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Um tratado sobre a

CODEPENDENCIA

Por Guilherme Leopoldo Gomes


Belo Horizonte 2023

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Os dependentes químicos engendram uma complexa estrutura, tecendo uma
teia intricada de manipulações que envolve pessoas ao seu redor para
fomentar seu estado de consumo das substâncias às quais estão subjugados.
Cada indivíduo que é submetido a essa influência age como uma engrenagem
nessa maquinaria arquitetada. Tomemos, por exemplo, a mãe cujo temor é
habilmente explorado pelo dependente químico para obter o dinheiro
necessário à aquisição da droga. Nesse cenário, podemos discernir que a mãe
se torna parte dessa engrenagem, sustentando ou, mais apropriadamente,
facilitando o estilo de vida do dependente em uso.

Quando o indivíduo afetado por esse vício consegue estabelecer uma dinâmica
de vida dessa natureza, a probabilidade de abandonar o uso torna-se escassa,
pois nada perturba sua aparente tranquilidade. Ele foi bem-sucedido na
construção de uma máquina cujas engrenagens trabalham em harmonia,
assegurando a continuidade do seu padrão de uso. No entanto, é sabido que
qualquer máquina pode falhar se uma de suas engrenagens se romper.
Suponhamos que a mãe, porventura, ingresse em um processo de tratamento,
recupere sua autoestima e se liberte desse cativeiro emocional. Nesse ponto,
ela adquire a capacidade de confrontar as ameaças do filho e recusar ceder o
dinheiro ou tolerar os furtos em casa para suprir a próxima dose de droga.

Com esse reposicionamento da mãe, inicia-se um abalo no funcionamento


meticulosamente construído pelo dependente. Gradualmente, ele começa a
sentir os impactos negativos do uso, encarando as consequências até então
evitadas. A verdade é que alguém inevitavelmente arcara com o ônus de uma
vida enredada pela drogadição. O dependente químico, no entanto, procura
transferir esse ônus para a família, enquanto ele habita um mundo paralelo,
intocado pelas implicações de suas escolhas.

Essa reconstrução do núcleo familiar oferece uma nova perspectiva de


esperança. Nessa perspectiva, a analogia da máquina e suas engrenagens
ressalta a hábil tática do dependente químico: além de usar drogas, ele
constrói uma máquina intricada de manipulação, onde cada peça deve operar
perfeitamente, em sincronia, no tempo preciso. Assim como uma fábrica

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meticulosa, ele gerencia as entradas e saídas com precisão cronometrada.
Essa estrutura que eles erigem deve ser desmantelada, visto que, mais que a
mera dependência química, é a própria construção da máquina de manipulação
que necessita ser desfeita.

Os pais e cônjuges não podem se iludir: os dependentes químicos têm um


conhecimento profundo dos pontos fracos de cada pessoa. Eles entendem, por
exemplo, quem é mais vulnerável em um relacionamento, quem pode ser
facilmente influenciado, e têm uma percepção aguçada da dinâmica familiar.
Eles conhecem as mentiras que podem usar para se infiltrar e manipular
situações de forma eficaz.

Na igreja de Colossos, Paulo se deparou com um desafio preocupante: a


presença de muitos que não demonstravam interesse em trabalhar, optando
por viver com desculpas e se utilizando do evangelho para justificar sua inércia.
Diante desse cenário, Paulo não hesitou em proclamar uma clara mensagem:
"aquele que não trabalhe também não coma". Essa afirmação enfatiza que
quem escolhe adotar uma abordagem preguiçosa e oportunista deve estar
disposto a enfrentar as consequências dessa escolha.

Nesse contexto, Paulo está essencialmente destacando a necessidade de


responsabilidade e ação em nossas vidas. Vivemos em um mundo onde toda
ação traz consigo uma reação, onde cada decisão gera uma consequência. Ele
compreende que o sistema de causa e efeito é intrínseco à nossa existência, e
a falta de esforço não pode ser justificada com palavras vazias.

Ao aplicar esse princípio à dependência química, podemos perceber paralelos


importantes. O objetivo não é apenas apontar o dedo ou julgar, mas sim
direcionar o indivíduo a encarar as consequências de suas escolhas. Assim
como aqueles que se recusavam a trabalhar na igreja de Colossos, o
dependente químico também deve compreender que suas ações não ocorrem
no vácuo. Cada uso de drogas, cada comportamento relacionado à adicção,
tem um preço. E embora possa não ser imediatamente visível, alguém acaba

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pagando por esse preço, seja o próprio indivíduo, sua família ou a sociedade
como um todo.

Neste contexto, é crucial reiterar a atenção aos pais que frequentemente


acabam assumindo responsabilidades que, na realidade, deveriam ser dos
dependentes químicos. Eles pagam por ações que não são suas, acreditando
que isso representa amor e paciência, mas na verdade é um comportamento
manipulado pelo próprio dependente químico para que os pais se comportem
exatamente dessa forma. Ao agir assim, os pais inadvertidamente desafiam a
mensagem de Paulo: estão, de certa forma, fornecendo sustento àqueles que
não se esforçam.

Alicerçados na base da autopiedade, os dependentes químicos engrenam a


arte da manipulação, utilizando-a como seu pilar central. Nesse ponto crítico,
eles se aferram à sensação de serem vítimas, envolvendo-se em um manto de
autocomiseração. Esse sentimento distorce sua percepção da realidade,
muitas vezes retratando os pais como os principais vilões. Eles selecionam
momentos isolados que aparentemente corroboram essa perspectiva,
buscando justificar assim a posição que adotam. Contudo, essa montagem de
fragmentos desconexos não é suficiente, pois a verdade requer uma
compreensão profunda de todo o contexto.

A dificuldade do tratamento está em desfazer os laços da autopiedade e


assumir total responsabilidade. Isso é um passo de proporções significativas,
pois a busca por refúgio na autopiedade lhes dá uma ferramenta poderosa para
manipulação. Eles se tornam mestres em usar essa ferramenta para manter
controle sobre os entes queridos, mantendo-os presos à culpa e à preocupação
constante.

Desembaraçar esse emaranhado emocional exige uma jornada de


autoconsciência e autocontrole. Os pais precisam se libertar das ilusões de
serem vítimas, confrontar o papel que inadvertidamente desempenharam
nesse ciclo e abraçar o poder de tomar as rédeas de suas próprias vidas. É
uma verdadeira maratona mental e emocional, frequentemente acompanhada

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por lutas internas e angústias profundas. Afinal, desfazer os nós emocionais é
como desenrolar anos de história, padrões entrelaçados e sentimentos
complexos.

O alerta persistente aqui é que, embora a autopiedade possa oferecer um certo


conforto e segurança, ela também funciona como uma prisão que mantém
todos presos. É uma teia que o dependente químico habilmente teceu para
exercer sua influência. A jornada em direção à liberdade exige enfrentar essa
teia de frente, desvendar cada nó e, com uma coragem inabalável, escolher
assumir o controle sobre a própria vida. Nesse processo, as engrenagens da
máquina da dependência começam a enferrujar e desmoronar, abrindo espaço
para uma nova realidade onde responsabilidade, cura e esperança substituem
a autopiedade, trazendo consigo a promessa de um novo começo.

Quando a família finalmente se dá conta de que está presa na teia de


manipulação, é como se acordassem para uma realidade que até então estava
obscurecida. Eles começam a enxergar-se como insetos presos na intricada
rede de uma aranha habilidosa. Nesse momento, inicia-se uma profunda
reorganização no sistema familiar, mas é crucial compreender que o foco não
deve ser apenas no dependente químico. Não se trata simplesmente de mudar
o comportamento do usuário, mas sim de reconhecer que todo o sistema
familiar foi afetado pela presença da dependência química.

Ao chegar a esse ponto, muitos podem se surpreender ao perceber que o


problema não é exclusivamente do dependente. A dinâmica familiar, as
relações interpessoais e até as crenças profundamente arraigadas precisam
passar por um processo de tratamento e reposicionamento. Onde antes havia
uma permissividade excessiva, agora é essencial estabelecer limites. Onde
parecia existir paciência, pode ter sido, na verdade, medo e insegurança
disfarçados.

É notável a frequência com que pais chegam a clínicas com um filho


dependente, como se ele fosse o único a precisar de mudança. Essa visão
unidimensional é arriscada e pode levar a uma recaída. A verdade é que o

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dependente químico é mestre em manipulação e vai tentar jogar com as
fraquezas do sistema. Se a família não se curar e não reorganizar suas
dinâmicas, ela fica vulnerável a ser manipulada e envolvida no ciclo de uso
novamente, caso o dependente volte à substância.

A verdadeira transformação começa quando a família percebe que seu próprio


comportamento precisa mudar. Ela se coloca em uma posição de observação,
analisando as reações do dependente quando as antigas formas de
manipulação já não funcionam. Esse processo é gradual e requer paciência. É
uma verdadeira batalha que demanda coragem e determinação.

O dependente, ao perceber que não está mais encontrando as velhas brechas


para manipular, pode se tornar inquieto e irritado. Essa é uma reação positiva,
um sinal de que o terreno está sendo conquistado. À medida que a família se
mantém firme, é normal que o dependente recorra a chantagens emocionais,
ameaçando fugir, desaparecer ou até tirar a própria vida. Nesse ponto, é vital
que a família mantenha sua fé, confiando na espiritualidade ou em seu sistema
de crenças.

Ceder às chantagens é equivalente a permitir que o dependente retome sua


dose inicial, uma derrota completa. É um momento de teste para a família, que
precisa lembrar-se do propósito de sua jornada. É nesse momento que digo
aos familiares que chegam em busca de ajuda que não estamos tratando de
algo que pode ser resolvido com mágicas instantâneas, mas sim de um
processo contínuo que exige paciência e dedicação.

Construímos uma jornada conjunta, uma jornada que exige sabedoria para
identificar as estratégias de manipulação e escolher os melhores meios para
desfazer as teias que foram habilmente tecidas. Cada passo adiante é uma
vitória, um passo na direção de desmantelar a influência da manipulação e da
dependência, abrindo caminho para uma nova realidade onde a família assume
o controle e a promessa de uma vida renovada ganha forma.

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A essência perversa da dependência química se revela de forma ainda mais
contundente quando examinamos como o dependente reage diante da
fragilidade e do sofrimento de um ente querido. Em vez de expressar
compaixão e cuidado, somos frequentemente confrontados com uma realidade
desconcertante e dolorosa. Parece que a própria natureza da doença distorce e
anula qualquer vestígio de empatia e solidariedade. De fato, ao invés de ser
tocado pelo sofrimento dos familiares, o dependente químico enxerga uma
oportunidade para alimentar sua teia de manipulação. Ele não apenas não se
sensibiliza com o sofrimento, mas chega a se regozijar com a ideia,
aproveitando cada dor da família como um meio de consolidar seu próprio
controle. Sua perversidade é tão profunda que transforma o lamento da família
em uma espécie de conquista, uma oportunidade para manipulação habilidosa.
Em última instância, eles se tornam oportunistas do infortúnio familiar,
utilizando-o como uma ferramenta para perpetuar seu ciclo vicioso.

Nesse contexto, o dependente habilmente utiliza estratégias manipuladoras,


especialmente as que envolvem sentimentos e emoções, para iniciar a
construção da chamada "máquina de uso". A manipulação sentimental
torna-se uma ferramenta poderosa para sustentar sua dependência,
alimentando a sua própria necessidade enquanto conduz os outros a
acreditarem que estão fazendo o melhor para ajudá-lo.

Essa dinâmica cruel revela a profundidade da influência da dependência


química. O dependente, impulsionado por essa força insidiosa, não apenas se
distancia da compaixão, mas ativamente explora as fraquezas emocionais de
seus familiares. A manipulação se torna um mecanismo de sobrevivência
da própria dependência, que se alimenta do sofrimento alheio.

Todavia, é importante compreender que essa não é uma escolha consciente do


dependente. A doença da dependência química é uma força avassaladora que
distorce o caráter e a moral do indivíduo. Ele se torna um instrumento
involuntário de sua própria destruição e, inadvertidamente, prejudica aqueles
que mais ama.

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A realidade da dependência química é um testemunho de como uma doença
pode subjugar não apenas o corpo, mas também a mente e o coração. E, ao
entendermos essa dinâmica, podemos abordar essa questão com
compreensão, buscando intervenções que tratem não apenas dos sintomas
físicos, mas também das raízes emocionais e psicológicas dessa complexa e
devastadora condição.

A semelhança entre o comportamento de um dependente químico e o de um


sociopata é notável, apesar das motivações subjacentes serem bastante
diferentes. Essa semelhança pode muitas vezes ser desconcertante para
aqueles que observam a dinâmica destrutiva de perto. Embora possa parecer
paradoxal, essa complexa interação é uma demonstração das profundas raízes
da dependência química, que subjuga a moralidade e o caráter do indivíduo.

O dependente químico, ainda que esteja sofrendo devido à sua adicção, muitas
vezes opera de maneira perversa em sua busca pela substância. A doença o
transforma em um manipulador habilidoso, alheio ao sofrimento que inflige aos
outros. Ele se torna um mestre da exploração, usando as pessoas à sua volta
como meio para satisfazer suas necessidades compulsivas. É um processo
implacável e egoísta, onde as vítimas podem incluir parentes próximos, amigos
e colegas.

É crucial compreender que a co-dependência não é um sinal de fraqueza ou


falta de vontade. Na realidade, é uma demonstração do poder avassalador da
dependência química em manipular e explorar até mesmo os laços mais fortes.

Aqueles que estão presos nessa dinâmica precisam de apoio e orientação para
romper o ciclo destrutivo. Isso exige intervenções que abordem tanto o
dependente quanto a co-dependente, buscando restaurar a autonomia e a
saúde emocional de ambos.

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Posso exemplificar contando sobre a vida de Maria, uma mãe dedicada e
amorosa que encontrava-se invariavelmente presa nas garras emocionais do
filho, Pedro, um jovem atormentado pela adicção.

Pedro, quando sob o efeito das drogas, transformava-se em um mestre da


manipulação emocional. A cada recaída, ele retornava ao lar de Maria, olhos
marejados e voz embargada, carregando um fardo de lágrimas e promessas
vazias. Implorava por uma chance de redenção, expressava arrependimento
profundo e prometia que, desta vez, seria diferente. Maria, emocionalmente
esgotada e desesperada pela melhora do filho, cedia a essa comovente
atuação.

Em vez de adotar uma abordagem mais assertiva e estratégica, Maria caía


repetidamente na armadilha emocional preparada por Pedro. Sua compaixão a
levava a oferecer um perdão imediato, sem considerar a necessidade real de
uma intervenção mais séria e comprometida. As palavras de Pedro eram como
uma melodia que a tocava profundamente, uma canção de lamentação que
reverberava em seu coração de mãe. A cada episódio, ela se via envolvida em
uma batalha de emoções conflitantes - a raiva pela recaída do filho, a tristeza
por seu sofrimento e a esperança de que ele finalmente conseguisse se libertar
das garras da droga.

No entanto, esse ciclo de compaixão desmedida e cedência financeira estava


fadado ao fracasso. Apesar das lágrimas e promessas, Pedro continuava
sendo arrastado pelo poder da adicção. As intenções sinceras de Maria eram
exploradas de maneira cruel pelo filho, que encontrava no teatro emocional
uma maneira eficaz de obter o que desejava. Assim, a cada "retorno ao lar",
Pedro saía não apenas com o apoio financeiro de sua mãe, mas também com
a certeza de que seu poder manipulativo era inabalável.

A história de Maria e Pedro é um lembrete doloroso de como a compaixão


pode ser distorcida pela dependência química. O amor incondicional de uma
mãe foi explorado e transformado em uma ferramenta destrutiva. A abordagem
de Maria, embora motivada pelo desejo sincero de ajudar, não era eficaz na
quebra do ciclo de adicção. Em vez de buscar ajuda profissional e estruturada,

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Maria se via presa em uma dança perigosa, onde o papel de vítima e
manipulador se alternavam constantemente.

Essa história traz à tona a importância de buscar orientação especializada e


apoio externo quando se enfrenta a adicção. A compreensão das dinâmicas
complexas da dependência química e a adoção de abordagens mais assertivas
são fundamentais para evitar que o ciclo de manipulação se perpetue. A
jornada de recuperação não é fácil, tanto para o dependente quanto para seus
entes queridos, mas é um caminho que requer resiliência, coragem e a busca
por estratégias eficazes para romper as teias emocionais da adicção.

A história de Roberta reflete a complexidade das relações afetadas pela


dependência química, onde as emoções adoecidas muitas vezes governam as
ações dos envolvidos. Em um ambiente marcado por agressividade, gritos e
ameaças, Roberta enfrentava um dilema desafiador. Seu filho, um dependente
químico, exibia comportamentos descontrolados e ameaçadores, levando a
situações de tensão e medo na casa que deveria ser um refúgio.

Diante dessas circunstâncias, Roberta, ao invés de adotar uma abordagem


direta e assertiva, optava por suavizar a situação, justificando os
comportamentos explosivos do filho como sendo resultado de uma condição
bipolar. Esse tipo de racionalização, embora possa surgir de um desejo
genuíno de proteger o ente querido, também pode ser visto como um reflexo
das dinâmicas emocionais fragilizadas que permeiam a família.

Assim como os dependentes químicos são levados pelos desejos das drogas,
os familiares muitas vezes são guiados por emoções adoecidas. A
compreensão de que o vício não afeta apenas o indivíduo que usa substâncias,
mas também todo o sistema familiar, é crucial. Os comportamentos reativos, as
racionalizações e as justificativas são sintomas de uma dinâmica complexa em
que as emoções e os sentimentos distorcidos se sobrepõem à busca por
soluções reais.

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A história de Roberta evidencia que o caminho da recuperação não envolve
apenas o dependente químico, mas toda a família. A abordagem de Roberta,
ao atribuir os comportamentos do filho a uma condição bipolar, é um exemplo
de como o sentimentalismo adoecido pode perpetuar padrões destrutivos. Para
quebrar esses padrões, é essencial que a família busque conhecimento, apoio
e orientação. Reconhecer as emoções envolvidas e adotar estratégias que
promovam a comunicação aberta, o entendimento mútuo e o apoio saudável é
fundamental para enfrentar os desafios da dependência química.

Assim como os dependentes químicos precisam confrontar suas próprias


batalhas, os familiares também enfrentam uma jornada de autodescoberta e
cura emocional. A conscientização das dinâmicas emocionais que influenciam
as ações de ambos os lados é o primeiro passo para a construção de um
ambiente de apoio verdadeiro e para a quebra dos ciclos prejudiciais. O
tratamento da dependência química, portanto, estende-se além do indivíduo e
adentra as complexidades das relações familiares, exigindo um esforço
conjunto na busca pela recuperação e pelo bem-estar de todos os envolvidos.

A frase "muito fácil alguém falar que tenha um filho drogado, mas só quem tem
sabe o que a gente passa" revela uma dinâmica emocional complexa na qual a
mãe de um dependente químico se encontra. Essa expressão, muitas vezes
repetida como uma espécie de escudo protetor, pode refletir um mergulho
profundo na autopiedade, um estado emocional onde a pessoa se fecha a
qualquer crítica ou argumento externo.

Essa atitude é uma manifestação da defesa emocional que a mãe desenvolve


para se proteger das inúmeras dificuldades e desafios que enfrenta por ter um
filho envolvido com as drogas. No entanto, essa autodefesa pode se tornar um
obstáculo para o processo de recuperação, tanto do dependente químico
quanto da própria família.

Ao classificar os argumentos válidos e sólidos como "julgamentos", a mãe está


fechando-se à possibilidade de enxergar diferentes perspectivas e de receber
ajuda ou orientação de fora. Essa postura, embora compreensível devido ao

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intenso sofrimento emocional que a situação acarreta, cria uma barreira de
comunicação entre ela e aqueles que podem oferecer apoio e insights valiosos.

A resposta repetida denota que a mãe está em uma posição de defesa,


sentindo-se atacada ou incompreendida. Isso pode ser resultado da percepção
de que somente quem está passando por essa realidade conhece
verdadeiramente as nuances, as angústias e as batalhas diárias envolvidas. No
entanto, essa visão restrita pode limitar a capacidade dela de se beneficiar de
diferentes perspectivas e abordagens que podem contribuir para a resolução
do problema.

A medida que essa autodefesa se solidifica, o ambiente pode tornar-se mais


hostil e intransigente, afastando qualquer possibilidade de intervenção eficaz.
Essa situação pode ser potencialmente prejudicial para todas as partes
envolvidas. Além disso, a solidificação da autopiedade pode contribuir para
reforçar a dinâmica de dependência emocional entre o dependente químico e a
mãe.

Novamente, a jornada de recuperação não se restringe apenas ao dependente


químico, mas também inclui a família. Reconhecer os padrões emocionais que
podem estar prejudicando a busca por soluções e estar disposto a explorar
alternativas é um passo importante para quebrar o ciclo destrutivo. Nesse
contexto, o apoio de profissionais capacitados e a abertura para a
compreensão mútua podem desempenhar um papel crucial na superação da
autopiedade e na construção de um ambiente mais saudável para todos os
envolvidos.

Compreender a necessidade de grupos de apoio para familiares de


dependentes químicos é crucial diante das dimensões avassaladoras da
doença e do impacto que ela exerce nas vidas de todos os envolvidos.
Conviver com um dependente químico é uma experiência extremamente
desafiadora e muitas vezes devastadora, que pode gerar um amplo espectro
de consequências físicas, emocionais e psicológicas.

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A presença constante do vício no ambiente familiar pode levar a um declínio na
saúde mental e física dos familiares, contribuindo para problemas como
depressão, ansiedade, insônia e até mesmo condições mais graves. Mães, por
exemplo, que veem seus filhos mergulhando cada vez mais na dependência,
frequentemente sofrem com o sentimento de impotência, culpa e desespero.
Essas emoções podem ter efeitos reais em sua saúde física, como a queda de
cabelo e outros sintomas somáticos relacionados ao estresse.

Além disso, a manipulação exercida pelo dependente químico sobre os


familiares pode criar um ambiente emocionalmente tóxico e repleto de
chantagens emocionais. O dependente, em sua busca pela próxima dose, pode
usar as emoções daqueles à sua volta como moeda de troca para garantir sua
subsistência no ciclo de vício. Essa dinâmica perversa coloca os familiares em
uma posição de vulnerabilidade, onde podem ser manipulados para cederem
às demandas do adicto.

Os grupos de apoio para familiares surgem como um antídoto essencial a esse


quadro. Esses espaços oferecem um refúgio onde os familiares podem
compartilhar suas experiências, angústias e desafios sem o medo de
julgamento. Ao se reunirem com outras pessoas que enfrentam situações
semelhantes, eles encontram compreensão, empatia e suporte mútuo. Esses
grupos não são apenas uma fonte de informações práticas sobre como lidar
com a dependência, mas também um lugar onde as emoções podem ser
expressas e processadas.

Uma parte fundamental do processo é capacitar os familiares a dizer "não" às


manipulações e chantagens do dependente. Assim como o adicto precisa
aprender a dizer "não" às drogas, os familiares também precisam aprender a
estabelecer limites saudáveis e assertivos. Isso é crucial para quebrar o ciclo
de comportamentos disfuncionais e criar um ambiente em que o adicto
compreenda que suas manipulações não terão mais o mesmo efeito.

Os grupos de apoio não apenas oferecem ferramentas práticas para lidar com
essas situações, mas também ajudam a fortalecer o emocional dos familiares,
capacitando-os a cuidar de si mesmos enquanto enfrentam os desafios que a

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dependência química apresenta. Afinal, para poder ajudar verdadeiramente um
ente querido a lutar contra o vício, é necessário que os familiares estejam em
um estado emocional e mental equilibrado e forte.

Dessa forma, os grupos de apoio para familiares se tornam um farol de


esperança em meio a uma jornada difícil. Eles oferecem a oportunidade de
cura, de compartilhar cargas e, finalmente, de recuperar a própria vida, ao
mesmo tempo em que desempenham um papel significativo na recuperação do
dependente químico, transformando uma casa que antes estava dominada pelo
vício em um ambiente de recuperação e crescimento.

Os grupos de apoio "Amor-Exigente" e "Al-Anon" desempenham papéis


cruciais no suporte e na orientação de familiares e amigos de pessoas que
sofrem com a dependência química. Esses grupos oferecem uma comunidade
de compreensão, informação e partilha de experiências para aqueles que estão
enfrentando os desafios emocionais, psicológicos e práticos relacionados ao
convívio com um dependente químico.

Amor-Exigente:

O "Amor-Exigente" é um programa que busca fortalecer os laços familiares e


oferecer suporte aos familiares de dependentes químicos. Ele se baseia na
premissa de que o amor verdadeiro inclui a exigência de comportamentos
saudáveis e responsáveis. O programa oferece orientações práticas sobre
como estabelecer limites, promover a comunicação eficaz e lidar com os
desafios emocionais da dependência química.

Os grupos de apoio do "Amor-Exigente" proporcionam um espaço seguro para


compartilhar experiências, histórias e preocupações. Além disso, eles fornecem
ferramentas para que os familiares possam aprender a lidar com as
manipulações, a compreender a doença da dependência e a desenvolver
estratégias para apoiar o dependente em sua recuperação.

Al-Anon:

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O "Al-Anon" é uma irmandade global de familiares e amigos de alcoólicos, que
se expandiu para também acolher familiares de dependentes químicos em
geral. O grupo oferece um ambiente confidencial onde os membros podem
compartilhar suas experiências, forças e esperanças, além de aprenderem com
as histórias de outros que enfrentam situações semelhantes.

Um dos princípios centrais do "Al-Anon" é a compreensão de que os familiares


não têm o poder de controlar a dependência do ente querido, mas podem
trabalhar em sua própria recuperação emocional e mental. O programa enfatiza
a importância de cuidar de si mesmo, estabelecer limites saudáveis e deixar de
habilitar o comportamento do dependente.

Principais Semelhanças e Diferenças:

Ambos os grupos compartilham uma abordagem de comunidade e apoio,


visando proporcionar um espaço onde os familiares possam se expressar,
aprender e encontrar conforto mútuo. Tanto o "Amor-Exigente" quanto o "Al-
Anon" buscam capacitar os familiares a se fortalecerem, a desenvolverem
recursos emocionais e a compreenderem melhor a dinâmica da dependência.

Enquanto o "Amor-Exigente" tem uma abordagem mais focada em orientação


prática e estabelecimento de limites, o "Al-Anon" se concentra na recuperação
emocional dos familiares e na ênfase de que cada pessoa tem o direito de ser
feliz, independentemente do comportamento do dependente. Ambos os grupos,
no entanto, têm como objetivo oferecer um espaço de cura e crescimento para
aqueles que estão enfrentando os desafios de conviver com um dependente
químico.

Em resumo, tanto o "Amor-Exigente" quanto o "Al-Anon" são recursos valiosos


para famílias que enfrentam as complexidades da dependência química. Cada
um oferece uma abordagem única, mas ambos compartilham a missão de
proporcionar apoio, informação e uma comunidade acolhedora para aqueles
que buscam entender, lidar e se recuperar das dificuldades impostas pela
doença da dependência.

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Mais sobre a co-dependencia:

Nos derradeiros dias antes de fechar as portas da clínica que por 12 anos
havia sido meu reduto de trabalho e dedicação, testemunhei uma série de
acontecimentos que deixaram marcas profundas em minha alma. O fim de uma
era estava diante de mim, mas o que eu vivi nesse período final foi uma
sequência de traições e desilusões que eu jamais poderia ter previsto.

A ironia da situação era inegável. Justo quando eu esperava um momento de


empatia e acolhimento dos acolhidos que estavam na clínica, eu me deparei
com o exato oposto. O que vi foi um quadro de ingratidão e manipulação, uma
teia complexa de interesses próprios que não deixava espaço para qualquer
tipo de reciprocidade.

Acusações injustas eram atiradas em minha direção, palavras carregadas de


rancor e desconfiança preenchiam o ambiente que uma vez foi um refúgio para
aqueles que buscavam ajuda. Sentia-me atacado por todos os lados, roubos
ocorreram e as pessoas que eu imaginei como aliados estavam prontas para
se aproveitar da situação.

Nesse turbilhão de sentimentos, fui chamado para dar uma palestra no


escritório central de Alcoólicos Anônimos. O tema era "O que significa a
sobriedade?" Uma palestra que tradicionalmente abordaria os aspectos
positivos e transformadores da sobriedade. No entanto, eu não podia me furtar
de ser honesto. A dor que eu estava sentindo naquele momento parecia
inescapável, e eu compartilhei isso com clareza.

Ao invés de enumerar as benesses da sobriedade, eu expus a realidade crua e


sem filtros. Para mim, a sobriedade significava a oportunidade de um
dependente químico não morrer sozinho. A drogadição, com sua força
avassaladora, quebrava os laços mais profundos de relacionamento. Não
importava o quanto alguém fosse amado ou querido, a doença conseguia isolar
e deteriorar qualquer conexão humana.

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O peso das palavras que saíram de mim naquela palestra foi imenso. Eu expus
uma verdade que muitos preferiam ignorar: a dependência química é uma força
implacável que destrói os laços afetivos, arrancando qualquer possibilidade de
companhia e solidariedade. Aqueles que estão no auge da luta com as drogas
frequentemente não podem manter relações duradouras, pois a manipulação e
a destruição são os meios que a dependência utiliza para se alimentar.

Enquanto fechava as portas da clínica, eu me vi diante de uma dolorosa


conclusão. O caminho que trilhei durante todos esses anos não foi fácil, e a
estrada final estava repleta de pedras e desafios inesperados. Mesmo assim,
ao olhar para trás, sentia uma mistura de tristeza e alívio. A traição e as
desilusões que vivenciei me tornaram mais forte e realista, me lembrando que,
apesar das dificuldades, eu tinha lutado incansavelmente para ajudar aqueles
que precisavam.

E assim, mesmo com o coração pesado, fechei as portas da clínica, levando


comigo as lições aprendidas e a esperança de que, um dia, a compreensão
sobre a dependência química possa trazer mais empatia e solidariedade,
rompendo as correntes que mantêm as pessoas isoladas na escuridão de suas
próprias lutas.

As palavras que compartilho aqui reforçam uma dura realidade que não pode
ser ignorada: a jornada ao lado de um ente querido dependente químico é
repleta de desafios que poucos conseguem compreender completamente.
Muitas vezes, somos levados a acreditar que o amor e o vínculo familiar são
suficientes para superar qualquer obstáculo, mas a dependência química é
uma força que pode quebrar até mesmo os laços mais sólidos.

A verdade é que não existe parente forte o suficiente para enfrentar sozinho
essa batalha. O poder da dependência é avassalador, manipulador e
implacável. Ela é capaz de corroer a saúde mental e emocional daqueles que
estão próximos, levando-os ao adoecimento e, em alguns casos extremos, à
própria morte. O sofrimento se estende para além do dependente, atingindo
todos que estão envolvidos em sua vida.

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É de suma importância dirigir essas palavras aos familiares, pois eles carregam
um fardo que muitas vezes não compreendem inteiramente. É frequente que
famílias se sintam consumidas pela culpa, acreditando que suas ações ou
omissões tenham sido a raiz da situação em que seus entes queridos se
encontram. Um exemplo disso é quando uma mãe acusa o pai de ter sido
excessivamente rígido ao expulsar o filho de casa. Nessa dinâmica, é crucial
que ambos, pai e mãe, percebam que há uma doença em jogo, uma
enfermidade que avança à medida que toma conta da vida do filho, afastando-o
progressivamente de todos ao seu redor.

A realidade é que não foi a atitude do pai que causou a ruptura, mas sim o
avanço da doença em si. À medida que a dependência se aprofunda, o
indivíduo se distancia cada vez mais dos outros. A doença exige um preço alto:
a solidão. Portanto, é imperativo que os pais entendam que não é o resultado
de suas ações que está em questão, mas sim a natureza da própria
dependência química. Além disso, é vital que a família compreenda que há um
momento crucial em que é necessário soltar as amarras, deixar o ente querido
seguir seu próprio caminho, pois se insistirem em acompanhar essa jornada,
ambos, pais e filho, correrão o risco de adoecerem juntos. Nesse cenário, o ato
de largar as mãos não é apenas uma decisão sábia, mas também um passo
vital em direção à saúde e à recuperação para todos os envolvidos.

Por isso, nas palavras proferidas durante aquela palestra, estava encapsulada
uma verdade profunda: a sobriedade para um adicto traz consigo a
oportunidade de evitar viver uma vida de solidão, e consequentemente, de
enfrentar o destino solitário da morte.

A família, mesmo carregando um profundo amor e preocupação pelo


dependente, precisa entender que prolongar demais a convivência pode ter
consequências devastadoras.

O amor incondicional é, sem dúvida, admirável, mas é essencial compreender


que a doença pode corroer até mesmo os alicerces mais sólidos das relações

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familiares. É libertador reconhecer que não foi a família que abandonou o ente
querido, mas sim a doença que o conduziu a se afastar de todos. Agora, esse é
um caminho que ele precisa percorrer sozinho.

A parábola do filho pródigo, uma das histórias mais impactantes propostas por
Jesus, nos oferece uma visão profunda sobre as complexidades da
dependência química e seus efeitos nas relações familiares. Através dessa
narrativa, somos levados a compreender como a doença pode criar distância e
solidão, tanto para o indivíduo afetado quanto para aqueles ao seu redor.

A história começa com um jovem que, desejando experimentar a liberdade,


pede a seu pai sua parte da herança e parte para uma jornada de indulgência e
autossatisfação. No entanto, o que inicialmente parece uma aventura cheia de
promessas logo se transforma em um ciclo de más escolhas e decadência. O
filho pródigo acaba desperdiçando tudo o que possuía e, no auge de sua
desesperança, se vê alimentando porcos e desejando o alimento destinado a
eles.

Nesse ponto de profunda humilhação e necessidade, ele decide voltar para


casa, buscando refúgio sob o teto paterno. É aqui que a parábola revela uma
importante lição: o pai o recebe de braços abertos, com amor incondicional. A
reação do pai simboliza o perdão e a restauração, exemplificando a essência
da misericórdia divina.

No contexto da dependência química, a trajetória do filho pródigo ecoa a


experiência do dependente. A busca por prazeres momentâneos pode levar a
uma espiral descendente, afastando-o de quem o ama e das bases que o
sustentaram. A solidão e o isolamento tornam-se companheiros constantes, à
medida que a doença ganha força.

Também podemos enxergar os familiares do dependente químico refletidos na


história que enfrentam desafios emocionais e dilemas morais. Eles podem se
ver divididos entre o desejo de ajudar o ente querido e a necessidade de
estabelecer limites saudáveis. A solidão, a frustração e a sensação de

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impotência muitas vezes se infiltram na experiência desses familiares, à
medida que testemunham a batalha do indivíduo contra a dependência. Os
pais do filho pródigo, provavelmente cheios de preocupação e sofrimento,
tiveram que enfrentar a difícil decisão de permitir que ele partisse. Isso não foi
um abandono, mas uma aceitação de que cada indivíduo deve escolher seu
próprio caminho. A história destaca o papel crucial do livre arbítrio e das
escolhas pessoais.

Portanto, ao trazer à tona a parábola do filho pródigo, somos convidados a


refletir sobre a jornada da dependência química não apenas como uma batalha
individual, mas também como um desafio para os familiares. Assim como o
filho pródigo, os que lutam contra a dependência precisam encontrar um
caminho de volta à saúde e ao equilíbrio, enquanto suas famílias enfrentam a
necessidade de equilibrar o apoio com a necessidade de estabelecer limites.

Essa história atemporal nos lembra que, mesmo nas situações mais
desafiadoras, existe a possibilidade de perdão, reconciliação e cura. Da mesma
forma, à medida que as famílias afetadas pela dependência química enfrentam
suas próprias jornadas, elas podem encontrar esperança e transformação ao
escolherem a compreensão, o amor incondicional e o apoio mútuo.

A parábola do filho pródigo é uma ilustração poderosa que revela como a


dependência química pode criar um abismo entre os indivíduos e seus entes
queridos. Quando examinamos essa narrativa, percebemos que não foi o pai
que permitiu que o filho partisse, mas sim a própria influência devastadora da
doença que o empurrou para longe. O filho pródigo estava imerso na busca fútil
e autodestrutiva de prazeres momentâneos, afastando-se de sua família e de
suas raízes.

A doença da dependência age de maneira semelhante, separando o indivíduo


do ambiente em que cresceu, das relações afetivas que o moldaram e do
suporte emocional que poderia tê-lo ajudado a encontrar um caminho saudável.
Nessa trajetória, a solidão se torna um companheiro constante, pois o indivíduo
fica aprisionado em sua luta interna e em seu relacionamento disfuncional com
as substâncias.

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Sociedade co-dependente

Com certeza, ao nos depararmos com as proporções surpreendentes da


dependência química, somos levados a uma profunda reflexão sobre a
extensão de sua influência na sociedade. A partir de um artigo que tive a
oportunidade de ler, ficou evidente que um único indivíduo dependente químico
é capaz de afetar diretamente pelo menos quatro pessoas em seu círculo
pessoal. Ao projetarmos essa estimativa para as vastas dimensões do Brasil,
nos deparamos com uma realidade assombrosa: cerca de metade da
população do país está de alguma forma tocada por essa doença insidiosa.
Essa constatação nos leva a uma urgente consideração: a questão da
codependência poderia ser tratada como um problema de saúde pública, dada
a sua abrangência e o impacto que exerce sobre nossa sociedade enquanto
nação.

Co-dependencia e internações

É indiscutível que muitos familiares defendem a internação como forma de


tratamento para seus entes queridos dependentes químicos. No cerne dessa
decisão, muitas vezes, está a própria exaustão emocional e física que
acompanha o convívio com alguém em meio à adicção. A internação é vista
como uma maneira rápida de retirar a "fumaça tóxica" do ambiente familiar,
proporcionando um momento de alívio e paz. Entretanto, essa perspectiva nem
sempre considera a complexidade da recuperação e suas ramificações a longo
prazo.

É fundamental compreender que o processo de tratamento da dependência


química é uma jornada que demanda tempo, comprometimento e dedicação
por parte da família. A opção pela internação pode proporcionar um alívio
imediato, contudo, não lida com os elementos subjacentes que contribuíram
para o surgimento da doença. Uma recuperação autêntica requer uma
abordagem mais holística, que não apenas afaste o dependente químico do
ambiente prejudicial, mas também promova transformações profundas e
duradouras em sua vida. É importante observar que, em alguns casos, clínicas

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podem explorar o desespero das famílias, agindo de forma oportunista para
angariar pacientes.

A busca por benefícios de longo prazo exige paciência e maturidade por parte
da família. Cada membro deve compreender que, em última instância, o
dependente químico é o único que pode escolher se comprometer com a
recuperação. É essencial separar o joio do trigo, reconhecendo que a família
não pode se sacrificar indefinidamente em função do dependente. A
recuperação só é possível quando a pessoa assume a responsabilidade por
suas escolhas e ações.

Embora haja a esperança de que o movimento positivo da família influencie o


dependente a responder de maneira saudável, é importante estar preparado
para todos os cenários. Nem sempre o caminho para a sobriedade é linear, e a
família precisa compreender que a recuperação não pode ser imposta. Em
alguns casos, a decisão madura pode envolver permitir que o dependente siga
seu próprio caminho, mesmo que isso signifique distanciamento.

Alcançar a sobriedade é uma conquista significativa para um dependente


químico, mas é igualmente importante compreender que esse marco não
representa o fim da jornada. Para a família, a conquista da sobriedade pelo
ente querido marca o início de uma nova fase, repleta de desafios e ajustes
profundos. Nesse ponto, a necessidade contínua de apoio e orientação se
torna fundamental, e é aí que os grupos de ajuda desempenham um papel
vital.

A família precisa internalizar o significado da sobriedade e o que isso implica. É


uma oportunidade de recomeço, de reestabelecer laços e redefinir dinâmicas.
Contudo, a confiança, que é alicerçada por anos de mágoas e decepções, não
pode ser restaurada da noite para o dia. O adicto muitas vezes carrega consigo
uma profunda desconfiança, uma característica intrínseca à sua condição.
Portanto, a família deve aprender como agir, como criar um ambiente de
abertura e oportunidades, evitando gestos que possam ser mal interpretados.

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A transformação na dinâmica familiar é um processo complexo que requer
orientação e suporte sólido. No entanto, é essencial que a família compreenda
a realidade da recaída. A jornada para a sobriedade é repleta de altos e baixos,
e recaídas podem acontecer. Os grupos de apoio ajudam os familiares a
abordar essa possibilidade com realismo, evitando ilusões de que tudo voltará
ao normal imediatamente. Assim como o dependente químico, a família
também precisa aprender a viver um dia de cada vez, enfrentando desafios
com paciência e resiliência.

A importância da família estar em tratamento também é evidente quando se


trata de recaídas. Se a família não estiver preparada e em um processo de
recuperação, as esperanças podem desvanecer rapidamente caso o
dependente recaia. Uma família em tratamento é uma força poderosa durante
tempos difíceis, proporcionando um suporte sólido para a pessoa em
recuperação.

Em última análise, a conquista da sobriedade por um dependente químico é um


marco a ser celebrado, mas é essencial reconhecer que a jornada está longe
de terminar. A família precisa se ajustar a essa nova realidade, trabalhando
para reconstruir laços, desenvolver confiança e estar preparada para os
desafios que podem surgir.

Nos corações de muitos familiares, a dor da doença viciante tornou-se tão


avassaladora que o amor e a preocupação de outrora deram lugar ao
desespero e à exaustão. Como testemunha dos desdobramentos dessa
tragédia, deparei-me com cenários angustiantes em que a conexão familiar se
deteriorou completamente.

Recordo-me de momentos em que pais, que antes eram dedicados, agora


simplesmente deixavam seus filhos à porta da clínica, apertavam a campainha
e partiam, como se estivessem abandonando um pacote. O que já foi um
sentimento de amor transformava-se em amargura. A profunda tristeza dessa
dinâmica estendia-se até casos em que os filhos, por sua vez, rasgavam as
fotografias de um pai que deveria ter sido uma figura de referência.

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E, entre as histórias devastadoras, emergem mães que, quando contatadas
sobre a chegada de seus filhos à clínica em busca de auxílio, negavam com
frieza até mesmo a própria relação familiar. "Não tenho nenhum filho com esse
nome", respondiam elas com um desapego quase inacreditável. Nesses
relatos, podemos vislumbrar uma verdade amarga: por trás de cada indivíduo
mergulhado nas garras da dependência química, há um universo de lares que
tornaram-se, de certa forma, cracolândias silenciosas e obscurecidas.

O grito de ajuda desses familiares é urgente e inegável. Às vezes, por trás da


figura do adicto, escondem-se redes inteiras de sofrimento e desespero. A
tragédia não se limita ao indivíduo afetado; ela permeia as entranhas dos lares,
corroendo laços e envenenando relações. Essa é uma faceta muitas vezes não
abordada com a devida atenção.

Enfrentar a dependência química não é somente resgatar o indivíduo vítima do


vício, é também confrontar os danos colaterais que essa enfermidade cruel
inflige nas famílias. É encarar os sentimentos de desamparo, revolta e
desesperança que muitas vezes conduzem os familiares a um estado de
exaustão emocional. A urgência de combater o vício vai além do indivíduo em
si; ela se estende à rede de relacionamentos que orbita ao seu redor.

A conscientização sobre essa dimensão é crucial para que a sociedade possa


enfrentar essa epidemia em todas as suas nuances, acolhendo e auxiliando
não somente os adictos, mas também aqueles que carregam o peso silencioso
da dor familiar.

Em meio à tormenta da dependência química, muitos pais e familiares


encontram-se diante de um dilema dilacerante. O desespero, aliado à
crescente sensação de impotência, muitas vezes os conduz a tomar medidas
extremas em um esforço desesperado para resgatar aqueles que amam. Entre
essas medidas, há casos em que pais tentam "comprar" seus filhos,
oferecendo-lhes recompensas materiais como carros, motos ou empregos, na
esperança de que esses incentivos persuadam os entes queridos a buscar
ajuda e internamento.

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Simultaneamente, observa-se que esposas ameaçam com o espectro do
divórcio, condicionando a permanência no casamento à condição de que o
indivíduo dependente busque tratamento e se interne. Embora essas atitudes
possam parecer estratégias de persuasão bem-intencionadas, elas refletem
mais do que a vontade de ajudar; elas revelam o desespero e a angústia dos
familiares que já se encontram à beira do abismo emocional.

No entanto, é crucial entender que essas abordagens não constituem soluções


eficazes e duradouras. Na realidade, elas são sintomas da exaustão emocional
que a doença insidiosa da codependência pode infligir. O ato de tentar
"comprar" a sobriedade de um ente querido com recompensas materiais revela
uma falta de compreensão profunda sobre a natureza da dependência química
e a complexidade das motivações que impulsionam o uso das substâncias.

Por outro lado, o uso da ameaça do divórcio como um meio de pressionar um


dependente a buscar ajuda retrata a deterioração dos alicerces emocionais do
relacionamento. Essa tática, em vez de promover um engajamento genuíno na
busca pela recuperação, frequentemente resulta em ressentimento, medo e um
senso de manipulação. É um claro indicativo de que a doença não afeta
apenas o dependente, mas também aqueles que o cercam.

A jornada de enfrentar a dependência química de um ente querido em casa


pode ser comparada a um jogo de xadrez, onde cada movimento é crucial e
precisa ser cuidadosamente planejado. Assim como no tabuleiro, a família
precisa entender a dinâmica única desse desafio e adotar uma abordagem
estratégica para alcançar os melhores resultados.

No xadrez, a chave para a vitória está na antecipação das jogadas do oponente


e na capacidade de pensar vários passos à frente. Da mesma forma, a família
precisa compreender as nuances da dependência química e as possíveis
reações do ente querido diante das ações tomadas. Isso requer não apenas
conhecimento sobre a doença, mas também uma percepção aguçada das
motivações e comportamentos do dependente.

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Uma das táticas valiosas no xadrez é manter a calma e evitar ceder às
emoções impulsivas. Da mesma forma, na luta contra a dependência química,
a família precisa encontrar um equilíbrio entre o amor e o apoio emocional, ao
mesmo tempo em que mantém uma perspectiva mais objetiva. Isso não
significa falta de compaixão, mas sim a habilidade de tomar decisões
ponderadas e estratégicas para incentivar a aceitação do tratamento e,
posteriormente, a aderência contínua a ele.

Em ambos os casos, a previsão e a preparação são fundamentais. A família


deve estar pronta para enfrentar desafios e recaídas, assim como um jogador
de xadrez se prepara para possíveis desdobramentos. Cada movimento deve
ser cuidadosamente considerado, levando em conta os efeitos a curto e longo
prazo.

Assim como um jogador de xadrez aprende com cada partida, a família


também evolui ao longo do processo. Cada desafio superado e cada obstáculo
enfrentado oferecem lições valiosas para aprimorar a abordagem estratégica.
E, ao final, o objetivo é semelhante: alcançar a vitória, que, no caso da
dependência química, significa não apenas a aceitação do tratamento, mas
também a construção de um caminho sólido para a recuperação duradoura.

Os familiares em tratamento aprendem a não ceder à impulsividade do


desespero, mas sim a adotar uma abordagem embasada em compreensão,
paciência e amor. Eles são capacitados a reconhecer que a recuperação é um
processo complexo, exigindo tempo e esforço. Não é algo que possa ser
comprado ou forçado; é uma jornada interna que requer dedicação e apoio
genuíno.

Portanto, enquanto a tentação de usar medidas extremas como moeda de


troca ou ameaças possa ser compreensível, é vital reconhecer que essas
ações, por mais bem-intencionadas que sejam, raramente são eficazes a longo
prazo. A verdadeira solução reside na busca de conhecimento, apoio e
compreensão através dos programas para familiares, que oferecem um
caminho mais sólido e humano para enfrentar a complexidade da dependência
química e, assim, construir uma base para a recuperação duradoura.

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Quero enfatizar que ninguém está em posição de ditar para os familiares o que
eles devem fazer. A complexidade das dinâmicas familiares e a situação única
de seus entes queridos são melhor compreendidas por eles mesmos. Não
desejo transmitir uma abordagem inflexível ou uma fórmula agressiva que
imponha internação ou expulsão de casa como solução. Como mencionei
anteriormente, esse é um processo que envolve todos os membros da família,
e como qualquer processo, requer tempo, auxílio e autoconhecimento.
Decisões impulsivas ou influenciadas pelas emoções, tomadas no calor do
momento, podem ter consequências graves para o indivíduo que enfrenta a
dependência.

Portanto, defendo a ideia de que todas as decisões devem ser tomadas dentro
da estrutura de um plano de tratamento, em colaboração com profissionais e
outros que enfrentam situações semelhantes. É nesse ambiente de apoio e
compreensão que os familiares podem recuperar sua autoestima, confiança e
senso de propósito. Medos e culpas dissipam-se gradualmente, e é a partir
desse ponto que começamos a trilhar o caminho da recuperação da família.

O cerne dessa jornada reside no tratamento interior dos familiares, uma


exploração profunda das próprias motivações, medos e desafios. Cada passo
em direção à cura interior influencia a tomada de decisões sobre como
proceder. Cada escolha é um ato de renúncia, uma renúncia à manipulação, ao
medo e à culpa que há tanto tempo impregnam a dinâmica familiar. A cada vez
que um familiar opta por agir em prol de uma vida saudável, essa escolha
começa a ecoar no seio da família, gerando uma mudança positiva e gradual.

Assim, estamos pavimentando o caminho para a recuperação da família como


um todo. Não se trata de uma mudança drástica ou de uma solução
instantânea, mas sim de um processo contínuo e consciente, onde cada
pequeno passo se acumula para formar uma base sólida de transformação. A
recuperação da família é uma jornada que requer reflexão, aprendizado e
crescimento mútuo, permitindo que a compreensão, a empatia e o apoio

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floresçam, desfazendo gradualmente os laços da codependência e abrindo
espaço para uma nova dinâmica de vida saudável e respeitosa.

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