu deveria jogá-la no chão.
— Eu gosto dos seus apelidos, sua criatividade combina com a minha.
— É, eu só não uso isso contra ninguém. — A ajudo a puxar seu cabelo
para o lado para que minha perna não o prenda.
— No fundo você gosta de mim, confessa. — Bate seus cílios, os
olhinhos claros e rosto angelical, quase me convencendo de que ainda pode
ter a alma salva. Quase.
— No fundo, quase achando petróleo, encontrando o núcleo da terra, eu
gosto.
— E dela? — Manu joga o queixo na direção da Pérola, que agora está
jogando as bolas de basquete do brinquedo todas em cima de JP. Ele desvia
delas, gritando que é melhor que o Keanu Reeves em Matrix.
Respiro fundo, fazendo um cafuné nos cabelos de Manu.
— Gosto. Eu gosto muito.
— Muito a ponto de fazer essa merda dar certo?
— Que merda quer dizer?
— O amor. A merda que o amor é.
— O amor não é uma merda, Manu. As pessoas são. — Encaro meu
amigo e a garota por quem estou apaixonado, e me corrijo. — Algumas são.
Porém outras são tão boas que mostram que ainda vale a pena sentir.
Manu também os observa por um tempo.
— Eu nunca quis magoá-lo, sabia? — diz baixinho, de um modo que até
eu tenho dificuldade de ouvir.
— Não. Mas ele gostaria de saber disso.
— Só que não vai. — Ela sorri de um jeito triste, parecendo vulnerável
pela primeira vez desde que a conheço. — Deixa ele sentir raiva de mim. A
raiva fez bem a ele, agora está protegido contra as dores do coração.
— Ou ele está com o coração tão dolorido que não deixa ninguém
entrar. — Encolho os ombros.
— Não faça o mesmo com a Pérola — Manu esquadrinha meu rosto. —
Não a machuque, mesmo sem querer.
Fico vermelho. E dessa vez minha vergonha é válida.
— Acho que eu vou magoar de qualquer jeito. Agora é inevitável.
— E se você tentar? Se tentar fazer dar certo?
Franzo o cenho.
— Não foi você mesma que disse que eu podia estar confundindo com
carência, que eu moro longe, que vou magoá-la com minha confusão?
— Foi eu mesma que disse, mas o que eu digo não se escreve a caneta.
Se escreve a lápis e fraquinho, porque eu mudo de ideia como quem muda
de roupa.
Minha veia da testa lateja.
— O que quer dizer com isso?
— Eu quero dizer para você pensar na possibilidade de levar esse
sentimento para além desse navio.
Meu peito infla com algo como esperança. Eu nem cogitei ter uma,
porque nem Manuela achava que podia dar certo.
— Você acha que daria certo?
— Se estou colocando o coração da minha melhor amiga, a pessoa mais
importante do mundo pra mim, em jogo, é porque eu tenho certeza.
Pisco surpreso.
E desconcertado com a confiança dela.
— Ai, no cu não! — João Pedro grita, enquanto Pérola gargalha depois
de dar uma dedada nele.
Manu gargalha e eu faço careta.
Ela não vai chegar nem perto de mim com esse dedo.
Desço a rampa o navio, caminhando pelo píer, até meus pés tocarem a
areia fofa. Me livro das havaianas, as segurando pelas alças. Vejo João
Guilherme sentado na areia, observando o mar. Ele ainda não notou minha
presença, está com as pernas encolhidas ao peito, seus braços as
envolvendo, enquanto parece perdido em pensamentos.
Espero o quebrar de três ondas para me fazer presente, tocando seus
ombros.
Seu corpo se sobressalta levemente, mas logo o sorriso bobo toma conta
do seu rosto.
— Oi — sussurro, me sentando ao lado dele.
— Oi. — Gui me abraça e deito a cabeça em seu ombro. — Como foi
seu dia?
— Cansativo, mas bom. E o seu, curtiu Jeri?
— Passei o dia naquelas redes dentro d’agua, minha bunda tá toda
enrugada.
— Deixa eu adivinhar, lendo?
— Uhum, eu tô terminando um mangá. — Ele puxa um pequeno livro
da sua lateral, me mostrando.
— E é bom?
— Não faz muito meu gênero, mas até que é legal.
— Hum…
Suspiro, aproveitando a brisa mais gélida. Isso é bom para acalmar.
— Você tá muito calada, aconteceu alguma coisa?
Alguma? Aconteceram várias. E todas referentes a você.
— Posso ser sincera?
— Achei que sempre fosse.
— Eu não costumo mentir, mas isso não quer dizer que eu não esconda
algumas coisas que penso.
— Então vai, seja sincera… você pode confiar em mim.
Suspiro, me aconchegando mais à sua lateral.
— Eu estou preocupada com o fim da viagem.
O corpo dele tensiona.
— Com o que exatamente?
— Com o fato de você ir embora e a gente nunca mais se ver.
Admito de uma vez e João Guilherme segura meu rosto com as mãos
quentinhas, me obrigando a encarar o azul das suas íris, pintados de
pequenos pontos pretos.
— Por que tem que ser assim? — a voz dele denota a mesma agonia que
sinto por dentro. — A gente nem mora muito longe, ainda podemos nos ver.
Nego com a cabeça.
Não me faça acreditar que você vai se importar comigo depois que essa
viagem acabar, Honey.
Na vida real, mulheres como eu não são as que você apresenta para a
família. Sou a que você esconde da própria esposa. Ao menos foi assim a
minha vida toda. A porra da segunda opção que transa bem e te faz rir, mas
não é digna o bastante para ser assumida.
No começo, eu achei que era um problema exclusivo dos caras. Depois,
eu achei que o problema fosse comigo. Talvez por eu nunca ter aberto o
livro da minha vida para nenhum deles, ou eu viver como uma adolescente
de vinte e sete anos em busca de recuperar a criança que não pôde ser. Mas
seja como for, culpa deles ou minha, no final todos foram embora.
Estou acostumada a ver o amor como isso. Algo a se passar na minha
vida, mas nunca ficar.
Ou melhor, amor não, porque nunca o senti.
Digamos que eu sou “a garota antes de você”, aquela que apenas
guardou a cadeira para quando chegasse a hora de a verdadeira dona ocupar
o lugar.
Eu só saí inteira de todas as partidas, porque nenhum deles abriu a porta
da minha vida e saiu dignamente. Ao contrário. Mesmo com ela
destrancada, preferiram arrombar com traições e mentiras. É por isso, que
eu nunca chorei por eles. Porque não se chora por quem escolhe te ferir.
— Você vai estar ocupado com a própria vida quando sair daqui. —
Tento não demonstrar a mágoa na minha voz. Ele não tem responsabilidade
com o que outras pessoas causaram. — Eu já não vou ser mais sua fonte de
entretenimento.
— Pérola... — Gui comprime severamente as sobrancelhas. — Nunca
mais diga isso. Nem aqui e nem quando esse cruzeiro acabar, você não é
apenas uma fonte de entretenimento. Eu nunca te tratei assim, por favor não
haja como se eu tivesse.
Acaricio seu cenho para que ele o relaxe.
— Eu não disse que você tratou. Mas já ouviu falar em romances de
carnaval? É basicamente o que está acontecendo aqui. O clima dessa
viagem é propício para romance, mas quando a vida real retomar aos eixos,
você estiver na sua casa, com seu noivo, seu trabalho, seus amigos… eu
vou ser uma lembrança boa. — Forço um sorriso. — E tudo bem, eu quero
que você lembre de mim com felicidade. Meu medo é só não conseguir
tornar você apenas uma lembrança.
— Não torne. — Ele une nossas testas, descendo as mãos para meus
ombros, braços e costas, em uma necessidade de me tocar que ameaça
arruinar minhas barreiras. — Eu não quero ser só uma lembrança na sua
vida. Não importa que seja boa ou ruim, lembrança é passado e ninguém
vive nele por tempo o suficiente.
Fecho os olhos, tentando ignorar o que suas palavras fazem com as
borboletas no meu estômago.
Empurro as pernas dele para baixo, subindo em seu colo, com uma
perna de cada lado do seu quadril. Os braços dele me envolvem tão
rapidamente, que a impressão que tenho é que Gui pensa que sairei
correndo daqui a qualquer momento. Seus dedos se estreitam em minha
cintura e acariciam o desenho de sereia.
Como vou deixar outra pessoa a tocar, se nenhuma vai ter tamanha
devoção?
Como eu sequer vou conseguir olhar essa tatuagem sem lembrar dele?
Fuço o pescoço de João Guilherme com a ponta do nariz, aproveitando
a sensação da sua pele se arrepiando ao meu toque.
— Você quer que eu só chame a você de Honey, quer que eu te
considere mais que uma lembrança, mas é você quem vai embora e eu que
vou ficar nesse navio vendo seu fantasma pelos corredores. Não parece
justo.
Sinto seu suspiro em meus ombros.
— Eu sei. Mas eu não estou conseguindo pensar logicamente agora. Eu
só sei o que eu quero.
Balanço a cabeça.
— E o que você quer? De verdade?
— Você. Eu quero você.
Minha respiração trava no meio da garganta.
Não se emocione, Pérola.
Me querer não necessariamente quer dizer que está apaixonado. Só quer
dizer que gosta de mim o suficiente para aproveitar a minha companhia. Eu
sou uma pessoa muito legal, as pessoas querem ficar perto de mim. Mas
preciso me lembrar que elas nunca permanecem tempo demais.
Enfie isso na sua cabeça!
Me afasto do seu ombro para o olhar.
— Você me quer, porque não conhece muita coisa sobre mim. — Sorrio,
acariciando suas maçãs do rosto. — Eu só te mostrei as partes boas. Não se
esqueça que sombra e luz são apenas dois lados da mesma moeda. Eu te
mostrei a iluminada e feliz, mas tem um ladinho sombrio nela também.
Gui maneja a cabeça negativamente e afasta os cabelos que voam pelo
meu rosto.
— Acha que vou gostar menos de você se tiver defeitos? — ele ri
consternado. — Pérola, eu estou esperando desesperadamente para me
mostrar alguns e eu começar a acreditar que você é real e não um ser
mitológico que eu criei na minha mente.
Engulo a saliva.
Oh, nerdzinho bom com as palavras. O universo fez esse homem tímido,
porque se não fosse, teria uma fila de mulheres atrás.
Tô me sentindo a Lupita tentando resistir ao Santos.
— Eu não acho que você vai gostar menos de mim — explico,
esperando que não refute minha lógica. Não tive muito tempo para formular
uma defesa contra os encantos desse bigodudo. — Mas no meu dia a dia
fora do navio, eu não sou tão interessante quanto aqui. Lá tem os boletos
para pagar, os problemas de adultos, família…
— Então me conte — ele me interrompe. — Me conte sobre seus
boletos, seus problemas de adulta, sua família, seus amigos, sua infância…
eu quero saber tudo. E acredite, isso não vai te tornar menos interessante.
Só vai me dar um pouco mais de esperança de que posso estar na sua vida
sem ser completamente deslocado. — Seu polegar penteia minhas
sobrancelhas. — Confia em mim, me deixa te conhecer.
Confiar... você tem noção do que está me pedindo, Honey? Eu nunca
confiei em ninguém além de mim mesma. Nunca tive essa chance. Bom,
exceto Manu. Ela foi a minha única exceção até o momento. E abrir mais
uma para ele, vai provar pro meu coração que é alguém importante demais.
Mas quer saber? Eu acho que meu coração já sabe disso.
— Tudo bem, eu vou te contar tudo — me rendo, decidida a me abrir
para alguém ao menos uma vez na minha vida. Eu não preciso ter medo que
ele vá embora, porque isso vai acontecer de qualquer jeito. Não tenho nada
a perder, que já não seja meu mesmo. — Mas adianto que a história da
minha vida não é tão feliz quanto eu sou.
— Seu passado não vai me assustar mais do que você já me assustou
nesses dias, maluquinha. Confia em mim, eu ainda estarei aqui no final da
história.
Finjo que suas palavras não me atingem. Mas elas o fazem. Porque no
fundo, quero acreditar. Preciso acreditar que alguém vai ficar.
— Ok, então...
Giro no seu colo, deixando minhas costas coladas ao peito dele,
sentindo seu coração contra minha pele. João Guilherme não abre mão de
ter seus braços ao meu redor, afastando as pernas para que eu me encaixe no
meio delas, me ladeando de todas as formas. Eu o sinto até nos malditos
poros.
Pisco para o mar, indecisa. Nunca fiz isso antes, nem sei como explicar
quem eu sou.
— Começo por onde?
— Que tal pela sua infância?
Ah, a pior parte? Ok.
— Desde que eu me entendo por gente, meu pai bebia muito. — Talvez
Gui espere que eu conte coisas bonitas, mas infelizmente não há muitas
histórias felizes dessa época. — Ele não tinha uma família bem estruturada,
os pais eram pessoas realmente terríveis. Ele tinha uma irmã mais nova,
mas ela foi expulsa de casa depois de engravidar cedo. Descobri anos
depois que tenho quatro primas com nomes de joias como eu… às vezes eu
vejo as redes sociais delas, mesmo que não façam ideia da minha
existência. Acho que eu gosto de pensar que elas também são parte do meu
pai, da minha família.
— Por que não fala para elas quem você é? — sussurra, fazendo um
carinho gostoso nos meus braços.
Encolho os ombros.
— Quando a mãe delas foi expulsa, meu pai já tinha sido antes. Ele
ficou sabendo, mas não fez nada para ajudar e sentia remorso por ter
abandonado a irmã, já que eram muito próximos na infância. Não quis me
colocar na vida dela para ser uma lembrança do irmão que nunca a ajudou.
— Como vocês tem nomes de joias se eles não se falavam mais? Foi
coincidência?
Nego com a cabeça, sorrindo ao me lembrar do nascer do sol do dia que
meu pai me contou essa história.
— Os pais deles realmente eram pessoas amarguradas, então sempre
diziam palavras cruéis aos filhos. Quando eles eram adolescentes,
prometeram que dariam aos seus filhos nomes de pedras preciosas, para que
sempre se lembrassem do seu valor. Eles queriam ser os pais que não
tiveram… essa minha tia deve ter conseguido, pelo que vejo. Já meu pai…
— suspiro. — Ele tentou. Realmente tentou.
Engulo o nó que se forma na minha garganta.
É, eu sei que ele fez o que podia.
— Isso é bonito… e triste.
— Concordo.
— E como ele conheceu sua mãe?
— Bom, quando meus avós o expulsaram, ele se mudou de Brasília para
São Paulo. A minha mãe estava trabalhando na rodoviária de lá
temporariamente e ela me conta que quando o viu descer do ônibus em um
dia de chuva, ela se apaixonou à primeira vista. — Engulo a saliva,
abraçando os braços de Gui ao meu redor. — Sabendo tudo que ela passou
por ele, eu gostaria muito que tivesse olhado para outro lado naquele dia.
Talvez ela tivesse sido feliz.
— Mas você não existiria. — Ele beija meu ombro. — Seja como for,
agradeço sua mãe por ter olhado para o seu pai naquele dia de chuva.
Sorrio, querendo correr para longe dele, ao mesmo tempo que o
implorar para ficar.
Tomo uma longa respiração antes de continuar.
— Eles começaram a namorar em uma semana e com um mês já
estavam morando juntos. A vida em São Paulo não era tão fácil e mamãe
estava lá apenas temporariamente, já que a empresa de transporte oficial
que ela trabalhava era no Rio. Eles vieram para cá e ficaram morando na
zona leste, quando engravidaram de mim depois de seis meses de
relacionamento.
Parando para pensar, meus pais foram intensos demais em seu
relacionamento. Talvez eu tenha tanto medo de me apegar as pessoas por
isso. Prefiro as considerar passageiras do que as colocar num papel da
minha vida onde não consiga as tirar depois. Foi assim com minha mãe. Ela
nunca conseguiu afastar meu pai.
— Sua mãe que sustentava vocês?
— Sim. Meu pai fazia uns bicos aqui e ali, mas sempre perdia o
emprego porque bebia no horário de almoço e esquecia de voltar depois.
— E com quem você ficava? — há preocupação na voz dele.
Bufo uma risada.
— Comigo mesma. — Dou de ombros. — Mamãe não tinha dinheiro
para contratar uma babá. Até os três anos eu ficava com uma vizinha, mas
então ela se mudou e mamãe precisou me deixar em casa sozinha. Ela
ligava a tevê, colocava um DVD pirata dos filmes da Barbie para eu assistir
e tirava o cano do gás do fogão para eu não colocar fogo na casa.
— Como você comia?
— Ela deixava pão com mortadela e suco de laranja de pozinho
dissolvido na água em cima da mesa. — Ainda consigo me lembrar do
sabor daquele pão. Era simples, mas acho que nunca comi nada tão bom. —
Quando sobrava um pouco mais de dinheiro, ela também deixava aquelas
moedas de chocolate para eu comer. Eu sempre comia metade e esperava
meu pai aparecer para comer o resto.
— Por que ele? — sua dúvida é válida.
— Porque doce o deixava menos bêbado.
Gui me aperta mais contra si.
— Eu sinto muito, Pérola.
— Não sinta. Pode parecer triste, mas eu encontrava uma razão para ser
feliz com os gestos da minha mãe mesmo na ausência e nos poucos minutos
que via meu pai conseguindo enxergar apenas uma de mim.
Paro de falar por alguns instantes, deixando o sentimento que quer
irromper minha garganta, voltar para o lugar. Gui me deixa ir no meu
tempo.
— Eu fui crescendo e ficando independente. Cuidava da casa, ia para a
escola, fazia minhas tarefas… até que mamãe foi promovida e nossa vida
melhorou muito. Ao menos no sentido financeiro. Nós nos mudamos para
uma casa melhor, que minha mãe conseguiu financiar e eu também vendia
doces e pulseiras na escola para ajudar. Ela nunca aceitou o dinheiro, mas
papai sempre o achava guardado nas minhas coisas. Bom… você deve
imaginar para o quê ele o queria.
O corpo de João Guilherme estremece.
— Você tem raiva dele?
— As pessoas acham que eu deveria ter…, mas não tenho. Eu tenho
pena, porque ele podia ter sido muito feliz.
— Desculpa, Pérola. Mas eu estou com muita raiva dele agora.
Entrelaço meus dedos aos seus.
— Eu entendo.
— Como pode falar dele com esse carinho na voz?
— Porque quando era o meu pai falando no lugar da bebida, eu me
sentia como uma princesa protegida, que nada no mundo poderia me abalar,
porque eu tinha o meu príncipe ali. Meu pai sempre era o príncipe nas
minhas histórias. O que me salvaria de cavalo branco de todos os perigos.
— Mas ele não foi, não é?
Nego com a cabeça.
— É por isso que eu parei de acreditar em contos de fadas. E em
príncipes. E em cavalos brancos. Mas principalmente, parei de acreditar em
mim como uma princesa. Eu entendi que eu precisava ser como uma sereia,
porque ela se salvaria sozinha ao final do dia. Era ela quem arrastaria para o
fundo do oceano quem ousasse feri-la.
— Por isso a tatuagem?
— Uhum. Essa sereia é meu lembrete diário de que eu estou sozinha no
mar e que preciso fazer o que for preciso para sobreviver nele.
— Você não está sozinha, tem a Manu… — Ele engole a saliva
audivelmente. — E tem a mim, também.
— Só não sei por quanto tempo — confesso. — A vida é um sopro,
Gui. Em um momento as pessoas estão aqui e no outro já não estão mais.
No fim, só nos resta a nós mesmos. E pode parecer triste pensar assim, mas
na verdade foi isso que me salvou em todos os momentos. Porque eu nunca
depositei em ninguém a carga de me fazer feliz. Eu segurei a tapeçaria da
minha vida com as unhas e a obriguei a me entregar a felicidade que eu
merecia.
— E ela entregou?
Sorrio, girando meu rosto o suficiente para ver o dele.
— Você está aqui comigo agora, não é? — Selo nossos lábios em um
beijo rápido. — Então sim, ela entregou. De tempos em tempos a vida me
presenteia. Primeiro foi a Manu, depois o tantra e agora você.
O rosto dele fica ruborizado e consigo enxergar mesmo na penumbra da
noite iluminada apenas pelas estrelas e lua cheia.
— Como foi quando seu pai faleceu?
João Guilherme sempre muda de assunto quando o elogio vai em sua
direção… como pode esse homem não se enxergar? Minha vontade é
segurá-lo pelos ombros até que entenda seu valor.
— Mamãe e eu sempre esperávamos receber essa notícia. Sempre que
ele passava dias fora de casa, a gente congelava quando o telefone tocava.
Mas não foi como esperávamos. Meu pai faleceu de cirrose. Não de um
acidente, de uma briga, não na mão de policiais… isso já foi um alento. Ele
faleceu uma semana antes do meu aniversário de 15 anos, no hospital.
Inspiro e solto o ar devagar antes de continuar.
— Minha mãe tinha dado tudo de si para fazer uma festinha simples
para mim e até me deu a opção de manter tudo, mas não podia fazer isso
com ela enquanto seu mundo desabava. Eu desconvidei todas as minhas
amiguinhas e aprendi que na vida, um sorriso fingido ainda é um sorriso. Eu
o coloquei no rosto e cantei parabéns apenas com minha mãe do lado,
comendo o bolo até lamber os dedos e mostrei a ela a garota mais feliz que
o mundo poderia ver… mesmo que naquele dia, eu não tivesse meu pai para
dançar a valsa ao meu lado. Desde então, eu sou sempre a mulher mais
sorridente do lugar, porque se as pessoas me veem assim, eu também
acredito que sou.
Pigarreio, esfregando o rosto em meu ombro para limpar a lágrima que
escorre depois da fala de Pérola. A seguro tão forte contra mim, que acho
que ninguém conseguiria tirá-la dos meus braços.
— Eu queria ter estado lá. Eu teria dançado a valsa com você.
Pérola brinca com os dedos da minha mão.
— Você dançou. — Ela me corrige. — Me comprou um vestido lindo,
digno de uma princesa, e dançou lentamente comigo ao som de “jeito
moleque”, mesmo que estivéssemos totalmente fora de ritmo. Pode não ser
a música que a Pérola de quinze anos escolheria, mas a Pérola de vinte e
sete não mudaria nada.
Acho que nunca fiquei tão grato por gastar dinheiro como me sinto por
ter comprado aquele vestido.
— Você estava linda. — Beijo seus cabelos. — É linda.
— Eu estava mais que linda.
Rio da sua falta de modéstia.
— Mas falo sério, eu gostaria de ter te conhecido antes — admito.
— João Pedro falou a mesma coisa.
— Que queria ter te conhecido antes? — O sem vergonha tá dando em
cima dela nas minhas costas?
— Não! — Pérola gargalha. — Ele disse que queria que você tivesse me
conhecido antes. Não entendi o porquê disse isso, mas foi o que aconteceu.
Ah… ufa. Não vou precisar colocar pó de mico na cueca dele.
— Isso quer dizer que ele gosta de você… — esclareço. — JP não
gostava nem um pouco da minha ex, então se falou isso, realmente é
verdade.
— Mas ele devia não gostar dela porque gostava de você.
Faço careta. Eu tenho que colocar fim a essa mentira. Se tornou
insustentável. Só preciso achar um jeito de contar sem que ela me odeie.
— Não, Pérola. Ele só nunca gostou dela mesmo. E fico feliz que ele
goste de você… isso é importante.
— Eu aprendi a gostar do Corinthiano também — dá uma risadinha.
Apoio o queixo no seu ombro, observando as ondas quebrarem,
sentindo o cheiro da maresia misturado ao perfume da mulher que roubou
todos os meus pensamentos para si.
Como seria ter ela como namorada? Como seria poder sair com ela e
meu melhor amigo e os dois realmente se darem bem? Como seria ter
alguém que se interessa pelos meus assuntos? Como seria estar com alguém
que eu admire ao ponto de me reverenciar? Como seria estar com alguém
que me sinto completamente livre e aberto a ser eu mesmo? Como seria
ficar com alguém que faz meu coração arrebentar o peito e ao mesmo
tempo meu pau estourar a braguilha da calça?
Parece superficial, mas ela me faz senti-la em tantos sentidos ao mesmo
tempo, que me sinto como uma concha: feito para envolver uma pérola.
— E a Manu, como você a conheceu e começou a trabalhar no navio?
Gosto de ouvir ela falar. Gosto de saber sua história. De a conhecer um
pouco mais.
— Minha mãe não aceitou que eu não fizesse faculdade, então comecei
a fazer arquitetura. Fiz quatro semestres, quando nesse último conheci
Manu. Ela estava no segundo semestre de direito. Nós ficamos amigas
porque minha menstruação vazou e ela me ajudou naquele dia. Começamos
a sair juntas e o pai dela trabalhava com terapias energéticas. Eu me
interessei pelo assunto depois que ele fez o reiki [45]em mim e fui pesquisar
sobre essas áreas. Descobri o tantra e comecei a fazer os cursos escondida
da minha mãe.
— Sua história é tão mais legal que a minha. — Coço a nuca. — Agora
parece que eu nem vivi.
— Isso porque você não ouviu nem a metade — ela gargalha divertida e
fecho os olhos para aproveitar o som gostoso. — Quando eu consegui um
estágio em uma clínica de massagem, fui até a faculdade e tranquei o curso.
Mamãe ficou doida, brigamos feio naquela época. Ela é pessimista demais e
achava que tudo ia dar errado se eu não seguisse seu plano. Não posso
culpá-la, ela sofreu muito, mas era difícil viver com alguém que só falava
de problemas, de contas, de desastres, de coisas que davam errado… e não
importava o que eu fazia, ela não conseguia ver a vida com outros olhos.
Então eu decidi que deveria me mudar.
— Foi com a Manu?
— Sim. Fomos até o banco e pedimos um empréstimo para comprar o
apê. Ele parece uma lata de sardinha, mas Manu e eu somos apaixonadas
por aquele lugar. — Pérola suspira. — Passei um ano sem falar com a
minha mãe por isso, ela não aceitava o rumo que eu estava dando na minha
vida. Depois desse tempo, eu vi que não podia sentir raiva dela. Tudo que
ela via, da forma como via, foi a vida que a obrigou a ser assim. Ela já tinha
perdido o homem que amava e não era justo que eu saísse de sua vida
também. Então eu liguei para ela e disse que mesmo que ela não quisesse
mais saber de mim, eu queria saber dela.
— E surtiu efeito?
— Sim. Ela foi até meu apartamento, levando uma torta de frango com
catupiry e nós choramos abraçadas o dia inteiro, com Manuela no meio. —
Ela ri ao se lembrar da cena. — Ainda não consigo ficar muito tempo perto
dela, porque mamãe continua sendo uma mulher extremamente negativa,
mas nós temos uma relação boa. Eu parei de tentar mudá-la e ela tenta me
criticar o menos possível.
— Mães sendo mães… — Jogo os ombros. — Só muda de endereço.
— Realmente.
— E o navio?
— Ah, isso foi engraçado. — O corpo dela balança com a risada e me
pego querendo rir antes mesmo de saber a história. — Manu e eu estávamos
indo para o shopping aproveitar a promoção do dia no Subway e um cara
nos parou para oferecer um emprego. A gente pensou que era reunião da
Hinode, mas era a empresa de turismo precisando de gente para trabalhar de
camareira. Ficamos duas edições como camareiras e assim que eles
implantaram a Sara no navio, também subiram Manu e eu para esses cargos
que estamos hoje.
— Minha mãe já caiu nesse esquema de pirâmide — conto. — Quando
JP e eu descobrimos, quase choramos de rir, porque ela realmente achou
que ficaria milionária.
— Eu imagino, já fui em uma dessas reuniões. Quando a gente tem um
empréstimo do banco para pagar, infiltração no teto do apê e IPTU,
tentamos de tudo pra ganhar um dinheirinho extra.
Esfrego o rosto no vão do seu pescoço, como um gato querendo ganhar
espaço e beijo demoradamente a tez da região.
— Obrigado por me contar sua história. E só pra saber, ficou ainda mais
interessante pra mim.
— Por que tive um passado sofrido? — ela zomba. — Você é do tipo
que gosta de personagens fodidos nos filmes?
— Não. — Bato na ponta do seu nariz quando Pérola se vira para mim.
— Ficou mais interessante porque apesar do que você já viveu, continua
sendo uma pessoa incrível. Continua sendo alguém que irradia felicidade,
que nos deixa leves, a vontade… não sei de onde você tirou forças para ser
como é, mas agradeço por ter conseguido. Me faz pensar que eu também
posso.
— Mas você pode. — Beija meus lábios. — Não duvide disso.
— Depois de você aparecer na minha vida, eu não duvido de mais nada.
— Sorrio ladino. — Acredito até mesmo em sereias.
Pérola não tarda em unir sua boca à minha, dessa vez em um beijo
demorado e longo. Nós nos deitamos na areia agora gelada da praia, nos
braços um do outro, ora se beijando, ora conversando sobre o passado, ora
em silêncio observando as estrelas... até que o novo dia comece a dar sinais
no horizonte, tomando nossa visão com os tons de alaranjado.
— Quer voltar para o navio? — sussurro sobre seu cabelo, enquanto ela
se deita no meu peito.
— Eu vou ficar para ver o nascer do sol… sempre acordo cedo para ver.
— Por algum motivo? — esfrego seus braços que se arrepiam por uma
brisa que passa por nós.
— Papai assistia ao nascer do sol comigo. E mesmo cheirando a Velho
Barreiro, são as minhas melhores lembranças com ele.
Velho barreiro? Então é por isso que…
Fecho os olhos, a abraçando mais forte.
— Vou ficar com você até o sol nascer completamente.
Sinto um beijo dela no meu peito.
— Então agora a presença do sol vai representar os dois homens que
mais gostei e que tiveram que me deixar cedo demais.
Não ouso abrir minha boca até que ela possa ver o levantar do sol
através do mar, ascendendo até resplandecer acima do oceano. Quando sua
trajetória tem fim, decido que é a hora de contar a verdade. Ela tem que
saber que eu não preciso deixá-la.
— Pérola…
Minha voz é interrompida pelo alarme do navio, anunciando que os
passageiros devem retornar a ele.
Pérola se ergue, limpando seu corpo da areia, estendendo a mão para
mim.
— Vem, Honey. Precisamos voltar. — Seu sorriso é feliz…, mas seus
olhos são tristes ao mesmo tempo. E depois da sua história, eu sei… ela está
sorrindo para se convencer de que está bem.
Seguro sua mão.
E a deixo me levar para o navio.
Ainda sem a verdade.
Antes…
Eu vou matar o Joca.
Aquele infeliz desalmado me mandou em uma missão quase impossível
em busca da fantasia que ele queria. E com isso, eu tive que pegar um carro
de aplicativo duvidoso e visitar não uma, não duas, mas três cidades
vizinhas para achar a porcaria da roupa que ele queria.
Alerta de spoiler: não achei.
Como ele queria encontrar uma fantasia de Shikamaru em
Jericoacoara?! Até em São Paulo seria difícil de achar essa merda, que dirá
em uma vila pequena. O que me conforta é saber que ele vai vestido de
Chaves. O que me desespera é saber que eu vou vestido de Kiko.
Foram as menos ruins que eu achei.
Eu ia brigar com ele assim que chegasse aqui, mas aí o vi de longe na
praia com a Pérola e desisti. O cara merece ser feliz por mais esses dias.
Não sei como vai ser quando voltarmos para São Paulo.
Até que o Joca lidou bem com o término com a Olívia; fora o consumo
exagerado de carboidrato e os papos de corno manso, ele sobreviveu. Mas
com a Vascaína é diferente, ele gosta dela e ela também gosta dele, do tipo
gostar mesmo e não estar junto só pra não ficar só. Não quero nem pensar
no clima de merda que vai ficar aquele apartamento, principalmente porque
vamos ter que lidar com todo mundo sabendo a verdade sobre o casamento.
Ainda fico puto de pensar que ele não contou a verdade para a tia Das
Dores.
A porta da cabine é aberta vinte minutos depois de eu entrar, e nem me
dou ao trabalho de tirar a cara do travesseiro.
— Achei que você fosse ficar mais tempo com a Pérola. Estavam tão
agarradinhos lá na praia, me deu até sede de tanto doce.
— Sou eu, Zé Mané.
Dou um pulo na cama, me virando ao escutar a voz da Valentona.
Encontro Manuela me encarando debochada, provavelmente muito contente
da minha reação.
— Quer me matar de susto?
— Te matar sim, de susto não.
— O que você quer, Manuela? Dormir abraçadinha de novo? — ela
pode achar que eu não lembro de nada da noite que cuidou de mim depois
de irmos àquele bar em Recife, mas eu me lembro de tudo.
Manuela me levou para o banheiro, me deu banho, me ajudou a colocar
uma roupa limpa e me abraçou até Joca voltar para o quarto com o dia
quase amanhecendo. De vez em quando, ela sussurrava um pedido de
desculpas ao meu ouvido, mas essa última parte não sei se foi fruto da
minha imaginação ou se foi real.
Seja como for, não toquei no assunto.
Não toquei, porque ela negaria até a morte e eu prefiro ter alguma
recordação dela sendo a garota que conheci na biblioteca anos atrás por
mais algum tempo.
— Dá pra parar de gracinha? Eu vim aqui para falar da Pérola e do Joca,
não da gente. Não que existe “a gente”, mas você entendeu.
— Então fala de uma vez e vai embora porque eu estou cansado.
— Que cavalheiro — debocha, se sentando na ponta da cama.
— Precisa mesmo sentar?
Eu não gosto de ficar perto dela quando estou sozinho.
Na verdade, eu não gosto de estar perto dela em momento nenhum.
— Escuta, a gente precisa ajudar Peroca — ela ignora minha pergunta.
— Peroca? Quê?
Seus olhos reviram.
— Pérola e Joca... Peroca.
— Isso parece outra coisa, Valentona.
— Foda-se o shippe deles, tô dizendo que a gente precisa ajudar os dois
a ficarem juntos.
Estreito os olhos, segurando o sorriso.
— Por que eu ajudaria sua amiga a ficar com meu noivo? — é agora
que eu vou te fazer sofrer um pouco com isso, sua cascavel.
— Ah, é... você não sabe que eu... droga. – Manuela discute consigo
mesma e cruzo os braços, apreciando sua gafe.
— Eu não sei o quê? Que a Pérola tá apaixonada pelo cara com quem
vou me casar?
— Faça-me o favor! Como consegue mentir tão descaradamente?
— Mentir? — levo a mão ao peito. — Mentir sobre o quê?
Vamos, Manuela. Diga de uma vez que sabe de tudo.
— Não se faça de sonso.
— Talvez eu seja sonso.
— Não, esse posto é do seu amigo e não seu. Você é um babaca, otário,
mauricinho, playboy, metido, creti...
Antes que ela termine sua sessão de xingamentos, eu me ergo da cama,
segurando seus ombros e a puxando para mim. Seu corpo pequeno colide
contra o meu em um choque mudo e Manuela espalma a mão no meu peito,
arfando e me olhando assustada.
— O que tá fazendo? — arqueja, suas íris intercalando entre meus olhos
e minha boca.
Expresso desdém, erguendo os ombros.
— Te dando a chance de continuar sua lista de xingamentos olhando nos
meus olhos, como a mulher cruel que você gosta que as pessoas acreditem
que é. — Sorrio amargurado. — Não tem ninguém aqui para te assistir ser
uma vaca do caralho, então apenas pare de atuar, Manuela. Ou será que nem
na minha frente consegue mais mostrar a pessoa aí dentro desse
personagem?
Ela pisca aturdida, seus lábios se movendo à procura das palavras.
Minhas mãos em seus braços passam para seu rosto, não a deixando desviar
nossos olhares.
— Você não consegue, não é? Não consegue dizer essas coisas olhando
dentro dos meus olhos, exatamente como não conseguiu naquele dia no
pátio daquela escola de merda. Até sua brilhante atuação tem um limite.
Vejo o maxilar dela travar de raiva e suas mãos se fecham sobre minha
regata, me puxando para mais perto. Seus olhos, tão claros que é difícil
definir a coloração, uma combinação perfeita entre azul e verde, me fitam
raivosos e coléricos.
— Eu odeio você. — Diz pausadamente.
Sorrio com escárnio.
— Eu também odeio você. Pra caralho. Mas me odiar só prova que você
não acha nada dessas coisas que fica dizendo. Você me odeia porque eu te
vi de verdade e por algum motivo tem raiva disso. Raiva de mim.
Eu vejo sua pose vacilar, mas não sinto pena.
Ela também não sentiu de mim.
Me afasto, dando dois passos para trás, não confiando em meu próprio
controle perto dela. Não devia, mas Manuela me atrai como um maldito
ímã.
— Fala de uma vez o que veio dizer, com todas as letras e para de me
enrolar.
A observo ofegar e se recompor, aos poucos recolocando sua máscara
de frieza e deboche.
— Eu sei que você e o Joca não estão juntos de verdade.
Assinto, entediado.
— E o quê mais?
— E que ele está gostando da Pérola.
— Parabéns... – bato palma. — Você continua muito inteligente.
— Chega de ironia, merda. Nós estamos falando de duas pessoas legais
e não de dois bostas como nós.
Dessa vez, é a minha pose que se perde. Quer dizer então que agora eu
me equiparo a ela? Só pode ser piada.
— O que você quer que eu faça? Dê uma de cupido? — arqueio a
sobrancelha.
— Quero que a gente pague o preço da aposta perdida.
Franzo o cenho.
— No quarto de voyeur? — Ela bebeu? — No que isso vai ajudar
aqueles dois?
— Escuta, eles ainda não chegaram aos finalmente na cama depois
daquela noite do acidente, e eu sei que é porque a Pérola acha que você vai
se importar.
— Mas eu já disse a ela que não me importo.
— Ela só vai acreditar se ver que você é tão livre para fazer as coisas
como o Joca é.
— Espera! — Ergo a mão. — Você tá querendo que a gente transe
naquela sala com paredes vidro para ela e o Joca poderem foder de verdade
de uma vez? É isso?
— A gente não vai transar! — Joga seus cabelos para trás com ar de
superioridade. — Eu nunca transaria com você. A gente só... se pega.
Depois de começarem, Pérola e Joca vão estar ocupados para perceberem
que não fizemos nada demais.
Não ouvi mais nada depois que Manuela falou para a gente se pegar.
Meu cérebro simplesmente recusou todo o resto e rebobinou a fita para
aquele dia chuvoso na escola.
Lembro da biblioteca ficando escura com a queda de energia.
Lembro de como nós fomos nos aproximando gradativamente.
Lembro da sensação do primeiro toque dos nossos lábios.
Lembro da textura da boca pequena sumindo entre a minha.
Lembro das suas mãos no meu cabelo e de como seu hidratante labial de
cereja era gostoso.
Só que também me lembro da forma como Manuela correu de lá, me
deixando sozinho no chão frio. E de como tudo virou uma merda depois
disso.
Mas ainda assim, eu a beijaria. Mesmo que soubesse de tudo naquele
dia, eu ainda a beijaria. E beijaria agora, mesmo sem o pretexto de ajudar
nossos amigos.
Porque... porque eu a odeio pra caralho, mas essa mulher me
enlouquece. Me enlouquece de raiva, de medo, de decepção... e de desejo.
Não dá para mentir para mim mesmo. Eu a desejo como nunca desejei
nenhuma outra mulher na minha vida. Desde a porra da escola.
Para de olhar para a minha boca.
Desgraçado, para de me olhar assim!
Com raiva o bastante para me foder, e com desejo o suficiente para ser
do jeito bom.
Consigo ver sua língua se movendo pelo interior de seus lábios e
minhas pálpebras pesam sedentes para se fechar e recordar com riqueza de
detalhes do beijo que ele me deu na biblioteca.
Um beijo. Apenas um, nada mais que isso. E foi o bastante para me
deixar obcecada por anos.
— Um beijo? É isso que quer? É isso que vai ajudar nossos amigos? —
Ele dá um passo na minha direção e eu dou outro para trás. João Pedro não
para por aí, dando mais alguns até que eu esteja com as costas contra o
guarda-roupa.
Ergo o queixo para o enfrentar, nem um pouco disposta que ele perceba
que pode me abalar. Eu morro negando.
— Eu não quero beijar você, que fique claro. É só o que eu acho que é
necessário para os dois se acertarem.
Uma mentira do caralho.
Eu quero beijá-lo. E a forma como encara meus lábios, eu diria que ele
quer exatamente a mesma coisa. Para ser sincera, acho que nenhum de nós
dois nos importaríamos de foder contra esse armário.
João Pedro coloca uma mão de cada lado do meu rosto, aproximando-se
sorrateiramente, nossos narizes a um fio de se tocarem. Travo a respiração
na garganta, não querendo sentir seu aroma tão de perto.
— Você quer fazer um teste de compatibilidade antes? — ele inclina o
rosto, resvalando seu lábio contra minha bochecha. — Ou ainda se lembra
de como é meu beijo?
Fico em silêncio, me concentrando em proibir meu corpo de esboçar
qualquer reação ao dele.
— Hum? Ainda se lembra do sabor dos meus lábios? Do calor da minha
língua tocando a sua? Você ainda se lembra como eu lembro, Manuela?
Filho da puta, desgraçado.
A raiva sobe no meu corpo como água fervente.
Empurro seu peito para longe, passando a mão no pescoço para me
livrar do suor.
— Não preciso de teste de compatibilidade para saber que vou odiar
cada segundo que estivermos naquela sala. — Falo virada de costas, porque
nem mesmo se eu fosse uma atriz conseguiria esconder o que a lembrança
me causou. Sorte a minha não ter um pau para ficar duro, porque se tivesse,
estaria igual ao Joca.
— Como eu falei, você nunca consegue mentir olhando para mim — ele
se vangloria.
O tom vitorioso me deixa quente de raiva, mas sou obrigada a confessar
que ele tem razão.
Uma razão odiosa, mas tem.
— Fale com o Joca. — O ignoro. — Amanhã, depois do meu
expediente e da Pérola, o leve para a área vip.
Me encaminho para a porta, e estanco segurando a maçaneta quando
João Pedro diz uma última coisa.
— Você pode até odiar cada minuto, mas eu vou adorar descobrir se seu
beijo ainda consegue deixar meu pau babando, Lontrinha.
Fecho os olhos, não sabendo se o mando se foder ou se o faço me foder.
Lontrinha... ele me chamava assim na escola. João Pedro dizia que era
porque eu era perigosa e pequenininha.
Ergo o dedo do meio para ele, escutando sua risada ao passo que bato a
porta e corro de volta para a minha cabine, talvez para tomar um banho frio.
Ou me tocar pensando na primeira parte da sua fala.
Agora...
— Manuela, o que você tá fazendo? — Tento me livrar da sua mão no
meu braço. — Eu quero dormir, tô morrendo de sono.
— Só me acompanha, pode ser?
— Se você me falar para onde eu tenho que te acompanhar, facilita.
Além disso eu estou pelada, cacete.
— Você nem vai precisar de roupa para onde estamos indo — desdenha.
— Mas veste esse roupão aqui.
Ela joga o tecido felpudo em cima de mim e o visto sem entender nada.
— Como assim? Manuela seja clara! — A impeço de me tirar da nossa
cabine. Qual é, eu trabalhei o dia todo, só quero dormir. Ela se esqueceu
que eu passei a última noite em claro com o Gui na praia?
— A gente vai pra área vip para eu sofrer a penalidade por JP ter
perdido a aposta.
Estreito os olhos, desconfiada.
— Você não tá animada demais para alguém que tá chamando isso de
penalidade?
— Estou feliz porque você vai ter um momento legal com seu nerd.
Gargalho com essa.
— Eu tenho tido vários momentos legais com ele, mas você tá animada
justamente em um que vamos observar você e JP fazendo sabe se lá o que?
— Posso ser sincera? — ela move as mãos nervosamente.
— Eu agradeço se for.
— Eu preciso beijar ele e colocar um fim nesse “e se” da minha vida.
Preciso beijá-lo e perceber que não é nada demais, que essa idealização de
melhor beijo da minha vida foi apenas um sentimento criado por uma
adolescente boba.
Melhor beijo? Ela nunca me falou dessa forma.
— E se você comprovar exatamente o contrário? — fico preocupada. Já
basta uma iludida aqui.
— Não existe essa possibilidade — Manu cruza os braços.
— Cuidado para não se queimar brincando com fogo, Mônica.
— Magali, Pérola.
Ela não me dá mais chance para recusa, usando nossos atalhos para
chegar até o elevador de serviço. Dentro do cubículo, paro para pensar no
que estamos fazendo.
— Você sabe que os dois vão se casar, né? — Coço a cabeça. — Que
merda a gente tá indo fazer? Você vai pegar o noivo número um e eu o
número dois?
Manu dá de ombros.
— Mais ou menos isso. Quer desistir?
Ela me encara. Eu a encaro de volta.
— Não — a gente nega em uníssono.
Já que estamos no inferno, vamos abraçar o capeta.
Ou melhor, os nerds.
— Mãe, eu não acredito que você fez isso! — brigo com ela no
telefone, me encarando no espelho. Isso com certeza não se parece em nada
com a fantasia que eu pedi a ela para encomendar.
— Ficou linda, né?
— Mãe, isso aqui não foi o que eu pedi.
— Eu sei, mas eu lembrei que meu genro gosta dessa personagem e
achei que seria legal dar esse presente pra ele.
Reviro os olhos.
— Só que ele não tá aqui... e a senhora tá me dando de presente? Que
rapidez é essa em querer se livrar de mim?
— Você já tem vinte e sete anos, Pérola. Eu vou ajudar meu genro,
porque quero netos!
— Ah, meu cacete mesmo! Eu não vou mais deixar a senhora conversar
com a dona Das Dores.
Essas duas nos convenceram a passar seus telefones para que pudessem
conversar e desde então elas já planejaram meu futuro e do Gui com riqueza
de detalhes. Ao que parece, vamos nos casar daqui um ano em Paris, ter um
casal de gêmeos, morar seis meses em São Paulo e seis meses no Rio, e não
menos importante, deixar as duas escolherem os nomes dos bebês.
Eu tive vontade de pular da ponte.
Gui por pouco não desmaiou.
— Para de resmungar só porque está vestida como a personagem
favorita do seu namorado.
— Mãe, a gente nem é namorado. Nunca houve um pedido.
— E precisa?
— Sim? Tá me achando com cara quê? Sem pedido, nada feito.
— Ah, como você dificulta, Pérola.
— Mãe, na verdade pra ele eu facilitei. Dei na primeira noite.
— Ai, tchau. Não quero saber da sua vida sexual.
Ela desliga na minha cara.
Me encaro no espelho, vestida de Temari, imaginando que João
Guilherme bem que me pediria em namoro se me visse assim. Tenho que
lembrar de tirar uma foto e mandar para ele.