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Meanings
Copyright © 2023 Isa Gomes

Todos os direitos reservados.


Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer
meios, sem a prévia autorização, por escrito, da autora.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com estabelecimentos,
nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
Plágio é crime!
Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.
 
 

Ficha técnica e catalográfica

Publicado por: Isa Gomes.

Título: Meanings.

Série: Amores Esportivos.

Volume: 1.

Betagem: Isabelle Daros (I Ato), Vitória Maria e Samantha G. Souza.

Copydesk: Ayla Shaiane (I Ato).

Leitura Sensível: Andryelly Salerno (questões raciais, QUEER’s e


atravessamento de vivências).
Mentoria sensível: Fabrícia Vieira (CRP22/04129).

Revisão: Raquel Porto e Sophia Ferreira.

Diagramação Digital: Quinta Editorial.

Artes da diagramação: Yasmin Martins (miin.artss no Instagram).

Capa: Lari Abreu.

Artes individuais: Lara (laradesenhademais no Instagram).

MEANINGS, Série Amores Esportivos – Vol. 1 [recurso digital] / Isa


Gomes – 1° Ed. 2023.

1. Romance contemporâneo 2. Literatura Brasileira 3. Romance Jovem


Adulto 4. Ficção I. Título.
 

 
 
Politicamente amor Ato I
DESENCONTROS: um conto de Politicamente Amor
OCASIONAL: um conto de Politicamente Amor
Politicamente amor Ato II
 
Obs.: Politicamente amor Ato II está indisponível.
 
 
 

Arctic Monkeys - Do I Wanna Know?


 
 
 
 
 

 
• Meanings || O melhor amor é aquele que transborda.
 
CASAL CÃO E GATO • ROMANCE PROIBIDO • MORENO
SARCÁSTICO • BASQUETE
 
❝ Mas eu não sabia que estávamos transbordando nossas piores partes
ocultas um para o outro. E, droga, gostamos daquela merda! ❞
 
SINOPSE de Meanings [1° lAmores Esportivos] NA +18:
 
Numa cidade próxima de San Diego, a pequena Misha Daughety cresceu e
viveu uma linda infância cheia de regalias que uma família de classe alta
pode proporcionar. Hoje, trabalha em uma cafeteria para aprender sobre o
valor do trabalho duro, e vai cursar medicina ao lado de sua melhor amiga
de infância. Mas, ao iniciar o primeiro semestre da faculdade, tudo o que
parecia caminhar bem toma outro rumo quando Axel Martinez aparece e
traz bagunça à sua vida polida.
 
O novo e promissor jogador de basquete da cidade banhada pela praia é o
típico moreno sarcástico que planta uma pulga atrás da orelha de qualquer
um que o olha por mais de dois segundos. Sua energia magnética e a
aparição da sua família recente fez todos se perguntarem por que pessoas
tão ricas como eles se mudariam para uma cidade pequena; principalmente
sem o pai.
 
Eles são dois jovens talentosos.
Eles têm tudo pela frente, mas se apaixonam e arrumam problemas na
mesma intensidade.
Eles possuem um amor que não pode existir, quando o maior empecilho é
uma amarração do passado.
 
Será entre festas de fraternidade, jogos, praia e muitas brigas que essa
paixão nascerá do fogo de dois corações; um forjado pelo bem e outro pelo
mal, porém, igualmente suscetíveis a gerar dor.
 
 

 
Olá. Bem-vinde a mais uma obra minha!
Fico feliz por topar adentrar meu universo (seja pela primeira ou
sabe-se-lá qual vez). Sim, Meanings, assim como todos os meus livros, se
passa no mesmo universo (AmarAVerso).
A ideia desse projeto era ser um livro mais fofo e íntimo, mas eu
me peguei escrevendo sobre uma outra área da minha vida: a mentira. Acho
que 2023 será meu ano para falar sobre isso. Estou muito animada com o
início dessa série, e espero que vocês também. Esse é um livro que escrevi
pensando e repensando muitas vezes o que colocar na folha. Espero que
esse casal amarre vocês tanto quanto me amarraram nas coisas impensáveis
que eles faziam a cada capítulo (um pouco desesperador para uma escritora
que tinha todo um roteiro planejado? Sim, claro, com certeza, mas se o
personagem manda, a gente obedece rsrsrs).
Vamos a alguns avisos importantes sobre a série, em específico:
Meanings é o 1° livro de uma série New Adult com um pé no Dark
chamada “Amores Esportivos”. Os livros dessa série são
INDEPENDENTES, isso significa que você não precisa ler em ordem (mas
eu indico ler em ordem). A ideia da série é trazermos discussões e temas
atuais importantes no meio esportivo; seja sobre como certos temas são
vistos, elaborados ou negligenciados. A série conta com diversos esportes,
em sua produção no off; basquete, futebol americano, vôlei, hóquei; e
outros citados como: skate, ballet, ginástica artística e dentre outros.
Sobre Meanings: Esse livro, tal qual meus outros, não tem a
pretensão de retratar um casal perfeito e que ficará junto depressa e sem
problemas. As histórias que conto são pautadas na arte da representação
mais crua da humanidade. E esse livro tem um pé no dark, por isso, não se
espantem em ver um casal distorcendo a moralidade ou protagonistas
errando muito. Em todo caso, é válido ressaltar que Meanings NÃO conta a
história de um vilão ou anti-herói.
TROPES: Nesse livro temos um slow burn, entre uma afropaty e
um moreno sarcástico quebrado com passado sombrio. Uma cidade fictícia,
praia, basquete, ginástica artística e skate. Discussões e temas atuais como
racismo velado, machismo e estupro (sem cenas gráficas), alcoolismo,
imposição de gênero masculina e violência doméstica.
GATILHOS: racismo velado e estupro (sem cenas gráficas);
afastamento, abandono e/ou perda parental, violência doméstica e infantil
(cenas gráficas); alcoolismo e abuso de substâncias químicas (cenas
gráficas); dependência emocional (romântica e familiar); agressões,
machismo, abuso do poder acadêmico e imposição social atrelada a disforia
de gênero (com cenas gráficas rápidas); e comportamento antissocial
advindo de problemas familiares (sofrimento em decorrência do mesmo).
ESSE LIVRO É RECOMENDADO PARA MENORES DE 18
ANOS por conter gatilhos, cenas pesadas, sexo, drogas, violência (verbal e
física) e ter temas mais pesados com cenas gráficas leves.
Respeite seu limite e classificação indicativa. Sua saúde em
primeiro lugar sempre!
EU, AUTORA, não compactuo com esse tipo de comportamento e
nem o incentivo, as cenas aqui descritas são apenas aceitas na ficção!
E, por favor, NÃO à pirataria desta obra. Foi realmente muito
difícil para mim investir todo o dinheiro necessário para publicar esse livro.
Mas se você já estiver pirateando, por favor, ao menos divulgue
suas impressões sobre o livro nas redes sociais, indique a seus amigues
leitores pagantes ou até mesmo venha procurar comigo pessoas que possam
comprar para você, afinal, esse livro estará por apenas R$1,99 no
lançamento e R$7,99 nos dias que se seguirem.
 
No mais, boa leitura <3
 
 
 

 
 
 

   
 
 
 
 
 
 
 

2022.2
 
 

Para todas que precisaram chorar sem ninguém ver porque era a
única forma de extravasar a dor dilacerante que é presenciar, dia após dia,
quem você tanto ama te tratando como lixo, e, mesmo assim, ficar. Vocês
tem um coração doce e puro, o amor calmo deveria ser o guardião de vocês.
Não aceitem menos que o mínimo!
 
 
 

Deixa eu te falar algo sobre heróis, princesa. Um herói te


sacrificaria pelo bem maior. Eu não tenho essa compulsão. Eu queimaria
esse mundo por você.
 
– Reino das bruxas.
 
prólogo

FUTURO
 
 
Eu sempre vou ser grato a você.
Você sabe, por me incentivar com a minha garota.
Eu achava engraçado você me enxergar como um porto seguro
para Misha sendo que, na real, eu sequer conseguia garantir a minha própria
sanidade.
Se fôssemos bem honestos, ela era do mundo. Eu não poderia e
nem deveria, de forma alguma, mantê-la comigo. O mundo precisa
conhecer Misha. Ela precisa ter a tão sonhada vida perfeita, pelo simples
fato de que lutou e mereceu.
Você pensou que eu poderia ser a pessoa que a acompanharia em
tudo, me influenciou a não questionar tanto se, com meu caráter, eu era
digno dela. E eu quase acreditei.
Quase.
Mesmo assim, agradeço a pequena esperança que você me
concedeu durante esse tempo.
Você não foi um dano colateral. Você nos uniu. E merecia mais,
muito mais.
Eu acho que vou sentir sua falta, porque você brilha como as
coisas caras de casa de gente rica e vai ser impossível não sofrer pela sua
ausência.
Se quer saber, a única coisa que me arrependo é de não ter agido
antes.
Gosto de você. Eu e Misha amamos você. Para sempre sentiremos
sua falta; em todas as coisas, em todos os lugares e a cada minuto.
De agora e para sempre, seu eterno garoto problema – que agora
você não salva mais.
 
Axel Marcone Martinez.
01

A vista da janela do meu quarto, no segundo andar da casa dos


meus pais, proporcionava uma visão privilegiada do sol se pondo em Stacy
Scarllat. O mar era distante da minha casa, mas gostava de me conectar com
a energia do lugar onde cresci antes de começar a minha aula de yoga.
Amarrei minhas tranças longas no alto da cabeça, me preparando
para fazer minha meditação das cinco horas. Precisava alinhar minhas
energias para o dia seguinte, quando se iniciaria o ano letivo na faculdade.
Cruzei as pernas no tapete felpudo rosa-claro na frente da minha
cama, recebendo um banho de sol maravilhoso, pronta para mentalizar que
tudo ocorreria de modo agradável.
— Aaaaaah, e é cesta! — O som da porta do meu quarto sendo
aberta em um estrondo desgrenhado me fez saltar do chão. Minhas íris se
voltaram para meu irmãozinho, James, brincando com a bola de basquete
em miniatura que nosso pai Jeff deu a ele.
— Que porra! — soltei por impulso, me levantando, disposta a
brigar com ele.
— Papai! — o pestinha gritou. — Misha está falando palavras
proibidas. — Tomou ainda mais fôlego para dizer.
Cortarei a língua desse moleque!
Mesmo explodindo por dentro pelo pirralho ter atrapalhado meu
momento de paz, acabei só fechando as mãos para conter meu estresse e
grunhi irritada por ele ser um dedo-duro.
— Vamos, James, deixe sua irmã em paz. — Meu pai Anthony
apareceu na porta do meu quarto, esticando a mão para meu irmão ir com
ele.
Os dois vestiam blusas polo em tons de azul distintos; a de meu pai,
embora mais escura em relação à do meu irmão, contrastava com sua pele
ébano, já a de James, que era em tom mais claro, fazia contraponto à sua
pele de cor marrom.
O pestinha obedeceu, indo para o seu lado.
— E você, Misha, pare de falar essas coisas na frente do seu irmão
— me repreendeu com a voz pacífica notória de sempre. Suas mãos
estavam apoiadas no ombro do garoto que batia apenas na sua cintura,
então, James aproveitou para me mostrar a língua, que tanto desejei cortar
fora, antes de papai fechar a porta atrás de si.
Levantei do piso, por impulso, já enrolando o tapete e bufando.
Seria besteira voltar à minha meditação, todo o meu autocontrole voou
pelos ares no momento em que eles invadiram meu espaço.
Droga!
Desde que recebi minha carta de admissão para a Stacy Scarllat
University, andava uma pilha de nervos. Estar em um campus não se
resumia apenas a ver salas e matérias. Neste semestre eu tinha muitas novas
responsabilidades – no começo das férias consegui um trabalho na cafeteria
próxima ao campus, que começa depois da aula e vai até às nove da noite.
Além disso, tenho meus honorários na coluna de esportes do jornal como
fotógrafa.
Eu nunca tive problema em socializar no ensino médio, mas toda a
questão de adaptação e contatos profissionais estava queimando meus
neurônios. Afinal, era algo importante para o trabalho e eu não queria
depender apenas da minha família.
Sabia que seria difícil me manter com todas essas novas
responsabilidades, só desejava que fosse um ano letivo de muito
aprendizado. Minha criação era de uma família com dinheiro antigo e me
preocupava passar a imagem de uma garota tímida ou antipática.
Tinha que ser um bom primeiro ano!
Desde pequena morei com meus dois pais, Anthony e Jeff – o cara
com quem meu pai se casou logo após deixar minha mãe, Montana –, e
James, meu irmãozinho adotivo por parte dos meus pais, que insiste sempre
em me perturbar, mas que eu amo.
Minha mãe e meu pai me tiveram ainda jovens e, infelizmente, o
relacionamento deles não durou muito. Apesar disso, eles são amigáveis um
com outro. Minha mãe, sendo médica, mantinha-se sempre entre plantões; a
não ser nas noites de segunda e terça, quando eu dormia em sua casa. Era
nosso momento de passar um tempo juntas, já que por sua profissão não lhe
sobravam muitas horas em casa. Nesses períodos era como se tudo fosse
apenas sobre nós duas. E eu amava aquilo. Sempre preferi não levar muitas
coisas da casa dos meus pais para lá. Ela costumava comprar qualquer fast
food vegano para jantarmos, enquanto tentávamos maratonar filmes e
séries, mas, no final, a gente só ficava fofocando mesmo.
Era divertido, porque Montana Davis me amava; sentia com suas
demonstrações, mesmo com sua vida corrida, sendo sempre companheira e
prestativa.
Eu só não pensei que essa nossa conexão de mãe e filha seria
rompida duramente por uma mentira dela!
 
02

Deixar minha mãe e meus irmãos sozinhos na nossa casa gigante de


veraneio e me mudar para a fraternidade, que levava nome do nosso time de
basquete, Wolves Crows, foi uma transição caótica. Desembarcamos apenas
um dia antes do início do ano letivo, ou seja, quase me atrasei para a
convocação do time – do qual dependia minha bolsa. Abri as portas de volta
ao ginásio, após ter me vestido para o treino, com o nervosismo que lembrar
do passado me fazia sentir, mas focado para o que estava por vir.
Aproveitei para dar algumas voltas na quadra e aquecer o corpo.
Me empenharia ao máximo para manter minha bolsa e conseguir entrar para
o draft, conquistando, assim, uma vaga em um time profissional na NBA;
essa era a minha única chance.
— Martinez — o treinador apitou, juntando todos no centro da
quadra —, atenção! Seja bem-vindo ao time.
— Obrigado, treinador.
— Rapazes, esse é o espírito que preciso para essa temporada.
Esforço, determinação e foco. — Todos manearam a cabeça, concordando.
— Agora, façam alongamento e treinamento de passes.
Após uma hora de exercícios de repetição, enfim chegamos ao
melhor momento. Fomos separados em dois times, assim poderíamos
conhecer as jogadas de cada um.
Faltavam apenas alguns segundos para o treino terminar e eu estava
de frente para Tyler, o capitão. Essa jogada seria um mano a mano.
Comecei quicando a bola algumas vezes enquanto ele mantinha a defensiva
com seus braços estirados à minha frente.
— Vamos, novato, mostre o que você sabe fazer! — O sorriso de
deboche divertido em seu rosto me deu um gás, mas ainda não era a hora.
Eu faria esse cara ver o que eu conseguia alcançar no momento certo.
Bati mais algumas vezes, mantendo meus pés um longe do outro e
os joelhos levemente flexionados, girei nos calcanhares e passei por ele,
correndo até a cesta, enquanto tentava interceptar o meu passe. Porém, eu
fui mais rápido, marcando o ponto final da partida. Os caras vibravam
vindo ao meu encontro. Sorri largo ao ser abraçado por eles, mais uma vez,
o treinador soou o apito:
— Treino encerrado! Para o vestiário. Resfriamento, rapazes!
Todos corremos para o banco.
Peguei minha toalha, levando a garrafa de água aos lábios, quando
uma garota sentada na arquibancada do outro lado chamou minha atenção.
O treinador seguiu até ela, falando algo que gerou uma carranca em seu
rosto. Seus cabelos trançados eram longos, com certeza bateriam em sua
bunda se não estivessem amarrados em um rabo de cavalo. A pele marrom-
clara, o rosto com linhas bem marcadas e lábios carnudos pareciam ganhar
mais cor quando ela os movia, contestando alguma coisa que meu treinador
dizia. Contudo, ela maneou a cabeça em seguida, concordando, então, seu
rosto foi parcialmente escondido ao levar uma máquina fotográfica até ele e
diversos flashes foram disparados em nossa direção.
Pisquei, voltando à realidade.
— Jogada excelente, novato — é o que Tyler diz, se aproximando
de mim e passando o braço pelo meu ombro, roubando a minha atenção.
Nosso capitão é negro de pele retinta e tem uns 2 metros de altura. Pareço
meio pirralho perto dele com meus 1,85m. — Ele é rígido — fala sobre o
treinador —, mas é bom no que faz. — Dou de ombros, aproveitando para
dar mais um gole na minha água. — Você é meio calado, Axel. Precisa de
emoções para se soltar mais?
— Talvez algumas aventuras… — Deixei em aberto, sem conseguir
desviar meus olhos do local onde a garota continuava nos fotografando
enquanto seguíamos para o vestiário.
— Ela deve tá no jornal — divagou. — É normal que desde o
primeiro treino tirem fotos nossas, afinal somos um dos carros-chefe da
faculdade. Tivemos uma temporada meia-boca ano passado, quando nosso
último capitão foi expulso do time, mas esse ano… eu vou colocar vocês na
linha — Tyler tentou me tranquilizar, mas logo notou que meu interesse, na
verdade, era saber quem era a garota. — Hmm, você gostou dela. — Lancei
um olhar furtivo a ele. — Já sei onde achar o tipo de diversão que vai fazer
você falar. — Ele sorriu de canto.
Duvido muito.
 
 
03

Meus passos se apressaram pelas ruas entre a faculdade e a


cafeteria, pois pareciam ainda mais movimentadas. O nervosismo pela
possibilidade de chegar atrasada no trabalho corria em minhas veias.
Stacy Scarllat é a cidade mais fora do mapa possível; tanto que a
Internet vive caindo. Isso quando não rolam os apagões e tempestades
esquisitas. Por esse motivo, não consegui nenhum táxi, nem mesmo um
carro via aplicativo.
O que não fazia sentido, já que era uma cidade turística e litorânea.
A praia era o grande ponto forte e o sol, quase da família, mas o clima era
um pouco inconstante; um dia estava chuvoso e no outro, o sol aparecia,
abrindo alas para o surfe. Era ótimo para mim, pois assim, conseguia
capturar histórias através das lentes da minha câmera. Geralmente
fotografava pessoas ou paisagens. Esse meu hobby sempre foi tão valioso
para mim, tanto quanto o meu desejo de trabalhar na área da saúde. Mas
hoje tá meio difícil…
Respiro fundo, apertando ainda mais a minha mochila de lado,
tentando estabilizar nas mãos a minha câmera e os livros que minha melhor
amiga me fez pegar emprestado na biblioteca.
Maldita hora que dei atenção às importunações de Saori!
Meu braço sofre por carregar esses romances da literatura inglesa
do século XIX. Saori me entregou uma lista extensa de clássicos que eu
deveria estudar, porque, segundo ela, literatura era uma matéria importante
demais. Afinal, estávamos iniciando a faculdade e deveríamos criar uma
boa impressão nos professores. O que ela não poderia adivinhar é que nossa
primeira aula se limitou a conhecer uns aos outros, e nem adiantou muito,
pois eu já esqueci o rosto e nome de cada um.
Nunca li muitos romances clássicos, como Saori desejava, o que
prendia a minha atenção eram livros acadêmicos. Meus preferidos eram os
de anatomia humana, a forma como nosso corpo se adapta, se transforma,
me cativa. Agora, mais do que nunca, minha galeria de fotos teria capturas
de estantes e mesas cheias de livros do tipo. Pretendia passar muito tempo
na biblioteca nos próximos anos. Para isso, planejei tudo, começando por…
— Merda! — praguejei quando, de repente, no meio da multidão
indo e vindo, me choquei contra um vulto. Caí de imediato, soltando os
livros e minha câmera para apoiar minhas mãos no chão antes que
quebrasse a cara.
Uma mão grande e masculina envolveu meu braço. O desconhecido
usava uma calça larga em um tom terroso; subi meus olhos e notei também
um cropped marrom de gola alta com uma blusa preta de botões, aberta.
Segui inspecionando-o e, em seus braços e pescoço, havia uma mistura de
bijuterias e miçangas em um contraste bonit… complexo.
Me desvencilhei rapidamente, irritada, levantando para ver se não
tinha me machucado.
O cara em meu campo de visão me fez prender o ar, porque, puta
que pariu…
Seu porte era bem definido, mesmo sendo magro, em uma clara
mistura entre atleta e skatista, estiloso. Não do tipo despojado, mas algo
marcante. O reconheci do treino da equipe de basquete em que meu pai era
treinador, assisti o finalzinho para conseguir fazer algumas capturas para o
jornal.
— Caralho, você tá sangrando! — O insolente passou os dedos por
seu cabelo castanho claro, se aproximando, mirando seus olhos verdes na
minha perna para analisar, me possibilitando dar uma checada em seu rosto.
A mandíbula bem marcada, a pele branca, mas recém-bronzeada, e as
sobrancelhas grossas. Seus fios eram longos, até abaixo da orelha, e ele os
segurou, depressa, para não tapar sua visão.
Poderia elogiá-lo, mas ele me atrapalhou demais hoje.
Desviei meu olhar para onde ele encarava com o cenho franzido no
momento em que senti a fisgada em meu joelho e mãos.
— Puta que pariu, você não olha por onde anda?! — questionei,
recuando mais uma vez de seu toque no meu joelho.
— Não era eu quem estava com a mente na lua… — Ele se afastou
por completo de mim, levando consigo seu skate e puxando os cabelos, para
então, ajustar melhor a blusa aberta ao corpo.
— Me poupe de suas desculpas, eu estava do lado certo da via,
você que se meteu na frente!
— Não é isso que mostra o semáforo de pedestre. Você tem sorte
por não ter sido atropelada.
Bufo, recolhendo minhas coisas. Os livros estavam intactos, já a
câmera, nem tanto.
— Na verdade, eu fui. E o brutamontes ainda quebrou a minha
câmera.
— Já ouvi xingamentos melhores. Sua câmera quebrou por
descuido seu. Que culpa eu tenho se você anda com essa coisa sem a alça
de segurança?
Por Deus!
Ugh, que merda!
Queria gritar, estapear sua cara. Que cara insuportável. Era só meu
primeiro dia e essa câmera, além de minha fiel escudeira, era para o
trabalho no jornal.
Droga, droga, droga.
Jeff vai me encher de perguntas e eu nem posso falar que foi esse
troglodita, porque, se conheço bem meu pai, ele mantém os novos
jogadores em rédea curta. Vou ter que resolver essa merda por conta
própria.
Que seja, foda-se. Dou um jeito! Posso pegar dinheiro da conta e
dizer que comprei novas maquiagens ou qualquer outra coisa do tipo. Eles
nem vão notar a câmera nova.
Olhei para meu joelho que ardia, assim como as mãos, onde a
minha meia-calça branca agora estava rasgada e tingida de escarlate. Só
então a raiva deu lugar à dor ardida e chata por machucar o corpo.
Tudo culpa desse cara!
Levantei, espanei minha perna e, arrumando minhas coisas, me
convenci de não focá-lo mais, mesmo que eu achasse interessante a
combinação de cores e estilo do visual dele.
A câmera já era, mas ela já estava comigo há muito tempo. Decidi
guardá-la na mochila e levar para casa; viraria decoração!
— Você não tá sentindo dor? — o garoto que aparentava ter, mais
ou menos, a mesma idade que eu, indagou ao pegar seu skate caído diante
de mim, elevando as sobrancelhas ao me averiguar.
Neguei com a cabeça e fechei a cara.
— Eu sei me virar sozinha.
Semicerrando os olhos, ele inclinou a cabeça um pouco para o lado
com um meio sorriso no rosto.
Forcei um sorriso sem a menor vontade de respondê-lo, já virando
os calcanhares para continuar meu caminho até a cafeteria.
Minha blusa amarela-claro estava um pouco suja no canto. Respirei
fundo, tentando focar no fato de que eu trabalharia de uniforme e depois iria
para casa, então, tudo bem…
— E vê se olha por onde anda, patricinha! — o garoto gritou, não
tão alto, soando meio divertido.
Virei, bufando de raiva, para mandá-lo à merda, porém, para sua
sorte, o mar de pessoas já o tinha engolido e ele, ainda assim, acenava com
a mão para mim, se divertindo com a minha carranca tomada pela revolta.
Quem ele pensa que é?
Passei pela porta dos fundos da cafeteria, rumando até o armário
para pegar meu uniforme e guardar minhas coisas, como de costume. No
caminho para o banheiro, encontrei Celicia, uma das garçonetes. Ela me
inspecionou rápido, de cima a baixo, levantando uma das sobrancelhas, e
perguntou ao se aproximar a passos largos:
— Tá tudo bem?
Assenti. Nós duas olhávamos para meu ferimento no joelho.
— Vou me trocar. — Dei de ombros e me direcionei ao banheiro.
Não havia o que fazer mesmo.
Já pronta, voltei aos armários para guardar minhas roupas e sapatos.
O uniforme me deixava confortável, mas era como sair de um filme de
décadas atrás. Amarrei minhas tranças em um rabo de cavalo. A última
coisa que eu desejava naquele momento era que um fio do meu cabelo
caísse no café de algum freguês.
Enquanto, por fim, amarrava meus sapatos, Celicia entrou no meu
campo de visão segurando uma caixinha de primeiros socorros.
— Já avisei para a chefe Camila que você chegou e o motivo do seu
atraso. — Ela me estendeu o objeto. — Achei que isso poderia te ajudar.
— Obrigada — peguei a maleta de suas mãos —, vai me ajudar
muito.
— Isso tá bem feio, Misha. — Confirmei enquanto pegava um
band-aid para pôr na perna — Foi atropelada ou algo do tipo?
— Não, foi só um idiota que esbarrou em mim. Nada demais. — A
não ser pela minha câmera, mas Celicia não entenderia isso.
Ela estendeu a mão, me ajudando a ficar em pé.
— Você pode deixar a caixa aí. É melhor a gente ir.
— Certo, claro. — Me levantei, descartei a gaze que usei para
limpar o ferimento e segui seu encalço.
Correria, isso resumia a tarde de trabalho na HotCoffee. E ainda
faltavam duas horas para meu turno acabar.
— Essa semana já começou bem movimentada, não é? —
perguntei, dessa vez não só para Celicia, mas também para Liam, um dos
universitários encarregado de cuidar do caixa essa noite; ou quase todos os
dias, na verdade.
— Eu até prefiro quando é assim, tem dias que é muito entediante,
a hora parece que não passa.
— Concordo — foi Celicia quem falou —, mesmo sendo
estressante e corrido, estou agradecida por esse trabalho.
— Parece que a nossa atração principal acabou de chegar. — Ele
indicou com o queixo, arrumando o cabelo escuro e espetado pelo efeito do
gel que ele com certeza usava.
Direcionei meus olhos à porta da frente no momento em que o sino
soou. Em bando, os jogadores do time de basquete e futebol americano da
universidade adentraram o estabelecimento. Notei que, mesmo sendo
muitos deles ali, meu ex não estava presente.
— Minha praça não, por favor, minha praça não, por favor —
Celicia sussurrava uma espécie de mantra. — Droga! — A garota se voltou
para nós tão rápido que sua saia e avental rodopiaram em suas pernas,
batendo no azulejo do balcão. — Não posso atender. — Celicia falou baixo,
meio exasperada. — Liam, por favor, troque de lugar comigo! — A garota
apressou os passos, se aproximando do moreno e estendendo a mão para
tocar em seu braço em súplica.
Liam era muito mais alto que nós duas, magro do tipo bem
definido, e eu suspeitava que, mesmo gostando de nos ajudar, não queria
demonstrar, por isso, se mantinha distante. Todas nós já havíamos entendido
sua personalidade meio intimista.
— Vai sonhando! — Liam tirou a mão dela de si. — Você ainda
não sabe mexer na caixa registradora, princesa. — Como sempre, Celicia
revirou os olhos. Ainda não sabia o porquê do apelido, mas não era algo
que ela gostava muito. — Qual o problema de atender um bando de
sarados? Vai ser um colírio para os seus olhos — debochou.
— Idiota — ela grunhiu baixo e fechou a cara.
— Relaxa! — Me aproximei dela. — Eu vou pegar os pedidos e
você me ajuda a arrumá-los quando estiverem prontos — apontei para o
balcão —, ok?
Celicia apenas confirmou com a cabeça.
Rumei em direção aos rapazes notando que o babaca do Danton
estava entre eles.
— Bem-vindos ao HotCoffee! — saudei ao me aproximar. — O
que vão pedir?
— Cinco croissants salgados e sete doces, refrigerante de… — um
deles começou a listar tudo enquanto os outros o seguiam dando pitacos.
— Certo. Algo mais? — perguntei após anotar tudo o que eles
disseram, sem ao menos olhar para seus rostos. Eles pediram muito mais
comida que o necessário e faziam barulho além da conta.
— A outra atendente é quem vai trazer os pedidos?
Bipei a caneta ao finalizar a escrita e foquei Danton, que passava a
mão por seus cabelos escuros enquanto seus olhos claros analisavam
Celicia, ainda distante de nós, no balcão atrás de mim.
— Não — disse, seca, já me virando para ir preparar os pedidos. O
idiota só queria um pezinho para falar merda.
Coitada da Celicia se esse miserável decidisse importuná-la.
— Os pedidos, Cami. — Entreguei a lista para Camila, nossa
cozinheira, além de chefe. Ela era alta, os cabelos escuros e lisos, cheios de
ondas, guardados na touca e um sorriso único; jovem adulta de sorte, não
sabia que aqueles atletas eram uns capetinhas porque sempre ficava apenas
na parte dos preparativos. — Me ajuda? — sugeri a Celicia, que só maneou
a cabeça em confirmação.
— Obrigada por não ter dado trela para o que ele fala — ela
sussurrou enquanto alcançávamos alguns dos doces e os colocávamos nos
pratos já organizados nas bandejas.
— Tudo bem, eu sei como ele é.
Ainda arrumava os pedidos quando o tilintar do sininho da porta
me chamou atenção. Tyler e ele entraram, rumando em direção aos outros
rapazes espalhados pela mesa estilo alemão.
Claro, andam em bando. Atletas são tão previsíveis!
— Celicia, você acha que já consegue servir e pegar o pedido
daqueles dois que chegaram agora na mesa? — soprei, fingindo arrumar os
copos na bandeja.
— O quê? — Ela virou para olhar a duplinha que se acomodava
junto com os outros rapazes. — Não gosta do capitão?
— Nada contra ele.
— O novato? Nunca o vi pela cidade — divagou.
É, nem eu.
— Celicia, toma — Cami a chamou para pegar as batatas e
depressa, ela as posicionou no lugar, trazendo-as para o balcão. Em seguida,
organizamos tudo.
— Boa sorte, acho — Celicia falou sincera, até meio inocente, mas
esse sempre foi seu tom de voz.
— Você não vai fazer isso comigo.
— Vou, sim. Vai! — Antes mesmo que eu pudesse reclamar, ela
colocou as duas bandejas nas minhas mãos e me empurrou de leve em
direção à mesa.
Servi cada uma das três mesas enquanto ouvia seus burburinhos
sobre o treinamento e a dificuldade de se ter um bom ano após a expulsão
do ex-capitão do time de basquete, além da troca do Danton, que o tornou
ex-capitão do time de futebol americano. Contudo, meus ouvidos só se
apuraram para ouvir quando citaram o nome da minha família.
— O treinador Daughety pode ser um pé no saco, mas nada supera
o Sr. Miller. Ele fez um dos meninos correr até vomitar ano passado.
— Que isso, cara?! — Tyler ficou assustado.
— Ele já disse para o Danton que se ele não mudar, todos vamos
pagar por isso. Não sei mais o que fazer com esse moleque — disse
cabisbaixo e, pelo tom da conversa, eu presumi que aquele era o tal novo
capitão deles.
Eu entendia a conversa particular entre os dois capitães, a
responsabilidade deles era imensa, e Danton Harrison era um caos para
todos na universidade. Dizem que foi ele quem colocou fogo no vestiário
feminino no semestre passado, o que resultou em diversas garotas saindo do
chuveiro semi-nuas, apenas porque, ao que parece, uma delas o deixou.
Deus tenha misericórdia!
Divaguei enquanto buscava a última bandeja no balcão.
— Mas o meu novato é bom, temos muita esperança nele — Tyler
puxou para um meio abraço o garoto que me atropelou hoje, bagunçando
seus cabelos compridos enquanto o apresentava para o outro capitão.
— Sorte a sua, cara! — Ele sorriu largo, pegando seus pedidos, e o
novato me focou.
— Vocês vão pedir alguma coisa? — perguntei, colocando as
bandejas vazias debaixo do braço, já bipando minha caneta.
O cara, ainda sem nome, alcançou o cardápio em cima da mesa,
inclinando o corpo em minha direção; as íris verdes fixas em mim de tal
maneira que conseguia notar seus cílios volumosos. Ainda escutava as
vozes vindas das conversas paralelas dos garotos do time, mas não
conseguia desviar o olhar.
— O que você me recomendaria? Um cheese bacon ou um
sanduíche natural?
— O sanduíche natural não está incluso no cardápio.
Ao ouvir a minha resposta, os rapazes começaram uma nova
algazarra, como um bando de pirralhos.
Revirei os olhos, pronta para sair dali, quando Tyler disse:
— Espera, eu quero fazer um pedido! — Ele sorriu largo demais
para o meu gosto. Ali eu soube que não vinha coisa boa. Que Deus me
ajude! — Meu amigo aqui — Tyler puxou o desconhecido, passando seu
braço longo pelo pescoço do outro. Depressa, os olhos do segundo quase
saltaram do lugar, notando o que o amigo faria. Ele não estava com
vergonha, provavelmente a expressão em seu rosto estava mais para algo
como nojo, raiva ou revolta —, quer seu número de celular. Teria como?
Tyler era divertido, mas Deus me livre de entrar na onda daqueles
caras; esse, em específico, parecia o maior pé no saco. Precisava de paz
nesse semestre e meu pai me perturbando por eu estar com um garoto do
time não chegava nem perto disso.
— Nem em mil anos — decretei, virando os calcanhares e rumando
até Celicia.
Um coro de vaia subiu no local.
— O novato, em?! — Celicia comentou. — Que pena. Ouvi meu
pai dizer que os negócios do pai dele são de outro mundo… — Ela fez uma
careta dizendo aquilo.
— Eu sou o único pobre aqui? — Liam colocou as mãos na cintura,
fingindo revolta.
Crispei os lábios.
Bem, o pai da Celicia era um investidor muito conhecido na cidade,
então, não fazia sentido ela precisar de um emprego.
— Que se dane! Eu não me importo com o dinheiro do pai dele. E
ele é meio sem noção!
— Pelo menos ele é bonito.
Olhei descrente para Celicia. Nunca a vi falando algo assim de
alguém.
— É verdade, mas o Danton também é e, mesmo assim, você o
odeia — Liam alfinetou do caixa.
Celicia bufou e desamarrou o avental, rumando para a porta da
cozinha.
— Vou ao banheiro — avisou.
— Não demore! — Liam soou alto. O olhei, repreensiva. — O que
foi? — Ele se fez de desentendido.
— Dá um desconto pra ela. Ele é o maior babaca.
— Sinto a magia do amor de longe, pequena Misha — disse,
voltando a focar em seu celular.
Após finalizar mais uma segunda-feira de trabalho, fui direto para
casa da minha mãe, o que, para mim, era excelente, já que era mais próxima
da cafeteria do que a casa dos meus pais.
No quarto dela, eu vestia meu pijama enquanto a esperava sair do
banho.
Assistiríamos Drácula, porque era o único que ainda não havíamos
assistido. A gente gostava dos clássicos de terror. A pipoca, como sempre,
estava ao lado da sua cama gigante e confortável. Sentei nela com o balde
em mãos, sentindo as molas chacoalharem, pronta, apenas esperando a
chegada da minha companheira de maratonas.
— Você sabe quem é a família Martinez? Aquela que, há uns
meses, eu disse que estaria de volta? — ela questionou da porta do
banheiro, enquanto secava os cachos com a toalha. Neguei com a cabeça,
pondo um punhado de pipoca na boca, já me preparando para ouvir a fofoca
da vez. — Eles eram pacientes da clínica vez ou outra, já que moravam em
New York. A mãe da família é minha amiga de faculdade. Agora, eles se
mudaram para cá e ela quer que eu vá vê-la. Parece que se separou e quer
uma noite de garotas, acredita?
Lembro vagamente da minha mãe ter me falado sobre como sempre
conversavam muito por telefone. O problema era que as duas tinham uma
vida corrida e nunca podiam visitar uma a outra.
— Acho que seria legal, mãe. Poderia aproveitar para ficar com
algum cara e já sair da seca.
— Ah! Por favor, Misha! Olha minha idade e situação! Só tenho
duas noites livres e são para ficar com você. — Ela riu, voltando para
dentro do banheiro.
Minha mãe sempre foi muito vaidosa e seu momento de skincare
rendia bons minutos de espera. Ela usava muitos produtos na pele marrom-
escura antes de dormir; era seu tipo de terapia particular. Parecia uma
deusa, dotada de inteligência e elegância.
— Não acho certo. Você ainda é jovem, mãe, engravidou cedo,
ainda pode ser bem ativa. Deveria aproveitar. Ao menos, você vai com ela?
Você merece isso!
— Talvez, querida. Não sei. — Suspirou, cansada. — Ela quer ir
em um bar amanhã, porque disse que é badalado.
Não consegui conter a gargalhada.
— Desculpa — pedi, um segundo depois, ao me recompor. — Ok,
isso é muito… coisa de gente velha.
— Eu sei, e não sirvo para isso. Faz o que, uns três anos desde que
deixei Sebastian?
Sebastian… até que o seu último namorado foi legal. Embora usar
drogas e sair todo dia fosse incompatível com a carga horária de trabalho da
minha mãe no hospital.
Ela colocou o rosto para fora do banheiro da suíte, desconfiada da
minha demora em responder.
— Esse é mais um motivo pra ir. — Apontei meu indicador em sua
direção, com a cara de quem dizia: você sabe que é verdade, mãe.
— Você acha? — Mamãe pensou por dois segundos. — Eu vou dar
uma chance. Você vai querer dormir aqui amanhã?
— Posso ir pra casa, fica tranquila.
Ao sair do banheiro e caminhar até a cama, minha mãe, com seus
olhos julgadores de médica, inspecionou de longe meu joelho com um
curativo mal feito.
— E o joelho, como tá?
— Normal. — Foquei no machucado, ignorando o incômodo. —
Nem foi um arranhão tão grande assim.
— Afinal de contas, como isso aconteceu?
Ela deitou-se ao meu lado.
— Ah, não foi nada. Apenas um idiota de skate que trombou
comigo.
— Hmmm, ele era gatinho? — Ela riu. Franzi o rosto inteiro,
deixando entendido que não iríamos prolongar o assunto. — Já passaram
todos esses livros no primeiro dia?
— Não, isso é ideia da Saori. Estamos focadas em melhorar nossa
oratória. — Dei de ombros. — Ela prefere começar por romances clássicos,
por achar mais fácil.
— Pra você, com certeza, não. Você não gosta nem de filmes de
romance.
— Foi o que eu disse pra ela!
— Tudo bem, ela tem razão, isso é muito importante.
Montana se aproximou de mim, afastando as cobertas para sentar-
se ao meu lado na cama. Embora tivéssemos passado muito tempo
separadas, era como se nossos corpos agissem automaticamente em
conjunto quando tínhamos nossas noites juntas.
Por fim, ela escorou a cabeça no meu ombro e eu liguei a televisão,
o que despertou em mim o sentimento costumeiro de refúgio.
04

Meus dedos percorriam a lombada dos livros dispostos em uma


das várias estantes da biblioteca. Clássicos. Saori estava sentada na mesa
mais próxima, debruçada sobre o livro que escolheu. Seus olhos engoliam
as páginas; o cabelo, escuro e liso, escondia parcialmente seu rosto fino. A
luz era boa o suficiente para uma foto. Puxei o celular do bolso e eternizei a
imagem da minha melhor amiga.
Conferindo a foto, percebi as muitas semelhanças com a sua mãe,
as linhas que não estavam lá, agora carimbadas pelos últimos anos. Sua
família, os Yoon, chegaram em Stacy Scarlett no final da década de sessenta
como imigrantes vindos da Coreia do Sul. Conheci Saori ainda muito
pequena, nos longos domingos ensolarados que brincávamos no parque.
Segurei o colar que envolvia meu pescoço; um fio de ouro branco
com um pequeno pingente de cadeado. Saori era especial demais para mim,
queria guardar esse momento com ela em minhas lembranças.
— Achei o Mr. Daniels muito bonito. — A voz sonhadora de Saori
me fez voltar à realidade e eu a encarei com a sobrancelha arqueada.
— Quem?
— O professor de língua inglesa.
— Mas esse não é o nome dele. O nome dele é Dale, Sr. Dale…
Saori soltou uma risadinha de quem sabia algo a mais.
— Tanto faz, ele é gostoso da mesma forma.
— Saori! — a repreendi. — Ele é uns trinta anos mais velho que a
gente.
— Isso importa? O amor não tem idade.
Ela está mesmo falando sério?
— É claro que isso importa!
— Mas eu já sou maior de idade.
Revirei os olhos, voltando minha atenção para meu celular;
precisava procurar um penteado para usar na festa do final de semana.
— Você ao menos falou com ele? Não lembro de te ver falando
com ele na aula de ontem.
— Ainda não, mas terei uma desculpa assim que lermos os cinco
romances que ele me indicou. — Ela elevou as sobrancelhas, sugestiva,
com um sorrisinho de canto.
— Então, foi por isso?
— Claro. Por que mais eu iria ler cinco livros?
Dei de ombros.
— O que você está lendo aí, para que eu possa te acompanhar? —
Olhei para a nossa pilha de livros sobre a mesa.
Saori empurrou nosso amontoado de livros em comum,
emprestados pelo professor, e retirou da mochila um novo livro. Inspecionei
a capa, as cores, o título em letra cursiva.
Loving Mr. Daniels.

Assim que Saori saiu pelas portas da biblioteca, levantei-me para


vasculhar as prateleiras enquanto esperava o Jeff sair do treino. As
prateleiras escuras da biblioteca eram altas, quase três vezes o meu
tamanho. Quando minhas mãos aterrissaram na lombada de Drácula, o
segurei contra meu peito, curtindo a melodia de Arctic Monkeys que soava
em meus fones.
Deixei minha cabeça ser guiada pelo som divertido da música ao
voltar para mesa a fim de organizar meu material. Após fechar a mochila,
movi-me em direção ao balcão da biblioteca, esbarrando em um corpo ao
meu lado sem perceber. Girei em meus calcanhares, atordoada, piscando
algumas vezes.
Ao inclinar o queixo para cima, encarei uma blusa larga e surrada.
Meus olhos continuaram subindo até encontrar o rosto do garoto do skate.
Agora, de perto, notei melhor seus cabelos; eram em um tom de castanho-
claro, sedosos, e logo abaixo da orelha.
Quase revirei os olhos, porém, me contive e apenas dei um passo à
esquerda para mantermos distância, mas ele veio ao meu encalço. Quê?
Controlei a minha irritação e me afastei novamente para o lado contrário.
Mesmo assim, ele me seguiu. Um sorrisinho de canto surgiu em seus lábios
quando o encarei, brava.
Meu Deus, como ele é irritante!
De repente, em um movimento brusco, meu fone foi puxado e eu
bufei, estressada.
— Ei, patricinha-vampiresca, acho que você não gosta de mim —
disse, rindo.
— Acha?
— Ah, vamos lá, deixa eu me desculpar com você?
— Você me derrubou, quebrou a minha câmera, fez uma ceninha
ridícula no meu trabalho e agora me atrapalha a ouvir minha música. Acho
que você não faz muito para que nós possamos ser como… amigos, né?! —
falei, seca.
Ele correu os olhos por todo o meu corpo, depois pela mesa de
onde vim.
— Era você quem andava por aí com esses tijolos. Não tenho culpa
se a sua cabeça estava em outro mundo. — Um sorriso cínico tomou o
canto da sua boca enquanto ousava estender a mão para mim. — Você
deveria me perdoar.
— Não entendo por que quer meu perdão, nem precisaremos ser
próximos — esclareci.
— Você não é fotógrafa?
Ergui a sobrancelha, sem compreender para onde ele queria levar
aquela conversa.
— Eu quero sair bonito nas fotos. — Seu ombro esquerdo se
moveu rápido para a frente, voltando para o lugar no segundo seguinte.
Desisti de prosseguir até a bibliotecária e o olhei.
— Ah, não se preocupe, serei tão profissional quanto fui na
cafeteria. Basta você pagar uma nova câmera para mim que faço você
parecer bonito, e você nem precisa se aproximar.
Ele riu não sei de quê.
— Você é engraçada. Mas e aí, o joelho ficou bom? — Inspecionou
minhas pernas, procurando o hematoma.
Esse cara continuará aqui mesmo?
— Já posso usá-lo para acertar algumas coisas. — Inclinei a cabeça
para o lado, forçando-me a repuxar o canto da boca.
— Ou! — Ele levou a mão ao peito, atuando. — Essa doeu só de
imaginar. — Tentei conter o sorriso. — Você sempre faz isso, é suave como
uma pedra?
— Privilégio único e exclusivo seu mesmo. — Simulei um sorriso
falso.
— Hm… Gostei disso. — Ele pareceu pensativo. — Pegaria mal
dar em cima de uma garota que quer me bater?
Revirei os olhos.
— Por Deus, ainda com essa ideia de dar em cima de mim? — Ri,
voltando a organizar minhas coisas na bolsa.
— Ah, então, você é religiosa?
— Isso é só uma expressão — falei, óbvia.
— Descrente da espiritualidade, então? — Franziu o cenho e
entornou a cabeça.
— Nem um e nem outro, garoto. Não tem nada para fazer a não ser
me perturbar?
— Hmm… na verdade, tenho, sim.
Neguei com a cabeça, irritada pela aleatoriedade dele. Levei meu
fone de volta a orelha e olhei meu celular.
Jeff:
em 15 min no estacionamento
não me deixe esperando!
Misha:
Ok!
Precisava ir para o estacionamento, mas… me perdi em meus
pensamentos e me peguei olhando para o garoto ao meu lado, que já havia
se acomodado na mesa e tirado uma pasta que imaginava ser de trabalhos
da faculdade.
Calado, ele era bonito, na verdade, mil vezes melhor em silêncio do
que falando sem parar. Reparei em seu braço direito, próximo a mim,
diversas tatuagens distantes uma da outra o cobria; mas uma em específico,
cheia de detalhes, me chamou atenção: um coração detalhado com artérias,
bem grande, com a parte de cima adornada por flores e a de baixo com algo
que se parecia um casulo, com um pequeno coelho dormindo.
Reparei também que ele usava adornos, um misto entre bijuterias e
prata ou ouro; o que era bem… confuso, mas nele ficava bonito.
Existia grande magnetismo em sua aura, daquele tipo que te faz
olhar e se perguntar um milhão de coisas; o modo como ele combinava
todas aquelas informações de moda não ajudava em nada minha mente
curiosa a reduzir as perguntas, pois parecia alguém que escondia um
segredo ou algo muito íntimo.
Ou, talvez, eu estivesse pensando demais em um desconhecido.
Seus olhos alcançaram os meus e foi como se pinicassem cada
célula minha.
Pisquei, meio atônita.
Ninguém pode ler pensamentos, mas seu olhar tão incisivo em mim
naquele momento me fez questionar se ele realmente não sabia o que eu
havia pensado ou se eu não havia acabado de falar algo em voz alta.
— É… eu tenho que ir — disse, acho que mais para mim do que
para ele.
Caminhei para o estacionamento às pressas, com a imagem da sua
tatuagem ainda martelando em minha mente.
 
05

Eu mexia em minha unha recém-feita enquanto estava deitada de


bruços na cama de Saori. Era sábado à tarde e nós decidimos que
passaríamos o primeiro fim de semana da faculdade bebendo muito e
curtindo com os calouros. Por isso, eu estava na casa dela, já que antes
faríamos a maquiagem e o cabelo.
Não era de bom grado minha ida a esse bar, mas eu gostava quando
tínhamos nossos momentos de escolher roupas, cabelo e maquiagem. Por
essa parte da diversão, eu aceitei ir.
— Certo, eu preciso mudar! — Minha amiga mexia em seus fios
pretos de um lado para o outro e de cima para baixo, em frente ao espelho
do seu quarto. — Eu sempre estou com ele natural, liso, preciso inovar
hoje! — Não sabia se aquela fala era para mim ou mais para si mesma,
mesmo assim, achei engraçado. — Do que está rindo? — Ela virou em seus
calcanhares, depressa.
— De você toda ansiosa para mudar o cabelo, escolher uma roupa
diferente…
— É importante que eu pareça madura. Na verdade, eu já estou
mais madura, mas preciso que as pessoas me vejam assim. — Ela deu de
ombros, voltando a se analisar no espelho.
— As pessoas ou alguém específico?
Saori revirou os olhos.
— Vai me ajudar ou não? — Estendeu o babyliss em minha direção
e agarrou o livro, sentando-se à minha frente, pronta para ler enquanto
esperava ficar pronta.
Uni minhas pequenas tranças em um coque na raiz. Enquanto isso,
Saori começou a ler o livro para nós duas; ao menos já estávamos
avançando na leitura.
Tomei uma mecha de seus cabelos em mãos e amarrei a outra parte
no alto da cabeça.
— Vou fazer apenas ondas leves.
Saori acenou positivamente com a cabeça e seguiu lendo o livro.
Nesse livro…
Comecei a divagar mais sobre, arrumando o cabelo de minha
melhor amiga no automático.
Acho que alguém em cargo de autoridade não seria meu tipo ideal
de relacionamento.
Como seria um bom homem para me casar?
Jeff diria que um dos filhos de seus amigos de infância. Anthony
até aceitaria qualquer relacionamento que eu apresentasse, mas, no fim das
contas, me recomendaria a alternativa mais viável, ou seja, seguir as ideias
de Jeff. Já minha mãe…, ela…, eu não faço a menor ideia, talvez apenas se
abstivesse da discussão sobre o tema.
Passo os dedos por meu cordão enquanto seguro o aparelho ainda
no cabelo de minha amiga. Querendo ou não, meu marido será de uma das
famílias fundadoras mesmo. O que me atrairá é a minha questão. Bom, ele
pode fazer o mínimo que é ser um bom pai, mas isso planta um amargor em
meu coração. Eu não quero ser mãe.
Penso em contar a Saori sobre as ideias que rondam a minha
cabeça. Talvez traçar um plano para que eu saia da emboscada que minha
família impõe a todos os parentes, porém, isso é perda de tempo. Saori
Yoon daria tudo para ser obrigada a casar igual eu sou, ela nunca me
ajudaria nisso.
Melhor deixar essas ideias de lado, é perda de tempo mesmo.
— Ah! — Suspirou, com os olhos brilhando. — Será que o Sr. K.
será comigo como o Mr. Daniels é com a Ashlyn?
— Por Deus, Saori! — Olhei para ela, espantada. — Espero que
não esteja se apaixonando por esse cara.
Mesmo que eu já tivesse tomado minha decisão de não me meter
mais nesse assunto, ainda não conseguia me conter totalmente. Um homem
em um cargo como o dele não poderia ter qualquer iniciativa desse tipo para
com suas alunas.
— Você tá sendo chata. Não pensa em se apaixonar e sentir as
borboletas no estômago de novo?
Nós duas já tivemos namorados na época da escola. Eu até tive um
casinho de verão. Brad era bonito e veio passar as férias com os tios;
quando ficamos foi insano e ele era muito fofo comigo, me dava pequenas
flores sempre que saíamos para passear. Mesmo achando meu caso de verão
ótimo, ainda não sentia que aquilo fosse um amor de verdade. Muito menos
qualquer outro namoro adolescente.
Eu queria muito acreditar que o sentimento da Saori pelo Sr. K era
apenas um bom momento, tal como foi comigo e Brad no verão passado.
Não estava à procura de me apaixonar. Simplesmente sentia que um
dia alguém especial me encontraria, por isso, guardava um colar que
pretendia dividir com aquele que quisesse entrar em sintonia real comigo.
Eram dois; um cadeado e uma chave. O primeiro eu sempre usava, menos
para tomar banho, e era o que eu estava acariciando com meus dedos agora,
para conter o nervosismo ao pensar que minha amiga talvez estivesse
entregando seu coração a um homem não tão bom assim. O segundo eu
guardava em minha casa, apenas esperando o momento certo.
— E-ei?! — Saori estalou os dedos na minha frente. — Terra
chamando Misha? — Foquei em seu rosto. — Pareceu animada e depois
triste. Sobre o que está pensando?
— Um pouco sobre Brad e a nossa foda de despedida — menti.
Saori não daria ouvidos a mim sobre o professor, era melhor eu mesma
procurar saber por que aquele cara parecia tão suspeito.
— Sinto falta das histórias entre você e o Brad. Eram muito boas —
divagou, negando com o queixo.
— É, ele era uma gracinha — zuei, puxando seus ombros de volta
para ela ficar reta na minha frente e eu conseguir continuar arrumando seu
cabelo. — Só espero que o Sr. K seja com você pelo menos como o Brad
foi comigo.
— Ah, ele vai ser, com certeza!
— É, sei. — Fiz pouco caso. — Vem, vira pra eu terminar de fazer
as ondas logo! — Girei os dedos sinalizando para ela fazer o mesmo com o
corpo.
Saori ainda tirou sarro da minha cara com algumas piadinhas bobas
e eu só entrei na sua.
Acho que se eu pudesse escolher alguma coisa sobre meu
casamento, desejaria que o cara com quem eu fosse obrigada a casar fosse
um pouco gentil comigo. Não acho que conseguiria viver para sempre com
uma personalidade indiferente ou distante. Uma pessoa com um pouco de
bondade me faria ficar de bom grado, porque, bom, de certo, romance
mesmo não teríamos.
Romances… eles sempre foram algo a mais, eram outro nível de
relacionamento conjugal. Seria diferente se alguém estivesse disposto a
estar comigo, me conhecer, me entender da mesma forma que eu desejaria.
Nós despenderíamos tempo com aquilo, eu frequentaria a sua casa e vice-
versa, passearíamos na praia, inventaríamos nomes bobos e saberíamos
coisas simples e únicas um do outro.
Seria incrível, mas não era algo pelo qual eu poderia ansiar. Se me
apaixonasse por alguém, seria um amor para me transbordar. E isso eu não
podia. Pelo menos, tinho uma ótima família, a melhor amiga de todos os
tempos, estudava o que me deixava realizada e era feliz nos trabalhos que
tinha.
Podia suportar ser uma esposa troféu tendo tudo isso, estava tudo
bem, eu devia essa parte de mim à minha família mesmo.
 
06

O bar dos calouros estava lotado.


Uma parte do meu corpo gritava por espaço; a parte patricinha que
o skatista bobo tanto falava. Ainda no carro compartilhado, já pensava
sobre ele estar aqui, e agora esse pensamento martelava ainda mais. De
certa forma, me incomodava. Julgava-me por ter sua imagem rondando
meus devaneios mais profundos. Ele estaria aqui, assim como diversos
outros calouros, e isso devia ser indiferente.
Sacudi a cabeça, tentando dissipar aqueles pensamentos
importunos. Eu nem devia estar lembrando dele agora. Tinha várias pessoas
no lugar, era só puxar alguém para um canto umas horas depois e logo eu
limparia isso da mente.
Eu e Saori esperávamos no balcão do bar para sermos atendidas e,
enquanto eu divagava, minha amiga analisava todo o ambiente.
— Acho que muitos calouros também estão aqui. Quem sabe eu
consiga falar com Emerson sobre a fraternidade. Se você a ver, me avisa,
preciso mostrar pra ela que sou apta para a casa.
Acenei confirmativa. Saori era apta, isso era óbvio, assim como ela
ser aceita, mas a insegurança da minha amiga não a deixava ver.
Tomei um tempo analisando o ambiente. Por mais que fosse
pequeno e até apertado, era bonito e bem escurecido pela falta de
iluminação; apenas luzes neon em verde, vermelho e azul nos circundavam.
O balcão era grande, mas muitas mesas altas também estavam dispostas à
nossa frente.
— Senhoritas? — um dos atendentes nos chamou e eu acabei
saindo da minha divagação, o focando depressa. — O que vão beber?
— Cerveja pra mim — Saori falou, puxando seu cartão em seguida.
— Gin — notifiquei, também entregando o meu.
— Certo. — O bartender foi rápido em cumprir seu dever bem
diante de nossos olhos. Enquanto o olhava, pensei conhecê-lo de algum
lugar, mas logo descartei o questionamento quando Saori puxou assunto.
— Se ele estiver aqui… — Ela suspirava, olhando ao redor.
Alguns alunos fofocavam sobre existir uma parte subterrânea no
bar da faculdade; um lugar livre onde os professores podiam usar para se
divertir um pouco mais. Também diziam que era possível encontrar algumas
calouras lá, ou seja, garotas como nós. Eu não sabia se isso era verdade e
nem queria saber. Porém, Saori queria. Ela desejava que o velho a pegasse
pela cintura e a levasse para o subterrâneo. Sabe-se lá o que essa garota
tinha na cabeça.
A movimentação de pessoas aumentava a cada segundo, assim
como minha agonia. Afinal, todos sabiam que, vez ou outra, alguém poderia
ser chamado para o tal lugar sem que ninguém sequer percebesse. Minha
amiga podia ser uma delas. Eu podia ser uma delas…
— As bebidas. — O bartender sorriu, dispondo nossos copos no
balcão.
— Obrigada — Saori e eu dissemos em uníssono, pegando nossas
bebidas e guardando os cartões.
Suguei o canudinho, girei nos calcanhares e olhei em volta ao
bebericar um pouco. Realmente, muitas pessoas, mas nenhum sinal de
alguém que quisesse chamar minha amiga para a área restrita. É, talvez isso
nem acontecesse, devia ser só boato mesmo…
De repente, percebi um escrutínio em mim; arrastei as íris pelo local e então
o vi… era ele. Tudo parecia acontecer em câmera lenta; as pessoas ao redor
ficaram embaçadas e eu só foquei naquele ser do outro lado do bar.
Sua mão esquerda acenou em minha direção, sereno, e depois ele
sibilou "ei, patricinha" fazendo uma concha com uma mão e o dedo
mindinho levantado, a outra fingindo levar um canudinho à boca.
Levei meu olhar ao meu copo, percebendo que eu realmente estava
com o dedo levantado. Sem demora, o abaixei, focando em seguida no
garoto distante com os olhos cerrados, fazendo movimentos de negação
leves para Saori não perceber. O dedo indicador dele me chamou com um
sorrisinho de canto pretensioso. Tinha um banco vazio ao seu lado e ele
sinalizou com a cabeça para que eu fosse para lá.
Novamente, movi o queixo em negativa.
Com falsidade, ele fez uma cara de desapontado que dizia "ah, por
quê?".
Dei de ombros, aumentando meu desejo interno de dar risada de
seu astral leve. Creio que ele percebeu, porque logo esticou os lábios de
ponta a ponta.
Neguei com a cabeça e voltei minha atenção para minha amiga do
meu lado. Ela estava focada em um brutamontes de costas, à esquerda do
bar. Era o nosso professor. O cara conversava baixo com um funcionário,
parecia algo confidencial. Depressa, eles adentraram a parte de trás do
estabelecimento e passaram pela porta ao lado das bebidas.
— Temos que ir lá! — minha amiga já falava dando o primeiro
passo e tive que ser rápida em contê-la, segurando seu pulso.
— Você não pode ir até lá. — Era óbvio, só não parecia tanto assim
para ela.
— Eu posso levar vocês. — A voz que soou nos meus ouvidos me
atingiu como uma explosão interna. De novo, ele estava atrás de mim.
Saori o analisou de cima a baixo e abriu um sorriso.
— Ah, você. — "Você"? Ela o conhecia? — Claro. — Minha amiga
quase deu uns pulinhos.
Desacreditei que aquela garota estava mesmo aceitando a proposta
de um estranho.
Ela sinalizou pressa com os olhos, em direção à porta onde o
homem havia entrado. O moleque ainda teve a coragem de me olhar como
quem diz "o que eu posso fazer?" dando de ombros.
Meus lábios estavam em linha e eu lhe cortava com o olhar,
"poderia não ter se aproximado, para início de conversa!".
O infeliz tinha mesmo passe livre. Como ele conquistou esse feito
eu não sabia, mas ele falou com tantas pessoas… todos ali – contribuintes,
visitantes e até a moça que fazia o que se esperava para um show ao vivo –
o conheciam.
O lugar era intimista; as luzes brancas estavam apagadas e os leds
vermelhos davam um ar sexy ao ambiente. O bar era o único espaço com
leds verdes. No centro, algumas mesas distantes, os cantos rodeados de
sofás espaçosos, mas o que chamava a atenção mesmo era o corredor escuro
à direita; onde, com certeza, haviam quartos.
— Ele está ali. — Saori apontou discretamente quando encostamos
no balcão.
— Então, você gosta dos mais velhos? — O sorriso torto dele
pareceu mostrar sua mente maquinando algo.
— E você, o conhece? — Minha amiga endireitou a postura e
cruzou os braços na defensiva, o focando.
— Olha, eu vou te falar a verdade daqui, mas você tem que me
prometer que não contará para ninguém. — Saori confirmou várias vezes
com a cabeça e ele se aproximou de mim para falar melhor com ela, pois eu
estava no meio deles. — Chega como quem não quer nada e diz no ouvido
dele que está disposta a ir no quarto. Só se quiser mesmo ficar com ele.
Aqui, eles trazem companhia ou pegam as meninas da faculdade, só isso.
Não ache que ele vai querer algo com você além disso. Esses caras são só
um bando de babacas. Mas, se quer só sexo sem compromisso… — Ele deu
de ombros, finalmente distanciando o rosto do meu, e depois vagou seu
olhar por todo o salão.
Contudo, aquele momento de proximidade fez minha respiração
parar por tempo indeterminado. Só percebi quando ele saiu de perto e eu
liberei todo o ar de uma vez.
Esse garoto me deixava meio desnorteada e eu não gostava disso.
— Com certeza. — A fala de Saori tirou-me de meus devaneios.
Girei o pescoço na direção da minha amiga que confirmava sem
parar com a cabeça. É, parecia que aquela paixonite ia mesmo dar em
algo…
Julgo que, em seu interior, ela ainda pensava em um
relacionamento sério com o cara, no entanto, não perderia essa
oportunidade.
— Certo, então vamos — ele disse, animado, indicando com a mão
para que ela o seguisse. Tudo parecia animar aquele garoto e isso não era
algo a se comemorar; minha amiga podia ficar com o professor hoje e ele a
esquecer amanhã, mas ela não o esqueceria.
— Até logo, me deseje sorte. — Saori me beijou na testa, e eu
retribui beijando sua cabeça em nosso meio abraço de despedida.
— Juízo! — adverti, distante.
De certa forma, aquilo me pareceu uma despedida enraizada de
sentimentos negativos e estranha demais no meu coração para um “vou ali
ficar com um cara, amiga, já volto”; isso não estava certo.
Eles rumaram até o homem alto que vestia terno azul de linhas essa
noite. Meu coração palpitou, apreensiva sobre o que poderia acontecer.
O não tão desconhecido voltou para o meu lado e se endireitou
rente ao balcão, assim como eu, apoiando os braços em um V de cabeça
para baixo. Mesmo com sua proximidade, mantive o foco em minha amiga
se inclinando para falar no ouvido do professor. O cara reagiu no mesmo
instante com um sorriso largo, colocando uma mecha do cabelo de Saori
atrás da orelha, e se levantou confirmando seja lá o que ela havia dito em
seu ouvido.
Em seguida, os dois entraram no tal corredor escuro.
É isso: agora ela estava com ele. Esperava que essa fissura dela
pelo professor acabasse logo.
O arranhado de garganta nada discreto da pessoa ao meu lado me
fez virar para ele e me perguntar o que queria e por que não me deixava
prestar atenção no que aconteceria com Saori, mas me mantive calada, o
olhando sem expressão.
— Ela é uma gata, uma pena que esses caras sejam uns idiotas. Se
ela tiver com o coração partido, pode avisar que eu tô aqui, sou um ótimo
ombro amigo — dizia, convencido, estufando o peito. Assumo, ele tinha um
leve tom engraçado; obviamente pros outros, não para mim. Bati de leve em
seu ombro em repreensão. — Ai, patricinha! Você tem a mão pesada, viu?!
— Fingiu, massageando a região.
— Para de me chamar assim! — Cruzei os braços embaixo do
busto, os arrebitando.
Tá, era uma ação bem infantil e chamativa, mas algo em mim
queria chamar a atenção dele. Eu senti a sua análise minuciosa queimar
todo o meu ser. Na verdade, meus esforços eram totalmente inúteis, sabia
que seus olhos me admiravam sem eu ter que fazer nada.
Aproveitei também para analisá-lo. Sua blusa era branca e
coladíssima ao corpo, lembrando aquelas baby looks dos anos noventa, mas
com as mangas recortadas. Mais uma vez, uma camisa preta de botão o
cobria, ainda aberta. Porém, agora, os acessórios eram colares mais
compridos, dando um novo ar ao seu estilo. E a calça era bem folgada, preta
e com bolsos. É… talvez ele até entendesse de moda, mas isso não
significava que ele era algo a mais na minha cabeça, claro!
— É mais divertido te ver de cara emburrada. Na verdade, acho que
te ver emburrada e me batendo foi melhor. — Forçou uma atuação. — Não
que eu faça o tipo masoquista. Ah, mas vai… apanhar de mulher bonita é
outro nível, né?! — Ele parecia tão sagaz com aquele sorriso torto,
passando a mão pelos cabelos castanhos escurecidos pela noite, que eu
quase respondi "sim". A aura dele era perigosa, chamativa demais,
claramente inclinada a um erro iminente. — Quer dizer… não sei se você
gosta de garotas, óbvio, só tô te contando, porque, bom… é… — E, nessa
hora, eu vi o quanto ele podia se embaralhar nas palavras.
— Não fiquei com nenhuma, por enquanto, mas é, deve ser bom
apanhar de mulher bonita mesmo. — Sorri, sem conseguir me conter.
— Hmmm. É mesmo? — Ele virou o tronco em minha direção. —
Eu sou um cara legal e divertido que gosta de mulheres assim. — Desceu as
íris, esquadrinhando todo o meu corpo. — Do tipo gatas pra caralho, sabe?
Você já deve ter visto uma no espelho…
Virei a cabeça para trás, rindo alto com o pior flerte de todos. Só
depois pensei que curvei a coluna por instinto e estava dando uma visão
privilegiada do meu busto. E, pela forma como ele me olhou, sei que
também gostou da visão que teve; aquela constatação pareceu passar
pequenas chamas de brasa em minha pele.
— Você é péssimo inventando cantadas.
— Me deixa te mostrar outras coisas que faço bem, então?
Nossos lábios se esticaram ao mesmo tempo e nos divertimos
juntos pela primeira vez, mas isso não era tudo. Meus olhos vacilaram
correndo em direção ao mesmo lugar que minha amiga foi, pela primeira
vez em minutos, tentando fugir dele e de seu escrutínio em mim.
— São apenas quartos, lá? — Indiquei o local com a cabeça.
— Alguns para uso dos clientes e algumas salas da administração.
Posso te levar lá, se quiser. — Sua voz agora estava mais rouca, banhada de
luxúria.
— Seria só… — Engoli em seco, apreensiva.
Eu quase nunca transava assim, em um lugar reservado de uma
festa, contudo, ele me instigava. E isso, com certeza, não era uma boa para
mim; se Jeff descobrisse, estaria ferrada.
— Uma rapidinha? — sugeriu o complemento.
Com os olhos verdes com pequenos pontinhos castanhos cerrados e
um sorriso de canto, ele me provocava. Dava para notar tudo nele por conta
da nossa proximidade. Acho que com raios solares seus olhos mudariam de
cor. Talvez eu quisesse ver isso…
— Não — menti e endireitei a postura. Não me passaria por uma
garotinha inocente e sem nenhuma palavra firme. — Quero ver o
administrativo. Você tem acesso?
— Administrativo? — Elevou as sobrancelhas, desconfiado de que
eu estava mesmo mentindo.
— Sim. — Dei de ombros. — Gosto de aprender um pouco sobre
essas coisas, me ajuda na cafeteria e no jornal. Imagino que, além de ter
acesso ao local, você sabe um pouco sobre, hm?!
O impacto que minhas palavras tiveram nele foi nítido. Ele nem se
esforçou para esconder. Seria cômico se não fosse um momento a mais. Seu
corpo se aproximou do meu, sua mão esquerda pousando do meu outro lado
na bancada do bar, levando a boca até o meu ouvido.
— Entender eu até entendo, só não gosto, mas você quer que eu te
mostre só isso ou quer algo mais?
Se antes eu estava quente, agora as minhas células inteiras estavam
em chamas, carentes de um toque, uma proximidade; dele e só dele.
Porém…
As luzes brancas foram ligadas de repente.
Mas que porra!
Meus olhos arderam com a surpresa e minhas pálpebras se colaram
de imediato. Não pude nem raciocinar quando uma voz alta chamou a
atenção de todos. Viramos para a porta, atentos.
— É sério, galera, os policiais estão a três quadras daqui. Tem uma
saída de emergência no final do corredor. Vão! — Ela, uma mulher jovem
que nunca vi na vida, apontava para onde Saori foi. — Por aqui ninguém sai
mais. — Com a mão fechada e apenas o polegar solto, ela apontou para trás
de si enquanto trancava tudo.
Minha cabeça girava em apreensão e nervosismo. Nunca tive
problemas com a lei, nem pensei em ter, e não seria agora que teria.
Virei para o menino ao meu lado como quem perguntava “o que
faremos?". Ele ainda estava focado em nossa informante bondosa, mas ao
me perceber encarando-o, franziu a sobrancelha, parecendo meio perdido
por um momento.
— Vem. — Se apressou em me estender a mão.
— E a minha amiga?
Saori não ficaria sozinha e sem segurança com o velho, ainda mais
sendo noite. Cruzes! Me arrepiava só de pensar.
— Vamos buscá-la. — Ele meneou a cabeça para o lado, me
indicando para o seguir. Entramos no corredor escuro e, por estar atolado de
gente passando, sua mão se estendeu para trás, segurando a minha, na
intenção de não nos perdemos um do outro.
A primeira coisa que percebi ao notar nossas mãos atadas, foi: eu
não devia me atentar no mínimo detalhe que era segurar sua mão, contudo,
cada linhazinha da digital dele era tão perceptível para mim que era
impossível não senti-lo.
Batemos de porta em porta e apenas na quinta tentativa os gritos e
confusão no ambiente que me atordoavam pareceram cessar, pois ela foi
aberta.
— Ei, cara! — ele falou para o nosso professor que estava meio
suado, usando apenas a calça social e a blusa branca jogada no ombro. —
Temos que vazar.
Em dois segundos, uma Saori cabisbaixa, enrolada em um lençol,
descalça e com os cabelos desgrenhados, saiu também. Os olhos do cara
estavam sobressaltados, meio apreensivo, como se tivéssemos visto algo
que não devíamos.
— Cuide das coisas dela! — Ele entregou os sapatos e roupas da
minha amiga para o garoto ao meu lado, virou para mim e pegou a carteira,
me dando alguns dólares. — Chamem um carro. — Apontou o indicador
para nós. — Vocês não me viram aqui e todos ficam com nota máxima na
faculdade.
Faculdade? Tipo, todas as matérias? De que merda ele estava
falando? E por que isso?
Estagnei, perplexa com a ousadia dele. Ao meu lado, só via um
queixo balançando em confirmativa.
O garoto estava confirmando? E ainda parecia aéreo, olhando
apenas as roupas e coisas da minha amiga.
O que está acontecendo aqui?
Voltei a focar no que estava diante de mim; a garota que conhecia
há anos, sem expressão, sem nada, murcha como uma flor. Saori sempre foi
ensolarada e pensei que após ficar com o cara que tanto queria, estaria tão
feliz, querendo contar até os mínimos detalhes. De certa forma, aquilo
partiu meu coração e um gosto amargo tomou o céu da minha boca, tal
como eu sentia quando era criança.
Como um vulto, o nosso professor, que agora descobri também ser
do tal garoto que ainda não sei o nome, passou correndo e olhando para
todos os lados. Minha mente viajava tentando decidir se ele era um
completo babaca ou, pelo menos, estava preocupado, já que nos deu alguns
dólares.
— Vamos, meninas, vamos! — O estranho abanava a mão no ar,
nos chamando, já com o corpo direcionado para a porta no final, por onde
muitas pessoas já tinham saído.
Decidi mandar uma mensagem para meu ex pedindo carona,
enquanto rumávamos em direção a porta de emergência no fim do corredor.
Bryan era o único que poderia nos tirar dali em segurança.
Misha:
tava na festa dos calouros ou está aq por perto?
Bryan:
já saí, tem policiais chegando
estou a umas duas esquinas
Misha:
pode voltar pfv para me buscar? n tenho como voltar para casa
Bryan:
claro
onde vc tá?
Misha:
saída de emergência, nos fundos
vou te mandar a localização
Bryan sempre foi bom para mim, era a única pessoa da nossa
confiança por perto.
— Chamei um amigo para nos buscar — disse assim que passamos
pela porta. O garoto me olhou meio desconfiado. — Ainda precisamos
esperar uns cinco minutos.
— Tudo bem — ele falou, mas deu alguns passos para longe de nós
duas. Foi estranho, muito estranho. — Melhor andarmos um pouco, para
esperarmos longe das pessoas e ele nos ver sem dificuldade.
Foi o que fizemos. Andamos um pouco pela esquina até
atravessarmos, parando na calçada. Mandei a nova localização para o
Bryan. Estava muito escuro e frio, então puxei Saori mais para perto pelo
braço, mas ela teve uma reação negativa, descolando-se de mim e
sobressaltando no lugar de imediato. Seus olhos até me procuraram, porém
ela apenas negou com a cabeça e se perdeu de novo em seus pensamentos.
Franzi o cenho em sua direção, estranhando aquilo. Estava frio,
poxa, e sabíamos sobre ela ser uma pessoa mais friorenta.
Olhei adiante, para o garoto, notando que ele não percebeu nada,
porque parou muito à nossa frente, parecendo meio perdido em seus
pensamentos.
Minha mente viajou a mil por hora pensando o porquê deles
estarem assim. Se aquele cara tinha feito algo que ela não queria, se ela
confiaria em mim para falar o que aconteceu, se ela estava bem… essa
última era o que mais me preocupava. Eu odiava só a ideia dela ter sido
machucada.
E ele? Por que tão distante de nós? Tudo bem que eu não queria ser
amiga dele, mas a sua mudança de personalidade foi repentina.
Decidi analisar de novo minha amiga. O lençol branco enrolado ao
corpo de Saori era inapropriado para vestimentas e estava com a barra suja
pela pouca lama dos gramados que passamos. Uma pequena chuva caiu
enquanto estávamos no bar.
— Você quer vestir suas roupas? — ele sugeriu de repente,
esticando as roupas da minha amiga em sua direção.
Porém, Saori sequer falou algo; mantinha a cabeça baixa, vagando
em seus pensamentos.
A rua tinha pouco movimento, apenas uma iluminação intensa no
meio dela, pois muitas pessoas saíram andando para suas casas. Acho que
tudo ali era um complô para fazer meu coração acelerar. Por incrível que
pareça, a única coisa que não me transmitia medo era o desconhecido,
porque até a minha amiga naquele estado me causava pensamentos
tenebrosos; e se algo aconteceu com ela?
Fosse o que fosse, eu confiava que Saori me contaria logo e nós
superaríamos isso. Se fosse necessário, poderíamos consultar a minha mãe,
ela era ginecologista. E meu pai, Anthony, psicólogo. Ele poderia ver
alguém que estivesse disponível e fosse de confiança. Não existia nenhum
problema entre a gente que não pudéssemos resolver. Esse professor nos
veria na justiça, isso era certo, caso algo tivesse acontecido.
O som das rodas de um carro bem conhecido por mim se fez
presente próximo de nós. Virei o pescoço para vê-lo melhor. Ele estacionou
na nossa frente e depressa fui para o banco do carona, enquanto o garoto e
minha amiga entravam na parte de trás. Percebi que Saori se acomodou bem
distante do nosso desconhecido e nem falou com Bryan, que também notou
sua distância e analisou pelo espelho os trajes da minha amiga, estranhando.
— A gente pode ficar um pouco na sua casa? Pra tomarmos um
banho… — Gesticulei com as mãos descompassadas.
O dinheiro que o professor me deu, o meu cartão e celular estavam
no meu bolso, mas eu ainda estava muito nervosa.
— Claro! — Bryan deu partida sem pensar duas vezes.
Ele tinha vinte e dois anos e morava em um apartamento próximo à
faculdade com outro amigo, esse também era jogador de futebol americano,
mas namorava, então vivia na casa da namorada. Eu sabia que a casa dele
estava disponível, porque, às vezes, saíamos juntos durante meu último ano
no colégio. Nunca mais tínhamos nos visto, entretanto, mantivemos uma
boa amizade. Fora que ele era quase como meu motorista particular, já que
não ligava muito para as aulas e eu tinha muitas no último ano.
Minha mente vagava pelo fato de que eu ainda não entendia por
que não desconfiava do desconhecido e como passamos de uma briga para
um flerte bobo tão rápido; foi divertido, não dava para negar. Eu não o
odiava, não era isso, a existência dele perto da minha só me causava um
estresse tremendo, pois eu sentia todas as minhas entranhas queimarem. Era
raiva, só isso.
E agora, me pegava cansada e preocupada demais, porém, sem
entender muito bem no que havia me metido.
 
 
07

Saori estava trancada no quarto do Bryan, tomando banho em sua


suíte, enquanto eu e ele esperávamos no corredor. Já o nosso desconhecido
havia ficado no andar de baixo.
A casa do Bryan era pequena; duas suítes no andar de cima, uma
sala com cozinha unificadas no de baixo e mais um banheiro. Só havia uma
pequena escada nos separando. Era perfeita para dois caras que faziam
faculdade.
Eu gostava do que a gente tinha, ir até lá depois da aula para ficar
com ele. Foi bom para me distrair um pouco do horror do último ano.
Nunca conheci seus pais, ele dizia que eram velhos ricos que moravam em
New York e que eram chatos. Eu acreditava, e ele sempre me contava algo
engraçado para fugir do assunto até a gente só se beijar. Não era um
romance forçado, eu não tinha que conviver a todo tempo com ele, que
também não ia na minha casa. Nunca gostei dessa coisa de apresentar para a
família, por mais que já me tenha acontecido. Com Bryan era fácil, porque
éramos amigos e ficávamos; a segunda coisa não alterava a primeira.
Mas ainda não era amor de verdade.
Bryan estava do meu lado, eu de braços cruzados. Meu pé começou
a bater silencioso no chão, apreensiva pela demora da minha amiga. Se
Saori pensava que eu não faria oitenta e quatro perguntas, estava muito
enganada. Queria saber tudo. Absolutamente tudo! E se ele a tivesse
machucado… eu sequer queria pensar nisso. Chacoalhei a cabeça, fitando o
chão. Meu cérebro não processava essa ideia, eu a temia demais. Se fosse o
caso, faria qualquer coisa para ver aquele desgraçado apodrecer atrás das
grades.
— Eu sei que não me diz respeito, mas… só quero te dizer que
confio que será uma boa amiga para ela. E também quero que saiba que,
caso tenha rolado qualquer merda, vocês podem confiar em mim para pedir
ajuda. Mi casa su casa. — Seu sorriso complacente e os olhinhos
brilhantes, que me faziam ter que curvar muito o pescoço para trás a fim de
focá-lo, estavam presentes.
Adorava o fato dos olhos dele serem escuros, assim como seus
cabelos e sua pele. Ele devia ter uns 1,87m de altura e o sorriso, com
certeza, fazia várias garotas caírem aos seus pés e calcinhas molharem. Os
ombros eram largos e os músculos muito bem desenhados, típicos de um
jogador de futebol americano. O corpo de atleta era visto de longe, e
inegável para qualquer um.
— Valeu, Bryan!
— Não é nada. Sabe que somos amigos. — Ele cutucou meu ombro
com o seu. — Então… — O ar de confusão surgiu nele, de novo. — Aquele
lá embaixo é seu novo namorado? Vocês estavam no bar da faculdade?
Nem queria ser tomada pelo humor agora, mas foi impossível não
rir.
— Nossa, esqueci de como você é fofoqueiro. — Rodei os olhos
em órbita.
Bryan fungou, dando de ombros.
— Ele é bonito, você é gata… hmmm… é! Formam um bom casal.
— Pelo amor de Deus, cala a boca! — Empurrei seu ombro de
volta com a mão, rindo das bobagens que falava.
Ele se curvou para me olhar, descrente, e rimos juntos.
— Ah, qual é, Misha? Não é porque a gente ficava que não
podemos falar sobre seus namorados. Ainda somos amigos.
Levantei as sobrancelhas, concordando.
— Mas eu e aquele cara não namoramos. Eu nem sei o nome dele.
— Estendi as mãos.
— Como assim você deixou que eu colocasse um desconhecido na
minha casa? — O medo de Bryan era divertido.
— Desculpa? — Ri nasalado.
— Você… — Ele subiu um dos cantos da boca, rindo, mas logo
ficou sério e me analisou com calma. — Você tá tensa, mas não por ele.
— Um pouco, sim — sussurrei.
— Dorme aqui hoje?
Estranhei o pedido.
É claro que eu não podia. Se o Sr. e a Sra. Yoon soubessem que
dormimos fora eles poderiam contar para os meus pais, mesmo que não se
dessem tão bem. E tinha o desconhecido, que eu nem sabia como voltaria
para casa.
Rodei os olhos, constatando que eu tinha várias coisas para resolver
antes de dormir.
Bryan sorriu para mim, como se soubesse de tudo que se passava
pela minha cabeça, e segurou meu queixo, erguendo-o levemente para que
eu o olhasse.
— Saori precisa de um lugar seguro agora e meu amigo só volta na
segunda de tarde. O carinha lá embaixo pode pedir um carro amanhã de
manhã, não? — Ele inclinou a cabeça pro lado.
— Pode ser. Mas você tem que… — Fui interrompida quando ele
me puxou para um abraço. Fiquei tão extasiada que nem consegui pensar
direito, apenas repousei minha cabeça em seu peito e quando me permiti
relaxar por um segundo...
— Uou!
…fui puxada de volta à realidade. A voz rouca que ouvi perto da
gente era uma que eu já estava acostumada, por mais que não devesse.
Me desvinculei imediatamente de Bryan.
Mas que merda!
— Desculpa aí, gente! — ele pediu com a mão espalmada e
andando para trás, a fim de descer as escadas novamente.
— Sem problemas, cara. As meninas vão dormir aqui. Se quiser
ficar, é bem-vindo. O sofá abre, é uma boa pra você dormir lá. Ou podemos
chamar alguém para te levar para casa — Bryan ofereceu.
— Eu… É, pode ser, posso dormir aqui. — Ele negava com a
cabeça, dando de ombros.
— Beleza, eu vou pegar um edredom e travesseiros.
Bryan saiu em direção ao quarto, me deixando sozinha com o
garoto que estava impregnando a minha mente.
— Ela tá demorando, né? — O moreno se aproximou de mim,
indicando a porta do quarto que Saori trancou.
— É.
— Acho que ela vai precisar que você fique com ela. É melhor
bater e ver se ela tá bem. Seja lá o que aconteceu naquele quarto, não é bom
ela ficar sozinha agora.
As palavras dele me fizeram vagar por um minuto, pensando que,
talvez, devesse me preocupar mais. Eu estava sendo uma péssima amiga?
— Verdade. Já vou. — Me direcionei até a porta e bati algumas
vezes e, assim que Saori gritou para eu entrar, a abri devagar. O sorriso que
ela tinha nos lábios era esquisito, muito esquisito. — Você tá bem?
— Sim — respondeu sem pestanejar. Era uma mentira descarada.
— Ok… O Bryan disse que podemos dormir aqui. — Um
sorrisinho sacana brotou em seus lábios, ela sabia do nosso casinho. —
Você pode ficar aqui, se quiser.
— Claro. — Sintética, era isso que ela estava parecendo. Um robô.
Manipulada para dizer até a coisa mais simples.
— Beleza, olha… — Me aproximei para sentar na cama e tocar em
seu ombro. Ela se afastou como o diabo foge da cruz. — Ok… —
Evidenciei o quanto aquilo era estranho.
— Eu tô… — tossiu e tentou fungar, mas não saiu nada — ficando
um pouco resfriada, porque andei descalça, e também pelo frio da noite. —
Forçou aquele sorriso esquisito de novo, puxando um edredom e o
enrolando nos ombros. — Eu vou dormir. Pode ir ficar com o Bryan,
aproveita.
— Você tá bem mesmo?
— Claro que sim — ela falava como se eu tivesse realmente
perguntado algo muito estranho.
Nos despedimos e eu fechei a porta, depois, desci as escadas. O
desconhecido, que tinha em mãos as coisas que Bryan havia dado para ele
dormir, logo notou a minha proximidade.
— Me ajuda com o sofá?
— Claro — disse, me aproximando ainda mais.
Começamos a arrumar tudo sem demora.
— Desculpa ter dado em cima de você na festa. Eu não sabia que já
estava com alguém, se soubesse, nunca teria dito aquelas coisas, fui
muito… sem noção. Só… finge que aquilo não aconteceu. Te juro que
nunca mais vou desrespeitar o relacionamento de vocês. — O desespero
dele era evidente. Foi engraçado.
Uma parte minha queria dizer a verdade, uma parte estava
preocupada com a Saori, e a pior de todas as partes desejava ter aqueles
olhos fixados em mim por tempo indeterminado.
Qual era o meu problema? Bryan era a opção segura, não ele. Eram
muitas coisas, nenhuma compatível, e todas péssimas.
Terminamos de arrumar o sofá e ele se jogou, tirando o telefone do
bolso e mexendo em algo. Fiquei lá, parada como uma estátua. Queria dizer
que Bryan não era meu namorado, mas não conseguia. Pareceu mais seguro
e cômodo o deixar acreditando naquilo.
— Ok, eu já coloquei para despertar às oito horas. Posso fazer o
café da manhã, se quiserem…
— Bryan gosta de algo doce com os ovos fritos — sugeri.
Misericórdia. Agora, ele ia achar mesmo que éramos namorados.
Por que eu só não abri a boca e desmenti de uma vez por todas?
— Claro. Adoro cozinhar! — Sorriu, sincero. — Boa noite,
patricinha. — Enrolou os ombros e curvou o corpo de lado.
Por um segundo, ele parecia um pequeno anjinho. O corpo dele não
era estruturado ou musculoso como o de alguns atletas. Ele parecia um
pouco magro, mas dizem que o esporte suga a gente, né? Ele devia ser
desses skatistas que vivem muito em competições. E… bom, isso não
importava, porque nós nunca mais nos veríamos; no máximo, uns esbarrões
acidentais na faculdade, e tudo bem.
Decidi subir e dormir com o Bryan, era melhor do que explicar a
minha vida para um desconhecido que me ajudou a entrar na área vip do bar
dos calouros.
Era sempre melhor permanecer no raso.
 
08

Odeio a saudade que tenho dos dias de neve.


Minha família, por parte de Jeff, me mandava ser comportada e
boazinha; algo com o que já havia me acostumado. Contudo, quando era dia
de neve, eu podia ser o que eles queriam e ainda estar do meu jeito.
Minhas roupas de criança já não agradavam minha família, só as
usava quando saía com minha mãe. Eles diziam serem chamativas demais,
mas isso estava em meu sangue, era quem eu era e, talvez, ser assim não
fosse mesmo bom. Afinal, eu tinha uma ótima vida, por que não ser só mais
um pouco flexível?
Escolher cursar medicina foi tanto pela minha mãe quanto por
simplesmente eu ser boa nisso; claro, havia uma parcela de amor às vidas
humanas, mas, com certeza, era muito mais por eu ter uma facilidade com
aquilo. Nada me deixava mais feliz do que me expressar como gostava ou
reconhecer isso em outra pessoa, ao passo que meu coração batia acelerado
ao pensar que um dia salvaria vidas, assim como minha mãe. Eram duas
paixões contraditórias, mas que se amarravam bem com a minha terceira;
fotografar.
A moda me inspirava e com a roupa certa para mim eu acreditava
ser capaz de fazer qualquer coisa.
Neguei meus pensamentos com um menear de cabeça quando
passei a mão pela roupa em frente ao espelho. Agora, já crescida, podia me
vestir como quisesse mais vezes. Foram dias e brigas para poder usar uma
saia justa xadrez em tons mais claros com blusas curtas. Às vezes, regalias
simples, e até bobas, eram difíceis demais. Mas não queria pensar nisso.
Não queria ser uma filha ingrata.
Espanei meu cabelo – agora alisado – para trás, respirando fundo, e
sorri para mim mesma.
Veria Saori na faculdade e imploraria para ela dormir na casa da
minha mãe depois do trabalho, assim, poderíamos conversar sobre o que
havia acontecido na sexta. Esperava que ela não recusasse. Ela não havia
respondido nenhuma mensagem minha esses dias. Parecia que nem havia
usado o celular, porque não postou nada nas redes sociais. Também fomos
dispensados das primeiras aulas de hoje – que eram do professor que a
Saori gostava – antes mesmo de entrarmos em sala. Só não me preocupei,
porque os pais dela não ligaram para avisar nada e, talvez, eu só estivesse
aflita demais. Ela devia ter descansado o fim de semana inteiro, afinal, foi
nossa primeira semana na faculdade e eu já estava surtando à toa. Se
adaptar à nova rotina pode ser complicado mesmo…
Meu pai Jeff alcançou meu ombro quando eu estava saindo de casa,
o que me fez despertar de meus devaneios.
— Misha?
Virei para o focar, sorrindo sem jeito.
— Culpada. — Sorri. Eu sabia que ele brigaria por eu não ter
tomado o café da manhã.
— Por favor, coma? — suplicou. — Ao menos deixe que eu te
prepare algo?
— Para levar, sim. — Assenti.
Corremos para a cozinha onde meu outro pai, Anthony, estava. Os
dois eram ótimos para mim, os amava e sentia que eles me amavam, mas…
acho que eu estava mudando muito rápido. As coisas mudaram. Não acho
que eles sentiam isso. Às vezes, eu só pensava que já devia estar longe.
Todos os adolescentes que entram na faculdade mudam de cidade ou vão
morar próximo de seus polos. Eu não fui, assim como alguns da cidade,
porque tudo aqui é acessível e não precisamos nos mudar.
Mas também não gostava de pensar nessas coisas, igual as minhas
roupas e minha família, porque me sentia uma garota exigente demais.
Jeff fez um mix de frutas com um sanduíche de pasta de amendoim
e me estendeu. Seus braços ainda eram muito musculosos, mesmo com a
idade. Ele era formado para ajudar o corpo humano a dar o melhor de si,
então, obviamente, reproduzia essas técnicas em casa. Gostava de nos
alimentar de modo saudável, só… bom, eu só não passava tempo suficiente
escolhendo o que queria ao certo comer para saber do que gostava mesmo.
Já Anthony, meu pai biológico, era tão passivo de bondade quanto
um cãozinho. Seu sorriso de orelha a orelha se diferenciava da cara meio
fechada que Jeff geralmente apresentava no meio das pessoas, mas ele devia
ser assim por causa da família.
— Está lembrada de que hoje você dorme aqui, certo? — Jeff se
preocupava que eu fosse presente com a família dele.
Anthony nem me olhou, ele sabia que essas coisas me estressavam.
Foquei no meu irmão ao meu lado, que assistia um desenho,
indiferente a tudo. Por hoje, queria ser ele.
— Pai, eu… — Respirei fundo. — Eu queria poder dormir na
minha mãe, não me sinto confortável com a nossa família, você sabe —
disse tudo em um sopro.
— Misha… — Me repreendeu, ainda focado em seu cereal. — Nós
já falamos sobre isso.
— E eu também queria falar com a Saori, ela está precisando de
mim — o cortei.
— Traga ela, então — me cortou de volta. — Misha, isso não é
sobre você, é sobre nós, é sobre família. Se não der uma oportunidade a
eles, nunca os conhecerá de verdade.
Bufei baixo, pegando a comida que Jeff me fez e a guardando na
mochila, irritada por sempre termos esse impasse.
Não adiantava brigar mesmo.
Estávamos deitadas no gramado espaçoso da faculdade. Saori
estava calada, de casaco comprido e óculos escuros sob o sol aquecedor que
fazia na Califórnia.
— Se somos tóxicos uns com os outros, por que não podemos ser
com nós mesmos? Ou até mesmo ao inverso, não é? — ela soltou do nada.
— Acho que devia dar uma oportunidade à sua família. Sua prima, Olivia,
gosta desse rockzinho atual como você, né? Talvez ela até escute
WILLOW. — Saori deu de ombros, abrindo mais seu livro para voltar a ler.
WILLOW e Alex Turner eram meus músicos favoritos. Talvez a
única coisa em comum com a minha prima fosse o meu gosto musical. Ao
menos não ficaria sem falar com ninguém. Eu só não me animava, sabia
que, hora ou outra, algum deles se aproximaria para soltar seu veneno.
Me encolhi, sentada e abraçando os joelhos.
— Por que eles só não me deixam ser eu mesma? Eu não quero
tentar falar algo com Olivia, nem com ninguém. Nunca me senti conectada
àquelas pessoas.
— Você tem que ser mais aberta… — Ela se levantou por completo
e com rapidez, deixando o livro de lado, e abaixou os óculos escuros. — Ei!
— gritou, acenando com a mão para algo ou alguém que estava atrás de
mim. — Vem aqui! — Por fim, sorriu e voltou os óculos ao lugar de origem
assim como seu corpo se sentou.
Virei por impulso para ver.
— Mas com quem…?
Era o tal desconhecido. O que diabos ele estava fazendo por ali?
Certo, ele estudava na faculdade e poderia muito bem andar pelo campus
depois da aula, só não esperava vê-lo tão cedo.
— O carinha da festa. Devia dar uma chance para ele… — sugeriu
com o canto do lábio para cima, falando mais baixo, dessa vez, apenas para
eu ouvir, e se agasalhando ainda mais. Bizarro, afinal, estava um calor dos
infernos.
Ainda era a mesma Saori, só que mais coberta e não permitindo que
ninguém a tocasse. Era estranho, mas eu a respeitava. Quem sabe, uma hora
ela falaria.
— Ele acha que eu namoro o Bryan. — Precisava contar isso para
alguém.
Ela não escondeu a surpresa, suspirando alto e levando a mão à
boca.
— Está com medo de algo, pequena Misha? — O sorrisinho de
canto sempre presente me irritava e me divertia.
Não sabia por que omiti os fatos dele, só sabia que o fiz. Depois eu
explicaria, isso não seria um problema.
— Oi, meninas. — Ele se agachou um pouco para falar com a
gente. Seus braços seguravam um caderno e dois livros grandes,
provavelmente da faculdade.
— Oi, gatinho. — Saori lhe ofereceu muita atenção desnecessária,
diga-se de passagem.
— Como estão? — Focou em mim. O sol estava me
disponibilizando raios suficientes para perceber seus olhos de cor mais
intensa, um verde mais opaco.
Gostava dos olhos dele. Pensava em roupas e cores que
combinariam…
— Bem. — O sorriso de Saori ao responder, me chamou atenção.
Foquei nela e notei que nos fitava. Só então, percebi que eu e o garoto
estávamos nos perscrutando há tempo demais, sem nem ao menos notar.
— Eu tô apressado, preciso estudar para fazer um trabalho. Foi
bom ver vocês. — Endireitando a postura novamente, ele sorriu cortês e
estava pronto para sair quando nós acenamos com a mão em despedida;
Saori com o canto da boca grudado na orelha.
— Até mais. — Ela acenou, divertida. — Fala sério, amiga, ele é
muito lindo. Olha que rosto perfeito, o cabelo comprido fica uma graça, a
pele bronzeada… Aposto 10 dólares que ele morava em um país com muito
sol ou, pelo menos, passou as férias em um. Fora que ele é todo atletazinho.
Sério, você arrumou o ficante mais disputado da faculdade. Todas as
meninas estão de olho nele.
— Do que você tá falando? Estamos em uma semana de aula, não
tem como as meninas do campus já terem o conhecido — falava, porque
sabia que ele era novo como a gente, provavelmente estava no primeiro ano
também.
— Amiga, em uma semana, pelo menos vinte meninas no grupo
das garotas da faculdade falaram sobre ele. — Ela se deitou no gramado,
mas o corpo ainda se mantinha levemente encolhido. — Quando digo que
ele é requisitado, é porque é. Chegou faz pouco tempo na cidade e tudo que
se sabe é que ele estuda aqui e é a promessa do time, mais nada, acredita?
Bem, em compensação, todas as meninas o querem. Dizem que nem tem
redes sociais, mas algumas já falaram com ele pessoalmente, essas coisas…
só que, ele sempre dá uma desculpa boba para não sair em encontros.
Talvez namore ou… esteja apaixonado por uma certa garota que já quebrou
seu pobre coraçãozinho. — Virei para focá-la, deitada no gramado, Saori
sugestionou com as sobrancelhas para mim, sorrindo com diversão. —
Quem sabe agora as meninas tenham mais chances, né? — Cruzou os
braços e deu de ombros, sarcástica.
Detestava quando ela fazia isso.
Eu não gostava dele, muito menos ele de mim. O que eu tinha a ver
com a vida dele? Nada. Eu nem sabia por que estava argumentando coisas
sem sentido como essa.
Que aquele garoto ficasse com a faculdade inteira, se quisesse
comer a cidade inteira também, que se foda, eu não me importava! Na
verdade, tomara que ficasse mesmo, porque ele importunava demais a
minha vida e, enquanto estivesse beijando por aí, eu ficaria em paz. Só via
vantagens.
— Que grupo de garotas da faculdade é esse e por que eu não estou
nele? — Melhor pegar um caminho mais… Foda-se, eu não sabia mais o
que estava falando, só queria não ter que falar sobre ele.
— Ah, Misha, sei lá. Eu entrei essa semana. E você precisa ser
convidada, é meio que uma coisa exclusiva.
— E quem te colocou nisso? Porque, pelo que parece, você já tá lá
desde o começo das aulas. — Usei um tom acusatório, mas me arrependi no
minuto seguinte. Poxa, a minha amiga, basicamente, estava me excluindo
de uma parte da vida dela.
— Foi a Emerson que me colocou; Ela é quem comanda tudo, é a
líder da fraternidade feminina em que estou tentando entrar, lembra?
— Lembro, claro. — Como esquecer a importunação que foi a
Saori no fim das férias querendo nos inscrever nisso. Se eu passasse, Jeff
nunca aceitaria que eu fosse. Me permitir cursar algo e trabalhar já foi
muito.
— Você nunca desejou entrar, mesmo sabendo que a sua vaga é
garantida por sua família ser uma das fundadoras. E eu não entendo. — Ela
parecia refletir sobre. É claro que jamais entenderia, porque eu nunca falei
sobre e nunca ia falar.
— Eu não me importo com essas coisas, você sabe. — Dei de
ombros e peguei minha mochila, pronta para ir embora. — Vamos? Se eu
terei que aturar a família dos meus pais, é melhor me arrumar antes. Sabe
como eles são chatos. Mas, ei, eu queria que você dormisse na casa da
minha mãe amanhã para conversarmos entre mulheres sobre o que rolou no
fim de semana…
— Eu vou no seu negócio de família. — Sorriu, pondo-se de pé ao
meu lado. Ela nem esperou eu falar algo mais e já estava caminhando à
minha frente.
A minha amiga estava estranha, muito estranha! Mas uma parte
minha argumentava que era seu amor pelo professor, o que eu não entendia
bem. Preferia acreditar nisso a qualquer outra coisa.
Se fosse algo complexo, ela me contaria, certo?

Minha família toda estava na sala.


Na verdade, eram da família de Jeff, mas eu tinha o nome deles,
então…
Meu pai, Anthony, viveu apenas com o pai e a mãe até os vinte e
um, quando eles faleceram em um trágico acidente de carro. Não cheguei a
conhecê-los. Sentia que eles seriam bons para mim, ao menos pelo que meu
pai me dizia, e que adorariam meu irmãozinho. Pouco tempo depois, meu
pai me teve com a minha mãe, escolheram se separar, e ele casou-se com
Jeff.
É óbvio que era melhor ter o sobrenome dos Daughety, só que esse
lado da família era estranho. Parecia que eu sempre estava falando algo
errado ou incoerente com suas verdades e isso me deixava tão exausta.
Suspirei alto ao descer as escadas ao lado de Saori.
Não queria ser assim, queria ser divertida e me integrar com eles,
queria que gostassem de mim e não me achassem calada ou excluída. E
queria que nos déssemos bem.
— Vai dar tudo certo. — Saori apertou a minha mão de forma
complacente, me oferecendo um sorriso aconchegante.
Suas palavras me deixaram um pouco mais calma. Acho que nunca
conseguiria agradecer ao universo de modo a reparar toda a gratidão que
sentia por tê-la ao meu lado.
Terminamos de descer os degraus e analisamos a sala, procurando
por um espaço para sentarmos.
Todos eles vestiam roupas brancas como neve, que cobriam boa
parte do corpo; seus fios eram loiros, alternando entre os mais escuros e os
cintilantes, tal qual meu pai Jeff, e as mulheres conservavam os cabelos
compridos, assim como eu. Eles eram muitos. Os homens detestavam
barba, porque diziam ser algo sujo, mas Jeff usava e alguns outros também.
Eles eram complexos, para dizer o mínimo.
Meu pai Anthony cruzou olhares comigo, sorrindo e erguendo o
polegar em incentivo e aprovação. Retribuí com um levantar de lábios
leves.
— Todos iremos para a sala, como de costume — quem falou foi
meu tio, o irmão mais velho de Jeff, sinalizando com a mão. Todos os
acompanharam. Eles sempre faziam a primeira parte da reunião apenas com
os maiores de trinta, em uma sala reservada comum em nossas residências
antigas.
A sala de estar ficou quase vazia em segundos, apenas poucos
jovens restaram. Só então, percebi estar prendendo o ar, e o permiti ser
liberado.
O clima com eles era tenso apenas para mim?
Saori apontou para um lugar ao lado da minha prima. Quando nos
sentamos, ela moveu a cabeça em direção a menina que estava mil por
cento focada no celular, me incentivando a falar algo.
— Olivia — cumprimentei, sem jeito.
Apenas seus olhos se levantaram para me focar. Seu escrutínio nada
promissor em mim deixou claro que ela estava tentando lembrar quem eu
era, afinal, era raro eu aparecer nessas reuniões ou nos bailes depois que fiz
dezesseis anos.
Por fim, ela elevou as sobrancelhas e sorriu forçada.
— E aí, Misha?! Bom te ver — minha prima me cumprimentou,
inclinando a cabeça igual minha amiga, sugerindo que me sentasse ao seu
lado. Sentei-me e Saori se ajeitou perto de mim.
— Olivia, sou a Saori, amiga da Misha. — Sorriu, mas eu ainda me
sentia perdida.
— Lembro de você... do parque, né?! — Ela moveu o tronco para a
frente, focando na minha amiga.
— Sim — respondeu, acenando com a cabeça.
— Bom te ver também. — E voltou a focar em seu celular.
Também? Por que também? Ela gostou de me ver e achava que me
agradava estar ali?
Por que era tão esquisito começar uma conversa?
Virei para minha amiga que sorria de orelha a orelha como se
tivéssemos feito algo grandioso.
— Acho que Axel gostaria de estar aqui — ela soprou, sem mais
nem menos, e eu pisquei, sem entender.
Quem era Axel? Será que minha amiga já tinha um novo crush? E
o professor?
Bom, era melhor assim. O ideal era que Saori tivesse um tempo
para ela, claro, mas novas paixões? Bem menos pior.
— Axel? — Olivia se meteu.
— Ele mesmo. Conhece? — minha amiga confirmou, mais
convencida.
— O novo alunk da faculdade de vocês que veio da Espanha?
Estranhei todo aquele papo, mas antes que pudesse fazer qualquer
pergunta, Saori disparou a falar.
— Ele veio da Espanha? — Franziu o cenho.
Do que tudo isso se tratava?
— Eu soube que ele veio da Espanha, porque eu e minhas amigas
saímos com uns caras no fim das férias que trabalham no aeroporto e nos
seguimos no Instagram. Uma vez, eles estavam gravando seu dia de
trabalho e ele estava no fundo dos stories. Mostrava o portão de
desembarque da Espanha no fundo. Na verdade, ele não estava só, tinha
duas crianças e uma mulher com ele.
Minhas sobrancelhas quase encontraram o início do meu baby hair.
Minha prima era a maior fofoqueira stalker de todas. Mas tudo bem, mesmo
que eu não soubesse quem era, me divertia ouvindo uma fofoquinha.
— Olha, isso é algo que eu realmente não fazia ideia. — Saori
parecia pensar em mil e uma coisas.
— Bom, eu acho que eles são família. Todos se parecem. — Olivia
continuou, se recostando no sofá, agora, parecendo mais relaxada e a
vontade com a gente.
— E só estavam os três? — minha amiga questionou, interessada.
— É, e todos vestidos de preto. Pode não ser nada, mas eu achei…
notável, digamos — sugestionou.
Mas o que isso tinha a ver?
Eu estava mais confusa que tudo. Poxa, era a fofoca de um
estranho! Pior que era interessante. Por que ninguém sabia quem ele era,
nem eu? E, por que todos queriam saber sobre ele?
— Acha que era luto? Ou será algo cultural, como religioso? —
Minha amiga era mil vezes mais esperta que eu, com certeza!
— Não sei. — Olivia deu de ombros. — Se ele se chamasse Lucca
e tivesse vindo da Itália, eu diria que ele é um vampiro, porque mais
estranho e suspeito que esse menino não tem. Como ele consegue capturar a
atenção de qualquer um apenas por passar pela gente… inexplicável.
Principalmente para mim e para minhas amigas, que somos mais velhas.
Ele, com certeza, se tornou a pessoa mais notável da cidade. Faz zero
sentido.
Da cidade? Pelo amor do universo inteiro, quem é esse cara? Por
que eu nunca o vi?
— Um vampiro é uma boa. — Saori apontou o dedo, rindo. —
Mas, sério, hoje ele falou com a gente e eu poderia jurar que sua pele estava
brilhando no baixo sol do fim de tarde. — Todas nós rimos da piadinha.
Quando ela disse nós, ela se referia a mim ou ela e outra pessoa?
Por que não falamos com ninguém quando estávamos juntas. Quer dizer, só
rapidinho com o… qual o nome do desconhecido?
Espera…
— O Axel é o…
— Você não sabia o nome dele? — Saori interrompeu minha
pergunta com as sobrancelhas unidas. Neguei com a cabeça e ela riu de
mim. — Misha, você quase beijou o cara e não sabia o nome dele?!
— Como assim, beijou ele?
— Eu não beijei ele. — Virei depressa para responder minha prima.
— E nem quase beijei. — Retornei o foco à minha amiga. — Nem vamos
nos beijar.
— E que conversa é essa que a Saori tá falando? — Olivia cruzou
os braços abaixo do peitoral e não dos seios, pois minha prima era trans e
não usava nada como sutiãs com bojos. Sempre se sentia confortável sendo
assim; bom, era o que eu achava, já que nunca a vi de outro modo e isso não
parecia ser algo relevante para ela.
— A Misha e ele estavam bem próximos na festa de boas-vindas
dos calouros — sugestionou, sorrindo de canto.
Uni as sobrancelhas, sem entender aquela informação. Não
estávamos próximos. Até flertamos, mas ela nem tinha visto.
Alguém tocou a campainha, mas não tivemos tempo para abrir,
porque meu irmão correu junto com outro primo nosso ao lugar. Então, me
distraí, continuando a conversa com as meninas.
— Ah, vocês! — Acho que já estava acostumada com aquela voz
perto de mim que poderia reconhecê-lo em sonhos distantes, medos
longínquos e, até mesmo, em densas escuridões.
Axel, agora eu sabia seu nome.
Me virando para focá-lo, percebi suas bochechas um pouco
vermelhas, como quem acabara de correr, e ele afastava os longos fios que
caíam no rosto. Seu corpo parou em um solavanco e, após a mão ter
espanado os fios para trás, ele a encostou no batente da porta da sala, um
pouco acima da cabeça, e a outra na cintura. Com uma pose relaxada, ele
fitava a mim, minha amiga e minha prima. Porém, uma parte sem sentido
minha detestou aquilo.
Detestei ele aparecer em minha casa, na nossa reunião de família e,
principalmente, que minha prima tivesse falado tudo que falou sobre ele.
Odiava que as pessoas o estimassem, porque era real. Ele realmente tinha a
porra de uma aura magnética e aquilo também me atingia, mesmo que eu
não quisesse. Droga!
— Axel — Saori olhou para todos os lados, notando que ninguém
falaria com ele, e se levantou para cumprimentá-lo —, como está? O que
faz aqui?
Ele retribuiu o aperto de mão, o beijo na bochecha e o breve abraço
dela, se desprendendo da porta. Ainda bem! Estava detestando vê-lo
escorado na minha casa. Devia ser menos folgado.
— Estou bem. Um pouco cansado, mas…
— Aqui está a sua água. — Meu irmão surgiu apressado ao lado do
garoto.
— Ah, valeu, carinha. — Ele pegou o copo, bebeu e, ao retornar,
disse: — Somos parceiros agora, não é? — Elevando as sobrancelhas e
sorrindo, ele parecia realmente amigo do meu irmão.
— Claro, irmão! — Então, eles deram um soquinho típico de
garotos.
— Agora, vai lá brincar, carinha. — Devolveu o copo e deu um
tapinha nas costas do pequeno, que saiu sorrindo como nunca antes.
Saori sorriu, olhando toda a cena, e Olivia também.
Por Deus, o que estava acontecendo na minha própria casa?
— Então — ele se virou para a minha amiga —, voltando ao que
estávamos falando, eu… bom, eu tô aqui porque meu treinador me chamou.
E vocês? — Focou em todas nós.
— Ai, meu Deus, o treinador! Jeff, não é? — Saori disse, batendo a
mão na testa como se tivesse entendido tudo. Axel apenas confirmou com a
cabeça. — Eu sou a Saori, melhor amiga da dona da casa — falou,
orgulhosa. — E ele é o pai da Misha. — Axel pareceu confuso para ela,
mas, de canto de olho, me encontrou. Simplesmente entendi que sabia que
esse nome se referia a mim. Como ele sabia meu nome? — Sim, minha
amiga. — Saori apontou para mim e eu forcei um sorriso fraco.
Axel acenou em minha direção, com aquele sorriso de canto
costumeiro.
Tive que me conter para não revirar os olhos, estressada com toda
aquela cena que meu pai havia montado sem eu sequer saber o motivo.
Quem era ele para Jeff convidá-lo para uma reunião de família?
— Oi, Misha. Bom te ver também.
"Bom te ver?"
Ele veio por mim? Por Deus, eu estava tão confusa.
— Oi — respondi em um fio.
— Axel, vi você no Instagram. — Olivia se levantou para
cumprimentá-lo, levando o celular desbloqueado.
Durante todo o percurso dela, ele manteve os olhos focados em
mim. Pareceu uma eternidade e eu sentia cada célula minha esquentar de
modo doloroso. A atenção dele sobre mim era meio aprisionadora.
— Sério? Mas não vi você me seguindo. — Só quando ela já estava
perto, ele a olhou, com muito pesar em deixar meu rosto para trás.
Droga, eu também não queria acabar com nosso contato visual.
— Não, eu não tinha visto o seu perfil. Inclusive, qual é?
— Aqui. — Ele pegou o celular, digitou e a devolveu. — Já, já eu
te sigo, só preciso pôr meu celular pra carregar. Tá zerado! Pode me ajudar
nisso? — E virou para minha amiga, com a porcaria do sorrisinho ladino de
novo.
— Claro, te empresto o meu carregador. Vem comigo.
De imediato, eles sumiram escada acima.
Sério, minha amiga precisava parar de dar tanta moral para homens
desconhecidos.
— Ele é tão bonito! — Olivia sorriu abobalhada, se jogando ao
meu lado no sofá. — Se ficarem juntos mesmo, por favor, beije-o até secar
aquele corpo inteiro! — Apoiou a cabeça no meu ombro.
— Eu não vou beijá-lo, Olivia.
— Isso eu pago para ver. Viu o jeito que ele te olhava sem parar?
Ele tá viciado em você. Se não te beijou ainda, não quero nem ver quando
se beijarem. Mentira, quero sim. — Ela riu, divertida, e me encarou. — Ele
é gostoso demais para ficar só em beijos, a não ser que os beijos sejam em
outros lugares. — Sorriu de canto.
— Ai, não, Olivia, por Deus! — Bati em seu ombro e rimos igual
duas bobas.
Olivia era divertida, havia me esquecido das boas partes dessas
reuniões, só que as coisas eram sempre assim; tudo parecia descontraído até
não estar mais.
 
 
 
09

— Esse é o quarto da Misha. — Saori abriu os braços, mostrando o


ambiente. — Saiba que apoio muito esse relacionamento de vocês. —
Caminhou até a grande cama de casal no centro.
— Por Deus, quanto rosa. — Fiz uma cara de nojo, mas eu gostava.
— E não estamos tendo nenhum tipo de relacionamento.
Gostava de Misha… esse nome era tão… era perfeito para ela. Não
sabia o que significava, mas desejava saber. Alcancei meu celular no bolso
traseiro, lembrando que estava descarregado.
O que eu…? Ah, sim, o quarto! Vim carregar o celular.
As paredes eram rosa-claro e os móveis, brancos ou bege. Havia
uma cama no centro e uma janela na parte de trás dela que ia até o meio da
parede ao lado esquerdo. Perto da porta, uma mesinha de estudos, com
cadeira, computador e livros; era para onde Saori apontava.
— Pode deixar seu celular carregando aí.
Assim o fiz e depois, segui minha análise, me aproximando da
garota.
Em frente a cama, entre a metade que não tinha a janela, existia um
grande armário aberto; as roupas dela eram em cores pastéis e estampas
xadrez, mas também havia algumas pretas. No final, ficava um banheiro, e,
ao lado da cama, em frente ao armário, estavam várias estantes com livros e
ursos de pelúcia.
Todo o restante da decoração era muito fofo e delicado, harmônico.
Gostei. Lembrava ela.
Alcancei Saori deitada sobre o colchão e só então percebi que ela
parecia um pouco exausta, igual tantas vezes vi minha mãe. Me aproximei
da ferrugem final da cama e foquei na menina.
Seus olhos estavam fechados, eles mostravam claramente seus
traços ancestrais. A cor da pele era clara como a lua. Ela tinha sutileza no
andar, o que mostrava que devia ser tão rica quanto Misha. Seu corpo era
franzino, os braços finos não pareciam ter força para violência ou defesa
pessoal. E ela parecia doce demais para um cara como os que frequentavam
o bar em que nos encontramos.
— Saori — a chamei.
— Hm — murmurou, ainda parecendo querer muito descansar.
— Sobre o dia da festa, você está bem?
Seus olhos angulares abriram de imediato, espantados, tal como
naquele dia.
— Não vamos falar sobre isso, Axel. — Se levantou depressa,
ajustando a roupa ao pequeno corpo, e rumou até a porta. — Se quiser ajuda
para ficar com a minha amiga, te ajudo. Até já te mostrei o quarto dela. Mas
não toque nesse assunto, por favor — ordenou, ainda de costas, e a última
parte parecia uma súplica. — Seu celular já está carregando, certo? — Ela
mirou o aparelho na mesinha, de longe, fingindo que nada aconteceu. —
Vamos! O tio já deve estar descendo.
Alguma coisa não estava certa. Saori era tão ensolarada, talvez até
mais que Misha, e ela não estava… eu não sabia como ela devia estar, mas
sabia que não estava. Aquele não era um comportamento normal.

— Ah, Axel, meu garoto, finalmente! — Jeff me recepcionou


enquanto eu ainda descia as escadas. — Vem, eu tenho muito a te
apresentar. — Me incentivou, com os braços abertos.
Terminei de descer sem entender muito bem o que fazia ali ou por
que ele havia me convidado.
— Oi — cumprimentei.
Negando com a cabeça e sorrindo largo, Jeff me puxou para um
abraço e deu dois tapinhas nas minhas costas.
— Agora é hora de mostrarmos você ao mundo, garoto! — falou
baixo no meu ouvido. Não podia ver seu rosto, mas sabia que estava
sorrindo. — Vou te apresentar à minha família. Os Daughety são bons
negociantes, sei que você será um ótimo investimento para eles. Não se
preocupe, já falei muito bem de sua performance em quadra.
Saori acenou para meu treinador e se afastou de nós, mas senti que,
na verdade, foi o olhar que ele lançou a ela que a fez se afastar. Eles se
conheciam há tempo suficiente para se comunicarem desse modo.
— Você quer que eu os convença a investirem em mim, por isso me
chamou, é isso? — questionei quando começamos a caminhar por um
corredor da casa, que rodava a sala com uma parede dividindo o ambiente.
— Convencer é uma palavra muito forte, meu garoto. Apenas seja
você mesmo. Mostre que é um bom rapaz, dedicado, inteligente e focado,
que não está se metendo em festas, com mulheres ou em encrencas, que está
cem por cento focado nos estudos e no esporte. Apenas isso. A verdade.
Não é mentira, então, tudo bem, certo? — Ele nem esperou pela minha
resposta e continuou a me guiar pelo caminho.
E sim, era mentira.
Acho que já fui convidado para três festas, pelo menos. Uma era na
fraternidade, então, mesmo não querendo, eu estaria lá, já que era onde
morava por conta do time. Quanto às brigas, bom, ao menos naquela cidade
ainda não haviam rolado, mas não duvidava que fossem ocorrer. Estudo?
Por Deus, já me viram escrevendo? Minha escrita era tão horrível que devia
errar uma base de 70% do que escrevia, às vezes dava para passar por não
ser tão feio; porém, tudo isso piorava quando falavámos sobre números.
Eu, definitivamente, era um péssimo aluno. Só passei de ano
porque meu pai pagou, e só ganhei a bolsa porque eera bom de verdade em
apenas duas coisas: basquete e skate; a primeira eu tomei como profissão. E
garotas? Acho que umas vinte já haviam me dado seus números de telefone,
não tô nem brincando, mas a única para quem eu tinha olhos sequer me
disse seu nome, contudo, me prometeu coisas que deixaram a minha mente
viajar por horas sem fim.
As palavras de Misha naquele bar me faziam ter um milhão de
pensamentos impróprios. Muito impróprios. Até porque, ela era
comprometida e era a filha do meu treinador; que, por sinal, me achava o
cara mais santo e estudioso do mundo.
Sinceramente, não sabia por que Jeff achava isso. Quem sabe ele
estivesse apenas se enganando.

Meu Deus, eu precisaria fazer alguma coisa para energizar meu


corpo todo depois da conversa com os Daughety. Como a Misha podia ser
tão docinho sendo daquela família?
Impossível de entender!
Eles perguntaram até dos meus cordões, do meu cabelo abaixo do
"apropriado" e das minhas roupas. Porra, mano! E que cara esquisita aquela
deles. Pareciam algum tipo de… sei lá, mas coisa boa que não era. Eu diria
que eles eram os errados, contudo, suas roupas finas, linguajar sofisticado e
andar impecáveis, me faziam jurar que não.
Só que, todos sabem que o mal anda à espreita, escondido embaixo
de linhas de cetim, pisando firme ao nosso redor e jurando de pés juntos que
são santos. Mas o pecado, o verdadeiro erro, esse eu vi de perto, senti na
ponta da língua o gosto amargo do que ele propõe a uma criança. Desse eu
não queria provar nunca mais, e fujo dele até hoje.
Os Daughety me pareciam ser esse tipo de assombração e dessas
coisas, eu queria manter-me distante para sempre!
Misha podia ser rosa cintilante, mas eu não queria senti-la derreter
em minhas mãos quando o vermelho escarlate da sua família se fizesse
presente.
 
10

Ir à biblioteca me causava paz em meio à confusão da faculdade,


assim como a da escola. Quando criança, o silêncio nunca foi tão presente
assim e, quando ele se fazia, sabíamos que algo ruim logo iria chegar; ou
melhor: arrebentaria a porta de casa.
Nos primeiros dias de aula, fui para ver um livro que o curso da
saúde exigia e também, para ler sobre os cursos que a faculdade oferecia.
Precisava tomar uma boa decisão.
Ainda não havia escolhido um segmento, mas pensava que
enfermeiro era uma boa opção para o currículo, já que seria jogador de
basquete na maior parte da minha vida adulta. Pensava que os
conhecimentos daquele momento me ajudariam caso um filho ou neto se
machucasse, por exemplo. Crianças podem ser muito desastradas; e eu sei
bem, já que tenho dois irmãos.
E, foi entrando na biblioteca e me deparando com Misha, de novo
sentada, calma como um anjo, que fantasiei ser, sim, correto me aproximar.
Mesmo sabendo que deveria me manter distante. Ela era tão linda, doce.
Seus cabelos estavam com tranças ainda, mas amarrados no topo da cabeça;
percebi que a raiz cacheada já estava bem notável. O seu rosto angelical
tinha uma expressão confusa; acho que ela não estava entendendo a matéria
que lia no caderno. Tinha um laço no cabelo com uma estampa de fundo
branco e parecia ser tinta jogada, em tons de rosa e amarelo; combinava
com ela.
Me aproximei e até pensei em não incomodá-la, mas desisti.
Adorava vê-la estressada, era um efeito que só eu causava nela; ao menos
foi o que notei ao vê-la com as pessoas. E eu gostava de ser o único a
causar certas coisas nela.
— Mishaaa — falei, bem pertinho e depressa, com uma voz de
assombração, após puxar seu fone de ouvido sem fio.
Seu corpo deu um sobressalto imenso e ela gritou, assustada:
— Puta que pariu! — Me fitou de imediato. Havia puro ódio ali e
acho que gostava disso, me divertia.
— Shhh! — A bibliotecária exigiu.
— O que quer, garoto?! Por Deus, que susto! — dizia baixo,
apressada, e tomou o fone da minha mão, já voltando a focar nos cadernos.
— Sua família é meio esquisitinha, não é?
Sentei na cadeira ao lado dela, como se aquilo fosse super normal
entre a gente.
Por mim, nos veríamos sempre, fosse na biblioteca ou em qualquer
outro lugar. De todo modo, ela ainda era proibida para mim, já que
namorava, e eu precisava me manter focado. Porém, isso não me impedia
de ser seu amigo, não é?
— Eles são a família de Jeff, meu pai.
— Mas você também tem o sobrenome deles.
— Como você sabe? E como sabia meu nome? — Ela semicerrou
os olhos em minha direção.
Quando Saori disse o nome dela, não me contive em encará-la, e
soube que ela sentiu que eu sabia seu nome antes daquela ocasião.
— Saori me falou.
— Mentira!
Tomei o ar aos pulmões, cheio de prazer por fazê-la se questionar e
corroer em dúvidas. Usei os braços de apoio e arrastei meu tronco para mais
próximo dela.
— Não me conhece para saber se estou mentindo, patricinha —
falei bem perto de seu rosto, sorri de canto e pisquei. Sabia que ela bufaria
estressada no mesmo segundo e não errei.
Desejei decorar ainda mais coisas sobre ela. Meu corpo se afastou
da mesa e a perscrutei, sem nenhuma intenção de parar, analisando como
seria bom tê-la. Mas, no mesmo momento, uma luz vermelha acendeu em
minha cabeça: ela tinha uma família complexa, namorava o cara perfeito e
era filha do treinador. NÃO. Mil vezes, não!
Misha tinha tudo que eu precisava para manter distância. Mesmo
assim, estava alialí, fantasiando com a pessoa mais impossível de todas,
porque era ela quem fazia meu cérebro rodopiar tão errado quanto sempre.
— Pode parar? — pediu, arranhando a garganta. Parecia
incomodada, mas o tipo de incômodo que eu também sentia ao estar perto
dela; o de sabermos estar fazendo algo errado, a vista de outro, mas certo
para nós.
— De…?
— Não se faça de desentendido. E, sim — ela começou a arrumar
suas coisas; não gostei disso, queria que ela ficasse mais! —, minha família
é complicada. Mas eu não sou, nem gosto de me meter com eles. E sei que
passou muito tempo os conhecendo, imagino que já sejam próximos. —
Praticamente cuspiu a curiosidade, fechando a mochila amarelo-clara.
— Conversamos muito, não negarei, mas não me agrada o jeito
deles. Parecem…
— Mentirosos.
— Isso. — Me espantei com seu corte repentino na minha fala, mas
concordei sem pestanejar.
— Bom, menos pior para você. — Misha deu de ombros.
Por um segundo, jurei que se levantaria, mas ela estava fixada em
outra coisa; no meu braço. Eu também já havia notado as pequenas
tatuagens que adornavam sua mão, claras demais, quase imperceptíveis.
— Quer ver as outras? — perguntei.
Ela se espantou, percebeu que eu a peguei inspecionando minhas
tatuagens, ainda bem dispersas pelo meu braço.
— Você é só um pouquinho — quase uniu o polegar e o indicador,
semicerrando os olhos em desprezo — convencido, não é mesmo?
— O quê? — Ri, apontando para mim mesmo. — Qual o
problema? São apenas tatuagens. Talvez você goste ou também desenhe…
Não sei, são apenas opções do porquê você se interessaria em inspecionar
as tatuagens de um cara, sendo que namora — alfinetei, sem pensar.
Na verdade, eu desejava mesmo respeitar seu relacionamento. É
que… Droga. Misha era magnética demais para mim, quase impossível de
me afastar! E isso me revoltava, principalmente quando ela me fitava com
aqueles olhos castanhos. Parecia tão contida. Queria libertá-la.
Mordendo os lábios, ela desviou o olhar um tempo depois e se
aprumou na cadeira.
— É… sobre isso…
— Desculpe — me apressei, a cortando. — Foi mal. Não quis ser
desrespeitoso com você nem com seu relacionamento.
— Não existe nenhum relacionamento — soprou tão baixo que
quase não entendi.
— Quê?
— Eu disse que não existe relacionamento!
— Shhhh! — a bibliotecária gritou.
— É, dessa vez foi alto demais, patricinha. Acho que já pode ficar
tranquila, ficou bem claro. Você não está namorando ninguém.
Solteiríssima, hm? O questionamento que fica é: terminaram ou você
mentiu para mim? — questionei, confiante de que ela tinha mentido desde o
princípio.
— Você é insuportável! — Misha bateu seco na mesa e se levantou,
colocando a mochila nas costas e já rumando em direção à porta, mas
suspeitei ver o fantasma de um sorriso nela.
Me apressei em segui-la, alcancei-a e segurei seu braço, a virando
para mim. Nossos corpos se chocaram.
Meu coração deu um solavanco ao ver sua boca tão perto da minha,
sua respiração batendo em meu queixo e sua mão apoiada em meu peito.
Ela era pequena, e não duvidei que estivesse na ponta dos pés.
— Vai ter uma festa na minha fraternidade.
— Não vou.
— Ainda vai demorar. — Ignorei sua resposta.
— Não irei — sua boca negava, mas seus olhos permaneciam em
mim.
— Você, Saori e Olivia estão convidadas. Principalmente você.
Quero que nos conheçamos melhor.
— Não adianta. Já disse e repito…
— Eu sei que você vai, patricinha, não adianta mentir, de novo —
alfinetei mais uma vez, por impulso.
Essa garota tirava toda a ordem da minha cabeça, que eu tanto
lutava para manter.
— Se quer se enganar — ela se soltou dos meus braços, ajustou a
roupa e me focou —, faça como bem preferir, Axel. — O modo como ela
falou meu nome pela primeira vez pareceu ácido demais, mas,
involuntariamente, eu estava lambendo os lábios ao vê-la virar e caminhar
rebolando pela biblioteca até a porta de saída.
Misha tinha a porcaria do dom de despertar em mim mil e um
sentimentos controversos e alucinantes em poucos segundos. E, porra, eu
adorava isso nela!
 
11

Acabei faltando a primeira aula de inglês, pois precisei ajudar


minha mãe com um dos meus irmãos que estava doente, por isso, quando o
professor anunciou o trabalho, fiquei nervoso.
Queria me dedicar a algumas aulas da área da saúde e, para isso,
antes de tudo isso, precisava aprender bem pelo menos o mínimo: o meu
idioma. Comunicações, no geral.
Por sorte, ou só o destino querendo pregar uma peça, o professor
era o cara que a Saori gostava. E, falando nela, sim, ela e a amiga também
faziam essa aula.
Enquanto um certo burburinho se formava na sala, todos
reclamando do trabalho recente, o professor pediu silêncio e voltou a falar.
— Vai ser em dupla, e eu já as escolhi. Um e-mail será
encaminhado para vocês com o nome da dupla e o tema da apresentação.
Vocês vão precisar expressar um texto, poema ou cena baseada em um
clássico escolhido por mim. Teremos o Halloween para a exposição em
campo, ou seja, a turma será dividida, cumpram seus horários que constarão
na mensagem. Por favor, não sejam desleixados, usem e abusem de toda e
qualquer propriedade material para a expressão da adaptação.
Já falei que não sentia uma boa energia desse cara?
Bizarro.
Não sabia como Saori gostava dele. Ou gostou. Sei lá. Vai
entender?!
O tempo da aula acabou e, quando pensei que poderia só puxar
minha mochila de atleta e rumar para o vestiário, uma garota loira, de
cabelos compridos – mas não tanto quanto os da Misha, já que os desta iam
só até o meio da cintura, igual da Saori, e tinha volume – parou ao meu
lado.
— Emerson, prazer. — Esticou a mão para me cumprimentar.
Educadamente, retribuí.
— Axel. Sou novo na cidade.
— É, eu sei. — Ela sorriu.
Não entendi muito bem a sua aproximação repentina, mas decidi
insistir, já que ela não saía da minha frente.
— Estamos em dupla para o trabalho?
— Ah, não, não. Estou com a Saori. — Ela apontou para o celular.
— Quem dera, né?! — Sorriu esticado de novo.
Ela me dava um pouco de agonia.
— Então…?
— Bom, então, eu sou líder de uma fraternidade feminina, assim
como capitã das líderes de torcida, e você é um dos jogadores de basquete
que moram na fraternidade, estou certa?
— Sim, mas não sou o capitão, então…
— Ainda.
Uni as sobrancelhas com a forma rápida que ela completou a minha
frase sem precisar.
— E não pretendo ser tão cedo — quase soletrei.
Coitada da minha mãe se eu virasse capitão agora ou, pelo menos,
no próximo ano.
— Ah, não diga isso.
Realmente desprezava o jeito que ela falava.
Arrumei minha mochila nas costas, mostrando estar pronto para
finalizar aquela conversa vazia.
— Bom, preciso ir…
— Espera! — Então, Emerson segurou em meu ombro. A foquei,
esperando por seu pedido, ou seja lá o que fosse. — Pode falar com seu
capitão para que a Kappa seja citada como uma das organizadoras de uma
das próximas festas na qual vocês estão confirmados, no final da festa de
vocês?
Nem entendi direito aquilo que ela pediu, mas ok.
— Por que eu?
— Ah, gatinho, estamos na mesma turma. Somos amigos, certo? —
Arrastou a mão pelo meu abdômen. Aquilo me deu ânsia.
De imediato, tomei seu pulso, com um pouco de força, não nego, e
o joguei para longe.
— Desculpe se deixei algo de errado ser transmitido aqui, mas não
sou amigo próximo do capitão ou coisa do tipo. Sou apenas um calouro, lá e
aqui, nada mais.
— Mas…
— Se me der licença. — Sorri sem ânimo ao forçar passagem por
ela.
Apressei o passo e me afastei dela determinado. Precisava falar
com o Tyler, urgente!

Escutei o apito do treinador.


— Fim de treino. Todos aqui! — ele gritou.
Arrastei a mão pela minha testa, estava mais suado que um porco, e
corri com os outros caras.
— Sei que os calouros estão ansiosos para dar umas bandas —
todos rimos com seu palavreado. —, mas na Universidade de Stacy Scarllat
as coisas são um pouco diferentes. Nós levamos muito a sério os esportes,
mesmo com apenas duas semanas de aula. Vocês estão sendo treinados em
cada passo que dão. Se esse é o sonho de vocês, podem acreditar que, ao
fim do curso, um contrato será assinado. Tudo dependerá da dedicação e
esforço de vocês.
— Mas uma passadinha no Alfa K ou na HotCoffee, não sendo
época de competição, não tem problema, não é, treinador Daughety? — um
outro calouro perguntou.
Todos estavam rindo, mas Daughety permaneceu sério.
Quem quisesse, ele ajudaria, mas quem não…
— Dispensados! — avisou, após apitar.
Corremos para o vestiário; meninos apressados, suados e parecendo
zumbis, procurando por coisas nos armários. Me joguei em um banco
qualquer, pegando uma toalha pequena para enxugar o suor do meu rosto.
Por um segundo, fechei os olhos e respirei fundo.
Estou no lugar certo.
Só o basquete tinha a capacidade de tirar totalmente qualquer
merda da minha cabeça e deixar meu corpo acabado ao mesmo tempo. E eu
adorava isso.
Ouvi alguns meninos se sentarem ao meu redor. Quando abri os
olhos, percebi uns de toalha procurando pelas roupas no armário, outros
apenas conversando por perto, ainda como eu, sujos.
Suas conversas eram sobre diversos assuntos, porém, como nunca
fui bom em fazer amizades, não participava delas. Na verdade, não tinha
muita habilidade em construir coisas novas e boas, mas quando era sobre
destruí-las… ah, sim, aí eu sabia que era habilidoso.
— Hey, cara! Como está hoje? — Era Tyler, atencioso como
sempre. Senti seu toque em meu ombro.
— Estou bem. Só um pouco cansado. — Dei de ombros.
— Todos estamos animados com sua desenvoltura. Que bom que
está cansado, é normal. — Ele riu e outros o acompanharam, incluindo eu.
— Queria falar a sós com você. Pode ser agora?
— Claro! — Sorriu, mostrando um caminho entre os armários para
nós.
Tyler me guiou e eu tomei um tempo para examiná-lo.
A voz de Tyler, apesar de imponente, tal qual de um verdadeiro
capitão, era divertida. Sabia disso, porque, mesmo na fraternidade, ele era
descontraído.
Paramos no final de um corredor, bem distante dos outros
jogadores.
— Então, sobre o que quer falar?
— A nossa fraternidade costuma falar sobre as próximas festas no
campus em que vão estar presentes, após a nossa? — Decidi começar
investigando, já que era novato.
Logo ele pareceu compreender.
— Sim. No final da nossa, chamamos todos na frente da casa e
anunciamos boas festas, também dizemos se já confirmamos presença em
alguma. Mas, por quê?
— Uma garota veio falar comigo hoje, pediu para que a festa dela e
a confirmação da nossa presença fossem anunciados na nossa. Não entendi
muito bem isso…
— Mas você confirmou algo? — pareceu preocupado.
— Não. E nem gostei do jeito dela também, não pretendo ir em seja
lá qual festa ela dê.
Tyler se aproximou e pendurou o braço ao redor do meu pescoço,
nos puxando ainda mais para um canto. Parecia nervoso, mas ainda focado,
como sempre.
— Axel, bro, você fez muito bem. Qualquer confirmação de um
integrante da nossa fraternidade é válida e zelamos por nossa união e
palavra. Se um decide, é porque todos decidiram. Fez certo, mas esteja
atento, porque além de ser de uma fraternidade importante, sabe o que
outras fraternidades ganhariam com alguém como nós indo até elas?
— Visibilidade e influência?
— Exato. Principalmente de você. Tome cuidado com todo o poder
que seu pai tem, Axel, porque muitas pessoas se aproximam de gente como
nós apenas querendo algo em troca — lamentou.
Droga! Eu sabia o que aquela merda queria dizer; Emerson queria
ganhar força na fraternidade dela. Quanto mais uma fraternidade era
conhecida, mais ela poderia ganhar financiamento, e quem melhor para
financiar algo do que um homem rico e solidário em fazer todos os desejos
do filho?
Maldito sobrenome e malditas pessoas. Também não era como se
eu quisesse conquistar a graça de alguns ali, afinal, meu status social era
algo que me davam, não o que eu procurava.

Banhei, me vesti e alcancei meu celular no armário, apressado para


ver com quem, afinal, eu faria o trabalho.
Abri o e-mail e dizia:
 
"Dupla: Misha e Axel.
Livro: Frankenstein, de Mary Shelley.
Ordem de apresentação: 2/15.
Boa sorte e não se esqueçam da dedicação!"
 
Não acreditava que havia tirado uma sorte grande dessa. Ao passo
que não fazia ideia sobre o que era esse livro – além de ser sobre um
monstro picotado. Que diabos isso teria a ver com a expressão artística ou
como fazer isso?
Saí do vestiário pela parte que dava acesso ao ginásio, arrastando a
mão pelos meus fios de cabelo, meio temeroso.
Será que isso daria certo?
Uma parte minha estava feliz com a possibilidade de passar mais
tempo com ela, afinal, queria conhecê-la melhor, mas eu sabia o peso da
responsabilidade que tinha; a minha trajetória com o time estava totalmente
amarrada a minha possibilidade de melhorar de vida com a minha família.
Uma paixonite não podia tirar meu foco. Bom, ela nem gostava de
mim mesmo…
Abri a porta que dividia o vestiário do ginásio e toda a minha mente
se silenciou, os temores passaram e o tempo pareceu parar de correr. O meu
coração já não estava acelerado de nervoso, era uma aceleração gostosinha
de sentir.
Misha dançava na quadra, rodopiando, tal como uma bailarina. Seu
corpo magro parecia fazê-la voar, e uma parte minha quis correr em sua
direção com medo dela cair ou algo do tipo.
Era ballet, certo?
Talvez eu estivesse alucinando. Ou não. Afinal, as líderes de torcida
fariam mesmo um teste naquela tarde, após o nosso treino.
Se ela fosse animadora de torcida, eu poderia vê-la ainda mais
vezes…
E, tal como eu havia pensado, um passo em falso ocorreu e ela caiu.
Corri ao seu encontro.
Acho que ela estava totalmente imersa na dança durante todo
aquele tempo, pois, quando me viu, seu corpo tensionou.
— Tá tudo bem?
— Ah… O que faz aqui?
Ajudei a se levantar e ela espanou a calça comprida que usava.
— Te ajudando, patricinha. Parece que você adora cair, não é
mesmo?! — Sorri de canto, a avaliando de cima a baixo
Ela estava bem.
Seu pescoço se curvou para o lado e um ombro seu se elevou,
enquanto ela me avaliava, assim como eu havia feito. Só então percebi que
estávamos tomando tempo demais nos perscrutando.
Alguém arranhou a garganta atrás de nós e notei ela piscando,
assustada, para então dizer:
— Oi, pai.
Treinador.
— O que fazem sozinhos aqui? — Ríspido. É, ele era um
pouquinho ranzinza mesmo.
Me virei depressa, tagarelando:
— Sr., eu e sua filha estamos em um trabalho juntos. Língua
inglesa. Vamos falar sobre Frankenstein. Só estávamos resolvendo sobre
isso. — Sorri, tentando ser simpático, e segurei minhas duas mãos na frente
do corpo, com o braço retesado.
Os segundos em que ele nos analisava eram tão angustiantes, que
pareciam uma eternidade. Seus olhos azuis me metralhavam e eu pressionei
minhas mãos.
— Venha para nossa casa, então. — Ele puxou o braço para olhar o
relógio. — Já são seis da tarde. Jante em casa, resolvam o trabalho e depois,
pode ir para a fraternidade — sugeriu.
— Sim, Sr. — respondi, apressado demais. — Vou só buscar a
minha mochila.
Afinal, eu fui para o ginásio para pensar, apenas.
Rapidamente, virei para Misha, que parecia uma estátua. Não tinha
tempo para tentar decifrá-la, então, apenas corri para o vestiário. Entretanto,
no meio do caminho, ainda consegui ouvir o treinador dizer coisas com as
quais eu não concordava, iguais às que a sua família diria.
— Uma garota não pode ficar a sós com um rapaz. Você sabe como
são as coisas, Misha.

— Não, papai, a Misha não come ovos…


— Eu como, sim — a garota repreendeu o irmão, parecendo tímida
demais, bem diferente de como ela era comigo. — Não como os animais,
mas o que vem deles ainda como.
— E devia parar com essa bobagem.
— Jeff, por favor, hm?! — Anthony repreendeu o marido.
Estávamos todos na mesa de jantar dos Daughety e, por incrível
que pareça, meu treinador era muito igual à família dele.
De certa forma, aquilo me dava nos nervos.
O jantar se passou em um silêncio agonizante e olhares sem rumo,
vez ou outra, por parte de Anthony para mim.
— Então, Axel, você é a nova promessa para o time. Jeff me falou
sobre o quanto você quer entrar em um time profissional no final da
faculdade. Já tem planos? — E, como suspeitei, ele foi o primeiro a falar
comigo, ou simplesmente tentar conversar nesse jantar.
— Sim, é algo muito importante para mim. Estou tentando dar meu
máximo. Talvez eu consiga, mas também, é a única coisa em que sou bom.
— Dei de ombros, levando outra garfada de salada para a boca.
— E ele vai conseguir — Jeff falou, ainda focado apenas em seu
prato.
Anthony sorriu de leve para o esposo.
— Ah, quando acabarem — ele olhou para meu prato e o de Misha
—, podem subir para fazer o trabalho, que eu vou limpar a cozinha.
— Deixem a porta do quarto aberta!
Já estava me desestabilizando aquela maneira rude que o treinador
tinha.
Mas a conversa se encerrou ali.
Em poucos minutos, acabamos e subimos.
Quando Misha fechou a porta do quarto com nós dois dentro, me
deixou um pouco apreensivo por seu pai, mas ela suspirou alto e murchou
os braços, andando até seu banheiro. Aquilo me magoou de certa forma,
porque eu sabia que ela estava exausta dessas discussões bobas, eu entendia
como era e reconheceria de longe.
Por ela demorar um tempo no banheiro, eu me vi cansado, então,
me joguei em sua cama.
Segundos depois, a porta se abriu e Misha começou a mexer em
uma parte de seu guarda-roupa.
Ela estava me ignorando?
Aquilo era um pouco… agonizante. Eu gostava de falar. Pessoas se
comunicando. Era isso que me fazia bem, não aquele silêncio horrendo!
— Foi fazer o teste para líder de torcida? — puxei assunto.
— Quê? — Ela virou em minha direção, parecendo só então notar
que eu estava ali. — Tira seus sapatos de cima da minha cama. — Revirou
os olhos.
Achei graça, enquanto tirava os tênis e voltava para a cama.
— Animadora de torcida. Sei que depois do treino de hoje teve um
teste.
— Não posso me dar ao luxo de fazer certas coisas na vida antes de
ter minha independência.
— Ouvi dizer que você trabalha em uma cafeteria e tem uma mãe
médica incrível. Quais são as suas amarras ainda? — quis saber, ao pôr os
braços embaixo da cabeça.
Ela era tão fodona. Uma garota de opiniões e que sempre parecia as
impor; só não na frente do pai Jeff. Misha era como uma força, conquistaria
o que quisesse.
Com os olhos semicerrados, ela me focou.
— Sabia que você é muito folgado?
— O quê? — Olhei para meu corpo, estirado em sua cama, então,
dei de ombros. — Você dança bem… Então, fale a verdade. Por que precisa
ser independente para se candidatar a animadora?
Ela bufou e largou o que mexia para ir ao outro lado da cama.
— Esse é meu lado de dormir, sabia? — Parecia exigir que eu
cedesse o espaço, mesmo ela já estando de frente para o outro.
— Sem problemas. — Dei de ombros e comecei a girar para ir ao
outro lado da cama. Entretanto, quando dei um giro rápido, acabei caindo,
ao mesmo tempo em que a porta foi aberta.
O corpo da garota voltou a ficar tensionado e, por saber que seria
confuso demais explicar porque eu estava no chão aos pés dela, apenas girei
um pouco o meu corpo e me escondi debaixo de sua longa cama cheia de
colchas.
— O que eu falei sobre deixar a porta aberta, Misha?
— Ele não está mais aqui.
Nem por um segundo sequer ela havia olhado para baixo, para
mim, ou me dado um comando.
Aquilo me fez perceber duas coisas: aquela garota era uma
mentirosinha nata, e a gente tinha uma puta conexão do caralho.

Jeff passou tempo demais pelos corredores da casa até as luzes


serem apagadas e os dois pais, além do irmão, irem desejar boa noite a ela.
Também a ouvi trocar de roupa em algum momento e espanar a cama para
se deitar, enquanto ela via vídeos no Tik Tok. Meu celular, por mais que
estivesse sendo meu grande amigo, já estava sem a capacidade de me tirar
do tédio silencioso.
Por volta das onze horas, ouvi suas despedidas e ela se levantou
para trancar a porta. O momento em que o trinco fez barulho foi o momento
em que meu coração se apaziguou.
— Pode sair — falou um pouco baixo demais, ao levantar os olhos
da colcha da cama e me olhar, mordendo os lábios.
— Achei que fosse demorar mais…
— Não seja um imbecil. Sabe que eu só fiz isso por você, para não
nos ferrarmos.
— Obrigado? — Inclinei o corpo para frente, achando graça de
como ela estava tensa.
— Como você vai sair daqui?
— Sair? Por que sair? A noite é uma criança, patricinha.
— Não pode dormir aqui, Axel. Essa não é uma opção! — Ela
cruzou os braços e virou o rosto.
— Mas eu tenho muitas dúvidas, Misha. Só vou sair daqui com
minhas respostas. — Então, me deitei na cama, do lado em que ela não
dormia.
— Eu não estou brincando, Axel. — Trincou os dentes em minha
direção.
E tive que me conter muito para não rir, porque aquela cara fechada
dela eu já conhecia; a de quando estava mentindo.
— Eu também não estou, Misha. — Entortei a cabeça e elevei as
sobrancelhas.
— Certo. — Expurgou todo o ar do corpo e sentou na cama, de
costas para mim. — O que quer saber?
— O que tem a ver sua independência com tentar ser animadora?
— Você viu como Jeff e a família dele são. Eles não gostariam de
me ver com um uniforme minissaia, rebolando e voando nos ares, na frente
de várias pessoas — ela disse, cabisbaixa. — E eu não quero discutir isso…
— Devia tomar o que é seu.
— Não é meu direito se eu nunca o tive.
— Estou falando sobre tomar posse do que é seu.
— Os fins não justificam os meios, neste caso. — Ela virou para
mim e entortou a cabeça.
— Acho justificável uma mulher tomar a possibilidade de usar e
fazer o que bem entende, sendo esse seu querer e não fazendo mal a
ninguém. — Usei um cotovelo para me apoiar, aproximando o rosto do
dela.
— Justificativa boa. Agora, na prática, as coisas são bem piores.
— Falarei com a Emerson, a capitã das líderes de torcida. Ela vai
deixar você fazer o teste.
— Não quero entrar por meio de um dos seus casos! —
Rispidamente, se virou, ainda sentada na cama.
— Eu não estou tendo um caso com ela…
— Nem entendo como conhece tanta gente se é novo na cidade —
ela continuou, me ignorando. — Todos ficam te… te… idolatrando. O que é
isso? Uma espécie de magnetismo? Eu não consigo entender.
Aproximei ainda mais meu corpo do seu, me curvando levemente.
— Até você se atrai por mim?
— Para de ser convencido, Axel. Eu nem te conheço. — Empurrou
meu ombro, mas, em contrapartida, seu próprio corpo não se moveu um
centímetro em recusa.
— Você é vegana? — mudei de assunto, voltando a me deitar.
Estar perto demais da Misha era perigoso para mim.
— Se chama ovolactovegetariana.
— Que porra é essa? — Franzi o cenho.
— Significa que eu como ovos, leite, mel e essas coisas, mas não
carnes em si. E, pra que falar tantos palavrões, caralho?
Achei tanta graça da última parte que bati minha mão na cama.
— Você é foda pra caralho, patricinha.
— Vê se não faz barulho, por favor?! — Me lançou um olhar de
aviso.
— A porcaria do seu celular faz muito mais barulho que eu. A
propósito, você só vê Tik Tok o tempo todo? Sabia que faz mal ficar tanto
tempo no celular?
— Vai se foder!
— Hm, voltamos à agressividade?
Ela revirou os olhos e se virou na cama, deitando-se ao meu lado. E
Misha não deveria ter feito isso. Aquela porra de ação quase me fez
engasgar, meu corpo ficou tenso e meu coração disparou. Senti até mesmo
os pelos do braço arrepiarem, quando ficou perto do dela.
— Axel, eu tô muito cansada. — Então, se revirou na cama para
focar em mim. — Como você vai fazer pra ir embora?
Também me revirei, colocando minhas mãos unidas abaixo da
cabeça, a focando.
— É pelo jeito que Jeff e a família dele te tratam, não é?
— O quê? — Ela pareceu se espantar.
— É por isso que não quer tentar ser animadora e também está
super cansada. Fingimentos dentro de casa são um saco. Não é mesmo,
mentirosinha?
Franzindo o nariz, ela negou com a cabeça.
— Eu não sou mentirosa.
— Você mente bem pra porra. Definitivamente, é o que você é.
— Sabia que você consegue ser insuportável?
— Uma certa garota usando tranças me falou sobre isso uma vez —
disse, passando a mão com cuidado pelo seu cabelo, admirando seu rosto
fino, seu nariz mais arredondado e empinado, seu queixo pequenino e seus
olhos escuros.
Misha tinha cheiro de lavanda com morango ao fundo, suave, mas
marcante. Ela era intensa pra porra, deixava meu coração palpitando, e acho
que eu não iria conseguir manter o compromisso com o treinador.
— Axel — ela quase sussurrou. —, se vai dormir aqui, pode, por
favor, ser bonzinho? Não se mexa tanto na cama, isso me irrita.
Ri dela.
— Acho que tudo que faço te irrita, hm? — Continuei o carinho,
dessa vez, em seu rosto. E ela não se afastou.
Por que ela não se afasta ou me manda parar?
— Um pouco. — Deu de ombros. — Seja cavalheiro e eu digo se
mudarei de ideia ou não.
— Eu fui cavalheiro. Te ofereci a mão para ajudar a se levantar no
dia em que caiu. Você que recusou.
— Foi o certo, você me irritou. Agora estou pedindo para não me
irritar mais.
— Mas não somos assim — disse, a puxando pelo ombro e virando
seu corpo para grudar de costas ao meu, depressa.
Seu gritinho agudo logo foi abafado por mim. Enquanto eu ria, ela
tentou morder a minha mão, então, soltei sua boca.
— Não me assuste mais! — exigiu, ao passo que pegou minha
outra mão e amarrou ao redor do seu corpo.
— Ai! — Fingi um gemido. — Pela quase mordida e pela
brutalidade em puxar minha mão.
— Você quem pediu.
— Agora é você quem está sendo má. — Minha mão direita
começou a fazer um cafuné leve e circular em sua testa, enquanto a
esquerda continuou em sua barriga, tentando deixá-la confortável.
Misha cabia direitinho no meu peito. Encaixamos tão bem que me
perguntei se aquilo realmente era ruim. Se seria tão errado como parecia ser.
Porque, quando estava só eu e ela, não temia ou lembrava de nada.
Parecia que, juntos, éramos capazes de tudo.
12

Eu estava consciente de que Axel havia dormido aqui, pois o braço


que circulava meu corpo e a respiração lenta que batia no meu pescoço
eram impossíveis de ignorar. Passei uns cinco minutos imersa naquele
frenesi, mas meu braço começou a formigar. Libertei-me daquele aperto,
ainda um tanto surpreendida com a situação, e saí da cama para tomar
banho e me arrumar para a faculdade.
Por enquanto, o sujeito profundamente adormecido em minha
cama vai apenas ficar lá, e não em meus pensamentos!
Rumei ao banheiro e passei tempo demais refletindo sobre o que
deveria ou não fazer com meu cabelo. Saí um tempo depois, já tendo
tomado uma decisão, mas preferi escolher uma roupa antes do banho.
Enquanto ainda olhava para as minhas roupas, pensei sobre o que
Axel falou ontem. Ele não entenderia se eu explicasse que a minha família é
importante demais para mim; tanto que me afetava de verdade não seguir o
que eles desejavam.
Para ter roupas em tons claros, poder sair a hora que quero,
trabalhar fora e escolher qual curso fazer na faculdade… Tive que enfrentar
muitas brigas e argumentar umas mil vezes contra eles, o que me magoava
muito. Tudo para tentar ser minimamente quem eu quero ser de verdade.
Todos ao meu redor pareciam saber mais do que eu e impuseram
seus desejos a todo custo.
Isso é exaustivo!
Afastei esses pensamentos para longe e continuei analisando qual
roupa usar. Era por detestar ter que explicar minha relação com a minha
família que não fazia tantos amigos. Saori era a única que ficava ao meu
lado sem questionar essas coisas. Na verdade, ela me motivava a me dar
bem com eles, mas…
— Cortou seu cabelo?
Gritei assustada ao ouvir a voz de Axel perto de mim. Girei em
meus calcanhares e o encontrei.
— Por Deus, garoto! — o repreendi. — Não cortei meu cabelo! —
Puxei para frente as tranças que ainda estavam picotadas.
— Então, cadê o resto das suas tranças?
— Eram parte do cabelo sintético. Cortei fora, porque vou tirar. —
Dei de ombros, virando de volta ao armário e já começando a desfazer o
resto das tranças.
— Seu cabelo natural ainda é muito comprido. — Axel notou. E
era verdade, quase batia na bunda. — O que vai escolher para vestir? —
Ouvi seus passos se aproximando, mas continuei meu trabalho.
— Uma saia, blusa e blazer — disse, puxando todas as coisas com
rapidez, pois já estava decidida. Então, virei para ele, segurando minhas
roupas contra meu corpo. — E você?
— Ah, uma coisinha simples. Vou tomar banho e escovar os
dentes, sabe?
— É uma boa escolha de look. — Contive o riso, colocando as
roupas na bancada da pia do banheiro. — Pode ir para a fraternidade de
carro compartilhado, mas só depois que eu sair, porque Jeff não pode nem
sonhar que você dormiu aqui! — falei, encostando-me na porta do banheiro.
— São — ele puxou o celular do bolso, olhou e voltou a me focar.
— seis horas. Por que você acorda tão cedo, patricinha? — Parecia que ele
estava vendo um fantasma, de tanto que franzia o cenho.
— Achei que um atleta também acordasse cedo — debochei,
desencostando da porta, ainda desamarrando algumas tranças.
— Sou atleta, não um zumbi. Você deve ter acordado bem antes,
pra ter tido tempo de cortar o cabelo, escolher uma roupa e sabe-se lá o que
mais…
— Garoto, isso não é cortar o cabelo, por Deus! — Chacoalhei os
fios reais em evidência. — Qual seu problema com meus fios curtos ou
não?
— Ficou bom comprido. — Deu de ombros. Tinha algo a mais ali,
pois vi o momento em que parou de me olhar e vagou.
— Você paga a próxima extensão, se gostou tanto assim. Afinal,
está me devendo o conserto da minha câmera.
— Não é como se você não fizesse sempre esse tipo de cabelo. —
Ele apontou para trás, mais especificamente para a minha mesa de estudos,
onde tinha duas fotos minhas em família com o típico cabelo de sempre;
tranças muito compridas e pretas.
Dei de ombros.
— Não exclui o fato de que me deve uma câmera nova.
— Devia ter me pedido no dia. — Elevou as sobrancelhas.
— Por um acaso perdeu tanto dinheiro assim desde então?
— Digamos que me tiraram, mas eu vou recuperar. — Axel largou
de vez meus olhos e começou a mexer nas minhas roupas.
— Não bagunça as minhas coisas! E você ainda me deve — falei,
o deixando para trás e entrando de vez no banheiro.
— Organização é meu forte, patricinha. E em breve te compro uma
câmera nova, não precisa nem se preocupar.

— Ainda vai demorar muito? — Ouvi Axel do lado de fora do


banheiro, enquanto terminava de pranchar meu cabelo.
— Por quê? — Abri a porta, o focando, desentendida. —
Aconselho sair pela janela, porque Jeff só sai depois de mim. — Dei de
ombros, voltando a arrumar meu cabelo.
— Por que está fazendo isso com tudo fechado? Isso faz mal,
patricinha.
— Porque você está aqui e, até que saia, eu preciso me trocar e me
arrumar no banheiro.
— Estou falando do calor que sai dessa merda. — Apontou para
minha chapinha, com cara de poucos amigos.
Tudo bem, era verdade, o calor daquilo deixava um banheiro
pequeno como o meu abafado demais, mas eu não lhe daria o sabor da
vitória.
— Se você for logo… — Apontei em direção à janela.
— Não acertamos nada do trabalho e ainda é cedo. Podemos
resolver isso nesse momento.
— O que quer resolver? Só precisamos apresentar algo sobre o
livro. Podemos interpretar uma das cenas e tudo bem. — Voltei à minha
arrumação, fazendo pouco caso daquilo.
— Ele pediu dedicação…
— E ele também nos disse que daria nota máxima no bar, lembra?
Houve um minuto de silêncio esquisito demais, então me virei para
o focar. Axel parecia meio horrorizado com o que eu disse.
— Tentei falar com a Saori sobre aquela noite — confidenciou,
agora em um tom sério.
— Acho que ela só estava assustada porque os pegamos em um
momento íntimo. Nos outros dias a minha amiga estava normal, já até o
procurou para conversar nos corredores, ao menos, foi o que ela me disse.
Acredito que ela gosta mesmo dele, ou algo assim.
— Ela não devia.
O encarei, estranhando, ainda mais porque ele estava com um
olhar muito pensativo e preocupado.
— Por que diz isso?
— Eu não acho que foi só isso que aconteceu naquela noite. Os
olhos dela, assustados e vagos, ela toda encolhida… Não sei, Misha, mas
me pareceu algo bem mais do que só ser pego fodendo.
— Ainda não tô entendendo você.
— Tem certeza que não notou nada?
— Sim. Bem, no começo ela pareceu estranha, sem deixar sequer
que eu a tocasse, mas… ah, talvez seja porque ela se assustou com tudo; a
polícia, nós a vermos, foi tudo bem rápido mesmo. Por quê? O que você
está pensando sobre o que aconteceu?
Eu sei o que pareceu, mas eu sou mulher, e a Saori é minha melhor
amiga desde que tínhamos 14 anos. Ela não me esconderia algo assim e eu
também notaria.
— Não sei, não sei… — Negou com a cabeça. — Certo, se você
acha que foi só coisa de momento, então, tudo bem. — Enfim, dando de
ombros, se afastou.
— Cuidado quando sair — falei, vendo que ele já se aproximava
da janela. — De tarde vou te mandar a conta da minha câmera.
Rindo e de cabeça baixa, Axel negou e começou a se preparar para
sair com cuidado pela janela.
— Já disse que sou eu quem vou comprar, patricinha.
— Você não vai saber que tipo de câmera eu uso. Vou comprar e te
mandar a conta.
— Não.
— Mas você não sabe…
— Amanhã levo a sua câmera nova — disse, já descendo de vez
pela janela.
 
13

De manhã, meu irmãozinho, Owen, me mandou mensagem, foi por


isso que acordei; o número dele é o único com chamada no meu celular. Ele
me disse que estavam precisando de remédios e me mandou a foto de uma
receita, então, entrei na primeira farmácia que achei.
Enquanto a atendente fazia seu trabalho, eu mexia no celular,
procurando saber se teria alguma aula vaga.
— Seu cartão não está passando, senhor — ela disse, parecendo
até mesmo entediada.
Merda! Nem posso reclamar. Como me esqueci que ele cortou
nossos cartões?! Deve ser o costume.
— Tudo bem, vou pagar em dinheiro.
Gastei os últimos dólares que tinha. Agora nem adiantava ir à
faculdade, afinal, eu estava sem nenhum dinheiro ou previsão de voltar a
ter, já que nem eu, nem minha mãe, trabalhávamos.
Preciso resolver isso com urgência!
Caminhei até a casa da minha mãe. Era melhor passar um tempo
com os meninos do que ir para a faculdade e dar de cara com mais gente
rica falando coisas vazias e que não me interessavam.
Ainda bem que a cidade era pequena. Não demorei nem quinze
minutos para chegar… “em casa”, era um termo estranho para me referir ao
lugar onde minha mãe e irmãos dormiam há quase um mês. Não era nosso
lar, não era New York, não era a Espanha e muito menos tinha os
componentes necessários para um lar; faltava um membro da família,
comida e móveis. Era uma casa de veraneio, apenas isso.
— Axeeeeeel! — meu irmãozinho, que já estava grande demais,
gritou feliz, pulando em meu colo.
O abracei apertado, erguendo seu corpo já com dificuldade, e o
mantive em meus braços.
— Como vão as coisas, garoto?
— Hm, não muito bem… — Pareceu cabisbaixo.
— Ei, o que foi?
— A mamãe. Ela não está nada bem. Acho que é coisa de mulher,
ou talvez ela só esteja com fome, porque não a vi comer durante duas
noites, e durante o dia ela quase nunca come. — Seus olhinhos brilhavam
por conta das lágrimas quase escorrendo.
Meu irmão tinha um coração doce, amava e se preocupava
genuinamente com todos os integrantes da nossa família. E aquilo me
quebrava ainda mais. Ver a dor, o desentendimento, no olhar de um garoto
de 12 anos…
Agora faz sentido o remédio ser um composto nutritivo. Ela ainda
continuava com aquela merda, quando ficava longe dele.
— Tudo bem, eu comprei o remédio que você falou. Me leva até
ela?
— Claro. — Owen desceu do meu colo e puxou minha mão pela
casa.
Passei pela sala e cozinha imensas, divididas por uma área
pequena e aberta. Uma tevê e sofá estavam na sala, mas aquilo não
significava um bom lar, muito menos a mesa larga na cozinha, sem nem
mesmo uma cadeira.
Subimos as escadas e Owen abriu a porta do primeiro quarto. Vi
uma cama de casal imensa, adornada por um mosquiteiro todo branco
escorado na parte de trás da grande cama. Deixei os remédios na pequena
mesinha que estava ao lado quando me aproximei do corpo abatido de
minha mãe.
— Axel, o que faz aqui? — Sorriu, singela.
Os cabelos ruivos, em tom cobre, estavam ressecados e um pouco
abaixo do ombro, onde ela sempre os manteve.
— Vim trazer seu remédio — disse simples, sabendo que o
silêncio descomunal se instauraria, mesmo implorando para que isso não
acontecesse.
— Mamãe, conte ao Axel sobre a sopa que fez ontem, como estava
gostosa.
Minha mãe prendeu seu olhar ao meu quando processou as
palavras do meu irmão. Seus olhos claros se encheram de lágrimas e logo
senti vontade de abraçá-la, o calor embrulhando meu estomago.
Eram tempos difíceis para nossa família.
— Filho — ela chamou meu irmão Owen sem nem o focar. —, a
mamãe precisa conversar com Axel sobre a faculdade dele. Onde está
Mário?
— Dormindo no berço — Owen apontou para trás de si. — Acho
que a senhora também dormiu ainda pouco — ele sorriu, inocente do real
motivo que minha mãe tanto dormia.
— Pode leva-lo para sala com você, por favor?
Owen me olhou, após esperar algo a mais de nossa mãe.
— Está bem — quase sussurrou, pegando nosso irmão mais novo e
saindo do quarto, enquanto eu sorria leve para eles, me despedindo.
— Gastando dinheiro comigo, filho? — Minha mãe parecia estar
se despedaçando, as lágrimas saíam sem ela conseguir controlar. E olha que
ela sempre foi muito boa em disfarçar o choro.
— É remédio, mãe. — Me aproximei para secar suas bochechas e
ela aproveitou para afagar meu rosto.
— Desculpe, filho.
— Pelo quê? — Estranhei, ao me afastar.
— Nunca fomos próximos, mas uma mãe não deveria deixar de
cuidar de um filho tão cedo, como fiz com você.
— Eu já tenho dezenove anos, mãe — tentei descontrair, sorrindo.
— Eu ainda sou sua mãe, tenho responsabilidades! — Ela fungou
e afastou uma última lágrima, desviando o olhar. — Não quero voltar para
nossa vida antiga, mas… eu não posso trabalhar, muito menos manter essa
casa, os meninos e você. Acho que vou falar com seu pai e tentar…
— Não!
Seu olhar se voltou para mim.
— Filho, por quê? Essa é a nossa única saída. Eu nem sei o motivo
de eu ter decidido largá-lo. — Ela virou a cara e fungou.
Não lembra? Meu Deus!
— Mãe — toquei em suas mãos. —, o basquete é a nossa
possibilidade de mudança, meu pai aqui…
— Atrapalharia.
— Exato. Eu vou resolver isso, tá? Não se preocupe.
Ainda fungando, ela concordou com a cabeça.
— Por que não foi à faculdade hoje?
Larguei suas mãos e passei pelo meu cabelo. Minha mãe sabia que
eu saía vez ou outra e dormia na casa de algumas pessoas, só que… é a
Misha. E ela é mais do que qualquer outra pessoa.
— Dormi na casa de uma pessoa. — Não a foquei ao contar.
— Pessoa? — Seu tom de voz demonstrou certo interesse. —
Alguém especial?
— Mãe! — A repreendi, fugindo do assunto.
— Espero que seja um bom companheiro, Axel. Nunca fomos
próximos, e seu pai também não foi um bom exemplo. Me preocupo com
você.
— Posso me cuidar sozinho.
Sei que devia ser difícil para ela começar a falar de algo assim
comigo, mas, da mesma forma, para mim era como arrastar um ferro pelo
meu estômago.
Nunca fomos próximos.
Ela me gerou e criou, porém, é apenas isso: é a minha mãe. Essa
mulher e eu já vivemos coisas horríveis demais juntos, e isso apenas nos
afastou.
O basquete é a única coisa que sei fazer, e é a nossa oportunidade
de mudança real.
Mas o basquete não nos sustentaria ainda, por isso, eu precisava
fazer algo.

Voltei para casa, me banhei e decidi andar de skate pela orla da


praia.
Existia apenas uma saída para a nossa situação financeira. Eu
sabia, e minha mãe também. Seria péssimo, mas era o que precisava ser
feito. No fundo, todos sabiam que eu acabaria tendo que recorrer ao meu
pai.
Um trabalho não seria possível para minha mãe, com dois filhos e
uma casa para cuidar, ainda por cima tendo um corpo debilitado por falta de
nutrientes como o dela. Esforço físico nunca foi seu forte. Eu estudava
praticamente o dia todo, também treinava demais. Meu pai era a nossa
saída.
Em uma estancada bruta, parei de remar meu skate.
Precisava reagir a isso; minha mãe estava debilitada, meus
irmãozinhos com fome e eu, zerado.
Puxei o celular do bolso, sentando em um banco qualquer e
apoiando o skate na minha perna. Odiava o que estava prestes a fazer,
mas… Rolei até achar o contato e liguei depressa, antes de desistir de vez.
— Axel? — assim que a sua voz chegou ao meu ouvido, eu sabia
que ele estava sorrindo de orelha a orelha. Um arrepio percorreu minha
espinha. — A que devo a honra de sua ligação?
— Eu aceito fazer o que o senhor queria — disse seco, odiando
tudo aquilo.
— O que, exatamente? Pode ser mais específico? — debochou.
— Aceito representar o senhor na cidade, coletar as informações
necessárias e seguir as suas ordens. A merda que o senhor tanto quer que eu
seja na empresa! — Trinquei os dentes.
— Ah, claro… — Não demorou nem dois segundos para ele voltar
a falar: — A boate está desfalcada. Um dos meus melhores homens vai
participar de uma reunião aí. Preciso que você vá e me represente, como um
homem. Faça isso direito, Axel!
Apenas confirmei.
Minha relação com meu pai nunca foi do tipo "como você está,
filho?", e eu nunca desejei isso. Não consigo sentir falta do que nunca tive.
Querendo ou não, sempre estávamos amarrados às merdas dele e
ao seu dinheiro sujo. Só que, quanto mais tempo eu passava amarrado nesse
tipo de artimanha, mais eu sentia ser algo meu. Eu sendo ele, não me
tornando; o que era a realidade.
 
flashback.1

Já fazia muitos dias que meu pai não voltava para casa, e minha
mãe não comeu em nenhum deles. New York estava tomada por uma garoa
e um trovejar que me causavam um amargor intenso na boca do estômago;
ou, talvez, fosse a saudade do meu pai.
Quando ele não estava em casa, parecia que um buraco se
instaurava; minha mãe não comia, meu irmãozinho Owen fazia mais birra
do que nunca e eu tinha que cuidar para, pelo menos, tirar o lixo e não
deixar a casa cair aos pedaços. Mas, quando ele estava, esse buraco era
preenchido com o caos e a destruição no qual ele nos amarrava.
Mesmo ao pedir uma cerveja enquanto assistia as suas partidas de
basquete em silêncio, sentia que ele não se importava de verdade conosco,
porque não brigava muito. Afinal, gritar tudo bem, todas as famílias
discutem, certo? Esse é o normal. É isso que minha mãe falava. Ela também
dizia que, quando as mulheres amam demais, elas podem ficar sem comer.
"É o amor, ele faz a gente tomar decisões difíceis. Sem seu papai,
a mamãe não sente fome, filho. E tudo bem, isso mostra o quanto eu o
amo."
Nunca entendi isso muito bem.
— O papai chegou! — Owen adentrou a cozinha, gritando,
enquanto eu tentava limpar a pia para manter as coisas minimamente
organizadas.
Nosso gatinho, Alfred, pareceu despertar de seu sono em cima da
longa bancada da cozinha, espantado. O pelinho malhado se esticou todo
quando ele se espreguiçou. E, assim que o som da porta da frente se abriu, o
felino correu pela cozinha para sair pela porta dos fundos através da
passagem dos animais, assustadíssimo.
Animais sentem coisas.
Dei de ombros, após ver sua partida.
— Axeeeeeel! — meu pai gritou, parecendo muito bêbado. Não
que isso fosse fora do comum.
Corri apressado, cambaleando em meus pequenos pés.
— Sim, senhor, pai. — Parei diante dele, amarrando meus braços
atrás do corpo.
Ele pareceu pensar um pouco enquanto se arrastava para o sofá,
onde jogou seu corpo, meio sem jeito, e todo molhado. A porta ficou aberta
e a chuva, agora mais intensa, invadia a nossa varanda.
Corri para fechar a porta com cuidado, porque era grande e pesada
demais para mim.
— Me traga uma cerveja! — ordenou, parecendo meio nauseado,
passando as mãos na testa e têmporas.
Corri até a cozinha, peguei e o servi ao voltar para a sala. E, de
novo, fiquei diante dele, com as mãos para trás, esperando ordens.
Ele abriu a garrafa com o dente e cuspiu o lacre para longe; era
provável que fosse ao dentista de novo naquela semana. Corri o olhar para
onde a tampinha havia parado; precisava limpar isso quando ele subisse.
— Onde está a sua mãe? Aquela vaca tem que estar ao meu lado!
— Ela está lá em cima. Quer que eu chame ela?
Até porque, Owen estava escondido na cozinha, embaixo de nossa
imensa mesa; o que não adiantava de nada, já que o chão era tão claro que
chegava a espelhar.
— Chame, agora!
— Sim, senhor. — Corri em direção à escada, já pronto para a
subida em passos rápidos.
— E, Axel — me virei para o focar. —, pare de parecer uma
menininha com essas mãos para trás e esse corre-corre. Você anda como
uma mulherzinha. Se não aprender a ser homem logo, eu mesmo vou te
ensinar.
Sua fala paralisou meu corpo por alguns instantes na escada, mi ha
mão estava descansando na perna, enquanto a outra apoiava no corrimão.
Ajeitei minha postura, deixando a mão que estava na perna cair, tomado
pelo susto de sua repreensão. Por fim, apenas acedei, concordando.
Era meu pai, certo?
 
14

Ainda estava meio desesperado com a merda do trabalho. Quando


se é um jogador prodígio, todos os professores te bajulam e normalmente eu
amo isso, mas a bajulação do professor de inglês era… Não sei definir, não
sei o que ele era, nem o que queria com a gente, mas, naquela manhã, ele
veio falar comigo, e foi como falar com a família da Misha; estranho,
incômodo, como se algo estivesse bagunçado, mesmo parecendo muito
estar no seu exato lugar.
— Ei, Axel, certo? O novo jogador de basquete, não é? — a voz de
Dale, nosso professor de literatura, me paralisou.
Eu já estava saindo da aula de biologia básica.
Não me assustei ou algo assim, só fiquei estático como uma pedra;
aquele cara me surtia um efeito que me lembrava meu pai.
Com uma expressão neutra falsa estampada no rosto, me virei para
encontrá-lo.
— E aí? — Elevei as sobrancelhas e cruzei os braços.
— Como está?
Toda aquela conversa era falsa e incômoda demais, só o início dela
já deixava isso claro.
— Bem. E o Sr.? — Mas eu entraria na falsidade. Sabe-se Deus o
que homens como aqueles sociopatas são capazes de fazer com o mísero
poder que detêm. Só desejei pisar nele como uma formiga e terminar de vez
com aquela sensação claustrofóbica que ele me causava.
— Bem… Ah, olha, sobre o trabalho, você e… Mary?
— Misha.
— Misha! Ela é uma garota bonita com aquelas… — O professor
moveu os braços para trás, exemplificando o quanto cabelo dela era
comprido e… algo mais que preferi não racionalizar ou eu acabaria dando
um soco na cara dele. — Bom, gata, certo? — Sorriu forçado. Permaneci
sem expressão. — Namoram?
— O quê?
Que porra?!
— Vocês estão trepando ou algo assim?
A forma natural como ele ousava falar de mim e de uma aluna fez
uma raiva súbita esquentar todo meu corpo e, sem perceber, trinquei os
dentes, fechando os punhos.
— Onde essa porra de conversa vai chegar?
Ele riu, sarcástico.
— Ouvi dizer que o pai dela, o treinador Jeff, é um pouquinho,
hm… como dizem? Fodido! Sabia que a família dele é metida com coisas
pesadas, certo? Politicagem global, senadores e governadores são uma
merda, principalmente quando unem tudo em família. E você é Axel
Martinez, filho do magnata Tarcísio Martinez, o dono de um império de
bares, ou melhor — ele riu com falsidade. —, bares subterrâneos, aquelas
merdas certas que todos adoram. Inclusive eu.
— O que você quer? — disse entredentes.
— Você é filho dele. A sua palavra contra a minha teria um grande
peso. Principalmente por ser homem.
— Homem?
— Ah, cara, você sabe, hm? Quando queremos, podemos tomar o
que é nosso. Mas acho que você — ele parou por um segundo e me
inspecionou da cabeça aos pés. —, se perdeu um pouco. Não sei se a
herança da família de vocês já é certa, mas talvez não seja uma boa mexer
com certas coisas quando se tem um império de bares europeus e
americanos para botar as mãos.
— O basquete é o meu futuro…
— O futuro simples de garoto prodígio da faculdade. O certo,
Axel, é a família — ele estendeu sério.
— Desculpe, realmente não estou entendendo o rumo dessa
conversa — cruzei os braços, o focando com os dentes trincados. —,
porque, pelo que você fala, e caso eu tenha entendido bem, eu sou a porra
de um principezinho. E não é porque essa merda toda me incomoda e não
me interessa, que eu queira foder com qualquer coisa que me incomode.
Então, professor, com a sua licença, eu preciso ir pro treino agora. Até mais
ver, ou melhor, não me procure mais, será melhor para nós dois. Certo?
O deixei para trás, sem expressar nada no rosto, e o vi exibir um
sorriso falso numa tentativa fracassada de me fazer acreditar que estava
tudo bem.
Eu realmente queria provar para ele como toda aquela merda não
estava nem perto de bem.
Quem ele pensa que é para falar aquelas coisas e achar que nada
vai acontecer? Posso não ter nenhuma prova sobre o que rolou entre ele e
Saori naquele quarto, mas nada me impede de arrancar essa verdade dele
em algum momento.

E era por isso que, depois do meu treino, passei na fraternidade


para deixar as minhas coisas e decidi bater na porta da Misha incansáveis
vezes. Achei que ninguém estivesse em casa até me afastar um pouco,
adentrar o jardim e olhar pela sua janela, a mesma que desci quando dormi
aqui.
Misha havia tirado as tranças e conservava os cabelos lisos desde
aquele dia, a diferença é que hoje ele estava mais cheio e com cachos nas
pontas, batendo na bunda. Ela estava sentada em uma cadeira, usava fones
de ouvido e a sua atenção estava voltada para o computador. Vez ou outra
ela se remexia, o que fazia seus fios se moverem; eu não devia ver aquilo,
porque fazia meus pensamentos voarem… a imagem dela de quatro e eu
puxando seus fios em punhados surgia na minha mente. O que nunca
aconteceria, óbvio!
Que se foda o que aconteceria ou não.
Subi na porcaria da árvore mais próxima para alcançar a janela,
igual fiz da outra vez, para entrar em seu quarto. Misha tinha pequenos
vasos de flores no parapeito, então, eu comecei a retirá-los do caminho para
entrar melhor e, enquanto eu estava fazendo isso, ouvi um grito estrondoso
vindo dela.
— Que merda, Axel! O que está fazendo aqui? Se meu pai
Anthony nos pegar sozinhos, estaremos fodidos! — Ela me olhava com
ódio fervente.
— Você precisa arrumar um novo lugar para isto. — Apontei para
as plantas. — Porque a gente sabe que, até o momento, o seu quarto de
porta trancada é o único bom lugar para nossos encontros sorrateiros. —
inclinei a cabeça, mostrando o que deveria ser nossa real preocupação.
— Eu não sou a porra da sua ficante para ter “encontros
sorrateiros” com você, muito menos no meu quarto. O que faz aqui? —
Cruzou os braços, seca.
— Gosto de quando cruza os braços — falei, indo até a cama e
começando a desamarrar meus coturnos. —, principalmente quando empina
os peitos. Sempre faz isso quando está comigo, já percebeu?
— Axel — bufou e eu achei graça. —, põe a porcaria do sapato de
volta. — Falou, entredentes.
— Sério, adoro você estressada.
— É, eu já percebi que você me adora. Agora faz o favor de sair
do meu quarto, não quero mais encrencas por hoje, preciso me arrumar pro
baile. — Os braços se descruzaram, ela firmou uma mão na cintura e a
outra na cadeira em que estava antes.
— O que rolou? — me interessei, deitando na cama dela,
tranquilo.
— Não vai sair da minha cama, não é?
— Não.
— Tá. — Bufou, se dando por vencida. — Jeff quer que eu vá em
uma daquelas reuniões de família com ele para que eu possa “conhecer
novos rapazes”, ele acha que eu só gosto de garotos, mas, mesmo que fosse
só isso, ainda é ultrajante ser em um baile qualquer o lugar que conhecerei
meu futuro marido. Eu fui criada para ser uma esposa troféu, ou quase isso,
só que eu me rebelo todos os dias e não dá jeito. Ele realmente acha que eu
quero me casar com um branco idiota qualquer dos amigos dele! —
Abaixou os ombros e sentou-se no tapete felpudo em frente à cama, ou seja,
de costas para mim.
Me levantei e foquei nela, mas Misha não me olhou. Seus dedos
acariciavam os fios sedosos do tapete.
— Ei, garotos brancos podem ser bons — zoei.
— Não é sobre a cor de pele deles, é o status social. — Ela se
virou, me inspecionando de cima a baixo. — E você é…? — Um ar de
dúvida pairava em seu olhar.
— Na verdade, latino de nascença, tecnicamente. Meu pai é
europeu, de Barcelona, mas minha mãe me teve na Argentina, em uma
viagem de negócios dele, e ela é de New York mesmo, onde cresci.
— Hmmm. Enfim, é sobre eles serem uns merdas e se acharem
muito. — Ela voltou a se virar para mim, juntando os tornozelos e
abraçando as pernas. — Juro pra você, às vezes passa pela cabeça que, se eu
achasse um cara minimamente decente, me casaria com ele. É difícil
construir algo hoje em dia. Me casar talvez não seja tão ruim assim. Como
negócios, sabe? Eu agradaria a minha família, teríamos uma casa, uma vida
estável… Essas merdas de construir coisas juntos é mais rápido e blá-blá-
blá. Ele nem precisaria me foder direito. Amor, com certeza, passaria longe.
Bastava que ele fosse respeitoso comigo, entendesse pouquíssimo sobre
classes sociais e pronto, eu casaria com ele. Vida feliz, ehhh! — Ela sorria
pela comemoração falsa.
Aquilo me angustiou.
Me ajoelhei na cama e logo pulei para estar ao lado dela. Seu
corpo deu um leve sobressalto ao se deparar comigo tão próximo. Um lado
meu gostava de acreditar que eu despertava sentimentos contraditórios nela,
aquela leve brisa de verão unida, ao mesmo tempo, a um choque térmico do
inverno.
— Pode demorar a porra de trinta anos pra você conseguir o que
quer, mas não devia se amarrar a um homem, ou a ninguém, só porque
deseja conquistar suas coisas ou agradar a sua família. Além do mais —
estiquei as mãos, afagando aqueles fios que eram realmente fofos demais,
quase viciantes. —, eu te foderia gostoso todos os dias até ficar cem por
cento relaxada.
— Não pode fazer isso, Axel.
— Por quê?
— Porque não temos nada, nem teremos. — Ela ria.
— Sexo sem compromisso e escondido… acho que a gente dá
conta.
— Não, valeu. — Se impulsionou e levantou de uma vez, a
acompanhei com o olhar. — Vou escolher uma roupa e um namoradinho
novo, é o melhor! — Já caminhava em direção a suas roupas, no armário
aberto.
— Namorado? Tão rápido assim? — Me ergui e a procurei,
apressado. — Misha — a puxei depressa, seus seios bateram em mim, por
causa da nossa proximidade. —, que porra de namorado? Você é fodona e
tem essa… — perscrutei seu corpo de cima a baixo. — essa porra de aura
mandona, também é tão decidida. Por que isso agora?
— Não sabe como é ter que travar uma batalha dentro de casa
todos os dias para usar a porra de uma minissaia, ou como fui presa entre
essas paredes por mais de quinze anos. Não podia sair nem com a Saori,
Axel. E isso me fez excluir muitas pessoas da minha vida. Já perdi demais!
Cansa lutar toda hora por algo que você sabe que não tem jeito ou mudança.
Eu só quero paz. Um marido minimamente decente não deve ser tão difícil
assim.
Continuei com uma das mãos firmadas em sua cintura e com a
outra, levantei seu pulso, segurando-o no alto, e encostei suas costas no
armário. Ela não recuou ou estremeceu nem por um segundo.
— Quando diz isso, fica parecendo que se esqueceu de si mesma.
Convivi poucos dias com você, mas já te vi quase fritar minhas bolas e
arremessar indelicadezas por onde anda sem a menor preocupação. A Misha
que vejo é uma mulher que está amarrada contra sua vontade a uma
situação de merda, igual eu já estive, mas acho que você é muito mais
inteligente do que eu para ser vencida pelo cansaço. Talvez o tempo seja seu
pior inimigo agora, mesmo assim, acho que nada venceria sua cara de
brava, porque eu mesmo sempre quero te comer quando a vejo em seu
rosto. Aposto que consegue enganar sua família hoje e tomar para si sua
própria vida, como sempre faz. Não é mesmo, patricinha? — Pressionei seu
punho contra a madeira de seu armário.
Ela gemeu, mas ao notar, pareceu detestar ter me permitido ver
essa parte sua.
— Você só quer me foder, Axel. Eu sei disso. Só está aqui pra
transar, não é? Não quer que eu namore, porque aí seria fechar de vez todas
as janelas pra você. Mas fique sabendo que não vamos transar nem hoje,
nem nunca.
— Se bem me lembro, foi você quem falou sobre gostar de uma
rapidinha. — Sorri de canto.
— Ai, Axel, você é tão previsível. — Ela passou os dedos por meu
braço e tentou sair, mas mantive seu pulso preso. Então, Misha sorriu
sarcástica para mim, mesmo que eu não expressasse nada. Por algum
motivo nós tínhamos essa confiança um no outro, algo sem pensar muito.
— Está com raiva, hm? Não temos nada. Nunca sequer nos beijamos. Por
que acha que pode ficar putinho?
— Não tô puto.
— Sua mão tá pressionando ainda mais meu pulso nesse exato
momento! — Sua cabeça entortou para o lado e ela parecia se divertir com
aquilo.
— É isso que eu falo, você consegue ser uma mentirosinha de
primeira, engana qualquer um, mas quer namorar para ter algo certo?
Desistir de uma batalha? Sério mesmo, patricinha? — A inspecionei,
parando meu olhar para baixo, mas ainda focado em seu corpo. — Essa sua
boceta nunca vai se apertar pra um cara de colarinho. — Então, foquei seus
olhos depressa e vi surpresa, por isso, me aproximei de sua orelha, passando
a língua pela parte alta. — Você é capaz de fazer meu pau ficar duro com
toda essa nossa conversa, sei que pode fazer até qualquer velho barbado
idiota comer na sua mão. Suas palavras podem ser cortantes, mas sei que
sempre pode usar o silêncio a seu favor. Se quer uma dica, use o tempo
como seu amigo e enrole o máximo que der com seu papinho de sempre.
Depois, volte para mim quando estiver muito estressada, posso fazer você
ficar tão calminha, Misha. — Comecei a lamber e beijar atrás de seu
pescoço, onde ela permitiu, virando a cabeça para o outro lado e me dando
mais acesso.
— Axel… — Misha gemeu quando eu passei os dedos pelas suas
costas, indo até a nuca, e chupei melhor a área em que minha boca estava.
— Vai voltar para foder comigo, patricinha? — Retomei os beijos
na região onde, agora, havia uma boa marca, provando para ela que tinha
para onde voltar, onde ter mais daquilo.
Sua mão se apressou para o local e ela me focou, descrente,
enquanto eu sorria com presunção.
— Droga, Axel, você me marcou! — Misha me empurrou com
força e foi até o banheiro para olhar a marca.
Estava em um vermelho notável, quase roxo. Com certeza, ficaria
bem pior em alguns minutos. E aquilo me deixava feliz para caralho.
Qualquer idiota que tentasse algo com ela veria aquilo.
— Eu odeio você! Por que fez isso?! — Gritou enquanto se
aproximava de mim e me empurrava contra seu armário.
— Para não ter problemas com os riquinhos.
— Eu devia fazer meu nome na sua pele com um corte, assim você
também ficaria marcado, pra sempre! — Misha bufou, estressada. — Sabia
que não é só com esses caras que eu fico? Existem as pessoas da faculdade
também, idiotas iguais a você.
— Pega uma faca, então! — Estendi meu braço para ela.
— Você é maluco! — Misha gritou de novo, fugindo para o
banheiro. Tive que me controlar muito para não rir. — Droga, essa merda tá
piorando. Quando o Jeff ver isso, ele vai me matar — choramingou.
Sem me conter mais, ri de seu drama e me escorei no batente da
porta.
— Pode cobrir com maquiagem…
— Você cala a porra da boca e saia do meu quarto! — Ela nem fez
questão de me olhar.
— A gente já teve essa conversa.
— Foda-se — sussurrou, estressada.
Se virou, pegou a toalha que estava em um aparador e a jogou no
box, começando a se despir. Tirou a blusa branca e a saia depressa, a
calcinha indo junto. Tudo pareceu acontecer em câmera lenta e meus olhos
não sabiam mais processar o que viam.
Ela estava me provocando sem vergonha nenhuma!
Era uma vingança pela marca que deixei nela?
O canto do meu lábio se esticou. Adoro quando ela é ousada
comigo.
A bunda da Misha era redondinha, perfeita para mim. O corpo
pequeno se esticou para alcançar alguma loção e olhei para seus pés; tinha
umas marcas ali, machucados, na verdade, assim como uma marca circular
roxa no quadril dela, mas aquelas coisas não eram como a que eu deixei
nela, com certeza.
— Se quer jogar essa merda, então, que seja — disse e virou-se
para mim. Seus peitos estavam excitados, não havia como negar, e suas
mãos demoravam amarrando os longos fios no topo da cabeça, batendo a
porta do banheiro.
Essa, sem discussão, foi uma das piores torturas pelas quais já
passei.
15

Estava saindo do banheiro, já arrumada, quando senti uma vontade


imensa de olhar para o meu colar, assegurando-me de que estava intacto.
Passei o dia sem ele. Quando eu tinha impasses familiares, o tirava; era
como se eu não quisesse que a pessoa que me acompanharia para sempre
visse as merdas que mais assolavam a minha mente.
Afinal, sendo bem sincera, eu realmente acreditava que me casaria
com um cara qualquer. Minhas exigências eram simples. Daria meu colar a
qualquer pessoa que me desse o mínimo de responsabilidade afetiva. E eu
sei que é errado…
Mas toda a minha mente paralisou quando ouvi a gritaria do outro
lado.
— Quem ficava com putas era você!
Saí do banheiro com pressa e encontrei um Axel raivoso,
caminhando pelo quarto. Quando seus olhos me encontraram, ao ouvir a
porta de onde eu saí, abrir, ele me focou, nervoso.
— Desculpa — sussurrou.
— O que está acontecendo?
Axel não me respondeu, apenas colocou o telefone em viva voz,
parecendo nervoso demais para continuar com a ligação no ouvido, mesmo
que ainda precisasse ouvir.
— Seja quem for a porra da pessoa que tá com você aí, Marcel vai
te pegar em dez minutos. Mande o endereço para ele. Não falte ou você está
fora! — Então, o cara desligou.
A voz ainda ressoava, como um zumbido agudo penetrante. Foquei
Axel, mas ele não se movia. Me sentia impaciente com sua reação.
— O que vai fazer?
— Não está me julgando, que surpresa! Achei que agora iria me
detestar e me afastar ainda mais! — Elevou as sobrancelhas, sarcástico, sem
humor. Sua mirada me deteve e, por um segundo, achei que todo o ar do
mundo tivesse sido roubado de mim. — Você tá gata, quer carona até o
lugar?
— Eu vou com você.
— Nem fodendo.
— O quê? — Estranhei.
— Nem fodendo que você vai comigo em uma das reuniões do
meu pai. — Sua mandíbula estava travada, ele se sentou depressa na cama,
calçando os coturnos sem nem me olhar. — Passou o dia fazendo o quê?
Estudando, focada… E agora vai para uma dessas festas de ricos atrás de
um namorado. Você é a porra de uma princesinha perfeita, Misha, e eu sou
só um fodido. Você devia ficar longe de mim, não tenho como te ajudar.
— Eu não quero a sua ajuda para sair de porra nenhuma. Da minha
família cuido eu! — esbravejei.
— Você é só uma garota que eu quero foder! — ele se levantou, e
se esforçou muito para me focar, me lançando um olhar de desdenho. Logo
saiu, esbarrando em mim, e tentou descer pela janela.
O alcancei, puxando seu braço pela jaqueta de couro.
— Pare de me afastar. O que rolou?
— Me solta!
— Para, caralho. Para de me afastar. Você praticamente me comeu
dois segundos atrás.
Seu rosto se aproximou de mim, sem expressão, e assombrou meu
âmago, porque eu odiava não desvendar suas íris verdes.
— Eu devia ter apenas te fodido e ido embora — cuspiu.
E, por um segundo, uma fração mínima, eu quase acreditei de
verdade. Quando retornei à realidade, piscando, Axel já havia descido de
vez. Droga! Ele realmente estava me evitando, como um gato arisco.
Meus pés se afastaram da janela antes mesmo de eu raciocinar e,
em segundos, eu desci as escadas de casa, trancando tudo em seguida.
Um carro compartilhado parou na minha frente, e o motorista
parecia em dúvida sobre qual passageiro pegar; uma mulher de roupa de
grife, na frente de uma casa chique, ou um garoto de camiseta colada,
jaqueta de couro e coturnos no mesmo quintal? Óbvio que o motorista
escolheria a primeira opção.
Mas antes que eu pudesse entrar no carro, que provavelmente era
para ele, ouvi a batida seca da sua mão na porta do lado.
— Não! — O foquei. — Porra, Misha, já falei um trilhão de vezes
que você não vai! — Seus olhos fulminavam ódio e seus dentes estavam tão
trincados que jurei que isso lhe traria problemas futuros.
Vi o vidro do carro abaixar devagar. Um homem negro de pele
retinta e cabeça raspada colocou o rosto para fora, fitando Axel com certo
julgamento.
— Para de bater na porra do meu carro, moleque! Seu pai pode ter
te colocado no comando, mas eu não vou ser sua babá. — Depois, ele virou
para me analisar de cima a baixo. — Se a sua vadia vai com a gente, que
seja logo, estamos atrasados. E é bom que dê um jeito dela não ficar
gritando.
Aquele não era um carro de aplicativo?
Axel bufou alto e revirou os olhos, caminhando apressado. E eu o
segui, entrando no carro antes dele só de birra.
— Vai — disse estressado para o motorista, que, por sinal,
despendeu tempo demais olhando para nós dois.
— Nunca achei que te veria com uma garota, ainda mais uma
assim.
— Assim como? — Axel parecia ainda mais puto e o motorista
deve ter percebido, porque endireitou a postura e focou na estrada. Girando
a chave e dando partida, ele concluiu:
— Uma dessas que nem sequer parecem querer pisar no chão.
Bufei, estressada demais.
As pessoas sempre achavam isso de mim.
Axel nem se deu ao trabalho de me olhar, de averiguar se eu estava
bem. Acho que uma chavinha havia virado para ele. Algo devia ter mudado.
Talvez não se sentisse mais atraído por mim e não é como se eu desejasse
isso dele, mas… eu o queria. Queria sua atenção em mim, porque também
gostava de lhe dar minha atenção. O Axel era uma dessas auras compatíveis
e eu gostava de tê-lo para mim.

Uma boate, tipo, a boate. Eu sabia que existiam lugares


clandestinos na cidade, mas nunca os frequentei. Minha vida era bem
monótona, meu máximo foi transar com um forasteiro na casa dele. Ali
existia diversão para todos os lados e de todos os gostos; mulheres em
jaulas, cassinos e homens com roupas de couro dançando na pista.
Axel segurava meu pulso como se fosse a coleira de um cachorro;
eu era o cachorro e ele a coleira. Eu estava me sentindo ridícula. Seus olhos
em nenhum segundo me deram atenção. Ele me puxava pelo meio de
diversos homens sem falar comigo ou com qualquer um deles.
Até que um cara mais velho passou a mão na minha bunda e outro,
logo em seguida, me puxou facilmente ao seu encontro. Minhas costas
bateram em seu corpo no mesmo instante, e eu me senti enojada por ter seus
braços amarrados a mim. Foi fácil, porque eu era muito magra comparada
ao tamanho daquele cara. Devia ter o quê? 1,90m de altura e pesar uns 100
quilos só de músculos?
Virei a cabeça devagar, o focando; puta merda, ele era imenso. Seu
rosto era todo tatuado e os cabelos, castanho-claros. Ele tinha cara de
poucos amigos, mas uma dúzia estava ao seu entorno e, assim como ele,
também sorriam com malícia para mim.
Meu coração bateu em um milhão por segundo, e jurei sentir até a
comida de ontem voltando pela minha garganta. Tentei me desprender de
seu aperto e virei o rosto, procurando por Axel, porém, não o encontrei.
Respirei fundo.
Era uma situação complicada. Axel havia se perdido na multidão e
presumi que não voltaria para me procurar, já que estava putasso.
Virei-me novamente para o indivíduo que me prendia e tentei
soltar um dos meus braços; ele permitiu. Parecia se divertir comigo; um
pequenino pássaro preso em uma gaiola.
Abri um sorriso de ponta a ponta e o foquei.
— Quem é o Sr.?
— Nomes não são necessários — ele disse, como se soubesse
muito sobre mim. — Está aqui por diversão ou cobra? A julgar pelas
roupas… — E me inspecionou mais uma vez. A porcaria do cetim de tafetá
pareceu amassar meu âmago. Por pouco, não vomitei. Quando seus olhos se
voltaram para mim, eu sorri, singela. — …é cara, muito cara.
— Podemos falar sobre preços mais tarde! — Arrastei minhas
mãos por seu braço coberto pela blusa branca. Notei que a pele exposta no
pescoço mostrava ainda mais tinturas. — Pode me pagar uma bebida? —
pedi, mas nem em um milhão de anos beberia algo que ele me desse, só
queria sair de perto dos amigos dele.
— Claro, gata. Do que gosta?
— Eu vou com você.
Ele já se levantou, animado.
— Beleza. — Segurou minha mão com força, me guiando até o
longo bar, ao lado dos amigos. Logo me levantou, como se eu não fosse
nada, e me colocou sentada em um dos bancos. — Sabia que antes putas
não eram permitidas aqui? Só quando trazidas por nós. Martini, por favor?!
— ele pediu ao garçom e voltou a me focar. — Mas gosto de pegar as
novinhas no local que fico. Não é bom sair por aí com meninas da sua
idade. Você tem o quê? Quinze?
— Dezoito, na verdade.
— Sei. — Riu como se eu estivesse mentindo. — E eu, vinte. —
Então, tomou seu Martini, que o garçom acabara de lhe entregar. — Mas é
bom que tenha a idade que quero. — Puxou minha cintura para si, grudando
nossos corpos. Instintivamente, desejei me afastar, mas não o fiz, por mais
que eu não conseguisse mudar minha cara de nojo. — Vai beber o quê? Ao
menos, conhece bebidas?
— Gin. — Assim que a minha voz saiu baixa, algo pareceu
destravar em mim, como se eu fosse começar a chorar.
— Ei, olhe para mim — ele exigiu, um pouco mais ameno, porém,
logo puxou meu rosto com brutalidade. — Chora sempre que fode seus
clientes?
— Desculpe, Sr. — falei sem nem pensar. Já podia sentir uma
lágrima grossa escorrendo. Depressa, a limpei, esvaziando a cabeça e o
focando. — Podemos ir ao banheiro? Acho que posso mostrar coisas
melhores para diverti-lo além da visão. — Pisquei, me pondo de pé.
Sua reação foi bem melhor do que eu imaginava. Endireitando a
postura, ele virou o copo de uma só vez e sinalizou para eu seguir por um
corredor, enquanto me escoltava.
Durante o caminho, senti alguém nos olhando. Por um segundo
desejei que fosse Axel, mas não me virei para procurar. A mesma sensação
estranha me ocorreu quando adentramos o corredor mais escuro e ele bateu
na porta do banheiro para abri-la, antes mesmo que minha mão alcançasse a
maçaneta.
Então, todo o barulho diminuiu e a sensação estranha de
perseguição se foi. Dessa vez, o medo era presente. Eu tinha duas opções:
foder com esse cara de uma boa maneira ou de uma má. No mínimo, chupar
o pau, o que eu odiaria e me enojaria na hora. Ou, a que mais me agradava,
podia pará-lo; só precisava achar a coisa certa.
— Então, o que seria bom para eu ver aqui?
Me aproximei de seu corpo, passando a mão pela sua barriga e
descendo; ele era um concreto de tão duro e imenso. Meu Deus, o pau dele
com certeza nunca caberia em mim. Lambi os lábios, fingindo adorar senti-
lo na mão, e ele me provocou prensando seu corpo ao meu.
— Prende seu cabelo, gata. — O foquei. — Quero ver sua boca
certinha no meu pau.
Todas as suas palavras nojentas foram engolidas por mim e
retribuídas com um sorriso singelo.
Mordi o canto do lábio quando comecei a desabotoar suas calças.
Seu pau pulou duro para fora, já gotejando. Que fraco. Eu precisava pensar
em algo mais concreto imediatamente!
Então, uma luz piscou na minha mente.
— Pode se escorar? — Apontei para a parede. Quando ele pareceu
estranhar, inventei uma desculpa: — Ficaria tímida se alguém nos visse.
Ele riu, mas pareceu gostar de saber que eu o queria sem que
outros vissem.
Aproveitei o tempo em que ele se afastou para amarrar meu cabelo
no alto. Os grampos estavam presos às mechas iniciais.
O banheiro era largo e cheio de cabines, ele escolheu uma delas
para sentar em um dos bancos e abaixar totalmente as calças.
Por Deus, que ridículo!
Tive que conter a revirada de olho, caminhando em sua direção.
Me aproximei e logo fiquei de joelhos.
Eu teria que, minimamente, o deixar relaxado para fazer o que
queria, então, comecei a masturbá-lo. Mas eu me iludi fácil demais.
— Coloca logo na boca, putinha. Eu gosto de ver a boca pequena
de vocês sendo fodidas pelo meu pau.
Engoli todo o ódio que pairava em mim e me inclinei sobre ele.
Não seria muito; umas três chupadas e já dava. O pau dele era fraquinho,
logo ele estaria perto de gozar.
Foi com aquele convencimento que me abaixei e comecei a chupá-
lo.
Uma. Duas. Três. E quando já estava descendo a boca de novo,
ouvindo seu gemido e sentindo que ele já estava quase gozando. Segurei
firme o grampo na minha mão e, sem pensar duas vezes, o enfiei na sua
bola direita, ao mesmo tempo, em que a porta do banheiro foi aberta e um
gás horrível foi jogado.
— Puta que pariu, caralho, sua puta de merda! — ele gritava e seus
olhos se fecharam, os meus também, mas pude ver quanto sangue escorria
pela minha mão.
Não senti culpa ou remorso. Na verdade, em dois segundos não
sentia mais nada, porque alguém me agarrou por trás, tapando minha boca e
meu nariz. Eu já estava tecnicamente desmaiada, sendo levada por esse cara
muito alto, ouvindo o choramingo do idiota que esfolei ficando longe e a
risada daquele que me carregava.
— Você é maluca igual ao pai dele! — Foi a última coisa que ouvi
antes de desmaiar.
 
16

Misha tinha largado minha mão, ou sido engolida pelos diversos


homens e strippers ali. Girei o corpo, já com mil pensamentos ruins na
cabeça, e tentei procurá-la, mas não a encontrei. Apressado, subi as escadas
até o mezanino da boate. De lá seria bem rápido achar ela. Logo encontrei
Marcel no meio do local, focado na multidão que dançava na parte de
baixo.
Ele me olhou sorrindo.
— Sua garota é uma vadiazinha. Está ali embaixo, com nada mais,
nada menos, do que o nosso maior fornecedor de armas. Acho que ela tá
gostando dele, ou não, a cara de nojo dela é inegável, mas ainda assim, não
tira as mãos do corpo dele.
— Qual o nome do idiota? — perguntei entredentes, focando na
cena ridícula que os dois protagonizavam.
— Roger, nosso fornecedor estrangeiro. Acho que devia fazer
algo, se não quiser ficar com os restos daquele cara. Ele realmente só deixa
restos. — Marcel ria, mas eu odiava as suas palavras.
O conheci quando eu ainda era muito pirralho. Sempre trabalhou
para meu pai.
— Os siga e não deixe que ele a toque — ordenei, quando vi os
dois indo em direção ao banheiro.
— Senhor, sem querer ser intrometido — quanto mais Marcel
falava, mais eles sumiam da minha vista, adentrando os corredores e me
deixando tenso. —, mas aquele é o cara das armas. Se a gente se der mal
com ele, estaremos fodidos. A porra da facção inteira dele vem atrás da
gente. Não estamos em condição de contra-ataque agora.
Me virei sobre os calcanhares, fuzilando seus olhos marrons ao
mirar nele.
— Pegue a minha mulher e a leve pra nossa sala! — Minha ordem
foi direta como aço e o deixei no mesmo instante.
Rodeei o mezanino, rumo às salas particulares do outro lado.
Entrei na nossa, apressado. Não olhei um segundo sequer para procurar por
Marcel; ele sabia que seria um homem morto na manhã seguinte se não
cumprisse minhas ordens.
Em uns cinco minutos ele estava com uma Misha desmaiada em
seus braços, entrando com pressa na nossa sala.
Me afastei, assustado, dando espaço para ele colocar a garota no
longo banco que ficava no canto esquerdo.
— O que aconteceu com ela? — desesperei.
— Achei que eles já estivessem nos finalmentes quando abri a
porta do banheiro. Na verdade, essa boquinha aí — ele apontou para o rosto
de Misha, terminando de deixar seu corpo no banco. — já estava chupando
o pau do cara. Então, decidi recuar e jogar uma bomba de gás, mas essa
vadia é maluca. Ela furou o cara antes mesmo que eu chegasse! — Soltou o
ar, chocado, cruzando os braços sobre a barriga, e me focou. — Agora,
nosso fornecedor de armas está sangrando e desmaiado. Mandei alguns
homens irem lá para limpar o local e ver o que podem fazer, mas agora você
tem um grande problema, Axel. Basicamente, Roger está ferido e
inconsciente em algum quarto da sua boate. Eu não quero nem imaginar o
que seu pai vai pensar disso. Estamos todos ferrados! Não vou ser sua babá,
moleque, só que essa merda aconteceu aqui e todos vamos arcar com as
consequências. Seu pai pode ser bonzinho com você e sua família em casa,
mas, aqui, ele é o diabo, e esse é o seu inferno particular.
— Inferno era a minha casa — sussurrei, deixando Marcel de lado
e indo ao encontro de Misha.
Me ajoelhei diante dela e passei as mãos por seus fios já
bagunçados, tentando amarrá-los – acho que estavam amarrados, mas
soltaram, por isso tive um pouco de dificuldade. Em meio a minha tentativa
falha, ela acordou, atordoada.
— Axel?! — Inspirando muito ar, ela se levantou, mas parecia
zonza.
— Calma. Devagar! — Segurei suas mãos e me sentei ao seu lado.
Suas mãos começaram a massagear as têmporas. Ela piscou,
focando em mim, e eu lhe ofereci um simples sorriso. Acho que seria errado
dizer apenas que a “olhei“; eu estava admirando ela. Sabia que há poucos
minutos sua boca estava no pau de outro cara, que provavelmente ela estava
lá por querer e gostar, mas, mesmo assim, uma parte de mim acreditava no
contrário. Eu gostava mesmo daquela garota e isso nem tinha um sentido
lógico. Só se eu assumisse o óbvio; eu adorei saber que ela se defendeu
sozinha daquele idiota. Gosto como ela é fodona, ao mesmo tempo que
parece detestar pessoas, mal olha para elas, que esteja sempre em seu
mundo, focada em si, e mesmo que faça tudo que for necessário sem
precisar da ajuda de outros, ainda assim se permite ser ajudada – só às
vezes, para ser honesto.
Por sorte, logo ela pareceu respirar com mais calma e se
estabilizou.
— O que aconteceu?
— Hmmm, pergunta difícil… — Semicerrei os olhos em sua
direção. — Como se sente?
Marcel se aproximou neste momento com um copo de água e ela o
tomou.
— Minha respiração parecia pesada, mas agora, acho que tô bem.
— Misha meio que deu de ombros.
— Certo. — Espanei as mãos na calça e me pus de pé. Seus olhos
me seguiam, quase que em súplica para que não a deixasse. — Eu e Marcel
precisamos ir a uma reunião. Você vai ficar aqui. É seguro, vou trancar a
porta. Pode descansar, se quiser. Lá dentro — apontei para uma outra porta,
à frente do banco em que estava. —, tem geladeira com comida e um
banheiro, também tem um armário com edredons e travesseiros. E se não
quiser nada disso, sempre pode apreciar a vista. — Apontei para o final da
sala e Marcel abriu uma fresta da parede gigante de vidro que dava ampla
visão do térreo.
Sua cabeça acenou para cima e para baixo, mas ela ainda parecia
meio confusa. Só conseguia admirá-la. Às vezes, Misha parecia tão
indefesa, ela acabara de fazer algo gigante, provando ainda mais sobre si
mesma, mas agora, parecia meio… perdida.
Acenei com a cabeça para Marcel e, em dois segundos, estávamos
na porta da sala, prontos para sair.
— Por favor, não demora?!
Virei para focá-la.
Nunca vi um ser angelical, mas Misha parecia ser algo divino de
uma forma confusa, imersa na escuridão que era parte do meu mundo. Não
sei dizer se julgava aquilo como bom, mas me agradava para caralho.

Misha dormia como um anjinho.


Tentei ser o mais breve possível na reunião, e acho que consegui,
mas uma coisa era certa: eu estava atolado até a goela nas merdas do meu
pai. Acho que eu teria que checar desde o fechamento do caixa até a
frequência diária daquelas espeluncas. Como ia balancear toda essa nova
obrigação com os treinos e estudos? Não sabia, definitivamente, não sabia!
E isso me desesperava. Porém, passaria aquela noite apenas cuidando dela.
Levantei seu corpo nos braços e vi que Misha havia deixado várias
caixinhas de biscoito abertas, por isso, enquanto saía com ela, mandei uma
das faxineiras arrumar aquilo. Desci os degraus com cuidado, acompanhado
de Marcel, que me ajudou a entrar no carro com ela, nos levando até sua
casa.
— Devia terminar com ela — disse, sem mais nem menos. Marcel
estava sério demais.
— Por quê? — Preferia fingir para ele que estávamos juntos, era
mais fácil ter que lidar com isso caso chegasse aos ouvidos de meu pai,
afinal, ele não pouparia esforços em sumir com qualquer “distração“ minha
que não parecesse normal.
— Essa garota nos arrumou tantos problemas hoje, sabe-se Deus o
que nos trará pela frente. Elimina ela de uma vez, senão, seu pai mesmo
fará isso. E você sabe.
Era por volta das quatro da manhã quando o carro estacionou em
frente à casa dela, e, quase que no mesmo instante, Anthony apareceu,
abrindo a porta. Seu rosto parecia preocupado ao ver o carro todo preto com
películas na frente da casa, mas desci rápido e acenei para falar com ele.
— Senhor.
— Axel? — Ele franziu o cenho. — O que faz aqui? Misha está
com você?
— Jeff está acordado?
— Não — me tranquilizou. — O que houve?
— Estávamos em uma… festa. Misha acabou dormindo. Ela
passou a tarde estudando, mas a mantive segura. Posso levá-la pro quarto?
— Traga-a aqui. — Seus olhos desconfiados miravam em minha
direção. Não o julguei.
A peguei no colo e entrei na varanda.
— Ela está bem. Só dormiu — sussurrei, já perto dele.
Anthony analisou a mim e ao corpo da filha por uns segundos,
seus olhos pareciam me obrigar a falar toda verdade possível. Tentei parecer
calmo, mesmo meu coração batendo um tanto diferente. Enfim, ele acenou,
confirmando.
— Pode subir. — Quando eu já passava por seu corpo, ele voltou a
falar: — Tranque a porta quando entrar e não saiam pela manhã até eu bater.
O olhei por cima dos ombros, já vendo-o dispensar Marcel, e
mesmo assim, confirmei.
Aquela família agia de uma forma esquisita demais para a minha
cabeça raciocinar às quatro da manhã.
 
 
17

Acordei sem saber nem meu nome. Só olhei para o lado e vi um


cara na minha poltrona gigante, confortável e cor-de-rosa, me encarando.
Sobressaltei, assustada, mas logo ele abriu um sorrisinho e meu cérebro
percebeu, mesmo sem vê-lo por completo, que era o Axel.
— Minhas lentes? — Comecei a procurar ao redor.
— O quê? — Ele se apressou, indo para perto de mim.
— Eu as deixei perto de onde dormi na boate, deve… espera. Por
que estamos no meu quarto?
Era estranho dizer, mas não sentia nenhum perigo estando sozinha
com o Axel, nem por um segundo; contudo, a curiosidade me consumia.
Passamos cerca de alguns segundos nos perscrutando; seu rosto
claro se misturava com seus cabelos castanhos formando uma bela pintura,
quase como um mosaico. Mas minha cabeça começou a doer, o que
acontecia quando eu ficava sem óculos ou lentes.
Saí da cama apressada, porém, nem consegui dar dois passos sem
me desequilibrar.
— Opa! — Axel veio ao meu encontro e me segurou, levando-me
de volta à cama. — O que rolou aqui?
— Estou há muito tempo sem comer. Tenho um metabolismo
acelerado. E você e seu amigo me fizeram dormir demais, isso faz a minha
cabeça ficar zonza. Alcança meus óculos na primeira gaveta da minha
escrivaninha, por favor? — Apontei.
Mesmo confuso, ele obedeceu.
— Agora eu sei muitas coisas sobre você — disse, me entregando
os óculos.
— Quem se importa? — Dei de ombros, descruzando as perninhas
e encaixando em meu rosto. Respirei fundo, tentando buscar autocontrole
para me levantar. — Agora, vou precisar que compre novas lentes para
mim. Aquelas devem ter estragado — falei, passando por ele.
— Espera! — Axel segurou meu braço, mas sequer me virei para o
focar. — Tá me afastando?
— Eu estar em casa, segura, não apaga o fato de que você me
abandonou no meio daqueles velhos asquerosos e nojentos, Axel. Acha que
se perdoa esse tipo de coisa fácil assim?
— Está puta comigo por isso? Marcel falou que você estava com a
boca no pau do homem e não parecia recusar.
— Vai se foder! — cuspi as palavras, soltando meu braço dele e
passando direto para o banheiro.
Axel me seguiu.
— Me diz, o que aconteceu? — Sua espera seria eterna, porque eu
não me explicaria. — Fala, caralho! — Ele bateu no batente do banheiro e
me virei para o fuzilar, puta de raiva. — Nosso fornecedor de armas estava
com uma bola furada. Que porra aconteceu lá, Misha? — exigiu.
— Queria que eu desse para aquele cara? — Me virei de novo,
começando a me despir.
O ouvi entrando no banheiro e notei que estava bem próximo das
minhas costas.
— Por que joga comigo? É injusto e sádico.
— Me deixou no meio daqueles homens para isso, não foi? —
Continuei a alfinetá-lo, tirando o sutiã e, por último, a calcinha; o que me
fez empinar um pouco para ele.
— Eu nunca deixaria ele encostar em você. Por que tira a roupa de
costas para mim? — Senti quando curvou um pouco a cabeça e cheirou a
minha nuca, inalando o meu cheiro. Aquilo atiçou cada célula desfalecida
minha, como uma dose de combustível. — Gosto de pensar em você de
frente para mim, não de costas.
Suas palavras eram sorrateiras em penetrar meus tímpanos, sendo
fonte de calor para minha epiderme. Axel me fazia borbulhar de ódio e
arrepiar de desejo em questão de segundos.
— Não gosto que tenha tudo que quer.
— Eu só quero você.
Me virei, respirando o mesmo ar que ele, pois sua boca estava
próxima do meu pescoço.
— E eu quero que você seja bonzinho e pare de foder com a minha
cabeça. O que faz aqui?
— Me deixa te tocar.
— Não. Me fala o que faz aqui! — exigi, ainda mais séria.
— Se eu falar, posso fazer o que quiser com você?
— Se falar a verdade. — Dei de ombros.
— Seu pai, Anthony, nos deixou entrar e disse para sairmos só
quando ele batesse na porta, mas eu cuidaria de você mesmo que tivesse
que passar por Jeff. E não consegui dormir, precisava te resguardar. Você
parecer um anjo tornou a tarefa impossível de ser feita. Porém, agora, eu
quero foder você. Vai deixar ou não?
Aquelas palavras me deixaram quase inebriada. Ele cuidou de
mim?
— Por que… — Não consegui terminar a minha pergunta, já que
Axel me levantou no ar como se eu fosse nada mais que uma pena, fechou a
porta do banheiro com o pé e me sentou na bancada da pia; era longa, cheia
das minhas maquiagens e produtos de beleza, mas, com o braço e cheio de
pressa, ele espanou tudo para o chão.
— Misha, porra, você faz a minha cabeça pirar, desperta em mim
coisas que eu não consigo entender. E eu não sou bom com palavras ou
raciocinando muito. Na maioria das vezes, prefiro acreditar que é coisa de
momento. Mas isso… o que sinto quando tô com você é… algo que não sei
explicar. Não senti ciúmes de saber que esteve com outro cara, porque, em
parte, eu sabia que não era real. Confirma isso para mim, por favor?!
— E se fosse?
— Para, Misha! — Ele trincou os dentes.
— E se eu tivesse a fim de chupar aquele cara?
— Eu sei que não queria. Porra, você furou a bola dele! — Axel
começou a rir, quase descrente. — Você é foda para caralho, mentirosinha,
mas não tente mentir para mim. Não somos assim.
— Não somos nada, Axel.
— Nós somos nós. Você sabe que isso, por si só, já tem um puta
significado para gente. Esses sentimentos…
— Não seríamos bons um pro outro. Esses sentimentos não
significam coisas boas. Você me faz ser impulsiva e eu desperto o mesmo
em você, fora nossos problemas individuais. Definitivamente, não importa
o significado de nós ou de nossos sentimentos. Isso não daria certo, só
foderíamos com tudo.
— Ao menos, poderíamos estar fodendo.
— Isso não vai acontecer. — Meu pé esquerdo começou a balançar
de um lado para o outro.
Axel o focou, já abrindo um largo sorriso, dizendo em seguida:
— É mesmo? Acha que não temos jeito, hm?
— Sim. É o óbvio, na verdade.
— Sei. — Ele sorria, sabendo que eu estava mentindo. — Me diz
uma coisa, mentirosinha: desde quando você mente? — Sua mão direita
começou a subir pela minha coxa, tateando, me causando angústia por
desejar tanto aquilo.
— Eu nunca minto.
Ele gargalhou.
— Nem deve se lembrar da primeira vez que mentiu na sua vida,
hm? — Voltou a focar em minhas íris com as suas, verdes demais pela
incidência dos raios de luz artificial. — Não minta agora. Do que gosta que
façam quando te tocam, ou quando se toca sozinha? — Sua mão afastou as
minhas pernas com força, enquanto a outra se manteve subindo e
esquentando meu corpo.
Tive que conter um suspiro, surpresa pelo ato.
— Não vai me tocar, Axel — zombei.
— Eu disse sem mentir… dessa vez — Na mesma hora, seu
indicador alcançou minha boceta, direto no meu clitóris, e ele o esfregou ao
passo que apertava com mais força a minha cintura contra a parede.
Gemi, desfrutando de algo que desejei por muitos dias: a atenção
naquele lugar.
— Porra, você tá pingando! — Sua outra mão o ajudou de novo e
ele abriu mais as minhas pernas, focando bem em meu centro. — Adoro a
visão. Me deixa te chupar?
Não conseguia responder nada, porque seu indicador circulava
meu botão sem parar. Minha mente vagava turva, sentindo toda a avalanche
bizarra de novos sentimentos bagunçados no estômago.
— Olha para mim, Misha — exigiu. Com esforço consegui o fitá-
lo. — Como? Como eu devo fazer?
— Assim tá bom — me esforcei para falar, gemendo em seguida.
Odiava dar para ele esse gostinho.
— Não tá. Você ainda tá conseguindo conter o gemido e eu gosto
de te ouvir. — Seu dedo me abandonou no mesmo instante.
Confusa, olhei para baixo, sem ter nada lá, e me enfureci.
— Que merda! Faz o que você tem que fazer, do jeito que tava era
o suficiente. Odeio que me interrompam de gozar.
O canto de seu lábio se elevou.
— Não faço nada até que você seja bem clara no que quer.
Puxei seu corpo para bem perto de mim por meio de sua jaqueta. A
porcaria da cara dele não largava o sorriso, se divertindo com a minha fúria.
— Enfia a porra da língua ou dedo na minha boceta, que seja. Só
que, se fizer isso, não pode parar. Se parar, eu juro que acabo com você!
Sua mão já estava sendo sorrateira de novo, mas, dessa vez,
devagar ele enfiou dois dedos em mim; o do meio e o anelar, e os deixou lá.
— Sabe, devíamos falar sobre o quanto você está molhada graças
apenas às palavras que saíram da minha boca.
— Ah, querido — arrastei minhas mãos por seu rosto, tentando
manter a sobriedade, e ele me seguiu com o olhar. —, eu ainda posso estar
molhada com as lembranças de ontem, sabe?
Sua expressão fechou no mesmo instante e ele começou a bombear
em mim, puto. Quase perdi o equilíbrio de meus pensamentos e gemi alto,
mas consegui me conter, mordendo os lábios com força. Sua mão livre
puxou a minha esquerda de seu rosto pelo punho e a segurou acima da
minha cabeça.
— Não volta a falar sobre isso nunca mais! — ordenou,
entredentes. Seu polegar agora o auxiliava em me levar às alturas.
— Se não sentia ciúmes — ofeguei. —, já que parecia tão certo, o
que sentiu, afinal? Ódio?
Colocando o rosto quase grudado ao meu, ele estava tenso para
caralho ao falar:
— Cala a porra da boca, Misha!
Cortei nossa distância puxando-o pelo queixo até chocar nossas
bocas. Não esperei e apenas amarrei nossas línguas, tomando-o para mim,
como bem desejasse, porque ele era meu; eu sabia disso, eu sentia isso. E
puta que pariu, foi instantâneo o efeito da língua dele na minha boca, que
fez o tesão se espalhar por todo meu corpo, se concentrando na minha
boceta.
Nos afastei, apenas por um segundo, para levantar a mão livre para
ele, para que ele visse. Me entreguei, permiti que prendesse minhas duas
mãos. Seu sorriso em minha direção era de orelha a orelha.
— Você é tão minha, Misha — terminou de falar, me beijando;
primeiro, passando a língua pelo meu lábio inferior e o puxando, para logo
imergir em mim.
Ele me tinha, e aquilo me fez perceber alguns dos meus
sentimentos que eram tortuosos demais.
Nosso beijo tinha gosto de pressa, de rapidez, mas também de um
sentimento novo; o desconhecido. Axel estava no banheiro do meu quarto,
na minha casa, mas ele parecia nos levar para um mundo só nosso.
Enquanto eu gemia em sua boca, prestes a gozar, podia senti-lo
unir todas as forças para não se satisfazer também, por isso, tive vontade de
descer as mãos e fazer isso por ele.
— Não — me repreendeu, pressionando meus pulsos. — Primeiro,
eu quero te sentir gozando só para mim. Eu quero ver isso, quero gravar na
minha cabeça.
Acenei, confirmativa, sentindo-o alcançar o melhor ponto dentro
de mim e girar, me deixando ainda mais inebriada. Minhas paredes
fechavam, se contraindo com o que estava por vir, e eu joguei a cabeça para
trás, desistindo de tentar ter forças para algo. Seus beijos desceram pelo
vale dos meus seios até a minha barriga. Enquanto ele sugava por ali, senti
todo meu corpo tremer e ele ainda bombeando em mim, mesmo com o meu
gozo saindo, mas não se demorou.
Axel soltou meus pulsos e se afastou.
Eu nem estava na Terra, meu cérebro aproveitava a descarga de
energia que acabara de receber. Sentindo cada célula minha com algo novo,
uma nova vibração; eu e ele. Mas, quando tudo passou, respirei fundo e o
foquei. Axel pareceu notar.
Seus olhos me encontraram e havia um brilho diferente naquelas
íris, agora escurecidas.
Se aproximando de novo, ele beijou rapidamente a minha boca.
— Você goza bonito para caralho, mentirosinha. Não deixe mais
ninguém, além de mim, ver isso, ok?
Gargalhei alto, debochando. Seu rosto se fechou em resposta,
enquanto ele me metralhava com o olhar.
— Ai, Axel, você é tããão engraçado! — debochei, passando a
mão por seu rosto e procurando descer, mas ele me prendeu contra si.
— Me promete que não vai deixar mais ninguém te tocar.
— Vai sonhando, Axel. Eu dou para quem eu quiser. Sai! —
Empurrei seu ombro com força e desci.
Ele estava estático e assim ficou, ainda tomado de ódio. Mal o
olhei, fui direto para o box, começando meu banho.
— Não pode ficar fissurado em mim. Tem várias pessoas no
campus. Por que não procura alguém para foder? — Ele não me respondia,
só me fitava, aparentemente, muito puto. — Eu não sei porque está bravo.
Foi você quem quis me comer, não me deixou retribuir e, ainda por cima,
quer fidelidade. Só de um lado é fácil, né?
— Por que todos acham que eu como todo mundo?
— Porque você é gato e todo mundo quer você? — perguntei,
óbvia. — Deve ter o quê? Uns quinze números só de contatinhos daqui no
seu celular? — continuei, passando o sabonete íntimo com mais demora
para que ele me olhasse.
— Vinte. — Axel travou a mandíbula.
— Vinte. — Sorri. — Fode com metade desses aí, assim, quem
sabe, você relaxa um pouquinho. — Fiz um bico e sinal com a mão, unindo
o indicador e o polegar. — Só não fica me enchendo o saco. A gente não
tem nada e nem nunca vai ter.
— Espero que você se foda! — falou, entredentes, saindo do
banheiro.
— Você fez isso comigo agorinha, querido. Inclusive, obrigada! —
aumentei o tom da voz, rindo em deboche.
Ele me deu o dedo do meio, batendo a porta em um baque seco
atrás de mim.
— Você não presta!
18

Naquela noite de domingo eu já estava meio cheia do fim de


semana. Me alimentei certinho para não passar mal, mas meu estômago
sempre foi meio zoado, então, preferi passar o fim da tarde descansando. A
luz da lua me acompanhava há um tempo, que nem vi passar. Meu pai Jeff,
assim como meu irmãozinho, já tinham me dado boa noite, como era
costume deles. Anthony geralmente vinha um pouco depois, pois ele
gostava de passar o olhar pela casa para se assegurar de que tudo estava
bem trancado. Mesmo pensando que ele ainda viria para dar meu “boa
noite“, apesar de ser bem tarde, me assustei ao ouvir sua voz.
— Filha, ainda está acordada?
— Sim.
— Oh… — Ele adentrou o cômodo, averiguando se ninguém
estava no corredor, e fechou a porta atrás de si. — Como está? — Puxou a
cadeira da minha escrivaninha para sentar-se.
— Bem. É, estou bem. Quer dizer, me alimentei, tomei uma
vitamina e descansei agora de tarde também. Minha pressão deve estar
estável.
— Ah, sim, que bom! — Acenou, confirmativo. — Devemos falar
sobre o que aconteceu essa noite, ou melhor, manhã?
— Hum hm… — Neguei veementemente com a cabeça,
prendendo os lábios na boca.
— Jeff me permitiu falar com você essa noite, por isso não brigou
com você por sua falta ontem. Temos é somente esta noite. Preciso que me
explique o que está acontecendo, Misha. Ou fala comigo, ou não
conseguirei mediar essa situação. Será você e Jeff.
— Pai…
— Sem mentiras.
— Eu não minto!
— Misha… — ele me repreendeu. — Vamos, querida, seja sincera.
— Anthony era complacente. Sua aura era de um ursinho fofo, cor de
caramelo, com grandes laços quadriculados. Eu adorava apertar suas
bochechas quando era pequena. — Você e esse rapaz estão namorando? Ele
realmente é uma boa influência? O que você fez ontem a noite para chegar
tão… nauseada daquela forma?
— Pai, calma — pedi, me endireitando na cama. —
Definitivamente, não namoramos, ok? E Jeff não pode nem sonhar com
isso. Ele é um jogador bem promissor do time dele.
— Sei de tudo isso. Não concordo com os termos do seu pai e
ainda assim, essa não é uma situação que pareça dar permissão para vocês
dois nos esconderem algo do tipo, hm?!
— Sim, sim, eu sei. Mas realmente não estamos namorando. —
Meu pai continuou com seu olhar desconfiado. — Ou ficando. — A dúvida
ainda o dominava. — Bom, pelo menos não vamos mais ficar. — Desviei
meu foco; o encarar estava causando corrosão no meu interior.
— Então, estavam ficando?
Virei depressa para ele.
— Não! — praticamente gritei.
— Misha, modos. Não foi assim que te educamos — exigiu,
arrumando a postura.
— Desculpe. — Me encolhi, focando minhas unhas. — Eu só…
Ficamos uma vez. Ontem. Aqui em casa mesmo.
— Por Deus, Misha! E se Jeff visse?
— O quarto estava trancado. E ele fechou a porta do banheiro
antes também. — Tentei olhá-lo, mas meu rosto queimava, envergonhado,
então, voltei a dar atenção às minhas mãos, apreensiva.
— Isso não é… nada bom. Nada, nada bom mesmo. — Mesmo
estressado, meu pai ainda parecia calmo demais.
— Não vai se repetir. Eu prometo! E também irei aos próximos
bailes.
— Eu nunca te obrigaria a ir, filha. Você sabe disso. Essa conversa
não é por isso. Preciso saber o que tem com esse rapaz. Todos sabemos que
você detesta estar com a família de Jeff, e Deus sabe o quanto é um
sacrifício para qualquer um. — Ele sorriu. — Ontem você chegou aqui
desmaiada. — Pareceu sério e assustado de novo. — O rapaz foi tão
cuidadoso com você, mas ele não tem minha confiança. Mal o conheço. O
que aconteceu para você ficar assim?
— Eu… passei mal. Foi só isso.
— Não está mentindo, está?!
— Não — me apressei em falar. — E você viu que eu estava
descansando essa tarde. Só que…
Minha fala foi interrompida quando escutamos a janela do meu
quarto ser aberta. Meu pai se apressou para averiguar, porém, antes mesmo
de olhar o que acontecia, um Axel com cabelos desgrenhados entrou pela
janela.
— Se eu não estivesse tão triste, iria brigar por você ainda não ter
tirado essas plantas daqui, patricinha — Axel falava com a voz embargada,
mas o sorriso forçado lembrava seus lábios divertidos.
E, enquanto ele estava perdido tentando se desvincular dos
potinhos de planta, meu pai o focava de pé com as sobrancelhas elevadas.
Ele cruzou seus braços, com músculos aparentes, apesar da idade, e
arranhou a garganta. Acho que nunca vi Anthony tão sério.
Axel o olhou, paralisando no mesmo instante.
— O que faz aqui, rapaz?
— Senhor, eu não estou aqui eu… eu estou aqui… bom, quer
dizer… não. Quer dizer, eu não estou. Quer dizer… aaah! — Ele coçou a
cabeça, confuso.
— Que você está aqui eu já sei. Eu quero saber como e por quê.
— A primeira é fácil, tiro de letra, relaxa. — Ele me olhou com
aquele sorriso de canto costumeiro. — Subindo a árvore que tem ao lado.
Depois, é só pular. É facinho.
— Então, eu vou precisar cortar essa merda.
— Achei que o senhor fosse o pai bonzinho. — Jurei que Axel
faria um bico e quase ri.
Anthony estava encenando, eu sabia, já o vi fazer isso várias vezes.
— Estou brincando, garoto. — Ele passou a mão no ar e voltou a
sentar-se na poltrona. — Agora, a segunda questão. — Se interessou.
— Bom, sabe, é que… — Axel passava a palma das mãos pela
calça, se aproximando da minha cama para sentar-se.
— Ainda estou aqui. Vamos fingir que você não dorme na cama da
minha filha, por enquanto, hm?! — Meu pai franziu todo o rosto, como um
repolho velho e enrugado.
— Claro, senhor. — Axel manteve a postura e firmou o corpo em
frente à janela mesmo. Meu pai fez um sinal com a cabeça para que ele
continuasse. — São problemas com os negócios do meu pai. Ou, pior que
isso. — Me olhou de canto de olho. — Eu estou cuidando de algumas
coisas no momento. Algumas saíram um pouco do controle. Na verdade,
muito. E isso está me… — Ele fez um sinal de pressão com a mão subindo
no corpo.
— Asfixiando? — sugeri.
Axel me olhou complacente, como um agradecimento silencioso, e
disse:
— Isso mesmo. Eu não sei bem o porquê vim, só sei que estar com
a sua filha faz meu coração bater descompassado, e a minha cabeça se
acalma. Eu estou… — Fungou, olhando para o chão. Só então o olhei
melhor, notando suas expressões rebaixadas. Axel estava abatido, nunca
pensei que o veria assim.
— Está procurando um refúgio. — Meu pai notou, se levantando e
puxando sua camisa mais para baixo para se arrumar. — Fique. Descansem
juntos e se recomponha. Negócios são negócios, deixam a nossa mente
confusa mesmo. Mas saiba que nem sempre será assim. Não pode vir aqui
sempre que quiser, nem podem continuar tendo seja lá o que vocês têm.
— Sim, Sr. — falamos juntos e nos olhamos, assustados.
— Misha, eu vou falar para o seu pai que você foi ao baile, mas
que saiu com um garoto de lá. Bata uma boa foto, com uma boa roupa que
combine com o baile, em algum lugar bonito amanhã e me mande. Vou
mostrar para ele e comprovar. — Já estava sorrindo, boba. — Mas você
precisa ir nos próximos, dizer que essas saídas repentinas acabaram e tomar
uma decisão na sua vida. Você sabe disso, não é?
Confirmei mil vezes com a cabeça.
— Sim, pai — respondi em tom baixo.
— E você — ele olhou para Axel. —, não quero mais te ver aqui.
— Meu pai podia parecer bonzinho, mas sei que falava muito sério. — As
plantas vão me contar. — Se referia ao fato de que, se alguma se estragasse,
seria a prova de que ele esteve aqui.
— Sem plantas fofoqueiras. — Ele passou um zíper falso na boca,
sorrindo.
Meu pai já estava saindo quando voltou a olhar para Axel.
— Obrigado por ter cuidado dela ontem. — Modéstia e um certo
carinho pairavam em seu rosto. Mas, sem demora, ele deixou tudo para trás
e saiu do quarto. — Tranque a porta — sussurrou para mim.
Pulei da cama apressada e a tranquei. Virei rápido, mas acabei
paralisada, porque Axel já estava diante de mim.
— A porra da sua bunda tá marcada perfeitamente nesse shorts.
— É um babydoll — falei baixinho, focando só no seu rosto.
Se aproximando do meu ouvido, pude sentir sua respiração e todo
o meu corpo retesou.
Mas que droga! Por que meu próprio corpo me trai?
— Vai tirá-lo para me atiçar amanhã de manhã?
— Você não vai dormir aqui — tentei soar indiferente, mas sei que
a minha voz transpareceu o efeito que ele tinha, pois quase gaguejei.
— Tsc, tsc, tsc, mentirosinha, eu não devia gostar de te ouvir
mentir, não é? Eu devia te odiar só por isso. Mas essa porra queima dentro
de mim. Me faz te desejar ainda mais.
Ele via meu pior lado e gostava?
Aquilo fazia borbulhas escandalosas em meu estômago. Eram
vergonhosas as fantasias que meu cérebro planejou ao ouvir aquela
afirmação, parecia que cada órgão do meu corpo me traía.
Quase não tive forças para não me entregar a ele, porque, no
fundo, eu queria ser completa e só dele.
— Não está certo. Não posso querer você. Essa intensidade toda
me assusta — assumi e abaixei a cabeça. — Esses nossos sentimentos têm
significados errados, muito errados.
— É errado eu querer ser seu? É errado eu só me sentir bem do seu
lado? Sentir que o meu lar está nessa confusão que somos? Que só você me
dá paz?
— É, Axel. Você, eu e qualquer pessoa no mundo devia ser
independente nos seus sentimentos. Você depender de mim para se sentir
bem é… ruim. Não vê isso? A gente mal se conhece.
Tomei um gole de ar e me recompus. O empurrei e fugi para minha
cama, porque estava assustada demais com o tanto de pensamentos que
rondavam a minha mente. Ao passo que entendia o certo, sentia o errado
por ele. E, definitivamente, não sabia lidar com aquilo.
Eu o queria. Foda-se que ele só se sentia bem ao meu lado.
Aceitava ser dele, então, qual era o problema?
Eu sabia, e a lista seria infinita.
Axel me olhou por um tempo, então, se aproximou e ficou de
joelhos ao meu lado, diante da cama. Puxou minha mão e eu permiti, sem
pensar duas vezes, desejando que ele absorvesse todo o meu ser de uma vez
e arrancasse aquele sentimento tempestuoso do meu peito.
— Eu não sei porque me sinto assim com você. Nem sei porque
você sente isso por mim. Talvez eu tenha adorado a sua honestidade desde o
início comigo, o quanto você é fodona por lutar para ser quem é ou por
você simplesmente não se importar em tentar agradar ninguém ao seu redor.
— Sabe que está mentindo, Axel. Eu não luto em nada por mim e
vivo me importando com tudo e todos. — Funguei, puxando para longe
uma lágrima no rosto. Nem tinha percebido o quanto estava emocionada.
— Você sempre luta para ser quem é dentro dessa casa. Você não
se importa em ter vários amigos ou contatos, mesmo sendo uma cidade
ótima para isso e morar aqui desde sempre, afinal, nunca te vejo rodeada de
pessoas. E porra, mentirosinha, você fodeu com os meus negócios fazendo
o que fez com o cara das armas! — Sorriu, divertido.
— Ai, meu Deus, o nojento da boate! — Franzi o cenho ao
lembrar. — Foi isso que deu merda, não foi? — Ele confirmou com a
cabeça. — O que aconteceu?
— Mentirosinha — ele puxou a minha mão para si levemente,
colocando a cabeça sobre a parte de cima. —, você fez um grande estrago.
O traficante de armas do meu pai sumiu, só Deus sabe onde o cara se
meteu. Para piorar a situação, não ouvimos nenhuma reclamação sobre
aquilo. Tudo que se sabe é que um novo chefe da facção dele foi escolhido.
Foi o que mandaram nos avisar. Um senhor chamado Rafael. Ele mesmo
nos ligou nesta manhã. Mas parece que a sua esposa é quem virá aqui, mês
que vem, resolver todos os negócios da Califórnia. Ou seja, nossa reunião
costumeira foi adiada para o mês que vem. Só espero que ela não seja como
uma rainha má — ele disse, assombrado.
— Ela não vai ser. — Puxei seu corpo, que ainda estava de joelhos
na cama, para ele se aproximar mais de mim, e coloquei sua cabeça no meu
peito.
Por instinto, comecei a afagar seus fios. Era bizarro pensar que
tudo que eu queria agora era ver essa mulher de uma vez e resolver isso
para Axel?
— Já que temos cerca de um mês livre, podíamos começar a
aproveitar, não é? — Sua mão esquerda começou a fazer linhas na minha
barriga.
— Não mesmo. Esqueceu o que meu pai acabou de falar?
Axel se impulsionou com os cotovelos na cama e sussurrou no
meu ouvido:
— Se você se tocasse para mim, eu já estaria satisfeito.
Cada poro do meu corpo se incendiou no mesmo instante. Ele
estava me fuzilando com aquelas íris verdes, o que só piorava tudo.
Sua boca se aproximou da minha, ele raspava os lábios nos meus
sem me provar por completo. Não recuei, na verdade, queria ver até onde
ele ia. A mão não parava de me excitar na barriga e a senti descer.
— Você quer isso, mentirosinha, não quer?
— Nem em um milhão de anos.
— Porra, eu adoro isso. Fala. De. Novo — exigiu, grudando a testa
na minha e o nariz no meu rosto. — Mente para mim mais uma vez! —
Então, enfiou as mãos na raiz do meu cabelo e puxou minha cabeça um
pouco mais para cima.
Arfei, pelo impulso, e o ardor na nuca me fez gemer baixinho.
Tentei esconder os efeitos que ele tinha sobre mim, mas estávamos
dividindo o mesmo ar, tudo que eu fazia ele sabia.
— Eu odeio você e o que faz comigo. Nunca, nunca vou me tocar
na sua frente ou para você. Nem nos meus sonhos você seria o meu
principal objetivo. Se eu gozar é porque eu quero, e você não vai ter nada a
ver com isso — falei baixo, sabendo que até sibilando ele entenderia.
Sua mão alcançou meu short e bateu em cima da minha vagina.
Gritei baixinho pela surpresa, contorcendo o meu corpo.
Axel puxou minha mão direita, levando-a para dentro do meu
short, fechou meus dois últimos dedos e enfiou meu indicador e dedo médio
pela minha boceta, espalhando meu líquido. Arfei no mesmo instante,
tomada pela surpresa e inebriada pelo desejo.
— Me diz, como está agora?
— Melada. — Ofeguei.
— Quem te deixou assim?
Revirei os olhos.
— Hum. Que bobagem.
— Fala logo, mentirosinha! — exigiu.
— Eu não vou falar nada! — Cerrei os olhos em sua direção,
tirando sua mão e começando a girar meu clitóris.
Ele não conseguiu falar nada. Só me focava em baixo, me
admirando. Jurei que ia babar. Sua mão ainda permanecia no meu short,
mas ele não a mexia. Só que aquele olhar intenso dele nos meus
movimentos me fazia querer mais, muito mais. Já estava descendo os dedos
para enfiar em mim, quando ele os parou.
— Que foi, porra? — bradei, puta da vida, por ele ter me parado.
— Fala que é para mim? Fala que sou eu quem te deixou molhada
e que vai gozar gostoso nos seus dedos, mas que é para mim que essa
boceta tava se apertando.
— Vai se foder, Axel!
Ele sorriu de canto e não entendi seu suspense, mas logo senti. Ele
puxou minha mão, a ajustando como queria, e enfiou em mim meus dois
dedos.
Gemi em resposta e arqueei a coluna.
Graças a Deus estava sem os alongamentos hoje.
— Cretino, filho da…
Ele apenas riu de mim, enquanto me fazia bombear.
Sua boca se aproximou do meu ouvido, ainda o sentia sorrir, mas
estava tão entregue aos prazeres do momento que não consegui responder a
altura quando ele disse:
— Você gosta de ser fodida assim? Com um tom de dominação?
Achei que era você quem mandava nas coisas, mentirosinha. Pelo visto, vai
gozar para um filho da puta sendo muito obediente.
Aquelas palavras embaraçavam a minha mente. Eu precisava
exigir que Axel Martinez se mantivesse longe de mim, mas… poderia
exigir após gozar, certo?
 
19

Após as aulas na faculdade, eu andava pelos corredores, indo me


encontrar com Saori no gramado. Passávamos um tempo tomando banho de
sol no fim da tarde. Era nosso momento costumeiro juntas, sempre fazíamos
isso na escola. Um momento feliz e bom entre duas amigas era preciso,
certo?
— Nem te vi nos últimos dias. O que tem feito?
Saori e eu não nos vimos segunda nem terça; eu estava fugindo
dela desde o dia em que, acidentalmente, beijei o Axel.
Não foi um beijo beijo. Bem, foi algo romântico, a gente só…
como eu digo isso? A gente ficou. Na verdade, foi bem mais do que só ficar.
Mas Saori não precisava saber disso, muito menos que repetimos. Não
mesmo!
— Precisei ir cedo para a cafeteria. Queria antecipar a leitura de Sr.
Daniels para acabarmos juntas.
— Então, já acabou? — Ela me olhou, animada.
Nunca mais, sequer, toquei naquele livro. Nem pretendo! Minha
motivação para leitura devia ser outra e não um velho asqueroso e nojento.
— Estou quase. Acho que termino hoje de noite. — Sorri falsa,
óbvio.
Deus que me perdoe, mas quem suporta ler clássicos? Ainda mais
para chamar a atenção de macho?
— Você vai amar, juro! Essa manhã até falei com o professor Dale.
Ele me disse o quanto esse livro era importante para leitura, mas — ela
olhou para longe, parecendo perdida. — ele não estava com tempo. —
Depois, piscou e voltou a sorrir largo. Estranho… — Acho que em breve
poderemos conversar muito com ele sobre esse assunto — continuou,
animada; como sempre, parecendo o próprio sol.
Minha amiga se recuperou rápido do momento gótico após o
encontro com o professor no bar. As roupas pretas largas, capuz e óculos
escuros deram lugar à sua típica paleta de cores; creme, verde água, azul e
branco.
Isso era o suficiente, ou era para ser.
Ela estava radiante, apesar de estar andando com um suéter largo
azul-escuro e uma manta. Talvez fosse pelo clima de baixo frio, mesmo que
não estivéssemos na época. Tudo bem, ela sempre foi friorenta.
Enquanto eu estava deitada de barriga para baixo fingindo ler uma
parte final do livro, mas, na verdade, pensava sobre a evolução rápida da
minha amiga, Saori começou a tagarelar sobre as próximas festas.
Definitivamente, eu não poderia me importar menos. Preferia ficar em casa
vendo um filme ou algo assim.
— Emerson falou que no sábado será a festa na fraternidade dos
meninos do basquete e no próximo, será a dela. De certo eles vão anunciar
lá. Ela disse que tem um contato lá dentro. Que demais, não? — Saori
faltou pular de animação.
— Não — sussurrei, seca.
Não via nenhuma graça em ter um namorado jogador de basquete.
Tudo isso era só para aparecer.
— Eu ouvi, dona Misha!
Me virei de barriga para cima, largando o fingimento de ler o
calhamaço.
— Não sei o que te anima tanto em estar com essas meninas. São
todas superficiais.
— Que feio, Misha. Difamar outras meninas não é nada feminista.
— Feminismo que me perdoe, mas aquelas garotas parecem viver
por uma foto no Instagram. Então, sim, eu já tô julgando!
— Não diga assim, amiga! — Saori passou a mão no meu braço.
— Essa é a forma delas socializarem. Só isso.
— E eu a detesto.
— Você devia aproveitar! — Basicamente, emendou a frase. — Só
por ter a família que tem, já sabe que está em posição de vantagem. Mas
agora, também tem o rolo com o Axel. Devia se ocupar conseguindo o
carisma e entrando no meio delas. O mundo moderno é assim agora, amiga,
tudo é sobre contatos. Se não concorda, tudo bem, mas sabe que estou
falando a verdade. — Com os olhos focados em mim, sobrancelhas
elevadas e o dedo me indicando, ela parecia me jogar a verdade mais nua e
crua nas pernas.
— Sei que é verdade, porém é uma verdade que desprezo. Prefiro
fazer as coisas do meu jeito.
— Hmm, seu jeito. Sei. — Ela riu. — Soube do baile na sexta. Seu
pai, a família de Jeff… os meninos Daughety estão sendo falados, mas
você? Onde esteve? Não te vi em nenhum post ou stories. Já pega super mal
você não postar nada dos bailes, agora também não aparece neles? Vai
mesmo fazer as coisas da sua maneira ou estava com algum garoto às
escondidas, hm?! Não me diga que já conseguiu um par ideal! — Seus
olhos brilhavam.
Não havia um questionamento sobre eu estar em outro lugar a não
ser especificamente com um garoto e um da elite, óbvio. Ser esposa troféu
só valia se fosse de um homem renomado. E quem não quer isso, não é
mesmo?
O ódio me dominava quando eu pensava naquelas merdas.
Daughety… eu os detesto. Eles tinham esses bailes comuns com
outras famílias antigas da cidade para juntar, de forma antiquada, vários
jovens para casamento. Eu tive a minha infância toda regrada por palavras
como: “assim que tiver dez ou onze anos, já poderá ir“. E eu fui. Bom, até
os dezesseis. Agora, vou apenas de vez em quando.
— É, foi isso mesmo! Achei um cara na festa e ficamos a noite
toda. Por isso não apareci nas fotos — menti, descaradamente.
Convenhamos que tinha uma meia verdade ali, afinal, Anthony falou sobre
começarmos isso. Contar a Saori, mesmo mentindo, era uma garantia para
ter uma visão de fora caso Jeff investigasse, já que era a mesma história que
Anthony e eu contaríamos.
— Ai, meu Deus! Então, esteve mesmo com um dos caras de lá?
Quem?
— Não, não. Sem nomes. Foi só uma noite. Bom, um momento, na
verdade. De certa forma. — Me enrolei para falar.
Dois ou mais… Alguns momentos, isso sim.
Estava confusa.
Saori sacudiu a cabeça e levantou as mãos, se rendendo às minhas
regras já comuns entre a gente; nunca digo nomes ou detalho as aparências
para que nunca, sequer, chegue aos ouvidos de meus pais. Caso chegasse,
pelo menos eu poderia desmentir, já que não existe um nome. Regras
antigas, mas muito válidas.
— Não estou entendendo. Detalhes, Misha, detalhes!
— Bom, veja, passamos a noite juntos. Transamos e eu o beijei. —
Omiti que repetimos a dose. Já era humilhação demais. — É, foi isso, só
que… eu o detesto. Ele é antipático, sem sal, mas não quando metia os
dedos em mim. Não. Ali… foi delicioso. Me fez sentir algo que eu não
sentia há muito tempo. — Suspirei.
— Hmmm… Espera aí! Passaram a noite juntos, vocês transaram e
você beijou ele? Nessa ordem?
— Sim, Saori. Por quê? — perguntei estressada.
— Por que você o beijou depois dele te tocar?
Revirei os olhos.
— Ele não queria me fazer gozar, porque eu não explicava como
queria. Então, eu tive que ser mais… incisiva. Digamos. — Não conseguia
continuar nosso contato visual. Me senti quente ao lembrar de como éramos
juntos. Nunca fui assim com outras pessoas, ninguém nunca conheceu esse
meu lado. Axel despertava muitas coisas novas em mim e entendia partes
minhas que eu sequer pensava muito. Na verdade, como a Saori sempre
conviveu comigo, ela sabia que eu tinha uma certa tendência a esconder ou
mudar as narrativas, porém, isso não significava que conversávamos sobre
isso ou que ela me incentivava. Minha melhor amiga sabia e, mesmo assim,
não ligava. A Saori não era muito de ligar para algo que não incomodasse
seu pé, aquela garota deixava tudo passar batido.
— Está me dizendo que, basicamente, quase dominou ele? — De
sobrancelhas elevadas, Saori tinha expectativas demais na minha resposta.
— Eu não disse isso.
— E ele gostou? — Ela ignorou a minha fala.
— Talvez… — Deixei no ar. — Mas isso não importa. Eu não
quero mais ficar com ele. Não importa se me come bem. Sabe como é, esses
garotos dos bailes que a minha família frequenta já pensam que vamos nos
casar com eles… e eu só quero a minha independência.
— Sei bem qual é a sua independência agora. Dominando o cara,
hein Misha? Sua safadinha! — Saori começou a me fazer cócegas.
Ri descontrolada, tentando me defender enquanto brincávamos um
pouco na grama. O calor leve do sol e a brisa que corria me fez lembrar que
ainda estávamos entrando no outono naquela quarta, dia 21 de setembro. O
frio seria ainda mais nosso amigo nos meses restantes de 2021.
Ainda nos divertíamos quando um arranhar de garganta atrás de
Saori me fez retesar.
— Vocês estão muito alegres hoje — ele disse, com seu tom
divertido de sempre.
— Ai, Axel, que bom que está aqui! Tenho tanto a te contar —
Saori virou para ele, sorridente e dando uma batida de mão na coxa,
depressa.
— Hm, é mesmo? — Axel me focou rápido, mas logo estava se
abaixando na grama e focando apenas em Saori. — O que, por exemplo?
— Olha, primeiro de tudo, já sei sobre a festa de vocês neste fim
de semana. Talvez queira nos convidar? — O sorrisinho da minha amiga era
tão largo que ficou assustador. É claro, ela queria passar Emerson de
alguma forma.
Tanto faz, eu não participaria de nenhuma daquelas merdas
mesmo.
— Misha não te cont…
Arranhei a garganta, o impedindo de terminar sua fala.
— Não vou nisso — cortei a conversa, voltando a deitar na grama
e a abrir o livro para fingir que o lia.
— Claro que vai! — Ele estava sério.
— Ela não vai. Ela nunca vai. Ainda mais agora que está com um
namorado novo. — Não via o rosto de minha amiga, mas sabia que tinha
um largo sorriso.
— Namorando? A Misha? Quem?
Cutuquei as costas da minha amiga, sem que ele percebesse,
tentando fazê-la não falar.
— Ela não diz nomes, mas é um cara que ela conheceu no baile de
sexta. Sabe, esses namoros arranjados de família old money. Quer dizer, não
tão arranjados assim… Eles se conheceram na festa, mas ficaram por
querer.
Onde acho uma pá? Preciso cavar um buraco e me jogar dentro!
— Ficaram, é? Então, já é algo sério, hm?! E está gostando mesmo
dele, Misha?
— Claro que ela está. Quando eu digo que eles ficaram, é sério.
Ela até dominou ele.
— Ok! Chega, Saori. É a minha vida — sentenciei, já incomodada
demais com tudo aquilo.
— Sim, e o Axel é nosso amigo. Bom, foi seu quase ficante… mas
agora deu, né?! Agora, você já tem quase um marido.
— Que porra de marido, Saori? Eu não quero me casar com
ninguém! — Passei a mão pelo ar em linha, evidenciando minha fala.
Axel caiu na gargalhada e nós duas o focamos. Quando notou,
acenou, negando.
Ridículo!
— Desculpem, meninas, é que essa briga de vocês é muito
engraçada. Por que alguém se casaria após uma noite de sexo? Não estamos
mais em 1940. Se bem que… algumas pessoas gozam bonito demais para
permitir que outras vejam. E isso devia mesmo ser considerado um pecado.
— A última frase dele pareceu um sussurro diabólico em meu ouvido,
enlaçando meu rosto.
Nos escrutinamos por tempo indeterminado. A porcaria da aura
daquele garoto era tão magnética que, às vezes, eu achava estarmos
orbitando um novo lugar; um paraíso apenas nosso.
Nosso mundo.
Nossas regras.
Nossos significados.
— Que porra! Vocês também transaram! — Saori disse óbvia, me
tirando do devaneio. — Quando?
— Isso nunca aconteceu — falei, enfática. Só que o Axel não
ajudava em nada na minha mentira, porque, dessa vez, ele estava com o
rosto focado no meu; parecendo enfeitiçado, tomado pelo próprio desejo.
Por um segundo, me senti nua com aquele olhar penetrante.
— O Axel tá te comendo com os olhos agora…
— Quê? — Ele piscou, atônito, voltando o olhar à Saori,
provavelmente assustado por ela nos alfinetar de braços cruzados. — É
verdade, a gente nunca ficou.
E ali eu descobri que o Axel não sabia mentir. Na verdade, ele era
péssimo nisso.
Que porra, garoto!
— Axel, eu cresci com uma pessoa que mente até para a parede.
Sério, achou mesmo que essa bosta de atuação me convenceria?! — Saori
se manteve na postura séria e um longo e tenso momento se instaurou entre
nós. Eu não diria nada e rezava para Axel também não dizer. Saori era
vencida com a barganha do tempo; tomara que o cérebro do jogador
entenda isso, que basta enrolá-la. — Bom, é o seguinte… — Minha amiga
foi interrompida pelo seu celular disparando em alto e bom-tom, avisando
sobre seu trabalho na cafeteria. — Droga, preciso ir — ela disse, desligando
o alarme. — Mas vou à festa. Vocês dois me devem isso! — Já se
levantando e jogando sua manta na bolsa, Saori apontava para nós. — E não
se comam no jardim, é nojento! — Fez uma careta, com as sobrancelhas
crispadas, seguindo seu caminho.
— Gatinha essa sua amiga, não é? — Ele fingiu olhar para o corpo
dela, enquanto ela caminhava já distante.
— Cala a boca, Axel! — Revirei os olhos e me joguei de volta no
gramado. Abri o livro, mas não senti nenhum interesse em ler, então, apenas
o joguei de lado e bufei.
— O que foi?
— Para que quer saber? — alfinetei.
— Eu adoro esse seu jeitinho arisco comigo.
— É sério, Axel — ralhei, me sentando de novo. Ele me olhava
sorrindo, como que esperando por mais uma palavra dura. — Precisamos
parar. Isso não daria certo nem fodendo!
— Nem fodendo? A gente já fez isso, mentirosinha, e deu certo
para caralho. — Ele sorriu de canto e isso me irritou ainda mais.
— Não transamos! Nem te vi nu ainda. Por Deus, se localiza,
garoto!
— Que eu saiba, você falou algo sobre isso com Saori agora
pouco, hm — respondeu por cima de mim.
— Você me estressa. — Bufei, jogando meu corpo de volta no
gramado. — Quando terei paz? — O percebi se inclinar mais, se
aproximando de mim, então, me virei para ele. — Algum dia, vai me deixar
em paz?
— Para você, eu sou tipo um stalker. O que acha?
— Ódio e desprezo. — Joguei meu cabelo para trás e me virei de
novo.
— Quero te levar para conhecer uma coisa.
— Como assim? Que coisa? — Me voltei para ele outra vez, meio
confusa.
— É uma surpresa. Por favor, eu trouxe o carro só para isso.
— Achei que você só andava sobre as quatro rodas daquela sua
bugiganga.
— Ei, não ofenda meu skate! — me repreendeu, já se levantando.
— Vamos? — E estendeu a mão para mim.
— Eu não devia confiar em uma pessoa que conheci há tão pouco
tempo.
— Você é bem espertinha, tenho certeza que se eu tentasse algo
você cortaria a minha garganta com essas unhas.
— Eu gosto de alongamentos. — Franzi o cenho.
— E eu gosto de ver seus alongamentos. — As palavras dele,
quase grudadas as minhas, fez uma corrente elétrica subir pelas minhas
pernas e tronco. Ele notava? Por que dizer algo assim? — Agora, vamos?
— Suas sobrancelhas se elevaram e a sua mão se manteve estendida. A
segurei para me levantar, levando minha bolsa e livro comigo.
Eu ia com ele. Droga, eu já estava indo com ele. Por que eu era tão
dele assim? Por que era fácil me entregar? Eu não queria. Juro, juro que não
queria. Queria ser boa, como minha família me ensinou, mas eu era tão
banal, me entregava ao erro de uma maneira tão fácil. Qual era a porra do
meu problema?

— Uma casa? Você me trouxe para uma casa gigante. O que é


isso? Você tá tentando me sequestrar?
— Às vezes acho que você pensa que eu realmente sou um stalker.
— Foi você quem falou que seria…
— Tá usando muito “você“ comigo. Sinto que tá me acusando
ainda mais. Eu gosto, mas — ele se aproximou muito de mim, ao ponto de
eu sentir a sua respiração perto do meu rosto, no nível de retesar meu corpo.
— prefiro meu nome.
Droga de corpo de merda que não me ajuda em porcaria nenhuma!
— Vai se foder! — xinguei após unir todas as forças do meu ser e
abrir a porta do carro, puta por ele ter tanto poder sobre mim.
O ouvi descer do veículo e jurei também que o ouvi rindo, se
divertindo comigo, enquanto eu caminhava em direção à porta de entrada.
Eu era fácil para ele, é isso? Eu era fácil, no geral? Eu deveria me preservar.
— Então — comecei, ao senti-lo perto de mim. —, de quem é essa
casa?
— Da minha família.
Quê?
Sem mais nem menos, ele abriu a porta. O som da televisão se fez
presente, a casa era imensa e muito elegante, mas sem muitos móveis ou
decorações, por isso, o som reverberava por todos os cômodos do térreo.
Acho que gostei do lugar.
Um menino que devia ter por volta de uns doze anos, um pouco
franzino, branco de pele bronzeada como o Axel e cabelo em um corte que
os deixava espetadiços, depressa se aproximou de nós parecendo animado.
Porém, estagnou, focando-me ao entornar a cabeça.
— Quem é ela? — Muito devagar, quis saber, e depois apontou
para mim de uma forma esquisita. Parecia muito nervoso, de certo modo.
— Uma amiga — Axel respondeu.
— Hmm, amiga, hein? Você nem tem amigos — debochou do
irmão e cruzou os braços, alfinetando, já com um sorrisinho de canto se
repuxando.
— Larga de ser chato, moleque. — Axel riu, passando pelo irmão
e bagunçando seu cabelo. O acompanhei ao entrar na casa.
— Oi — cumprimentei baixinho ao passar pelo garoto.
— Olá. — Sorria largo ao fechar a porta.
— A mãe tá lá em cima? — Axel questionou, dando uma olhada
ao redor.
— Está, mas ela… — O menino pareceu nervoso para completar a
frase. — Ela tá com aquelas coisas dela de mulher.
O que significa isso? Ela estava passando mal com cólicas
menstruais?
— Sério? Ela não melhorou depois daquele dia? — O menino
negou com a cabeça, meio cabisbaixo. — Por que não me ligou para avisar?
— Não queria te preocupar com mais uma coisa. Você já tem o
basquete.
— Owen, isso é completamente diferente. Vem aqui — Axel
chamou o irmão e o levou até o sofá, engatando seu corpo pequeno entre
suas pernas quando ele sentou. — Preciso que sejamos uma família unida,
lembra? Para isso dar certo, você tem que me contar tudo que acontece
aqui. Tudo mesmo. Principalmente quando diz respeito aos problemas da
mãe.
Eles ainda estavam falando sobre cólicas menstruais? Era sobre
isso mesmo?
— Certo. Você está certo — Owen respondeu, olhando para o
chão. Havia respeito e cumplicidade no diálogo deles, não imposição dura.
Era bonito de ver. — Bom, ela não melhorou. Segue do mesmo jeito.
— Entendi — Axel respondeu, parecendo detestar saber daquilo.
— Certo. Eu vou subir e ver como ela tá. Cuida da Misha pra mim?
— Claro! — Owen quase atropelou a fala do irmão.
— Tá bem. — Axel respirou fundo e beijou o topo da cabeça do
menor, para então subir as escadas.
No segundo seguinte, Owen virou a cabeça parecendo um zumbi
de filme de terror. Quase caí na gargalhada com seu sorriso esquisito. O
garoto só podia mesmo ser irmão do Axel.
— Vocês estão juntos há quanto tempo?
— Não estamos juntos — rebati logo.
— O que vocês são, afinal de contas? O Axel não faz muitos
amigos. Ele é… um lobo solitário. Não por querer, claro. É só a maneira
que… Bom, você sabe. Algumas pessoas não têm medo de se aproximarem.
Nesse caso, o Axel tem medo da proximidade. As pessoas parecem sempre
meio obcecadas para conhecer ele, né? — O garoto riu. — Chega a ser
patético. — Ele tinha um ar de elegância quando falou a última palavra,
como se bem soubesse sobre a vida e o mundo há muito tempo. O deboche
era presente, sim, mas ainda tinha uma pitada de velhice, como de quem
prova vinhos antigos há tempos e consegue distinguir qualquer um.
Talvez ele se torne um daqueles garotos ricos esnobes, ou apenas
um solitário. O irmão mais velho por medo, já ele, por entender demais a
humanidade desde jovem e desprezar toda essa adoração existente a valores
comerciais.
— Axel mora em uma casa cheia de garotos, já deve ter vários
amigos…
— Não, não tem. Mas, me conta, Misha — o meu nome na língua
dele pareceu um julgamento. Que horror! —, você também é da faculdade,
certo?
— Sou.
— E é daqui ou veio de algum lugar para estudar?
— Daqui.
— Família antiga?
— Como os fundadores? — Não tem porque negar, todos
conhecem as famílias fundadoras. Ele confirmou com a cabeça. — Sim.
— Hmmm, interessante saber. — Um segundo de silêncio nos
tomou e ele pareceu divagar. — Eu não sabia sobre você — soltou, como se
eu merecesse uma recompensa; pelo quê? Eu não sei.
— De nada? — disse, meio confusa.
Escutei as pisadas vindo da escadaria e a foquei, assim como o
irmãozinho de Axel, que descobri não ser o mais novo, como imaginei, pois
Axel descia com um bebezinho no colo. Um pequeno ser de bochechas
redondinhas, mas o corpinho estava muito magro.
— Vamos, Misha? Minha mãe quer te conhecer.
Anuí, meio confusa. Achei meio estranho estar na casa do cara
que… conhecia, fiquei, tinha um relacionamento confuso? Ah, sei lá em
que tipo de relação eu e Axel nos encaixávamos, mas a gente… a gente
tinha alguma dessas merdas de conexão.
Rumei até ele, me questionando mil e uma coisas.
Estamos conectados? Comecei a subir a escada com isso
martelando em minha mente. Não, não… não… quer dizer, temos uma…
como se fala isso? Parecia que a palavra estava na ponta da língua, mas ela
não existia em meu vocabulário. Se eu fosse obrigada a explicar, eu diria
que eu e Axel nos sentimos ligados um ao outro e quando estamos longe é
como se o calor de aconchego que é estar perto dele se transformasse em
chamas de angústia e dor. Muita dor. Eu juraria que um fio invisível me
puxava para ele. Ardia em meu peito a vontade de procurá-lo em qualquer
lugar. Poderia até mesmo atravessar o tempo-espaço só para achá-lo e tê-lo
em meus braços de novo.
Ele estava diante de mim, terminando de subir as escadas e
rumando para uma porta, e eu me peguei julgando a mim mesma por ter
esses pensamentos. Era algo ruim, não era bom esse ardor no peito, essa
urgência por ele. Nem era só sexual ou… não era uma dessas merdas! Era
muito mais. E era uma droga!
Não devia sentir isso, pois me parecia com uma dependência.
Não devia querer Axel, pois ele precisava focar nos jogos e meu
pai odiaria isso.
Não devia estar em sua casa, pois isso alimentava a relação íntima
que já criamos.
Íntima. Acho que essa é uma boa palavra para explicar Axel e eu.
Éramos íntimos um do outro; conseguia ser dele e ele meu, conseguíamos
ver muita merda um do outro e ainda assim, queríamos ficar.
Descolei de meus pensamentos aéreos e julgadores, visualizando a
cama de casal gigante, adornada por um mosquiteiro de teto, longo demais,
como se fosse um pacote de presente ou pétalas de uma flor, que guardam
algo. Uma mulher. Seus cabelos eram muito mais castanhos que os de Axel,
pareciam quase ruivos. Seus olhos tinham olheiras profundas; por conta de
choro e sono? Ela parecia repuxada, não magra por ser magra, mas porque
perdeu muito peso em pouco tempo. O ar naquele quarto era denso, não
tinha como negar. O corpo dela estava debilitado, porém, era óbvio que o
problema ali era um buraco bem mais embaixo.
Acho que entendia o que a mãe de Axel tinha. Mesmo cursando
meu primeiro semestre, era inegável que o caso clínico de comorbidade
havia evoluído para a especialidade da psiquiatria.
— Mãe, essa é a Misha. Misha, essa é minha mãe, Emma — ele
nos apresentou enquanto colocava o bebezinho em um berço distante da
cama da mulher.
— Prazer, senhora Emma — disse meio sem jeito, ainda distante.
— Venha aqui, querida. — Ela bateu na cama para que eu me
sentasse ao seu lado, com a voz baixa e meio rouca por passar tempo
demais deitada, provavelmente.
Me aproximei dela e Axel também, nos sentamos um de cada lado.
Emma respirava fraco e tinha algumas sardas no rosto ainda jovem, porém,
com marcas de expressão.
— O seu bebê é uma gracinha — comentei.
— Ele é, não é? Mário é muito calminho, dorme a noite toda e
quase nunca chora. Muito tranquilo. Você tem irmãos?
— Tenho um de seis anos. O James é filho adotivo do meu pai
biológico e meu padrasto. Fui criada com eles. Ele é um pestinha. — Eu ri e
ela também, mas seu sorriso era fraco.
— Já comeu hoje, mãe?
Virei para Axel, estranhando a pergunta. Eram quase seis da tarde,
ela tinha que ter se alimentado.
— Owen fez omelete. E eu alimentei Mário.
— Você precisa estar forte para ele. Vou mandar algumas compras
amanhã…
— Não precisa, filho — ela o cortou, depressa.
— Claro que precisa. Não vamos discutir isso, ok? — Nesse
momento, Mário começou a chorar um pouquinho. Axel se espantou e,
rapidamente, foi dar atenção a ele, o que foi ótimo para pôr um fim na
discussão que se iniciava.
O quarto era grande demais, então, quando Emma me chamou com
a mão, eu soube que ela não queria que Axel ouvisse o que me diria.
— Seja boa para ele, mas não seja tola. Saiba que sempre estarei
ao seu lado.
Me afastei dela, a fitando com as sobrancelhas franzidas. O que
aquilo significava?
Mário logo se calou e Axel voltou até nós.
— Mãe, vou levar a Misha à praia. Você quer ir com a gente? —
Ele beijou o topo da cabeça de Emma em seguida.
O rosto pálido da mulher à nossa frente evidenciava o tempo que
ela não tomava um banho de sol.
— Não, querido. E, por favor, não leve Owen, tá? Hoje não, outro
dia.
— Outros dias que nunca chegam — Axel quase sussurrou,
rumando para a porta. — Vamos, Misha.
— Foi um prazer, Sra. Emma. Se cuide — tentei falar o que era
mais próximo de um alerta a ela, mesmo não sendo direta, e beijei a sua
testa, apertando a sua mão.
Em seguida, rumei para junto de Axel e descemos as escadas.
Emma era tão jovem, parecia pronta para muita coisa ainda e,
mesmo assim, estava naquele estado. Precisava ver com meu pai Anthony
sobre isso, talvez ele soubesse de algo que pudesse ajudar.

O carro de Axel deslizava pela estrada e nós permanecemos em


silêncio. Não conseguia compreender porque ele me levaria para conhecer
sua mãe, ainda mais sabendo que ela estava tão debilitada. Talvez ela sequer
quisesse visitas; era uma possibilidade.
Quando ele estacionou o carro em frente à praia e manteve as mãos
no volante, mesmo após desligar, eu percebi que estava tão perdido quanto
eu.
— Você quer ser médica, sua mãe é médica, um dos seus pais é
psicólogo e o outro atleta. — Axel respirou fundo após falar, e virou para
mim, largando o volante. — Você sabe, acha que saberia ou teria como
saber o que a minha mãe tem? Quer dizer, desde pequeno a gente ouve ela
dizendo que “são coisas de mulher“, mas essa merda tá errada. Não é
apenas isso, é pelo nosso pai. Eles são… eu não sei como se fala isso. —
Bufou, abaixando a cabeça e passando as mãos pelos cabelos, desnorteado.
— Dependentes. Acho que essa é a palavra. — Ele elevou o olhar
para mim como se um fio de esperança lhe passasse. — Já vi algumas
coisas sobre, mas o estado em que a sua mãe tá é bem… grave — tentei
soar calma, mas eu sei que o impactei. — Porém, creio que seja algo
possível de tratar.
Emma era uma mulher de uns cinquenta anos com três filhos, um
passado que a deixou em um relacionamento abusivo que eu sequer
entendia, e acho que ela não tinha amigos. Seria difícil, para dizer o
mínimo.
— Acha que Anthony nos ajudaria nisso?
— Ele pode indicar alguém para consultar ela. — Dei de ombros.
— Mas ela teria que aceitar e me parece que ela nem está entendendo muito
bem o que tá rolando. — Axel murchou o olhar. Peguei a sua mão, me
aproximando dele. — Eu sei que deve ser horrível crescer vendo e ouvindo
o que ela passa. Deve parecer ser normal, mas não é, e acho possível que
ela saia disso. Vai ser difícil, mas não custa tentar. Você acha que consegue
convencê-la a procurar ajuda?
Conseguia ver seus olhos meio nublados, mesmo com sua cabeça
baixa.
— Talvez. — Divagou, um tempo depois. — Vou tentar convencer,
uma hora ou outra acho que vai dar certo. — E então, pareceu tomar uma
dose de ânimo. — Você já está dando luz ao nosso problema. Isso já ajuda
muito!
— Não a pressione, pode ser pior. Ela pode se sentir julgada ou
algo assim. Só mostre apoio e converse, diga que há uma opção de melhora.
Ele riu nasalado, sem ânimo.
— É difícil conversar com ela. Emma e eu, mesmo tendo visto
coisas horríveis juntos e nos dando bem, não somos próximos.
Coisas horríveis?
Por instinto, já estava massageando suas mãos e maquinando mil e
uma coisas.
— Que coisas horríveis, Axel? — Soprei baixo. Vi o instante em
que seu olhar se chocou com o meu, meio nervoso por só então notar que
falou algo que não devia. — Tudo bem se não quiser falar. — Dei de
ombros, lhe mostrando um meio sorriso, tentando ser amigável.
Era direito dele, mas aquilo me deixou com o estômago
borbulhando de nervoso só de pensar.
— Meu pai, Alejandro, batia nela quando eu era pequeno. Na
verdade, sempre bateu. Fugimos para cá justamente porque ele bateu nela
grávida e após ter o bebê, na nossa viagem para a Espanha, cidade natal
dele. Ele já havia sumido de nossas vidas algumas vezes e em outras levava
a gente junto. Temos seus cartões ilimitados, então, nunca passamos
necessidades, mesmo não trabalhando. Ela nem daria conta de trabalhar, por
Deus! — Ele soltou o ar, tenso, e largou a minha mão para focar adiante.
Desejei continuar segurando-a e notei que meu desejo não era um bom
sinal. — Ele sabe que estamos aqui, na nossa casa de veraneio, e sabe que
consegui uma bolsa na SSU. Alejandro sabe que ela sempre fica desse jeito
sem ele e, mesmo assim, não vem atrás dela, não se redime. Porra, nós
conversamos e ele sequer pergunta por ela! — Bateu no volante do carro,
parecendo remoer mil e uma lembranças antigas. Meu corpo tensionou, ao
pensar sobre o que eles passaram; isso não é vida para uma criança. — Ele
não a ama, Misha, não como ela o ama.
Me aproximei novamente dele e estendi a mão para que me desse a
sua, assim Axel o fez.
— Muitos de nós aceitamos viver em relacionamentos onde o
outro nos dá pouca importância. Os motivos são variados; alguns sequer
sabem, alguns acham que merecem ou alguns foram criados dessa forma…
Mas a verdade é que aceitamos aquilo que nos cabe. Porém, precisamos
aprender a podar certas coisas, cortar fora na hora que nos fazem mal, para
não criarem raízes e proliferarem. A sua mãe não ama o seu pai, Axel, ela é
dependente emocional dele, e isso nunca será um amor verdadeiro ou
saudável. É difícil se libertar dessas amarras, talvez demore, talvez você
precise ser muito mais presente pra ela, mas é possível, eu sei que é!
— Você acha que somos isso? Que somos dependentes um do
outro? Eu nem entendo como essa merda funciona, mas sei que sempre
penso em você. Eu quero correr pra você quando qualquer pequena coisa dá
errado e, se algo dá certo, eu penso em comemorar com você. Nem te
conheço direito, e isso é…
— Estranho. — Ele confirmou com a cabeça. — É, eu sei, eu sei
— suspirei. — Eu também não entendo o que somos ou porque somos
assim. Não sei se isso se enquadra em uma dependência ou não.
— Posso falar a verdade? — Elevei as sobrancelhas, esperando
pela sua resposta. — Eu pagaria pra ver se você um dia vai quebrar meu
coração.
— Não seja tolo, Axel, eu nunca poderia ter o seu coração. Nós
não somos um bom casal. Você me desperta questionamentos demais, eu
sou um desvio para o seu foco e juntos vivemos brigando igual cão e gato.
Seria degradante entregarmos nosso coração um ao outro agora.
Hipócrita!
Eu era mil por cento hipócrita. Já tinha admitido em meus
pensamentos, onde ele sempre esteve, que era dele, então, era óbvio que já
estava em meu coração.
O corpo de Axel se aproximou do meu, suas íris verdes me
buscaram e ele falou quase sussurrando:
— Eu nem sei que porra significa degradante, mas eu me
degradaria inteiro se isso significasse estar com você.
— Não é certo, Axel. Isso não é amor. Se um dia encontrar alguém
de bom coração, íntegro, então poderá amá-lo como nunca antes, mas não a
mim, uma mera desconhecida com quem você nem se dá bem.
— Eu gosto de conversar com você. Parece que me entende, sabe
as merdas das palavras que nunca sei falar…
— Isso é uma coisa simples, qualquer um te ajudaria nisso. — Dou
de ombros, fazendo pouco caso.
— Você é boa, tem um coração doce, não se importa com o que as
pessoas pensam ou falam, tem suas próprias… ideias, ou alguma dessas
suas palavras bonitas.
— Se chama convicções.
— Essa caralha mesmo. — Rimos juntos. — Gosto do seu sorriso
— ele sussurrou, puxando meu queixo para si, devagar, aproximando seu
rosto do meu. No mesmo instante, pareceu que o ar estava sendo
comprimido e uns mil pezinhos de pluma começaram a massagear meu
estômago. — Eu vou te beijar agora, tá?
Apenas confirmei com a cabeça, inebriada pelo frenesi que eu e ele
nos amarramos.
Eu e ele.
Juntos.
Nós.
Sua boca tocou a minha com calma, em um leve selinho, apenas
para, sem demora, pedi passagem com a língua. Aprofundamos o beijo; ele
crescendo em mim ao elevar o corpo bem maior que o meu, e eu tentando
ao máximo deixar minha cabeça elevada, mesmo sentido que derreteria a
qualquer segundo. Tentei ser incisiva também, mas a minha mente estava
nublada pelo gosto forte de Axel, o toque macio de seus lábios e a mão
firme na minha nuca, firmando minha cabeça para si.
Quando eu gemi em sua boca, ele cortou nosso beijo.
— Não gosto de sexo em público.
— Por quê? — Pisquei ao ouvir as minhas próprias palavras e o
afastei pelo ombro. — Quer dizer… — arranhei a garganta e olhei para a
minha saia, sentindo meu estômago revirar em trinta cambalhotas. Que
porra de pergunta foi essa? — … a gente não vai transar. — E alisei a saia.
— Foi só um momento, tá tudo bem.
— Tudo tão bem que você nem me olha. — Ele riu, debochando
de mim.
— Fique você sabendo que está tudo bem, sim. — Virei para ele
com as sobrancelhas em “V“ e o início das bochechas unidas. Parece que
foi um combustível para o fazer rir ainda mais. — Foi só uma pergunta, não
significa nada, ok? De verdade.
— Sei, mentirosinha, sei — debochou, elevando as sobrancelhas e
repuxando o canto dos lábios. Aqueles malditos lábios tão atrativos. — Ou!
— Axel estalou os dedos em meu rosto. Só então notei que estava
divagando. — Relaxa um pouco. — Sorriu.
Ridículo!
Joguei minhas pernas pelo corredor do carro de Axel,
posicionando meus pés em cima dos dele. Suas íris vagaram entre meus
olhos e meu corpo como quem diz “você está mesmo confortável comigo,
hm?“. Entornei a cabeça e dei de ombros. Eu estava confortável com ele há
muito tempo. Porra, Axel me levou para conhecer a mãe dele!
Seus lábios se repuxaram, contente, e ele apertou de leve meus
dedos. É claro que estava feliz, eu estava sendo mais aberta com ele.
— Então, vai me contar um pouco sobre você? — Se interessou.
— Eu já te falei sobre o ballet, minha família, minha pressão baixa
e até da minha visão precária. Você até me viu nua, literalmente. Por outro
lado, eu não sei nem qual é sua cor preferida. — Falei, fazendo um leve
biquinho com meus lábios.
— Que drama. — Ele riu. — Sabe sobre as minhas origens, meu
sobrenome, meu amor por esportes em geral, e eu até te levei para conhecer
a minha família. Se quer tanto me ver nu, pede de uma vez.
— Folgado!
— Nunca, mentirosinha. — Seus lábios se puxaram de canto, se
recostando no banco do carro e aumentando nossa distância, mas
começando uma massagem gostosa no meu pé. — Quando você tirou a
roupa para mim pela primeira vez…
— Não era para você. Eu só ia tomar banho. Não se ache! — o
cortei, cruzando os braços embaixo dos seios.
— Você tirou para mim. — Sorriu de leve e pressionou mais meu
dedinho. — Não sabe como é excitante te ver mentindo — soprou.
— Você é tão convencido. — Girei os olhos em órbita, tentando
dissipar aquela porcaria que parecia muito que a era glacial estava pousando
na minha barriga.
Por que caralhos ele tinha que gostar de uma parte tão horrível
minha?
Eu não podia… não podia achar aquilo bom. Pelo amor de Deus,
isso é insano!
— Quem fez aquela merda em você? — questionou de repente.
O olhei, meio confusa, e notei sua análise por meu corpo.
E então compreendi.
Ele se referiu às marcas em meu corpo.
Pisquei, meio desnorteada com aquela pergunta.
— Por que você se importa? — Elevei as sobrancelhas e puxei
meus pés de volta para o lugar, reajustando minha postura.
Isso não é, nem nunca vai ser, da conta dele e nem de ninguém!
— Eu quero um nome!
— Axel, me leva pra casa — falei, estressada, já puxando o cinto.
— Agora é você quem tá me afastando! — Ele tava puto, mas eu
nem me importei. Mantive meu olhar preso ao horizonte. Não falaria sobre
aquela merda nem que me pagasse, eu sequer mentiria sobre aquilo. — Tá,
não quer falar sobre isso. — Ele se ajeitou no carro também, ligou e passou
a marcha, dando ré para sairmos. — Vou saber o que tá rolando, Misha, é só
questão de tempo.
O carro acelerou, tal como as batidas do meu coração.
— Você não podia ser menos idiota e me importunar menos?! Já
parou pra pensar que foda-se o que aconteceu ou acontece comigo, porque,
afinal, você me odeia? — Me estressei e movi as mãos no ar para, então,
passar nas têmporas.
— EU NÃO TE ODEIO! — Ele gritou, quase atropelando as
minhas próprias palavras. — Que porra, Misha! — Então, bateu no volante,
sem me olhar. — Por que diabos eu odiaria você? Você tá me afastando
agora, depois de toda a merda que passamos. Por que tá fazendo isso? Você
tá saindo com alguém e essa pessoa tá te machucando ou você tá doente? É
isso? Só… só… só me fala o que é isso de uma vez que eu vou resolver
para você!
— Você não resolve nem a porra da sua vida, Axel! — No mesmo
instante em que as palavras saíram da minha boca, eu senti o amargor subir
em meu estômago.
Ele gritou comigo e eu usei palavras duras com ele, essa merda fez
um medo novo se alojar em meu estômago; foi assustador.
Nós nos magoamos de forma profunda e diferente naquela noite. O
silêncio que se instaurou no carro foi apenas uma confirmação. Aquilo sim
nos fez ser tóxicos um para o outro. Se aquilo acontecesse de novo…
Eu e ele éramos bons separados e nada deveria mudar isso.
 
 
20

Misha estava certa, eu não resolvia nem a porra da minha vida.


Mas eu faria muito por ela. E isso ela não tinha nem noção do quanto era
real.
Não éramos a mentira que contávamos ou deixávamos os outros
acreditarem quando estávamos a sós. Essa era a nossa verdade: eu e ela.
Misha era a minha verdade e eu queria que fôssemos reais, mas… porra, era
muito difícil!
De alguma forma eu sabia, desde que coloquei os olhos nela, que
isso não seria fácil, só pensei que fosse mais leve.
Eu gritei com ela, explodi. Não posso dizer que tenho defesa, eu
sei que a magoei. Meu pai gritava com a gente o tempo todo… eu sei que
essas merdas ficam na nossa cabeça e é fodido pra caralho.
Minha mente fazia meu quarto parecer rodar e rodar pensando na
nossa discussão. Arrastei minhas mãos por meus fios e grunhi em agonia.
— Merda, merda, merda, merda! Eu fiz uma das maiores merdas
possíveis. — Bufei, estressado.
Eu também estava magoado pelas palavras duras que ela me falou,
mesmo acreditando nelas. Ainda queria que Misha achasse que eu poderia
ser bom para ela, que daríamos certo juntos.
Por instinto, me impulsionei na cama para correr até a sua janela,
mas logo paralisei. Não poderia procurá-la agora.
Droga!
O ponto alto da nossa noite foi o nosso encontro, nossa conversa
profunda, nossa briga ou eu sofrendo sozinho em meu quarto querendo que
ela me aceitasse no dela?
Eu, com certeza, voto que é a última opção.
— Axel? — A porta do meu quarto estava sendo batida e a voz de
Tyler se fez presente. — Hey, cara, vamos jantar? Os meninos pediram
pizza.
— Já vou.
Acho que esquecer a Misha e me perdoar não estava nem perto de
ser possível para mim, mas precisava aprender a ter novos amigos. Não
aventuras, eu não daria conta, seriam coisas demais.
Uma noite com amigos, isso já era o suficiente
flashback.2

Corria o mais intensamente possível, sentindo o vento esvoaçando


meus longos cachos escovados. Pude ver quando o corpo pequeno de Saori
sumiu de minha vista, indo para direita, mas eu não liguei. Continuava
correndo de braços abertos por aquele imenso campo.
Eu era livre.
Uma criança poderia correr todo esse campo? Era tão grande para
as minhas pernas ainda tão curtas. Achava que não conseguiria, mas seguia
correndo de braços abertos e sorrindo de ponta a ponta.
Até que ouvi uma voz me chamar.
— Misha! — Era suave. Suave como quando estamos perto de
outros, mas ainda era ele. E eu bem sabia o que acontecia quando eu fazia
algo além de suas ordens.
De imediato, minha cabeça raciocinou que eu devia continuar
correndo, mas eu era consciente demais de meus atos. Parei. Na verdade,
desacelerei meus passos. Minha cabeça ainda lutava pela liberdade; era
irreal, eu nunca a teria. Não era uma luta honesta.
— Pai! — gritei e saí correndo, pulando em seu colo com um falso
tom de animação. Ele me abraçou, me segurou em suas asas paternas
amáveis; eu gostava da segurança que ele me transmitia. — Papai, onde
está a Saori? A perdi de vista. Você a achou? — Fingi. Sempre finjo
— Ela está com os pais dela, querida. Está tudo bem. — Ele beijou
o topo da minha cabeça, arrastando forçadamente a mão por meus fios; ele
tentava baixá-los, diminuir seu volume natural.
— Podemos ir? — Soei apressada. Sei que me apressei e usei um
tempo errado de fala, porque ele me olhou de esguelha.
— Alguém estava com você aqui, Misha?
— O quê? — Me assustei. Alguém estava? Comecei a olhar ao
redor.
— Você viu alguém aqui ou estava falando com alguém por aqui?
— ele voltou a falar, me olhando. Parecia arrancar a verdade de mim.
Não havia ninguém além de mim e da minha liberdade, mas, de
repente, desejei que alguém realmente estivesse ali. Assim, eu poderia
começar a treinar como mentir para eles. Desejava aprender a mentir de
forma fácil, porque era algo que me ajudaria muito com todas essas coisas e
exigências deles comigo. Às vezes, podia até ser mais fácil do que os
convencer da verdade.
Então, eu fingi.
Fingi, na minha cabeça, que em algum momento passei por
alguém. Aquilo me acalmava de uma forma estranha. Com a cena de algum
rapaz adulto passando por mim sem falar ou me olhar, eu atuei. Imaginei
lembrar dessa figura desconhecida e que eu não queria contar isso a meu
pai, e acabaria não contando mesmo; mentindo.
Eu precisava aprender a mentir bem. Agora seria um bom treino.
— Não. Não vi ninguém por aqui. Estava apenas procurando a
Saori.
Procurando Saori. Sim, isso sim foi uma boa mentira.
Meu cérebro corria no imaginário da falsa lembrança e eu poderia
mentir sobre o que realmente queria sem dar tanto na cara.
Mentir assim me dava algumas vantagens. Eu comecei a acreditar
em minhas próprias mentiras. Meus gestos, quando mentisse de verdade,
não seriam muito diferentes. Eles nunca notariam meu rosto confuso real.
— Certo — ele divagou, ainda inspecionando o lugar. — Você
sabe que eu me preocupo com você porque te amo, não é? Sabe que o papai
prefere morrer do que perder você. — Ele só reafirmava o de sempre. Já
havia decorado as suas falas, eram sempre as mesmas.
— Sim, eu sei, papai.
— Vamos! — Então, apertou meu corpo em seu colo e me
carregou até estarmos com todos os outros.
— Filha, aí está você! — Anthony disse, estendendo a mão para
mim, mas Jeff não me soltou. Anthony estranhou, porém, meu pai nunca foi
do tipo que fazia muitas perguntas ao marido. Creio que por isso apenas
assentiu, se aproximando de mim, e perguntou: — Você está bem, querida?
Afirmei mil vezes com a cabeça, contudo, segui Jeff com o olhar.
Ele focava na família de Saori. Todos eles se pareciam; senhor e senhora
Yoon, com alguns parentes. Eles haviam migrado há pouco tempo por conta
da empresa do pai da minha amiga.
— A menina coreana não é uma boa companhia para a Misha —
ele disse, ultrajado de repente, me apertando mais a si.
— E para você, quem seria? — meu pai Anthony quase sussurrou
enquanto apenas afagava meu cabelo, mas Jeff o ouviu e semicerrou os
olhos em sua direção.
Eles iam brigar quando chegassem em casa.
Odeio brigas. Isso me deixava exausta. Eu não devia ter corrido.
Subitamente, um mal-estar cheio de culpa me tomou.
Tudo sempre era culpa minha.
Por que eu não sou uma boa filha? Qual o meu problema? Por que
não pude me controlar quando corri para longe? Não era seguro uma
criança andar sozinha, Jeff sempre me avisou sobre essas coisas; como as
pessoas podem ser más, como eu devo sempre usar leggings e nunca saias,
pois isso ajudaria eles a serem maus comigo. Ele sempre falava isso.
Encenava. Balancei a cabeça, enjoada. As cenas dele encenando
rodopiavam a minha mente, aquilo fez meu estômago remexer de uma
forma esquisita.
Odiava ser criança, muitas bobagens azucrinavam a minha mente.
Eu tinha certeza de que quando crescesse aquilo passaria.
21

As cabines no banheiro do vestiário masculino eram todas abertas.


Ou seja, eu, assim como todos os meninos, via como viemos ao mundo. De
certa forma, aquilo me incomodava naquele dia. Não por quem eu era,
sempre consegui separar bem isso, mas pelo que eu vivi. Ver a Misha com
marcas no corpo e sem saber de onde elas vieram me fez lembrar de quando
meu pai convivia com a gente.
Alguém chegou a ver algo em minha mãe? Será que alguém tentou
salvá-la?
Naquele dia, eu acabei passando os olhos pelo corpo dos meninos;
costelas, pernas, braços… Nenhuma mancha roxa. Alguns tinham arranhões
nas costas e chupões no pescoço, mas isso todos sabem de onde vinham.
Tudo bem. É só o de sempre.
Talvez isso tenha, de certa forma, me colocado em estado de alerta
de novo. Odiava isso. Odiava! Por isso saí de perto do meu pai. Esse estado
de alerta o tempo inteiro era torturante!
Caminhei com uma toalha presa na cintura e outra esfregando os
cabelos quando saí do banho, me direcionando para meu armário.
Um grupo de três meninos conversava. Um sentado, secando o
cabelo como eu, parecia meio cabisbaixo; tinha uma pele clara e cabelos
lisos mais grossos. Do outro lado, um mais determinado dizia coisas sérias,
negando com a cabeça; de cabelos crespos e pele retinta. E o outro parecia
mais tranquilo, fazendo apenas um "tsc" com a boca; sua tatuagem
aborígene no braço esquerdo e colar também de terras santas mostravam
sua ascendência.
— Não acho certo — o segundo insistia, em negativa.
Me aproximei, sorrindo.
— Não acha certo, o quê?
Precisava fazer novos amigos, socializar. Eu os via sempre em
casa, mas ainda não conversávamos muito.
— Ele está saindo com uma garota — o último apontou.
— Não é certo. Não é! — O segundo voltou a negar com a cabeça.
— Veja — então, ele me olhou, sério. —, ele nunca gostou de garotas. Está
iludindo ela, percebe? O que acha disso?!
— É… é… Com certeza, não é certo. — Quase me perdi nas
palavras, assustado por ele já pedir a minha opinião. Achei que seria mais
difícil.
— Não é assim também. — O último voltou a falar. O cara entre
eles parecia meio triste demais, ainda de cabeça baixa, passando tempo
desnecessário na função de secar o cabelo. — Ele disse que só ficou com
garotos. Isso tem muitas… aberturas. Somos jovens. Ele gosta dela. Qual o
problema?
— Não sei, cara. Não me parece certo. — O segundo deu de
ombros, virando para se vestir em frente ao seu armário. Então, li o nome
pequeno na sua porta: Andrei.
— Devíamos ir àquela reunião de jovens — finalmente, o menino
disse algo. — Eu acho que não quero iludir ela. Gostar não me torna… bom
para ela. Só quero saber ao certo quem sou antes de tudo. — Por um
segundo, jurei que ele derramaria uma lágrima.
— Cara, tudo bem. Relaxa. Essas coisas de sentimentos são
complexas mesmo. Que reunião é esse que estão falando? — Tentei o
tranquilizar, tocando seu ombro.
Seus olhos se fixaram em mim, ele ainda parecia perdido, mas
logo se recompôs.
— A reunião para jovens QUEER's da faculdade.
— Que porra de nome é esse?
O cara aborígene riu de gargalhar da minha fala.
— É um termo guarda-chuva que usamos atualmente para falar
sobre pessoas da comunidade LGBTQIAPN+. Só isso, cara. Relaxa! — Ele
me imitou, passando a mão no meu braço falsamente, e saindo em direção
ao seu armário.
Agora, li o seu nome: Hopi. É, faz sentido; alegre, esperançoso e
indígena.
— Ah… — divaguei. — Não sabia que atualizamos os termos.
— Você não está com os estudos em dia — Hopi alfinetou,
divertido, enquanto vestia uma calça. — Vai com a gente? — Virou de novo
para me focar e vestiu uma blusa.
— Hmmm. É. Pode ser…
— Se vamos, então vamos logo — Andrei falou, com um olhar de
seriedade para o outro, do qual eu ainda não havia descoberto o nome.
— Pra que tanta pressa? — Me aproximei de Hopi para perguntar
sobre os dois.
— São parentes. Andrei nasceu e cresceu aqui, mas Miguel veio
do México. Ele não quer o primo metido em confusão. Ser gay já seria uma
baita confusão, imagina se ele muda de ideia no meio do caminho? Afinal,
os tempos ainda não são tão modernos assim na NBA, muito menos na
família deles. Todos sabemos o quanto é importante manter uma bolsa aqui
para um bom futuro. — Se bem sei. — Principalmente se seus pais não
pagam tudo. Mas disso você não entende, não é, Martinez?! — Ele piscou
para mim.
Todos conhecem a droga do meu sobrenome mesmo?

Noite de lua cheia. Sempre acho bonito olhar pra lua quando está
assim.
Os jovens organizadores da roda de conversa QUEER escolheram
um momento no jardim para falarmos sobre algumas questões trans e não
binárias.
Foi como uma palestra. Um rapaz falou sobre o tema de modo
geral, mas depois fomos todos conversando sobre. Uma menina de pele
escura e olhos datados de ascendência do leste-asiático mediava a
conversação. Ela parecia doce, mas fodona; só que não como a Misha. A
Misha parecia que iria socar a minha cara, o que me deixava maluco. Essa
tinha aquele olhar felino de mãe, como leoas defensivas, e o famoso olhar
43. Com certeza, ela era daquelas pessoas que marcam por onde passam,
por ser bonita, doce e ter um olhar felino; essa é uma combinação dos
infernos.
— Libriana — Hopi disse ao meu lado. O foquei, assustado,
achando que ele estava lendo meus pensamentos. Ele sorriu para mim e
cruzou as pernas. — Ela, com certeza, é libriana. Não acha? — Apontou
para a mediadora enquanto ainda estávamos todos sentados nas cadeiras,
ouvindo uns aos outros.
— Não sei. Não entendo dessas paradas de signo.
— Você é meio misterioso, Martinez. O que o traz aqui, afinal? —
Elevei as sobrancelhas, o focando melhor, desacreditado de suas perguntas.
— Perguntar não ofende. — Ele deu de ombros.
— Vim para Stacy Scarllat por causa da minha bolsa no basquete.
É no que sou bom e é meu foco.
— Hmm, então, decidiu responder a pergunta pelo que todos
sabem. Interessante. E me diga: o que fazia conversando com a filha do
treinador depois da escolha das líderes de torcida?
— Quê? Que porra! Você tava espionando a gente? — Me virei
para encará-lo, surpreso.
— Não, não. Longe de mim. É uma perguntinha inocente. Imagine
eu estar procurando fofoca por aí, hm? — falou, sem me olhar. — Estou
brincando. — E então, riu. — Só perguntei porque vi os três saindo do
ginásio naquele dia. Eu estava no estacionamento. Ia passar o fim de
semana nas terras santas, então, estava esperando alguns irmãos para irmos
juntos.
— Ah, sim.
— Também, porque hoje você falou "não sabia que atualizamos o
termo" quando citamos a palavra QUEER. Falou no plural. Existe algo a
mais que te traz aqui, para a roda de conversa, especificamente? — Seu
olhar desceu para meu cropped. Hoje usava um branco, mas com a jaqueta
preta de sempre. Então, a puxei para me cobrir mais, meio sem pensar, e
fechei o zíper até o alto.
Hopi semicerrou os olhos em minha direção.
Esse cara era muito mais esperto que qualquer um dali. Odeio
gente esperta por perto. Eu sou cheio de merdas na vida, não dá pra
conviver com gente assim.
— Talvez.
— Hm, certo. Não vamos falar de relacionamentos, então. Gostou
da palestra? — Ele voltou a focar adiante.
O rapaz que palestrou estava encerrando.
— Foi boa.
— Todos podemos lanchar lá dentro. Comidas 100% veganas à
esquerda — o garoto, que se chamava Isaque, indicou a sala do prédio da
faculdade à frente.
Eu e Hopi juntamos nossas cadeiras, como todos, e começamos a
caminhar para dentro. Andrei e Miguel estavam mais distantes, alheios a
nós.
— Eu gostei da palestra. Era algo que precisava ouvir.
— Questões de gênero?
— É. De modo mais… — Fiz um espaço com a mão e meu corpo.
— De modo mais expansivo? — sugeriu.
— É. Essa palavra aí é boa.
— Você não é bom com palavras, não é? — Hopi riu, mas sem
querer me ofender, apenas por diversão.
— Não. Nem lendo.
— Você fala palavras "difíceis" de forma engraçada. Sem maldade
— assegurou. — Fica ainda mais misterioso, Martinez. Um cara como
você, com a família que tem, falar da forma que fala… gera uma certa…
curiosidade, hm?! — Sorriu. — Sem julgamentos, mas já julgando.
— É um caralho desse aí mesmo. Você acha que falar com ela
seria bom? — Apontei para a menina que estava mediando a conversa
antes.
— Buwan? Hm, gostou da garota espertinha? — Hopi era
divertido, acho que me acostumaria fácil com ele. O que não podia, claro.
Ele era mega curioso com tudo, por Deus! — Ela adora falar com os
novatos. Pode ir tranquilo.
Me interessei, mas então reparei melhor em sua fala.
— Novatos? Você não é novato aqui?
— Quem você acha que convidou o Miguel?
— Você é…?
— Gay, talvez? Estamos na comunidade. Rótulos ainda não me
definem, mas se em lutas políticas me pedirem nomes eu usarei e peço que
também use esse. Quando eu me entender melhor eu boto uma estampa na
porta do meu quarto, beleza? — Ele riu de novo. — E sim, pronomes
ele/dele, fica tranquilo que estava usando certo.
Eu disse: esperto e divertido. Ele seria um bom amigo. Única
desvantagem: ser curioso.
— Valeu, mano. Você não sabe o que passa na minha cabeça às
vezes por causa dessas paradas. É bom saber que alguém dentro de casa
também sente essas coisas. Se topar, podemos conversar sobre isso esses
dias.
— Pode contar comigo, mas eu não tenho pressa para me definir.
O que e quando ou do modo que for está bom.
Tranquilo. O que acontecer e como acontecer está tudo bem.
Queria poder ser tranquilo assim.
Sorri para ele e demos um meio abraço de despedida. Daí, fui falar
com a menina Buwan.
— Ah, oi. Prazer, Buwan. Ela/dela. — A garota se apressou para
estender a mão e se levantou quando me aproximei.
— Prazer, Axel.
— É novo aqui, não é Axel?
— É a minha primeira vez aqui. E sou novo na faculdade também.
— Claro. Acho que me lembro de alguém comentar sobre você.
Martinez, o jogador de basquete promissor, certo?
— É — confirmei, não gostando tanto assim daquela "fama" que já
tinha.
— Sente-se. — Ela estendeu a mão para o sofá em que estava
antes. — Vamos conversar.
Fiz como ela mandou e ficamos cara a cara; talvez próximos
demais.
— Então, você joga desde sempre?
— Desde moleque vi muitos jogos com meu pai, mas ele só
começou a me ensinar quando eu tinha uns doze anos. Só no ensino médio
entrei em um time no colégio. Mas eu gosto muito mesmo. Sou apaixonado
pelo esporte desde sempre. Só não pensei de cara que também poderia
exercer como profissão.
— Entendo bem. Às vezes, nossos sonhos não são postos às claras.
O que está cursando? Escolheu algo ou…
— Estou cursando inglês.
— Com o Mister Jones? — Sua cara se enrugou toda.
— Ele mesmo. — Tentei forçar um sorriso sem jeito. — Eu sei, eu
sei. — Deixei claro que entendia seu nojo. — Bom, é… e faço matérias de
biologia e divulgação jornalística.
— Hm… jornalismo e inglês, ok. Mas onde entra a biologia?
— Pensei em ser enfermeiro ou algo assim, mas preciso aprender o
básico do idioma antes. E jornalismo é porque quero saber como as notícias
são pensadas desde o início, já que terei que lidar com a mídia por muito
tempo na minha vida, enquanto for jogador.
— A mídia é um saco.
— É, mas tô achando que nem é tão diferente do que vivemos na
vida real.
— Não é mesmo! — Ela gargalhou, mas logo se conteve e me
focou. Quase me perdi em seus olhos cor de mel. Acho que devia ser crime
sem fiança pessoas de olhares felinos olharem demais para outros humanos.
Meros humanos. Porque o olhar dela parecia me diminuir, me pelar, mostrar
coisas ocultas em mim que nem eu mesmo sabia. Como que feroz, mas,
mesmo assim, ameno. Que garota… parecia uma droga daquelas que mexe
com a nossa cabeça; nos deixando calminhos para roubar a verdade. —
Axel, eu adorei te conhecer. Existe algo em específico em que ficou com
dúvidas ou queira falar mais sobre?
— Preciso de um tempo. — As palavras saíram da minha boca e
eu nem percebi. — Estou cansado agora e… acho que confuso. Preciso me
recompor, mas ainda quero falar com você. Tenho muitas dúvidas e acho
que você pode me ajudar.
— Tudo bem. Pega meu número. Pode me mandar mensagem ou
me ligar sempre que quiser.
Estendi meu celular já desbloqueado para ela.
Essa garota era como uma sereia; enfeitiçava até as mentes mais
certas. Seja lá quem ela fosse ou o que tinha na vida, não era boa para os
olhos. Aquelas petecas claríssimas como luz do sol causam danos na cabeça
de qualquer um. Poderia jurar que estava a ponto de lhe contar meus
segredos mais íntimos.
Ainda não sabia se ela era confiável para isso.
Um passo de cada vez.
Esse era o motivo de eu gostar da Misha. Eu e ela causamos um
grande efeito um no outro, éramos nós contra o mundo, ainda assim,
pessoas individuais. Ela tinha os pensamentos dela e eu, os meus. Podíamos
ser invasivos, não tentávamos roubar um ao outro. Tudo que cada um
conseguia do outro era lutando. Talvez com desafios tóxicos? Sim, mas
ninguém é perfeito, então ok, para mim tudo bem. Mas tirar algo de mim à
força? Não, definitivamente, não era algo que me atraía.
 
22

Meus pais haviam saído para um jantar e meu irmãozinho estava


na casa de um colega, onde ia dormir. Gostava da casa em silêncio, mas não
gostava de como a minha cabeça começava a trabalhar.
Ver o estado da Emma deu um estalo na minha mente.
Relacionamentos de dependência.
Ter pais na área da saúde me fez crescer ouvindo muitas coisas.
Dependência emocional nem sempre se inicia ou se perdura em um
relacionamento de abuso ou violência física. Sabia que toda a minha
necessidade de ser o que os Daughety queriam e impunham a mim era
abusiva, pois me fazia pensar em desistir de lutar pelo que queria; como
minha forma de me apresentar ao mundo, meu trabalho na cafeteria ou até
meus estudos. O mal-estar que isso me gerava, a mente conturbada e
confusa, questionando se meus desejos eram realmente válidos ou se, na
verdade, estava sendo apenas uma boba… tudo isso era demais para mim.
Me amarrava a continuar naquela casa, vivendo a vida que eles ainda,
minuciosamente, planejavam para mim.
Por mais que eles tivessem me permitido cursar medicina, se um
dia eu realmente conseguisse me formar e ter um trabalho – que até então
eu duvidava muito ter capacidade – o que ia me ocorrer? Continuaria no
bairro nobre, rodeada de perguntas cheias de imposições? Precisaria mudar
de cidade para ter uma independência real? Mas que cidade? E teria que ir
só?
O problema de dar liberdade a um pássaro enjaulado a vida toda é
que ele não sabe voar para longe; ele apenas morre ou acaba voltando para
sua prisão. Eu, com certeza, voltaria. Não sou uma pessoa nobre de espírito,
nunca conseguiria viver longe dali. Isso é certo. E, mesmo tendo entendido
isso, dentro de mim borbulhava uma revolta: como assim eu não estou, pelo
menos, tentando ter a minha independência?
Era revoltante pensar que eu era o pássaro que voltava. Porém, era
pior, aterrorizante, na verdade, pensar que eu era o que tenta fugir e não se
adapta. Outras opções deviam existir no meio do caminho, contudo, minha
mente me amarrava apenas ao temor naquele primeiro momento.
Axel veio de New York e devia ter conhecido muitas pessoas em
suas viagens a outros países. Por mais que eu tivesse saído de Stacy Scarllat
e visto muitos lugares históricos, acho que nunca fiz amigos ou contatos.
Não tinha ninguém além de Saori e Bryan. Sendo bem sincera, nem achava
que a minha amizade com Saori tivesse crescido bem. Nós fomos criadas
juntas e ainda mantínhamos nossas conversas após as aulas todos os dias
antes do trabalho, mas isso não significava profundidade ou conexão real.
Saori nunca iria comigo, fora que ela era apaixonada pela vida glamorosa
que a SSU possibilitava para o seu futuro. E nem precisava cogitar
perguntar algo para Bryan – sabia que ele queria entrar na NFL pelo futebol
americano –, eu seria um atraso para ele, um peso em sua vida. Pensando
bem, talvez ele fosse a única pessoa próxima que pudesse, realmente, me
ajudar; ele teria contatos morando em New York… Existia uma
possibilidade de, talvez, ele saber de algum lugar no qual eu pudesse morar
e/ou trabalhar. Dinheiro não seria um grande problema, podia levar um
pouco da família; tia Rosa fez isso e eles a detestam até hoje, não acho que
seria um problema ser desprezada por eles já que não os queria em minha
vida mesmo.
Eu estava mesmo planejando uma fuga, sendo que a minha família
era de políticos e me achariam até no inferno?
Quão tola eu sou?
Murchei meu semblante e me sentei na cama, puxando meu
travesseiro para o abraçar.
— Com certeza, a maior iludida de todas!
Fugir? Onde eu estava com a cabeça? Isso aqui é a minha
realidade e eu devia ser grata! Quantas pessoas passam mil e uma
necessidades básicas? Pelo menos, aqui estou segura. Eu sou muito ingrata
mesmo, como Jeff diz.
Enquanto a minha mente ainda martelava as muitas palavras de
culpa que sempre ouvi desde pequena, quando tentava algo novo, meu
celular começou a tocar.
De início, me assustei, afinal, nunca recebo ligações, nem mesmo
da minha melhor amiga.
— Misha? — o garoto perguntou do outro lado; o barulho de
música e uivos jovens atrapalhavam um pouco, mas eu o compreendia.
— Sim. Quem fala?
— Eu sou o Hopi, amigo do Axel. Você pode vir a festa na
fraternidade? Ele e a sua amiga estão precisando de você. — Hopi se
embaralhou para dizer que eles “precisavam de mim”. Afinal, para que,
exatamente, jovens precisariam de outros em uma festa ao ponto de um
ligar meio agoniado? — Eles não estão muito bem. Olha, só… só, por favor,
venha, ok? Aqui te explico melhor.
Quando comecei a cogitar pensar em algo para responder, ouvi o
bipe da ligação sendo encerrada.
Por sorte, a fraternidade era perto de casa.

Tudo estava uma zona na fraternidade; do tipo que sei bem que
desagradaria meu pai. Um cara estava jogado no chão com o nariz
espirrando sangue; aquela merda estava intensa. Outros caras o ajudavam,
mas o vi subir a blusa, revelando uma mancha roxa gigante. Quando os
meninos perceberam aquilo, olharam com desgosto para o outro lado. De
imediato, os acompanhei.
Axel estava jogado no chão também, limpando o canto da boca
onde havia um leve arranhão. Saori estava ao seu lado, tentando ajudá-lo, e
poucos garotos o repararam. O dobro de caras estavam ao redor da cena.
— Mas que porra é essa? — gritei, exigindo saber. Ao mesmo
tempo, o som alto parou e mais pessoas se amontoaram na varanda e
jardim.
Todos viraram em minha direção com as sobrancelhas elevadas,
pareciam ter recebido um comando; talvez por eu ser a filha do treinador,
talvez por eu estar falando alto demais… não sei.
— Misha? — Axel foi o primeiro a falar. Espanou a calça e se
apoiou na coluna da fraternidade para se levantar sozinho, mesmo que Saori
lhe oferecesse o braço. Ela era pequena demais para o aguentar bêbado –
era perceptível pelo seu tom de voz e molejo, quase caindo após se levantar.
Saori o ajudou mesmo sem ele querer.
Meu cérebro parecia trabalhar tão rápido quanto um furacão, e agir
logo me pareceu a única saída. Virei para o menino ensanguentado.
Coitado, tão novo, assim como Axel. O que os levou a brigar?
— Vocês! — Apontei para três caras que conhecia do time e sabia
que tinham carro; esperava que algum deles não estivesse bêbado e pudesse
dirigir. — Quem não estiver bebendo, ajude ele a ir para um hospital e os
outros, acompanhem. Você! — Apontei para uma menina que eu sabia ser
mais velha e cursar enfermagem. — Vá na cozinha e pegue alguns
algodões, álcool ou qualquer coisa que ache ser importante para aquele ali.
— Apontei em direção a Axel. — E depois, suba pro quarto dele. Vocês
dois — dessa vez, foquei em Axel e Saori — subam pro quarto dele. E o
resto de vocês, limpem a porcaria dessa casa. — Fitei os demais. —
Depressa! — Bati palmas, os dissipando.
Todos me obedeceram com rapidez.
— Misha… — Saori se aproximou para falar algo comigo, mas
neguei com a cabeça, estressada, e sinalizei para subirmos logo.
Minha amiga me respeitou, mas sei que se sentia contrariada e não
gostava disso. Apenas concordou e me ajudou a colocar os braços de Axel
em meus ombros e nos dela para o levarmos.
Subimos depressa os degraus da frente. A música voltou a tocar,
dessa vez baixa, e os garotos brincavam entre si com a organização do
ambiente, mas pararam quando viram o estado do Axel. Ele cambaleava,
ainda apoiado em meu corpo pequeno e no de Saori, franzino.
Éramos um desastre.
"Daddy Issues" soou baixo quando três meninos se aproximaram
para nos ajudar. Dois deles tomaram meu lugar e o de Saori, sorrindo sem
jeito. Acho que todos só achavam que era o caso de mais um moleque
bebendo demais e arrumando confusão, por isso não se aproximavam, mas
aqueles eram do time – um deles sendo o capitão.
— Pro quarto dele, não é? — o capitão, parado ao meu lado, me
perguntou.
— Sim.
Eu, ele e minha amiga caminhamos à frente dos outros que
carregavam Axel. Fizemos todo o percurso em um silêncio agonizante.
Chegamos no terceiro quarto da casa – o que julguei ser o de Axel
– e ele puxou um molho de chaves do bolso, destrancou a porta e nos deu
passagem para entrarmos.
Esperei Saori adentrar e acompanhar os meninos, que deitaram o
corpo de Axel na cama.
— Eu não sei que tipo de merdas ele passou ou tem, mas Axel é
um dos melhores jogadores. A real promessa que temos no time. Talvez até
roube o meu lugar. — Ele riu. — Mas hoje — elevou as sobrancelhas,
desacreditado demais. —, acho que nunca vi um cara assim. — Nervoso,
passou a mão na cabeça. Suspirei aflita, sabia que ele me relataria o que
Axel tinha feito e isso não me animava. — Ele estava tão bêbado… na real,
acho que deve ter tomado umas pílulas também. Tava muito fora de si e
arrumou briga com aquele cara. Nem sei o porquê, só sei que ele socou
muito o mano. Nunca vi um cara se meter numa briga como aquela e sair só
com um arranhado na boca como ele saiu. Seu namorado é,
definitivamente, um cara complexo. E não estou te dizendo isso porque
quero que se responsabilize por ele, sei que não é a sua obrigação, mas tente
conversar com ele. Eu também conversarei. Axel é a promessa da
faculdade, precisamos dele na linha.
— Ah… ok, mas… eu não sou a namorada dele.
— Achei que a única garota que o treinador deixaria ele namorar
seria justamente a própria filha, afinal, foi o seu nome que ele gritou quando
foi jogado no chão, mesmo com a sua amiga o ajudando. Mas faz sentido. A
filha do treinador deve ser mesmo a mais distante no radar. — Ele riu e
prendeu os lábios na boca. Droga, ele sabia que estávamos envolvidos de
uma forma tortuosa, com certeza! — Relaxa, Misha, podem continuar seja
lá o que vocês têm. Os garotos daqui são acostumados a guardarem
segredos sobre amantes uns dos outros para o treinador. — Sorrindo, ele
bateu em meu ombro e me deixou.
Ao mesmo tempo, os outros dois meninos também saíram do
quarto e o acompanharam, me dando um polegar para cima e focando
adiante.
Adentrei o quarto e, por mais que estivesse preocupada, uma parte
de mim estava feliz em saber que a fraternidade era um lugar seguro para
nós dois. Seja lá o que nós dois significasse.
— Fica com ele essa noite. Emerson e as outras meninas estão me
esperando lá embaixo para voltarmos pra fraternidade. Ele estava muito
alterado. — O olhar de Saori vagou pelo corpo estendido de Axel após ela
sair do banheiro. — A banheira tá enchendo. Se quiser… — Ela afagou os
cabelos dele e fungou, meio triste.
— Tudo bem. Eu cuido dele, sem problemas. — falei leve.
— Bom, eu tenho que ir. — disse, já seguindo para passar por
mim.
— Espera! — Segurei seu braço e Saori me focou. — Eu acho que
precisamos… conversar. Digo, um dia desses. — Flutuei as palavras, sem
saber ao certo o que queria conversar com ela.
Nossa amizade? Nossa proximidade real? Que droga, como se diz
à sua melhor amiga que acha que vocês são distantes, mas queria uma
reaproximação? Reaproximação… isso nem é o que precisamos. Devíamos
nos conectar de novo, isso sim!
Saori piscou, meio desentendida.
— É… tá. Me manda mensagem.
— Pessoalmente.
— É algo importante assim? É grave? — Ela ajustou a postura e
cruzou os braços, me dando seu total foco.
E então, eu me lembrei do quanto minha amiga era boa de coração,
mas eu não entendia porque não éramos tão próximas quanto deveríamos.
Deveríamos?
— Importante, sim, mas não urgente.
— Podemos conversar no jardim na segunda?
— Precisaríamos de mais tempo — informei.
— Tudo bem. Então, eu posso dormir na sua casa no domingo.
Pode ser?
— Claro.
Sorrimos fraco uma pra outra, visivelmente cheias de pensamentos
encobertos, e nos despedimos. Tínhamos um dia marcado para nossa
conversa. Certo. Certo… Certo?
Era correto eu exigir mais da nossa amizade? Eu, pelo menos,
queria isso mesmo? Às vezes, achava que gostava de como éramos e
pensava que não havia nada que uma escondesse da outra, porém, na
mesma hora me lembrava de que eu mesma escondia um bilhão de coisas.
Seria eu a que falaria mais nessa conversa? Eu que tinha mais segredos que
estavam me engasgando?
Tranquei a porta do quarto do Axel e passei uns segundos ali,
encostada, com todos esses pensamentos rondando a minha mente.
Era muito mais confortável, para mim, apenas esconder tudo,
porque, claro, tinha quase certeza de que ela não me escondia nada.
Esperava que Saori não ficasse brava quando eu contasse sobre Axel, mas
não podia mais esconder isso.
Olhei o cara deitado, bêbado igual um gambá, na própria cama.
Precisava do conselho de alguém sobre o que fazer com todos
aqueles sentimentos conflituosos acerca de Axel, e Saori era a minha única
amiga. Precisava contar a ela! Sabia que escolher continuar ao lado dele era
ir contra meus pais e sua carreira, mas também sabia que seria uma escolha
muito dolorida. Brigamos ontem e aquilo já foi ultrajante demais para o
meu coração. A força que nos unia era dilacerante, o magnetismo dele me
atraía e sua energia me chamava, ela me levava para seu lado em uma
corrente de ar invisível e nos aprisionava em um calabouço assustador; um
desses lugares ruins que, apenas por estar com ele, eu não sentia mais
medo. Com Axel eu não sentia temor, na verdade, posso dizer que
enfrentaria qualquer merda desse mundo. Era bizarro pensar isso.
Meu estômago esfriou com todos esses pensamentos, eu me
julgava, de certa forma, por gostar tanto dele assim. Deviam ser os anos de
uma vida aprisionada falando mais alto. Pisquei os olhos meio atônita;
parecia que as paredes iam me fechar aqui e agora. Foquei em seu corpo e
passei as mãos mil vezes no jeans da minha calça, respirando fundo.
Tudo bem, tudo bem, tudo bem!
Rumei em direção a Axel, firme em minha decisão de me acalmar.
Gostar dele não significava mais que isso; uma tola paixonite jovem. Estava
tudo bem.
— Axel. — Toquei de leve seu corpo, para tentar acordá-lo. —
Axel, você precisa acordar e tomar um banho. Não pode dormir assim.
— Misha — a voz dele soava como a de um gato ronronando e um
anjo caído. — Eu acho que reconheceria a sua voz até na morte. — Ele
abriu os olhos sem nenhuma pressa, tomando um tempo para me focar. Suas
pupilas estavam dilatadas, seus lábios roxos e suas bochechas
avermelhadas. Suas linhas de expressão pareciam cansadas, mas o
sorrisinho sarcástico ainda estava ali. — Por que eu estou na morte, certo?
Você é meu anjo da guarda, Misha? Garotos como eu não recebem
recompensa do papai Noel, então, por que Deus olharia por mim? — Sua
cabeça se curvou para o lado, me inquirindo com aquelas íris verdes
escurecidas demais agora.
— Que porra você bebeu, hein? — perguntei, me aproximando
dele e puxando seu braço. — Vamos, levanta, vou te dar um banho.
— Um pouco disso, um pouco daquilo… — divagava, juntando o
corpo ao meu para se levantar; estava mais lento que nunca. — Talvez
purple, poppers… ah, clarooooo, álcool! — pontuou, levantando o
indicador.
— Quem diabos te deu poppers?
— Um cara aí. — Deu de ombros quando finalmente chegamos ao
banheiro. — Espera, espera! — Ele parou, meio abrupto. — Você vai me
ver sem roupa pela primeira vez!
— Eu realmente não estou pensando nisso agora.
— Mas… — Axel estava alongando todas as sílabas possíveis e
esquecendo de terminar as frases.
Revirei os olhos e coloquei as mãos nos quadris quando ele se
escorou na parede do pequeno cômodo, sozinho.
— Axel, por favor, tá? É só um banho. Eu nem vou olhar para as
suas partes.
— Quer dizer pro meu pau! — Sorriu de canto.
— Axel! — o repreendi. — Banho. Agora! — Apontei para a
banheira no final do ambiente.
— Se eu me trocar de costas, você ainda vai ver a minha bunda.
Ela é bonitinha, mas não! Você gritou e foi muito má comigo. — Ele fez um
beicinho fofo. — E tudo bem, eu errei em gritar com você. Essas merdas
ficam na nossa cabeça. Eu lembro de como me sentia angustiado, meio sem
razão, quando me lembrava das brigas em casa. — Começou a divagar,
sentando no pequeno banco ao lado da pia e tirando a roupa. — Ele gritava
tanto. Porra, era um inferno aquilo! Mas acho que preferia ele me batendo
do que gritando ou batendo na minha mãe. — O quê? Desatei meus braços.
Tive que conter meu nervosismo ao ouvir seu relato de violência doméstica
e infantil. — Ele chegava em casa tão alucinado. Misha — seus olhos me
buscaram. —, eu te destratei quando gritei com você e agora estou drogado,
mas você está aqui. Eu… eu fiz algo pra você hoje? — Axel nem esperou
pela minha resposta. — Você não devia ficar com um cara que grita em
brigas. Você merece o melhor, você é melhor que isso, e sei que vai arrumar
uma pessoa perfeita um dia desses. — Terminou de tirar a roupa e entrou na
banheira que já estava quase cheia. Logo me aproximei e fechei a torneira,
já que Axel estava mais perdido que nunca em seus pensamentos.
— Sabonete — ofereci o líquido para ele.
Sua mão se estendeu enquanto eu o derramava, mas seus olhos
perscrutavam meu rosto.
— Misha… seu nome soa bonito na minha cabeça, mas eu não
consigo ser bom falando. E quando eu vi que você era tipo uma garota
perfeitinha, tive certeza que esse seu lado só prejudicaria minhas chances
com você.
— Que bobagem, Axel. Eu não sou essa pessoa.
— É, você não é. Você é muito mais. Uma luz em meio a
escuridão, a esperança de algo novo que a gente nem espera. Um novo
começo. Você é meus sentimentos mais enclausurados, estranhos e
inimagináveis vindo à tona, Misha. Não sabe a porra do barulho que causa
em meus pensamentos.
Não conseguia dizer nada, apenas segui o focando. Era impossível
parar.
— Ai, meu Deus! — sussurrei, me inclinando depressa para tentar
arrumar todo o sabonete que caía pela banheira.
— Eu falei merda, né? Eu não sou bom falando como o Bryan ou
as pessoas que você devia ficar. Sei lá porque eu falei isso, eu só… —
Sacudindo os fios, ele parecia perdido como uma criança indefesa.
— Você não falou bobagem. Eu só tô arrumando o sabonete. —
Sorri para ele, chamando seu olhar para o tanto de líquido que tinha caído.
Gargalhamos juntos ao notar a bagunça que eu tinha feito. Era divertido e
até fácil estar apenas com o Axel; sem outras pessoas e só os nossos
problemas tolos de casal. — Tem que parar de se inferiorizar tanto por não
ter tantas palavras no vocabulário. Isso você pode aprender, caso queira.
— Misha?
— Hm — respondi, ainda apressada tentando arrumar aquela
bagunça.
É melhor só deixar a água levar mesmo…
— Olha pra mim.
O fitei, espantada com a dose de realidade que a sua voz carregava.
— Diga?
— Você é boa. Realmente boa. Uma língua afiada que… por Deus!
— Joguei a minha cabeça para trás, gargalhando. Quando voltei a focá-lo,
seu rosto estava próximo de mim. Minhas sobrancelhas se elevaram no
mesmo instante que meu estômago pareceu virar um borboletário. — Seu
cheiro mora na minha cabeça — Axel se ajoelhou na banheira e se inclinou
para ficar ainda mais próximo de meu rosto, pegando um cacho, pois meu
cabelo estava natural, e o guardou atrás de minha orelha. Tudo aquilo, tudo
nele, despertava uma corrente elétrica da ponta do meu pé até a minha nuca.
— Seu cabelo mudando sempre mora na minha cabeça, seu corpo — ele me
perscrutou sem pudor; me senti nua, mas não intimidada. — mora na porra
da minha cabeça. Caralho, Misha, você é gostosa demais pra sanidade do
meu pau! — Suas sobrancelhas unidas e seus olhos vidrados no meu corpo
me esquentavam ainda mais.
— Você está bêbado. — Sorri, tentando descontrair aquele
momento todo. — Vamos pra cama. Vai ficar resfriado se ficar mais tempo
aí. — Estendi minha mão para que ele se levantasse, alcancei seu roupão,
ajudei-o a vestir um conjunto de moletom cinza e retornamos para a cama.
O deixei se agasalhando nas cobertas e voltei para apagar as luzes
e deixar meu celular em sua mesa de estudos, junto com a minha lente de
contato; que por sinal, já era. No dia seguinte, precisaria que Saori levasse
as reservas que ficam em sua casa, senão, estaria ferrada.
— Não é porque tô bêbado que menti. — Axel se virou em minha
direção, seu corpo todo coberto pelo gigante e fofo edredom branco. Me
enfiei nas cobertas junto dele, minha blusinha de poliéster tinha alças finas,
ou seja, não me ajudavam em nada com aquele frio glacial em que o quarto
se encontrava. — Gosto mesmo de você. — Se aproximou mais do meu
corpo. — Não vamos mais brigar, por favor. Vamos ser sinceros, sem
magoar um ao outro, hm?!
O analisei, seus olhinhos eram tão doces, seu rosto parecia
angelical naquele momento e sua boca, um perigo de tão chamativa.
— Uhum — sussurrei, perdida em meu desejo por ele.
E julgava que Axel soubesse, pois aproximou ainda mais o corpo
do meu, passando a mão pela minha barriga e elevando o corpo para me
olhar de cima.
— Posso te beijar?
— Você está bêbado. — Acho que meu argumento era mais para
mim mesma.
— Eu juro que não vou tentar transar com você. Pode me matar se
eu fizer isso.
— Você sabe que eu iria — o desafiei, entornando a cabeça.
— Porra, como eu sei! E eu adoro isso em você — sussurrou, rente
ao meu rosto, e então, selou nossos lábios. Logo, Axel me pediu passagem e
eu permiti. Sua língua me buscava, derretendo todo e qualquer pensamento
racional que eu tivesse. Em uma sincronia perfeita, demonstrando todo seu
interesse em mim, ele movia a boca. Sua mão foi para a minha nuca, onde
ele puxou a minha cabeça para o seu encontro, intensificando ainda mais o
nosso beijo. Axel me reivindicava e eu me permitia ser sua, eu desejava
aquilo. Gemi, excitada, e ele engoliu, gemendo de volta e soltando meu
cabelo. Sua mão foi para meu queixo e ele me distanciou devagar, puxando
meus lábios ao nos separar. — Eu podia te beijar por mil anos. — Sua
respiração era fraca, corria pelo meu rosto.
— Isso foi… — Tomei o ar, movimentando o peito, ainda imersa
no frenesi.
Axel se distanciou de mim, admirando meu movimento com um
sorrisinho de canto.
— Você está muito excitada, não é? — alfinetou.
Franzi as sobrancelhas e o foquei, incrédula com suas palavras. O
corpo dele ainda estava pairando sobre o meu, mesmo distante, então, dei
um empurrão leve em seu ombro.
— Como você é chato, Axel! — impliquei, rindo.
Ele gargalhou. Seu cabelo molhado estava todo atrás da orelha, seu
rosto já era limpo e todo aquele compilado de imagens que minhas íris
traduziam me deixava feliz. Axel rindo, relaxado. Eu gostava de como
éramos juntos e a sós.
— Seus seios estão arrepiados, o que posso fazer? — Engoliu a
risada, se inclinado para acomodar a cabeça em meu braço. — Você devia
sempre dormir aqui — enquanto ele sugeria, me virou com pressa e me
abraçou por trás, deixando-nos de conchinha; sendo eu a de dentro.
— Ai! — grunhi pela virada repentina. — Você é muito apressado!
— Eu sempre peço para te beijar, acho que sou muito tranquilo.
— Você faz o mínimo e quer aplausos? — falei, tentando soar
meio grossa.
Axel apenas gargalhou.
— Acha que pode dormir aqui amanhã também? — Sua mão, que
me circundava, começou a fazer um carinho gostoso na minha barriga.
— Amanhã já vai ser a maior trabalheira para explicar pros meus
pais onde eu dormi, imagina se eu passar dois dias fora. Não quero nem
imaginar!
— Fala que tava com a Saori. Os pais dela não te acobertam?
— Jeff não gosta muito deles — falei mais baixo, meio
incomodada de relatar aquilo; primeiro, porque nunca falei pra ninguém,
segundo, porque aquilo realmente me chateava. Poxa, Saori era a única
amiga de infância que eu tinha e, por mais que meus pais ainda a deixassem
conviver comigo, Jeff sempre falava mal dela pelas costas. E ela nunca o
destratou, pelo contrário, o respeitava e admirava demais!
— Seu pai é meio cuzão, não é?
— É… — Soltei o ar, murchando. Acho que nunca falei algo
assim do meu pai.
— Anthony é meio bonzinho, pelo menos.
— Meio. Mas aceita coisas ruins demais — comentei, já me
julgando em mil por cento.
— Relacionamentozinho… como se fala?
— Conturbado.
— É, isso aí. Acha que tem jeito?
— Nhem. Provavelmente não.
— Não vamos ser como nossos pais, não é, Misha? Vamos ser
melhores, vamos ser bons, tá? Eu te prometo isso. — Ele se inclinou,
pairando sobre mim para me focar, e depois, beijou o topo da minha cabeça.
— Sim — sussurrei quando ele voltou para o seu lugar.
Logo, Axel me abraçou mais forte. Não podia vê-lo, mas sei que
sorria. Sua mão se enfiou pela minha blusa e ele segurou meu seio; não era
de forma erótica, era muito mais. Como uma conexão. Ali, estávamos
ligados de uma forma única, íntima e nossa.
Meu coração bateu descompassado e meu corpo todo se arrepiou.
Ardia em meu peito aquele sentimento tão genuíno e verdadeiro.
Eu era dele.
E, caralho, puta que pariu, porra, era como pular de um penhasco,
mas ser abraçada por uma caminha fofa feita de novelos de lã!
— Obrigado por hoje, mentirosinha — Axel sussurrou tão baixo e
depois de tanto tempo, que jurei ser um sonho.
E se fosse Morfeu me dando "olá" com aquele sonho, eu diria que
ele podia entrar e transformar toda a minha vida real naquela alucinação.
 
 
23

A luz do sol entrava pela janela e a cortina branca, quase


transparente, atrapalhou meu sono. Bocejei, remexendo-me na cama,
notando meu braço adormecido; ainda estava com o corpo amarrado ao de
Misha. Acho que posso me acostumar com isso. Então, as lembranças da
noite passada voltaram tão rápido como uma reviravolta esquisita de um
jogo no último tempo.
As drogas, o cara insultando Misha, o soco que dei nele, Saori se
aproximando para me ajudar. Tudo turvo. Gritos. Tempo infinito.
E finalmente, ela.
Como um anjo, dividindo o bem e o mal, lá surgiu ela.
Misha.
O banho. Nossa conversa. Dormimos juntos com uma
aproximação ainda maior.
Inspirei o ar depressa. Misha e eu tivemos algo íntimo demais na
noite anterior, era possível que ela se irritasse com a minha ação ou se
afastasse, porque percebeu que foi algo de momento. Mas… eu nunca me
senti tão bem em um lugar em toda a minha vida, nem mesmo na quadra.
Seu corpo se remexeu ao meu lado e grunhiu.
— Há quanto tempo está acordado? — Ela se soltou por completo
de mim e sentou-se. — Nossa, que nojo. Preciso escovar os dentes — disse,
já tentando se levantar.
— Espera. — Segurei em sua cintura, a prendendo na cama.
— Axel, para! Isso é nojento — grunhiu, manhosa.
— Preciso te falar onde tem uma escova — argumentei.
— Ok. — Ela virou para mim. — Fala.
— Estamos bem?
— Isso não é dizer onde tem uma escova.
— Quero saber se ficou porque quis, se eu fui invasivo ou se, de
alguma forma, você se incomoda de ter ficado.
— Me diz você. O que sentiu?
— Foi… diferente. Único. Nunca me senti assim… cuidado.
— Eu acho que me senti segura. Resguardada.
— E isso significa…? — Olhei de canto de olho, tentando
compreender melhor o significado da palavra em si.
— Bem… — Ela sorriu. — Significa que eu me senti muito bem,
como que guardada em um coração adornado por flores, mesmo sendo um
ser pequenino, tal como a sua tatuagem.
Meu sorriso se alargou de orelha a orelha, notando a comparação
que ela tinha feito.
— A escova fica na segunda gaveta embaixo da pia. — Indiquei o
banheiro com a cabeça, ainda sorrindo sem parar.
Acho que podia me acostumar com isso, mas e se não déssemos
certo? Nunca tive um coração partido e, por mais animado que eu estivesse,
ainda sabia que enfrentaríamos muitas coisas se ficássemos mesmo juntos.
Talvez ela não quisesse, talvez fosse difícil demais. E, talvez… a gente não
conseguisse.
24

Ter que voltar para casa assim, em uma manhã após dormir fora
sem avisar, não era a coisa mais vantajosa do mundo. Porém, já havia me
ocorrido e quem me ajudava nessas situações era meu pai Anthony, mas,
dessa vez, ele sequer me respondia. Com certeza, devia estar tão bravo
comigo quanto Jeff.
Abri a porta de casa e um silêncio assustador me tomou, meu
estômago embrulhou e a bile subiu. Se Jeff não estivesse em casa, ou pior,
se estivesse, ele não podia simplesmente fazer algo, certo? Ele só… ia
brigar e gritar e… bom, discussões são exaustivas, mas tudo bem, somos
família.
Dando alguns passos calmos, terminei de subir as escadas e entrei
direto no meu quarto, mas a porta aberta estampava meu futuro evidente.
Meus dois pais estavam lá, Anthony sentado na cama e Jeff, na
cadeira da escrivaninha.
— Pode entrar, Misha. Aqui ainda é a sua casa. Ou devia ser — o
último falou, com a voz enevoando o ambiente.
— Desculpa, pai. — Rumei em direção ao quarto, fechando a porta
atrás de mim. Nunca gostei que meu irmãozinho visse o que rolava em
nossas discussões. — Sei que devia ter avisado que fui dormir na casa da
Saori, mas é que foi de última hora…
— Mentiras, mentiras e mais mentiras — Jeff disse, negando com
a cabeça, ainda sentado. Olhei para Anthony, procurando por algum refúgio,
mas ele apenas negou levemente e abaixou a cabeça. — Sabe, Misha, acho
que você pensa que somos tolos, ingênuos, que não sabemos nada que
acontece na cidade. Você foi a fraternidade do meu time e, provavelmente,
dormiu lá, já que não saiu com Saori. Se bem me lembro, você passou a
última noite do baile com um menino também. Está dando pra cidade
inteira ou mentiu em ir pro baile? — Meu queixo quase foi ao chão, mas me
contive, estava acostumada com aquilo. — São tantos anos de cuidado pra
você jogar tudo fora por um idiota do time. Você sabe qual o futuro deles?
Ele deve estar te iludindo com essa falsa impressão de conforto e
estabilidade que o novo dinheiro traz, não é? Mas deixe eu te contar sobre
como as coisas podem ser na realidade. Vocês se juntam, mudam para New
York, alugam um bom apartamento, têm filhos, você vive em função de
trabalhar como médica, ser mãe e ir ver os jogos do seu namorado. Sim,
namorado, porque não terá coragem nem de se casar com ele; e,
convenhamos que se o fizesse, seria da forma mais leviana possível. E
então, você vai ter todas essas obrigações e vai começar a ficar exausta. —
Lágrimas começaram a escorrer de meus olhos, mesmo que eu não movesse
meu corpo em nenhum centímetro. — Sabe o que vai acontecer? O trabalho
vai começar a te cobrar pela sua falta de atenção, os tabloides vão comentar
sobre como você não se arruma ou se dedica a sequer ir nos jogos e seus
filhos vão falar sobre como você os trocou pelo trabalho, bom, mas essa
parte você já sabe. Teve uma mãe igual. — Jeff se pôs de pé, aproximando-
se de mim. — Se quer repetir os mesmos erros que ela, devia ter nos dito,
assim não teríamos gastado nosso tempo com você — sussurrou perto de
mim. — Você teve tudo, sempre teve, por que não pode fazer uma única
coisa que pedimos? Era só manter o legado da minha família. Parece que
não sabe o quanto lutamos para vocês terem as possibilidades que têm.
Porque na hora de romantizar a pobreza todos estarão ao seu lado,
aplaudindo, incentivando que você largue tudo que sempre teve, sua
família, as pessoas que estiveram sempre ao seu lado, para ir atrás de um
casinho qualquer que vai te trair com metade da cidade. E você tentará ser
mãe, trabalhadora e, acima de tudo, perfeita para as câmeras, mas nada será
o suficiente. Nada nunca é pra esses caras. Eu fui um deles, Misha, não
esqueça disso. Eu vi o horror que é viver em frente a tudo televisionado, o
amor de um lado e o ódio do outro. Ninguém estará ali de verdade para te
ajudar. A vida que levamos aqui é leve, sem tributos altos como aqueles.
Você pode se formar, trabalhar aqui por perto, ter um bom marido. É
simples, é o certo. Tudo depende de você e de suas boas ações, porque eu e
Anthony lutamos pra ter você e James ao nosso lado, não para nossos filhos
serem jogados a uma cova de leões desta forma.
— E você acha que isso não é tão brutal quanto? Me casar por
conveniência? Eu não sou um tributo de troca!
— Não é um tributo, mas foi um peso em nossas vidas desde
sempre. Um que aceitamos e cuidamos, quando sua mãe não quis, quando
precisávamos lutar pela nossa própria felicidade frente à minha família
conservadora, quando o luto do seu pai com a perda dos avós o destruiu e
logo em seguida a sua mãe te trocou pelo trabalho dela. Acha que era fácil
para nós dois simplesmente fugirmos? Óbvio. Mas não foi o que fizemos.
Por você, para que tivesse uma boa vida, ficamos. Te demos tudo do bom e
do melhor e você reage assim. — Seu escrutínio de repulsa foi severo por
todo meu corpo, me fazendo encolher. — Não estamos pedindo muito,
apenas que escolha um homem, um bom, um que goste até, e case-se com
ele. Tudo que sempre foi meu, será seu, e tudo que for deste será seu
também. Não estamos mais no século passado, vocês mulheres têm direitos,
tudo estará em seu nome. Pode parar de envergonhar a nossa família sendo
uma vadia que dorme todo fim de semana com um e escolher algum idiota
que aceite saciar você ou suas necessidades, basta que esse idiota seja filho
de algum dos meus amigos. É só isso que te pedimos, Misha, apenas isso,
filha. — Agora, seus olhos estavam baixos, enquanto ele se aproximava
mais de mim. — E, se você não fizer isso, vou precisar tomar medidas mais
drásticas.
— Do que está falando? — Soei baixinho.
— Grades não seriam boas a vista, mas sempre existem outras
formas de prender uma pessoa que envergonha a todos. — Ele colou a boca
no meu ouvido e sussurrou, áspero: — Eu sempre posso mandar você para
bem longe, já que tem esse ar todo motivacional de estudante. As pessoas
acreditariam, certo? — Então, se afastou por completo de mim.
— Montana nunca permitirá que faça algo assim. E existem leis.
Isso é… é…
— Sem dinheiro, sem lei. E sobre a sua mãe… — Ele riu baixo em
escárnio. — Acho que nem precisamos argumentar. — Saiu pela porta sem
sequer olhar para trás.
Todas as suas palavras arrancaram as boas raízes que haviam
crescido em meu peito na noite anterior. Agora, eu me sentia como uma
folha seca, pronta para ser varrida para o lixo.
— Não ligue para a forma dura que ele fala, querida, venha cá. —
Anthony bateu na cama para que eu me aproximasse e assim o fiz, logo me
abraçando a ele. — Você sabe que ele não faz isso por mal. É só a realidade,
querida, nós lutamos por você, queremos seu bem, sua segurança. E você só
estará segura de verdade aqui. Você entende isso, certo?
— Acho que… sim — disse, cabisbaixa, me encolhendo junto a
ele. — Mas, pai, isso não é certo. — Elevei o rosto para o focar. — Eu não
deveria me unir a alguém por obrigação, só porque os pais dele são pessoas
alucinadas. Isso o torna igual a eles.
— Misha! — Anthony me repreendeu de cara fechada. — Nunca
mais diga isso. Jeff é ciente de todos os seus atos e, se você não entende que
essa é a sua melhor opção, talvez deva passar um tempo fora, aprendendo a
dar valor a tudo que tem. — Nunca vi meu pai bravo daquela forma, se
levantando sem nenhum cuidado comigo e bravo ao ponto de nem me olhar.
— Eu conversei com você e aquele moleque — começou, de costas para
mim, diante da porta encostada. —, mas, mesmo assim, vocês insistem
nisso. — Ele virou para mim; a insatisfação escorria de sua face. — Não
seja um desgosto para nós. Dependemos de você muito mais do que
imagina — soltou, já me deixando sozinha no quarto.
Grunhi, me sentindo a pior pessoa do mundo, e me encolhi na
cama, já chorando em um silêncio ensurdecedor até ele se transformar em
um soluço profundo.
Eu sou uma péssima filha.
Eu sou uma péssima filha.
Eu sou uma péssima filha.
O amargor arranhava minha língua, me levando para uma profunda
e densa névoa, tomando a minha mente.
Eu poderia ser melhor, mais solícita, devia largar esses encontros
tolos com Axel e focar no que realmente era importante. Não havia
escapatória e seria muito ridículo da minha parte tentar fugir das pessoas
que sempre estiveram comigo e que apenas me desejavam o bem.
Eu vou encontrar um bom cara para casar. Eu vou fazer isso. Eu
juro que vou!
 
25

Os dias que se seguiram passaram tão rápido… Mesmo ocupada


com os trabalhos ou com a minha mãe, ainda existia uma pequena parte de
mim remoendo as palavras dos meus pais. Para metade do meu ser, parecia
impossível voltar à vida, murcha como nunca, e a outra parte lutava para
pensar em alguém bom. Alguém que me desse um mínimo de atenção…
mas, sendo sincera, será que atenção era realmente importante?
Folheava as apostilas de biologia avançada já sem ânimo, sentada
de frente para a minha escrivaninha. Estudar parecia ter perdido a razão
quando eu tinha a certeza de que era uma filha desagradável; isso corroía
meu peito. Mesmo assim, ainda não desejava deixar meu curso, mas não me
motivava a continuar dessa forma. Como pode, sentimentos tão diferentes
amargurarem meu peito? Era ridículo, um paradoxo sem previsão de fim.
Estou só.
Escolher alguém, me casar, viver aqui…
E se ninguém me quiser? E se odiarem isso tudo tanto quanto eu?
E se amarem e desejarem que nossa vida seja boa e eu for uma esposa
negligente?
E se eu for como a minha mãe? Ou pior, sem empatia como a
minha família?
E se…
Meus pensamentos tortuosos foram parados quando escutei um
dos meus jarros de flores da janela estraçalhar no chão e girei meu tronco
na cadeira, dando de cara com o meu novo problema.
— Porra! — Axel terminava de adentrar o meu quarto enquanto eu
assistia a cena apenas com o pescoço virado para o local. — Desculpa,
mentirosinha. Foi mal mesmo. Seu pai vai ver essa merda, não é? Ferrei
tudo aí. — Falava mais embolado que sempre, coçando a nuca e olhando
para o estrago que acabara de fazer.
Uma parte minha se sentiu aquecida por vê-lo ali. Axel tinha os
olhos baixos, tenebrosos pelo mal que fizera, mas a outra parte sabia que ele
tinha acabado de fazer uma merda gigantesca e era questão de tempo até
meus pais descobrirem.
Ignorei aqueles imensos sentimentos conflitantes e corri em
direção a ele, o abraçando o mais forte que conseguia. Meu íntimo urgia por
sua falta.
Me leva daqui, por favor, por um minuto?
Nem em sete vidas eu acreditaria que realmente desejava aquilo.
Porra, que merda eu tinha na cabeça? Por que estava tão confusa assim?
— Adorei ser abraçado por você dessa forma, mentirosinha, mas
acho que está me apertando e chorando. Quer falar sobre isso?
— Não! — Neguei mil vezes com a cabeça.
— Quer sair daqui?
— Aham.
— Ok. Vou te levar em um lugar maneiro, tá? — Puxando-me
pelos ombros, ele me focou. — Confia em mim?
— Confio — sussurrei.
Então, ele me levou dali, descendo pela janela. Pensei em arrumar
as flores, mas quem se importa? Meus próprios pais já haviam quebrado
meu coração mesmo.

Caminhamos até o carro que Axel tinha deixado a umas duas


esquinas da minha casa e logo estávamos na praia.
— O pôr do sol no pier de Stacy Scarllat é muito bonito — soltei,
me arrumando no carro estacionado na parte alta da beira do mar.
— Você vem sempre aqui?
— Que cantada tosca, Axel. — Ri, empurrando de leve seu braço.
— Ou, eu tô falando pelas fotos! — Ele sorriu, fingindo empurrar
meus pés, que eu já colocava em cima de suas pernas.
— É bem difícil, na verdade, e eu nem sei o porquê. — Continuei
admirando os raios solares em uma linda tonalidade de laranja e rosê.
Eu amo esse lugar.
— Me admira você não vir tanto aqui — disse, muito tempo
depois. — Pensa em viver aqui pra sempre?
— Com certeza.
— Nem pensou para responder. — Notou.
Virei para ele, fitando-o.
— Por que a pergunta?
— Eu sou um atleta, minha meta é entrar na NBA, e você, uma
mediciner de família rica e fundadora da cidade. — Todas as suas palavras
saíam sem ele me olhar, até as últimas. — Não consigo não pensar em você
a longo prazo. O que temos vai até o fim da faculdade, pelo menos? Jeff
permitiria isso?
— Não mesmo. — Neguei com a cabeça de leve e recolhi meus
pés. — Ele surtou porque estive na festa e falou que eu preciso tomar uma
decisão. Preciso arrumar um bom marido. — O foquei, pesarosa. — Um
que seja filho dos amigos dele.
— Claro. — Axel voltou a mirar no horizonte. — Isso é… Você
não vai fazer algo diferente, não é mesmo?
— Não. Não vou. — Funguei. Sem nem perceber, já estava
debulhando em lágrimas.
— Nem por mim?
Chorei sem conseguir dizer mais nenhuma palavra ou reagir de
outra forma, e o abracei, amarrando nossos corpos tal como desejava
amarrar nossas almas para vagarem juntas pela eternidade do tártaro.
Enfim, Axel me abraçou de volta.
Como doía!
Doía saber que a pessoa que te quer bem e te reconstrói terá que
ser deixada para trás, porque o amor da sua existência, a sua família,
aqueles que te criaram e que você se devotou a vida toda, não apoiam isso.
Eu não sabia como ia passar o resto da minha vida, mas, com
certeza, não seria totalmente feliz, pelo simples fato de sequer ter tentado
progredir com Axel.
Pensar em tudo isso me deixou ainda mais amargurada.
Não era o que queria.
— Axel — me afastei de seu corpo, segurando em seus ombros, e
o foquei. —, eu quero que a gente fique juntos, mesmo que escondidos ou
sem nenhuma garantia de futuro. Eu sei que é ridículo, impensável e sem
fundamento, mas… eu quero você.
— Você me quer?
— Sim. Sim, sim, óbvio. Eu… eu te amo. Eu acho que te amo
tanto que nem sei mensurar direito, porque apenas sinto este aperto no pé da
barriga, esse nó na garganta e essa falta descomunal de você.
— Eu não sei que porra significa descomunal, mas que você me
quer e sente a minha falta eu entendi, eu só preciso te beijar agora. — Ele se
aproximou de mim, segurando meu queixo, e sussurrou: — Posso?
— Vocês sempre pode, Axel.
 
 
 
26

Existe um grande problema que a Misha deixou de fora ontem. Eu


e ela ainda somos quem somos; querermos um ao outro não muda isso. Eu
preciso focar no basquete e a família dela nunca apoiaria o que temos.
Como se vive bem com tanta coisa assim?
Puxava meu skate em uma mão, firmando minha mochila
esportiva do outro lado, pronto para descer as escadas da fraternidade e
remar um pouco antes de ir para as aulas.
O treino vai limpar a minha cabeça. Ou não, já que o pai dela é o
treinador.
Enquanto descia as escadas, Hopi se aproximou de mim.
— Ouvi dizer que teremos uma nova reunião como aquela na
próxima semana. Quer ir? — Ele estava ao meu lado, segurando um balde
de pipoca. Franzi o cenho para aquela cena, mas não disse nada. — Vai ser
um pouco mais tarde. Talvez depois tenha um luau. Ou a reunião é em um
luau? — divagou. — Bom, não lembro. — Deu de ombros. — Mas, enfim
— me focou. —, você vai ou não?
— É, pode ser.
— Preciso te contar do dia em que teve um luau desses e um cara
afundou o próprio carro. Tem vídeo e tudo, olha só. — Tirou o celular do
bolso, rindo, e me mostrou. — Às vezes, eles bebem muito, mas tem
policiais por perto. É seguro. Só que, sério, olha esse cara, ele… — Hopi
continuou a tagarelar, divertido.
Sorri, olhando em seu rosto.
É, pelo menos eu já fiz bons amigos.

— Axel. — Ouvi a voz suave de Emerson próximo de mim. Parei


de remar em frente às escadarias da faculdade e segurei meu skate na mão,
a esperando. Seu corpo era atlético e mais robusto, os ombros largos e os
cabelos loiros cheios de ondas quase pareciam voar. Depressa, ela me
alcançou. — Ei, tudo bem?
— Sim, claro. E com você?
— Estou bem, sim. Só queria te avisar que tudo bem a Misha
entrar pra equipe. Saori já a avisou, mas eu precisava perguntar, vocês têm
algo? Saori diz que não, porém não entendo porque pediria algo assim para
ela.
— É… — Cocei a nuca. — Não temos nada. Fora que a família
dela é uma das fundadoras. Eu os conheci em nome do meu pai.
— Claro, o Sr. Martinez deve conhecê-los. E sempre devemos
respeito às famílias fundadoras, certo? Você tem razão.
— Por que está me perguntando essas coisas? Você estava com
Tyler na festa.
— O quê? Quem te falou isso?
— Eu vi. Assim como todo mundo, Emerson. — Ri de seu jeito,
toda constrangida.
— Ok, é verdade. Antes, eu queria que me convidasse porque
precisava de uma chance com ele, mas não deu tão certo assim — ela
divagou, cabisbaixa. — Ele não gosta de mim. — Logo, forçou um sorriso.
— Mas tudo bem. — Respirou fundo, de cabeça levantada. — Eu tive a
minha chance e ele me deu uma resposta direta. Ninguém morre por um pé
na bunda.
— Sinto muito. É horrível ter o coração partido.
— Agora, posso pegar metade do campus sem pensar em macho.
— Emerson deu de ombros. — Bom, até mais ver, Axel.
— Espera. — Pedi, segurando seu ombro com leveza. — Você
veio aqui só para falar sobre a Misha?
— Todo mundo adora uma fofoca sobre as famílias fundadoras,
Axel. — Rindo, ela bateu em minha mão que segurava seu ombro e se foi.
Acompanhei seu caminhar e avistei Misha sentada no gramado.
Ela parecia concentrada, acho que meditando. Misha podia parecer uma
patricinha, mas tinha essa coisa meio hipster; incensos, meditação…
Dei alguns passos, pronto para falar com ela, mas parei. Ela era tão
perfeitinha, intocável e tinha tantas coisas que alguém como eu não poderia
encarar. Misha não confiou em mim para contar sobre suas marcas roxas,
mas me beijar sim. E se eu fosse apenas uma diversão para ela?
Pensei em ir falar com ela, mas preferi deixar tudo às claras, por
isso, fui procurar Jeff.
A sala do treinador Daughety era uma das primeiras. Adentrei a
faculdade apressado para chegar nela. Mal bati na porta e entrei.
— Ah, você. — Ele elevou a cabeça, mas logo voltou a escrever
algo em uma pilha de papéis em sua mesa. — Hopi já me convidou para o
tal luau e eu já disse que vocês têm meu apoio. Como sempre. Mas não é
porque sou um homem gay velho, de boa família, com carreira consolidada
e blá-blá-blá dessas merdas que vocês jovens tanto falam hoje em dia, que
eu vou nessas coisas. — Finalmente, me olhou. — Meu apoio está em ficar
aqui e viver a minha vida. Já pode ir. — Voltou a ajustar os papéis.
— Eu não vim falar sobre isso, treinador Daughety. — Encolhi um
pouco os ombros, meio abalado com o tom de voz dele. É, por mais que eu
não quisesse admitir, ele era meio assustador e severo demais igual todo
mundo dizia.
— Sobre o que veio falar, Martinez? — Ele terminou a
organização dos papéis e guardou tudo em uma gaveta, estendendo a mão
para que eu me sentasse na cadeira.
— Bom, de certa forma, eu também queria perguntar sobre isso. —
Nem conseguia olhá-lo.
— A festa ou o que vocês chamam de representatividade hoje em
dia?
— Não sei ao certo. — Porra, essas palavras difíceis que todo
mundo usa… sei lá como usar isso. Minha cabeça já estava girando e
girando de nervoso. — O Sr. sabe sobre meu foco.
— NBA.
— Isso.
— Com toda a luta de sua família, é o melhor mesmo. O seu foco e
determinação precisam estar alinhados desde já.
— É, eu sei, e estou, mas… — Me aproximei da mesa, largando o
encosto da cadeira e me sentando mais na beirada. — Eu não acho que
jogadores como nós são bem aceitos ou… Bom, a verdade é que eu queria
saber qual é a sua visão sobre isso. Para o que eu devo me preparar? Porque
aqui, na faculdade, os caras me ensinam sobre as palavras que não sei,
compreendo as nomeações nas palestras e me entendo melhor como pessoa,
mas e fora daqui? Isso tudo me parece, de certa forma, um vidro prestes a
quebrar.
— E você está certo. Lá fora, em New York, muitas coisas já
avançaram, mas é inevitável que sofra. Isso, caso você escolha expor esse
seu lado para o público.
— O que quer dizer?
— Se não quiser, nunca será obrigado a falar sobre a sua expressão
de gênero ou algo do tipo. Você fala se quiser. Talvez seja até melhor não
falar sobre… — Ele deixou no ar.
— Mas eu não quero ser assim. Quero lutar por mim, por quem
sou e pelo que desejo.
— A gana que vocês jovens têm para nossas lutas políticas é
admirável, mas não paga as contas no fim do mês. Quando perder
publicidades ou estiver andando pela rua e ouvir desaforos apenas por ser
como sempre foi, talvez, só talvez, você ache melhor não ter começado a
falar sobre isso.
Neguei com a cabeça, revoltado com suas palavras. Eu nem sabia
o que argumentar direito, mas eu sabia que não concordava com aquilo.
— Eu discordo. E mais, eu estou saindo com a sua filha e não
importa que ache o nosso relacionamento tolo, vamos ficar juntos custe o
que custar. Respeito e admiro muito o Sr. em quadra, mas quando diz
respeito a falar por nós e ser um bom pai, aí não tem como — cuspi as
palavras, tomado pela revolta que pinicava minhas veias, e saí da sala com
os olhos claros dele fervendo de raiva para mim.
Eu fiz merda.
Droga, eu fiz muita merda!

As palavras grosseiras de Jeff atormentavam a minha mente


enquanto seguia os exercícios básicos do pré-treino – alongamentos e
corrida em volta da quadra. Qual será a reação de Misha ao saber que contei
sobre nós para Jeff? E o que ele fará com a gente?
Tyler, Hopi e outros até conversavam entre si, mas eu seguia preso
em meus pensamentos. Aquelas merdas não saiam da minha cabeça.
— Rapazes, aqui, por favor? — Um dos assistentes do treinador
caminhava à porta do vestiário, acenando para que o seguíssemos. Assim o
fizemos. — O Sr. Daughety teve um imprevisto e não poderá comparecer
ao treino hoje.
— O quê?! Como assim? — Diversos rapazes começaram com as
perguntas intermináveis.
Eu tô ferrado!
— Menos, rapazes, menos barulho! — exigiu. — As instruções
são para que voltem à fraternidade e descansem.
Mais barulho.
— Sr.? Sr.? — Tyler levantou a mão e se apressou para caminhar
em direção ao homem que já parecia bem entediado com tudo. — Mas
amanhã é a nossa primeira competição no semestre com times rivais. Tem
certeza que essa foi a única instrução que ele deu?
— Foi. Algo mais? Não?! Obrigado! — O homem não deu
nenhum espaço para Tyler ou qualquer um de nós falar algo, simplesmente
foi embora.
— Que merda — Tyler praguejou, voltando para junto de nós.
Respirando fundo, ele levantou a cabeça e nos focou. — Foi mal, galera,
acho que não temos opções.
E mais reclamações que nem podiam ser entendidas surgiram.
Me senti confuso. O time pagaria por uma merda que eu havia
cometido.
— Ei, cara, você tá bem? — Hopi tocou em meu ombro.
— É… acho que estou igual a todos — falei, entortando os lábios.
— Vamos aproveitar o luau. Dá tempo da gente ir à fraternidade
para trocar de roupa.
— Só não podemos ultrapassar os limites, ok? — Andrei soou
atrás de mim, rígido. Como sempre, era o certinho.
— A gente vai curtir na medida, cara! — Tyler o abraçou por trás,
empurrando-o mais para frente com o corpo, como uma brincadeira de
criança travessa.

Estávamos nos trocando no vestiário masculino e, enquanto estava


arrastando a toalha pelo cabelo para o secar, deslizava o dedo pela tela do
meu telefone.
Deveria ligar para meu pai?
Afinal, era outubro, logo a esposa do novo chefe da facção viria
para dar conta do que Misha havia feito ao falecido.
Por impulso, cliquei de uma vez para ligar.
Era melhor resolver isso logo. Misha deixou um rastro tenebroso; a
morte do cara foi em um país estrangeiro e seu corpo nem foi levado de
volta, apenas cremado aqui mesmo, e as cinzas foram jogadas em qualquer
lugar de merda por um de nossos capangas.
— Axel — meu pai falou num tom de conversa continuada. —,
ainda bem que sabe que já é outubro. Hinata está indo lhe visitar, ela tem a
atração principal do fim de semana antes do Halloween. Guarde o lugar do
DJ para sua convidada.
— Alejandro? — alguém distante dele o chamou.
— Preciso ir, filho — avisou, sem nem ao menos ouvir a minha
voz. — Esteja cedo no aeroporto, dizem que as meninas são exigentes.
Mulheres novas nesses ramos, você sabe, devem ser um bando de garotas
cheias de ego e nenhuma aptidão para o cargo. Nem entendo por que
Rafael as mandou, mas… enfim. — Bufou, estressado. — Mande beijos
para os meninos — disse por fim, desligando a chamada sem sequer esperar
por uma resposta.
E quanto à minha mãe, a porra da sua esposa, mãe dos seus
quatro filhos, hein, pai?!
Ter contado para o Jeff sobre Misha e eu foi ruim e não tinha volta,
mas as coisas sempre têm como piorar.
 
27

Ouvi a porta da casa ser aberta e fechada abruptamente, logo


depois, os passos firmes de Jeff escada acima, parecendo vir em direção ao
meu quarto. Afastei-me da mesa da escrivaninha, já me colocando de pé,
pronta para a bomba que viria; ou não, já que meu coração batia tão
descompassado que mal podia acompanhar, e não era por ter tido um pós-
treino intenso com as líderes de torcida.
— Quer dizer que seu novo namorado é o garoto com a pior
reputação familiar possível? — Jeff adentrou meu quarto com rapidez. Seu
rosto estava vermelho, deformado pela raiva, e suas roupas típicas de
trabalho estavam intactas. A contar pelo horário, creio que ele largou o
time; preocupante, já que amanhã teríamos um jogo importante. — Você
não cansa de envergonhar a minha família, não é mesmo? — Cuspiu as
palavras.
Inconsciente, meu corpo deu dois passos para trás.
— O que está acontecendo aqui? — Meu pai, Anthony, chegou um
segundo depois. — Por Deus, Jeff, que gritaria é essa? James está para
chegar!
Claro, desde que meu irmão pequeno não percebesse o caos que
era a nossa família, tudo estava bem.
— Sua filhinha estúpida está namorando o meu novo jogador! Já
não bastava envergonhar a minha família sem ir às reuniões ou bailes, agora
isso? Isso é demais, Anthony! Ela não é mais bem-vinda aqui — decretou.
Não consegui me conter, minhas lágrimas saíam em enxurrada. Era
como ter o corpo inteiro estraçalhado por serpentes nojentas em um campo
de ervas daninhas que pinicavam sem fim de dias.
Meu próprio pai partiu meu coração.
Corri para o banheiro, passando por Jeff e notando as pálpebras de
Anthony quase se deslocarem.
— Aonde você vai, querida? — ele perguntou, ainda chocado com
tudo.
— Pra casa da minha mãe! Vocês me deram esse sobrenome de
merda, mas ele nunca foi meu. Eu nunca fui parte disso! — Girei o
indicador pelo ambiente. — Eu não tenho nenhum tipo de assistência real
aqui…
— Não tem assistência? — Jeff riu com escárnio. — Quem te
vestiu, quem te alimenta e quem paga a sua faculdade caríssima?
— Não precisam mais. Eu já trabalho, darei um jeito! — Meu
Deus, que jeito eu daria para pagar uma faculdade de medicina? Mais e
mais lágrimas me escorriam, mais e mais meu coração se apertava.
— Você se acha independente ganhando o quê? Menos de mil
dólares? Aqui é a América, Misha, isso não te manterá nem por dois dias.
Você dá mais despesa que trinta crianças de colo!
— Meu Deus, chega! Chega! CHEGA! — gritei, histérica, como
nunca estive diante deles, pressionando meus dentes e unindo toda a força
existente em meu corpo para me manter no mesmo lugar e não arrancar fora
cada pedaço de minha pele. — Já chega disso! Chega de jogar tudo na
minha cara, chega de dizer que eu não sirvo para medicina ou para o ballet,
chega dessa merda! Você… — Apontei em sua direção, indo de encontro a
ele. — Você me limitou desde sempre. Toda a sua segurança para comigo
de nada era proveitosa para mim. Você só queria me manipular, essa é a
verdade, queria que eu não aprendesse a voar, porque assim serviria de
tributo à sua família, porque você não pode seguir as merdas tóxicas e
exigentes deles. Só me fala — me aproximei ainda mais. —, se você achou
que a sua vida valia a pena lutar para ser vivida, por que a minha não
valeria? Por que invalidar toda a minha existência, desejos e anseios? —
Anthony se aproximou de Jeff, segurando em seu braço, como que o
mantendo no lugar. — Vocês são os que mais sabem sobre lutar para viver a
própria vida, por que me destratam desse modo? — Deixei as lágrimas
escorrerem, e depois as sequei com as costas dos dedos.
— Filha… — Anthony seguia assustado, como se não
reconhecesse quem estava diante de seus olhos.
— Não, pai. Estou falando sério. Chega!
— Chega você! — Impôs a voz, pela primeira vez à minha vista.
— Acha que não tentei viver com a sua mãe? Eu tentei, Misha. Dias e dias
adentro. Passamos toda a sua infância em New York tentando ao máximo
permanecermos juntos, por você. Mas Montana não tem vocação para ser
mãe… é quem ela é. Isso não é um defeito, mas é um tributo que você, por
ser nascida dela, pagou e paga até hoje, pelo que vejo.
— Você não sabe nem metade das coisas! — Jeff passou por mim,
sentando em minha cama, e jurei tê-lo visto começar a chorar.
— Quando decidi voltar para Stacy Scarllat, passamos por todos os
dias isolados. Eu não tinha amigos, trabalho ou um lugar bom para nós dois.
Foi horrível, Misha, com certeza um dos piores momentos da minha vida.
Por sorte, eu conseguia te deixar com algumas empregadas da casa da
família do Jeff enquanto eles aceitavam que eu trabalhasse para ele. Eu era
só um garoto de vinte e um anos, negro, com uma faculdade incompleta e
uma filha de colo. Seu pai pagou o restante da minha faculdade, ele arcou
com as suas despesas, por se compadecer de nós — então, Anthony olhou
para o marido. — e por nos amar. Ele fez isso por nós! Porém, isso teve um
preço. Era o começo dos anos 2000 e, em uma família fundadora como os
Daughety, isso significava, com certeza, uma sentença certa: ser deserdado.
— E você não é só deserdado, você não existe mais no mundo
deles. E o mundo deles inclui toda a América. — Jeff soou atrás de mim.
Me virei por impulso; ele realmente chorava. — Todos sabiam que eu era
um garoto gay; meu pai se negava a ver, mas minha mãe me instruiu a me
casar que isso mudaria. Nunca mudou. Casar com Anthony foi a coisa mais
difícil que já fiz, fora que nem era algo legalizado. Nos unimos,
literalmente, à força. Usei meu cartão para comprar muita comida e
mudamos para meu apartamento na beira da praia. Tudo às pressas, tudo
escondido, tudo após uma briga ridícula… — Ele me focou. — Você não
entende como é passar todo tipo de necessidade, principalmente quando se
tem um bebê. — Fungou. — Sua mãe não recebia tão bem sendo uma
recém-formada e eu nem podia trabalhar. Devia ter ido pra NBA, tal como
Axel, mas eu preferi ficar com o meu amor. E é claro que somos gratos um
pelo outro, mas…
— Axel tem uma vida complexa, filha. — Anthony tocou meu
ombro, puxando-me para si. — Ele precisa da NBA mais que tudo, e você
seria um entrave na vida dele. Você é ótima aqui, e está tudo bem.
— Espera aí! — Neguei com a cabeça, meio zonza com tanta
informação, e respirei fundo, dando alguns passos para trás. — Como você
sabe tanto sobre ele?!
Meus pais se entreolharam, olhos esbugalhados e temor
transmitido no ar; isso envolvia algo que eu não devia saber sobre.
— Não sabemos.
— É, não sabemos.
Olhei para um e para o outro, claramente, tão mentirosos quanto
eu, e fiquei ainda mais puta.
— Que porra vocês estão escondendo de mim?!
— Nada!
— Anthony — me virei para ele, já em tom de súplica. —, por
favor, me diga! Por que me esconder algo assim? Por Deus, vocês não
confiam em mim para nada?
— Não é isso, filha. — Meu pai se aproximou de mim.
Sem pensar, me afastei. Os dois me deixaram à flor da pele hoje.
Pensei que eu não conseguiria sentir o calor humano de ninguém próximo
de mim naquele momento.
Cruzei os braços e esperei com os pés firmes no chão; suspeitei
que cairia a qualquer instante, pois minhas células pareciam agitadas.
— Bom, quando a sua mãe começou a consultar, ela atendia uma
certa amiga que tinha queixas graves sobre pequenas lesões domésticas e
sempre ia às consultas com um filho pequeno. Depois de algum tempo,
muitos anos, na verdade, a sua mãe foi contratada como médica particular
desta amiga, que a trouxe para cá nas férias. Por isso, ela começou a nos
visitar, o que ajudou a abrandar o coração dos pais do Jeff em relação ao
nosso casamento. Emma… Alejandro, melhor dizendo, a contratou como
médica particular da esposa. Já que Montana estava no início do trabalho,
esse emprego era muito mais rentável. Foi assim que a sua mãe conseguiu
voltar a ver você e Jeff conseguiu permissão da família para voltar a ter
convívio com eles. Ter uma mãe era muito mais do que apenas ser uma
criança criada por dois homens, significava que, pelo menos, você era de
alguém, caso, em algum momento, nos separássemos; essa foi a ideia dos
Daughety. O que, graças a Deus, nunca se concretizou.
A batida em meu peito era ritmada com uma descarga de emoções
pelas quais nunca passei. Nunca previ enfrentar o que me fazia mal, nunca
pensei que essas eram as verdades sobre a minha história e nunca imaginei
que minha mãe conseguiria viver tão bem longe de mim.
Mãe, você ao menos me amou em algum momento?
O gosto amargo de se sentir traída em um curto período de tempo
se fez presente em minha boca e eu me senti enojada no mesmo momento.
O chão pareceu um derrapante contínuo à imensidão do nada e eu não
conseguia mais arquivar em minha memória todas as situações ao meu
redor. Cheguei a sentir Anthony se aproximando, mas outros braços
musculosos me seguraram no colo.
Senti água.
Frio.
E, tempos depois, um sentimento de angústia e perda apertavam
meu corpo, sussurrando atrocidades negativas a mim.
Neguei com a cabeça mil vezes, mandando aqueles maus
presságios embora por rezas profundas pedindo milagres, quando ouvi meu
pai dizer algo como:
— Filha, filha, acorda! — Senti-o bater de leve em meu rosto e
espanar meu cabelo. — Fique com a gente, por favor!
Abri os olhos devagar. Jeff me segurava debaixo do meu chuveiro
e Anthony estava atrás, impedindo que a água chegasse em meus olhos.
— O que aconteceu? — perguntei meio zonza, colocando-me de
pé.
— Calma — Jeff pediu.
— Você desmaiou. Não comeu direito hoje, filha? — Anthony quis
saber.
Os flashs do dia voltaram com força total. Meu coração apertou e
eu lembrei tudo que tínhamos discutido.
Eu me lembrei do sofrimento deles.
Eu me lembrei da minha mãe.
— É…, eu…, eu não lembro ao certo.
— Ok, então. Eu vou levar ela pra cama e você traz algo pra ela
comer! — Jeff comandou, já manipulando meu corpo com suas mãos; o que
era fácil para ele, já que era muito mais alto que eu.
Rumamos para a cama onde ele me deixou e logo buscou uma
roupa nova para mim; moletons. Só então notei que estava com apenas as
peças de baixo, enquanto Jeff esperava eu me trocar de costas. Assim o fiz,
abraçando minhas roupas quentinhas e confortáveis. Por fim, sentei-me na
cama tentando desembaraçar meu cabelo, já que agora, por conta de ter
molhado, os cachos naturais voltaram.
— Aqui. Mingau com frutas e suco. Acho que isso vai fazer você
melhorar. — Anthony trouxe uma bandeja e a deixou sobre a escrivaninha.
Caminhei até lá, meio envergonhada, sem saber como reagir.
O que se faz depois de uma briga?
Não fala nada, não reage, não respira? Porque era meio assim que
eu estava me sentindo…
— Não precisa sair de casa — Jeff falou, do nada. — Mas ainda
vamos conversar melhor sobre isso. Outro dia — decretou, por fim.
Outro dia, ainda bem!
Podíamos resolver isso, certo? É, certo. Eu acho…
Ouvi os passos de Jeff e, quando olhei para o lado, ele já havia
saído do cômodo.
— Fique calma, ok?! — Anthony pediu, ainda distante. — Isso vai
passar. Liguei para Axel vir aqui. — Larguei a colher de comida que levava
a boca e o foquei nervosa. — Me resolvo com Jeff, mas você e o garoto
precisam conversar — declarou sem esperar uma resposta minha e saiu do
quarto.
Eu tô ferrada.
E se Jeff se estressar ainda mais comigo por conta disso? E se
piorar tudo?
E minha mãe, por que ela escondeu isso de mim?
A confusão me abraçou como uma irmã mais velha, chata e
rancorosa, mas eu era a irmã mais velha… Será que eu estava agindo
assim?
Entre diversos pensamentos conflitantes, ouvi uma conversa
peculiar ocorrendo. Axel chegou, trazendo James do curso de música, e Jeff
pareceu ceder a entrada do garoto pela sua boa vontade para trazer o menor.
Segundos depois, vestido em um largo moletom preto e touca de
tricô, Axel parou na porta do meu quarto e deu três batidinhas.
— Posso entrar?
— Claro — disse, limpando o canto da boca.
Ele adentrou meu quarto meio sem jeito, como um forasteiro em
uma falsa sensação de liberdade.
— Te devo desculpas.
— Tanto faz. O que tinha que rolar, rolou. — Dei de ombros. —
Senta! — Apontei pra cama. — Como veio parar aqui? — Quis saber,
levando mais uma colherada para a boca.
— Você sabe, é o meu charme. — Ele espanou o ombro. — Sabe,
quando foi bater as fotos e tals, hoje mesmo, por que não foi nos fotografar
no treino pré-jogo?
— Hm… — Terminei de engolir. — Eu sempre tiro muitas fotos
de vocês, então, como tinha o treino das líderes de torcida antes, acertaram
de usar umas fotos antigas para representar.
— Representações não são boas. — Ele fez uma careta.
— É, não são. Eu devia ter ido lá bater uma foto da cara de bunda
de vocês.
Gargalhamos alto.
Eu me senti divertida. De verdade. De coração.
Era bizarro que, em alguns segundos de conversa, Axel me
despertava um bom lado meu; um lado mais aberto.
Não era como se nada tivesse acontecido, só parecia um pouco
menos assustador.
— Desculpa — tomando ar, ele pediu. — Foi eu que falei sobre
nós pro Jeff. Meio que explodi, nem pensei direito. Hoje eu já esgotei a
minha possibilidade de fazer merda durante o resto do ano. — Coçou a
nuca, meio sem jeito. — Anthony me mandou mensagem com o endereço
da escola de música do seu irmão e me pediu para buscar ele, porque vocês
não estavam em um bom momento familiar. Nem sei como ele arrumou
meu número, mas é claro que eu já imaginei o que tinha acontecido. —
Franziu os lábios.
— Imaginei algo assim. É, eu e meus pais brigamos. — Mordi um
morango. — Piorou, porque depois de tanta coisa, eu desmaiei…
— Você sempre fica mal quando brigam.
— É, mas eu também não comi depois do almoço e tive o treino
das líderes de torcida. — Dei de ombros.
— Como está indo nisso? — Ele se ajeitou na cama, sorrindo de
canto e elevando as sobrancelhas.
— Estou um pouco enferrujada. Vou ficar na base e tenho três
segundos de um giro e abertura na frente. Nada demais.
Seu sorrisinho sarcástico me fez repreendê-lo com o olhar
enquanto ele apenas tirava a touca e jogava na minha cama.
— Jeff permitiu irmos ao luau.
— Que luau?!
— Alguns jovens da faculdade fazem antes de grandes jogos, já
que temos a visita do time rival. Foi o que Tyler me falou.
— Por que meu pai me deixou ir? — perguntei, confusa e
levantando uma sobrancelha.
— Anthony meio que me falou sobre a sua mãe. Bom, por cima.
Nossas mães se conheciam, certo? — Ele coçou a nuca.
— É… — Divaguei. — Você sabia?
— Não, não. Eu acho que éramos muito pequenos.
— Éramos?
— Eu e minha irmã. Ela faleceu quando éramos crianças. Ela era
mais velha que eu.
— Sua mãe tem mesmo um time de futebol, em?
— É, tipo isso.
Sorrimos.
— O que você pensa sobre?
Ele respirou fundo.
— A minha família sempre foi um caos, só não imaginava que
tivessem que contratar uma médica particular. — Murchou os ombros.
— Sabia que essa foi a única forma da minha mãe me ver?
— Não. — Seus olhos baixos pareciam me abraçar em compaixão.
— Eu sinto muito por isso.
— É… — divaguei, meio perdida.
— Mas vai falar com ela, já que agora sabe de tudo?
— De verdade, eu não vou, Axel. Ela escolheu não falar nada,
então… acho que eu devia respeitar isso. Foram tempos complicados para
todos. Ao mesmo tempo, me pego pensando se não me tornarei como ela,
apenas focada em trabalho, e negligenciarei as pessoas ao meu redor. Mas,
então, também me lembro de como ela não fez por maldade, apenas eram as
possibilidades da época. Além disso, mesmo que ela não me quisesse,
mudou-se para cá quando já estava bem e construiu uma boa relação
comigo. Sempre estamos juntas. Isso é bom, certo? Já acho válido.
— A sua mãe parece ser uma boa pessoa e, sendo sincero, talvez
você queira falar com ela mais pra frente, só para esclarecer que sabe sobre
tudo isso e não a culpa ou algo assim.
— Quem sabe, não é? — Deixei no ar.
— Vamos! — Ele se colocou de pé. — Preciso te tirar daqui. —
Sorriu de canto, aproximando-se de mim, e chacoalhou rápido meus
ombros.
— Para! — exigi, forçando uma carranca em sua direção, e me
coloquei de pé. — Você tá de carro? — Segui para a mesinha próxima a
minha cama para pegar minhas coisas.
— Eu comprei um só para te levar para todo lugar, a qualquer
momento — disse, sorrindo largo.
— Que falso!
Ele riu.
— Vamos, mentirosinha!

O carro de Axel estava próximo e, em poucos minutos, ele já havia


dirigido até perto da praia.
Acionei o botão para abaixar o vidro da janela e sentir o frescor do
mar. Meus fios, ainda meio embaraçados, estavam por todo o meu rosto.
Tentei tirá-los da boca enquanto o carro seguia em alta velocidade.
— Você não tem algo para prender o cabelo aqui? — Enquanto
fuçava o carro, acabei notando minha roupa. — Por Deus, eu vim com
roupa de dormir. — Evidenciei, apontando com as mãos para mim mesma.
Axel tirou a atenção da estrada e me escrutinou.
— Você tá bem gostosa assim — disse, indicando com a cabeça,
como se fosse mesmo verdade.
— Depois eu que tenho o apelido de mentirosinha.
— Mas você é uma mentirosinha. Quem olha pra uma divindade
como essa — ele me indicava. — e simplesmente diz o contrário como
você? Um mentiroso!
— Você é ridículo! — Gargalhamos alto enquanto ele parava o
carro em uma lanchonete drive thru 24 horas.
— Olá, um vegano completo, por favor?! — pediu assim que a
atendente o cumprimentou.
— Eu já comi, Axel.
— Mingau não enche barriga. — Cortou meus argumentos,
dirigindo e logo pegando o lanche. — Obrigado! — disse a atendente e
jogou o pacote em minhas pernas. Birrei e decidi não comer. Axel me olhou
depressa e severo. — Come! — ordenou. Neguei com a cabeça. — Que
porra, por que não quer comer?
— Você não manda em mim, Axel. E eu comi bastante em casa.
— Mas não comeu o dia todo. Vamos, Misha, coma. Vamos ficar
perto da fogueira e com muitas pessoas ao redor, e se você passar mal?
Revirei os olhos e bufei.
— Ok! — declarei por fim, abrindo a sacola e inalando o cheiro
maravilhoso de hambúrguer e fritas.
— Me dá uma batata, pelo menos? — Com os olhos ainda focados
na estrada, ele direcionou a boca para mim.
Achei graça de seu ato.
— Você é um saco! — Ri, colocando comida em sua boca, e voltei
a mastigar, meio pensativa. — Obrigada — disse por fim.
— Pelo quê? — Ele virou o rosto em minha direção e logo o
voltou à estrada.
— Por cuidar de mim. Eu prometo também cuidar de você .
Axel apenas sorriu de ponta a ponta. Ele sabia que eu falava a
verdade.

— Acho que tá meio lotado… — constatou, indicando o luau que


já começara a poucos passos de nós.
— O time rival está lá. Você lida bem com a rivalidade?
Sorrindo de canto, suas íris tomaram meu olhar para si, enquanto
ele se aproximava de meu corpo.
— Eu tenho um espírito esportivo, amor — disse, como se não
fosse nada demais, passando o braço pelo meu ombro e me levando consigo
para nos aproximarmos dos outros.
Senti minhas bochechas corarem e o pé da minha barriga ser
abraçado por um vento gélido. Abaixei um pouco o rosto, deixando meu
longo cabelo cobrir minhas bochechas.
Nós estávamos indo em um lugar público juntos, como um casal.
Nós éramos um casal?
A areia entrou entre meus dedos dos pés, fazendo cócegas, no
mesmo instante que ouvi alguns jovens se aproximando e levantei o foco
para eles.
Eu conhecia Tyler, o capitão, mas não havia decorado o nome dos
outros meninos, apesar de sempre os fotografar juntos.
— Axel, finalmente! — Um garoto animado, de pele marrom
clarinha, mais que a minha, cabelos com leves ondas e brinco de origem
indígena, aproximava-se de nós, diante de todos, e abraçou Axel de lado. —
Ei, olá! Tudo bem? Eu sou o Hopi e você? Não me diga que está saindo
com esse cara, por favor, você é linda demais pra ele! — tagarelou sem
parar, com um sorriso de ponta a ponta.
— Eu sou a Misha. Sempre fotografo vocês para o jornal. — Sorri,
me divertindo com a sua boa energia.
— O jornal não foi bater fotos da gente hoje. O que há com vocês?
Já sabiam que não teríamos treino?
— Tá… ok. Sem comentários sobre a competição hoje, certo?! —
Tyler, aproximou-se e passou o braço pelo ombro de Hopi.
— Hm, ok. — Hopi se deu por vencido. — Mas você me deve
uma explicação, garota! — Apontou para mim, fingindo que não queria
achar graça da situação, e se afastaram um pouco de nós; contudo,
sentaram-se próximos.
Tyler logo indicou um lugar vazio ao seu lado. Deixei um risinho
baixo escapar e olhei para Axel. Os olhos dele brilhavam, com um lindo
sorriso moldando seu rosto. Ele curvou o pescoço, até a boca estar rente ao
meu ouvido, e disse:
— Você fica linda coradinha assim, amor.
Uma descarga elétrica passou por todo o meu corpo, arrepiando
meus pelos até a nuca, apenas por ouvi-lo me chamar de amor mais uma
vez.
Abaixei um pouco mais o rosto, rindo, meio nervosa.
Por Deus, eu nunca me senti tímida dessa forma diante das
pessoas! Pelo menos, não por ter alguém que fizesse meu estômago parecer
um borboletário.
Eu estava sendo boba, ri internamente.
Tyler arranhou a garganta, para mostrar que ainda estávamos
diante de outras pessoas, e acabamos gargalhando.
— Vamos nos sentar logo — chamei, caminhando abraçada ao
tronco de Axel.
Sentamos próximos de onde já estávamos e tomei um tempo para
olhar todos ao redor. Acho que o time rival inteiro estava lá, porém,
mantinham uma boa convivência; riam e se divertiam.
Um dos rapazes sorriu para Tyler, que acenou com a cabeça. Não
sabia sobre o que se tratava, mas, com certeza, era sobre Axel, pois logo o
garoto se aproximou.
Seus cabelos lisos, com um leve ondulado nas pontas, eram abaixo
da orelha, e seu corpo, por mais que magro, era bem atlético. Ele se curvou
diante de nós, para ficar encaixado entre Axel, eu e Tyler.
— Então, esse é o novato? — Se interessou, sorrindo.
Tyler entornou a cabeça e acenou, confirmando.
— E a namorada dele — respondeu por fim.
Devia negar, mas não fiz. No fundo, eu gostava que as pessoas
achassem que eu e ele estávamos namorando, porque… é, eu acho que
queria ser mesmo a namorada dele.
— Ah, mas que bela madame. — O garoto parecia divertido ao
inclinar a cabeça em minha direção, como um nobre antigo, mas Axel
pressionou minha cintura, prendendo-me mais a ele. Acenei um
cumprimento ao desconhecido, me sentindo como uma rainha sendo
visitada por outro rei distante. — Axel, certo? Eu sou o Kio, capitão
daqueles caras ali. — Ele apontou em direção aos outros meninos. —
Somos de New York, como você, e Tyler me disse que também quer entrar
para a NBA, certo?
— É a ideia — Axel disse, meio distante, não sei se por ciúmes ou
outra coisa.
— Ok, chega disso. Eu já falei que hoje não é sobre jogos — Tyler
pontuou, rigoroso, tomando a carranca séria e típica de um líder, um bom
capitão.
— Tudo sempre é sobre jogos, Tyler. — Kio bateu em seu ombro,
descontraído, e logo depois voltou a olhar para Axel. — Espero te ver em
New York em breve. — Por fim, acenou, se distanciando.
— Não gosto desse cara — Axel comentou.
— Só porque ele me chamou de madame? Foi só uma brincadeira,
Axel. — Ri do seu ciúmes evidente.
— Não. Eu só… não quero falar sobre isso, tá? — Axel puxou
meu queixo para si e olhou no fundo dos meus olhos. — Eu te amo —
sussurrou antes de me beijar.
Suspirei, surpresa por um beijo naquele momento, diante de todos.
Axel ainda podia estar saindo com outras pessoas e me beijar ali daria um
basta nisso.
Era isso mesmo que ele queria?
— Não pode me beijar assim! — Empurrei seu ombro de leve ao
soltar sua boca.
— Por quê? — Quis saber, ainda próximo de mim.
— Vão achar que somos namorados — disse simples.
— Você é a porra da minha namorada, Misha. — Pareceu que ele
se ultrajou por eu desconfiar que não era.
— Não sou.
— Quê? De que merda você tá falando?
— Você não me pediu em namoro. Então, não sou sua namorada.
E fora que…
Axel não permitiu que eu terminasse minha fala, já se colocando
de pé e gritando aos quatro cantos:
— Ei, ei, galera, dá uma atenção aqui? — Todos o olharam como
se ele fosse um ET, por estar pulando e gritando igual um bobo. — Estão
vendo essa garota aqui? — Ele apontou para baixo, em minha direção. —
Ela é a porra do amor da minha vida inteira — gritou ainda mais alto e
todos riram de seu jeito. — Só que ela não quer ser a minha namorada.
Vocês podem me ajudar nessa? Por favor, digam para ela me aceitar como
namorado, que eu serei a porcaria do infeliz mais sortudo do mundo em ter
ela ao meu lado e que eu ainda vou comprar uma câmera pra ela… Essa
parte é muito importante, porque, aqui entre nós — ele abaixou o tom de
voz, como que sussurrando. —, eu acho que ela ainda me odeia por isso.
Todos gargalharam, até eu, e puxei a barra do seu moletom, para
que ele voltasse a sentar, mas Axel não o fez. Seus joelhos se dobraram
diante de mim.
— Misha — falou alto. —, minha mentirosinha — disse a última
parte em um sussurro. —, eu não tenho dinheiro pra te comprar um anel
chique tal como você merece, mas eu prometo deixar você comer até meu
cu se aceitar ser minha namorada.
Meu rosto corou severamente e, assim como todos os jovens, eu
gargalhei alto.
— Ai, meu Deus, cala boca! — Puxei seu moletom com força para
que ele apenas sentasse de novo ao meu lado e grudei meu rosto em seu
peito, me escondendo, morrendo de vergonha. Axel me abraçou, mas eu
podia sentir seu coração batendo alto. Era eu que habitava ali.
Vários jovens uivavam, gritando palavras de incentivo, e a maioria
implorava para que eu aceitasse.
— Você é um cretino, cara! — Tyler riu ao nosso lado e Axel
passou a mão por meus cabelos, preservando meu corpo intimidado.
Quando um coro de "aceita, aceita, aceita" se formou, eu senti
meu estômago revirar de tantas ondas de boas energias.
Me soltei dos braços dele e gritei de uma vez:
— Eu aceito! — Bem alto e a plenos pulmões. Todos gritaram e
festejaram ainda mais, como se fosse a coisa mais importante do mundo. —
Eu odeio você — disse rindo, apenas para ele ouvir.
— Eu bem sei, mentirosinha! — Sorriu sarcástico, ainda afagando
minhas costas em nosso abraço.
Esse garoto ia me deixar maluca!
Seguimos escutando os ruídos dos garotos e, momentos depois,
tudo se dissipou. Alguns começaram a se arriscar no canto e no violão.
Enquanto curtimos algumas músicas antigas, Axel começou a me envolver
mais em seus braços, beijando meu pescoço de modo demorado. Por isso,
eu já imaginava o que ele queria.
— Podemos ir pro carro? Preciso beijar você melhor — sussurrou
no meu ouvido.
— Isso não é um casamento, não precisa ser consumado.
— Então, me deixe te beijar na frente das pessoas.
— Você já está me beijando. — Forcei não rir. Ele ficava muito
engraçado quando confuso, parecia um gatinho pequeno.
— Beijar só o seu pescoço e a sua cabeça não é o que eu quero,
mas pra você, deve ser o suficiente. Tá com vergonha de mim, é isso? Ou
estava saindo com outras pessoas e estraguei algo?
— Por Deus, pare de ser dramático! — Ri de seu ato.
— Pra mim, tá claro que você não quer me beijar na frente das
pessoas e deve ter um motivo — disse, bem sério.
— O motivo é que eu nunca gostei disso. Fim. Acabou. — Puxei
seu moletom para mim. — Mas eu aceito ir com você para onde você quiser
— sussurrei e então, o beijei com um selinho rápido, provando para ele que
meu corpo e minha alma eram seus. — Vamos? — sugeri, já me pondo de
pé.
Axel tinha as íris escurecidas e brilhando em minha direção ao se
levantar e amarrar sua mão à minha.

A porta de trás do carro dele foi batida em um estrondo. Por sorte,


os jovens ali por perto deviam estar fodendo também ou longe, na lareira,
ouvindo música alta, então, estávamos a salvo.
Axel tentava manter o beijo ao mesmo tempo que queria separar as
minhas pernas, mas as mantive fechadas. Depressa, seus lábios
desgrudaram completamente dos meus e ele me focou.
— Eu fiz algo errado?
— Não quero que a gente fique mais assim, mesmo namorando.
Ficar por ficar. Se vamos fazer isso de novo, você tem que dizer que é meu,
só meu e pra sempre meu. Não quero que quebre meu coração e eu prometo
cuidar do seu para sempre.
Seu sorriso foi se alargando enquanto ele encurvava a coluna,
aproximando-se do meu rosto.
— Que bobagem, mentirosinha. Eu sou seu. Sempre fui. Não olho
para ninguém desde que meus olhos encontraram você fotografando o time.
Sequer beijei outra pessoa desde que cheguei aqui. Não existe ninguém em
meu coração além de você, assim como em minha mente. Você é minha e
eu sou seu para sempre.
Então, ele me beijou, mas aquele beijo não era calmo, era fogo,
ardia a emergência da comprovação de nossos sentimentos. E, enquanto já
nos tornávamos um emaranhado de confusão, ele se afastou, tirando o
moletom e a calça jeans, inclinando o joelho para abrir as minhas pernas, o
que, desta vez, eu permiti que fizesse.
Depressa, afastei um pouco seu joelho, também tirando o
moletom, e fiquei ajoelhada pra tirar a calça.
— Por que está sem nada por baixo? — Suas íris verdes estavam
escuras de desejo e presas em meu corpo, inebriadas com a imagem.
— Meus pais me deram banho e eu achei que ia ficar em casa.
— Seu peito cabe na minha boca — constatou, sem dar ouvidos a
mim, e aproximou-se, beijando a minha clavícula. — Eu gosto tanto da
porra do seu cheiro, principalmente quando está excitada. — Seguiu
descendo os beijos, despertando arrepios por todo o meu corpo, enquanto eu
sentia a minha boceta ficar ainda mais melada. — Eu vou te fazer bem, eu
sempre vou, tá? Eu prometo.
Deixei as minhas mãos caídas ao lado do corpo, pois eu já não
tinha forças para quase nada, e, por isso, só murmurei uma confirmação.
Quando os lábios de Axel finalmente chegaram ao meu seio, ele colocou
tudo na boca e me olhou, mas eu só estava com a cabeça jogada para trás,
aproveitando o momento.
Ele parou no mesmo instante em que constatou aquilo.
— Olha na porra dos meus olhos enquanto te como, amor —
exigiu, já meio rouco. Sua voz reverberou por cada célula minha, vibrando
em minha coluna.
Depressa, tomei uma dose de ar e força e levei minhas mãos até a
raiz de seus cabelos.
— Então, volta a me comer, já estou olhando. — Forcei a cabeça
dele para voltar ao lugar de antes e Axel sorriu de canto, ansioso para
continuar o que havia parado.
Axel chupava meu seio esquerdo, o que me deixava inebriada
demais, porém, eu não queria me dar por vencida. Eu queria tocá-lo; ainda
não tinha feito aquilo. E era injusto só ele me ter, já que eu também o
queria.
Juntei todas as minhas forças e tirei uma mão de seus fios,
levando-a para seu pau, ainda coberto pela cueca. Massageei por cima do
tecido e Axel assustou-se, largando sua boca do meu corpo.
— O que quer fazer?
Pisquei meio atônita, mas não parei de tocá-lo, apenas subi um
pouco a mão para adentrar o tecido. Percebendo a minha ação, ele tirou a
peça de uma só vez.
Tomei um segundo para admirá-lo enquanto lambia os lábios em
puro desejo por ele.
— Quero você em mim — disse, finalmente o tocando de forma
mais correta. Massageie-o para cima e para baixo, mantendo um ritmo
calmo.
— Porra, Misha! — ele gemeu. — Eu não… eu não quero que a
gente se apresse. Não precisa disso.
— Só não faremos se você não quiser — disse, me curvando um
pouco e descendo beijos por sua barriga e fim do abdômen, até estar com a
boca próxima do seu pau.
Soprei leve e lambi a cabeça que escorria um pouco do pré-gozo,
para então lamber seu pau, enquanto o olhava. A mão dele segurou firme
em um punhado a base dos meus longos fios e seus olhos tomaram um
brilho lúdico.
— Confia em mim?
Afastei um pouco meu pescoço e o foquei severamente,
entendendo o que ele queria.
— Se me engasgar, eu furo as suas bolas!
— Eu adoro isso em você — disse rindo, mas também,
pressionando mais sua mão em meu cabelo.
Revirei os olhos, prendendo o riso.
Axel já se achava o bastante e não precisava da minha
confirmação. Segurei seu quadril com uma mão, para me firmar, porque eu
sabia que ele foderia a minha boca, e massageei suas bolas com a outra,
para logo então, o engolir todo. Ele segurou meu queixo no mesmo instante,
me instruindo a abrir mais a boca para que conseguisse lhe ter por inteiro e
sem me machucar. Enfiei e tirei uma vez, testando se conseguiria mesmo.
Na segunda tentativa, já o consegui lamber e chupar e na terceira, o enfiei
todo, recebendo um gemido rouco e tensionado em incentivo.
— Confia em mim, certo? — ele gemeu, quase embolando a frase.
Acenei confirmativa com a cabeça quando o tirei por completo.
— Sim. O que quer que eu faça?
Sorrindo de canto, Axel admirava eu ainda estar o masturbando.
Não queria que ele parasse de sentir aquele tipo de prazer. Sua coluna se
curvou em minha direção e ele me beijou rápido.
— Me coloca na boca, mas prenda as mãos para trás. Eu vou ditar
o ritmo.
Quando o fitei, animada e nervosa com seu pedido, ele empunhou
de novo meus cabelos, movendo meu pescoço como queria, e beijou a
minha boca com uma força diferente, chupando a minha língua e
explorando cada parte. Era uma certeza de que eu podia me entregar a ele.
E, em meio ao beijo, soltei seu pau, dando uma última massagem com a
palma da mão na cabeça e o fazendo gemer contra meus lábios, meio
inebriado.
— Você gosta? — Quis saber.
— Porra, tudo que você faz eu gosto! — disse e apertou o bico do
meu peito, o puxando em seguida. Prendi os lábios na boca, para segurar o
gemido. Axel entornou a cabeça, notando meu ato, então, segurou todo o
meu seio na mão e o amassou, para depois fazer tudo de novo. Afundei
ainda mais meus dentes nos lábios. — Por que está se contendo comigo?
Pensei que já tínhamos passado dessa fase, mentirosinha.
— Você ainda não me deu bons motivos pra gemer.
Axel elevou as sobrancelhas e sorriu de canto enquanto notava eu
colocar minhas mãos para trás.
— O quanto confia em mim?
— Pra qualquer coisa.
— Qualquer coisa? — Ele curvou ao meu encontro e segurou meu
queixo. — Até para que eu te castigue por mentir?
— Eu estou esperando por isso.
Sua boca se alargou em um sorrisinho zombeteiro quando ele se
distanciou de mim, soltando meu queixo e me dando um tapa na cara.
Foi forte pra caralho, meu rosto até virou com a intensidade, mas
me mantive sóbria e me recompus.
— Ardeu, amor?
— Eu esperava bem mais! — Revirei os olhos, entortando para
baixo o canto direito da boca.
Axel sorriu, satisfeito; ele sabia que eu estava mentindo e que
aquilo havia doído, mas ele também sabia que aquela dor era satisfatória pra
mim e a mentira era parte de quem eu era, só que estava detida apenas a ele
a partir daquele momento.
— Então, você terá mais. — Ele segurou meus cabelos e
direcionou meu rosto para o seu pau, enquanto o segurava com a outra mão,
o direcionando para a minha boca.
Não houve testes desta vez, ele apenas afundou minha boca nele
duas vezes e, depois, segurou meu ombro com uma mão para manter-me
parada no lugar, ao passo em que a outra continuava em meus fios.
Ele até tentou ir devagar no começo, mas eu já havia provado que
conseguia engolir tudo e sempre tentava ir mais do que estava sendo
controlada. Então, ele desistiu. Axel fodia a minha boca com tanta rapidez
que comecei a pensar que ele já nem saía mais, não completamente. Senti
meus olhos lacrimejarem, mas o labor inebriante dele e minha boceta se
apertando não me permitiram desistir de tê-lo em minha boca.
Mas o seu puxar de cabelo repentino, me afastando dele, sim.
— Que porra! — grunhi, revoltada.
Só então notei que ele estava abaixado, buscando algo na carteira.
— Preciso entrar na sua boceta agora.
— Foda-se o que você precisa. — Pontuei sem pensar.
Axel gargalhou e finalmente encontrou o preservativo que logo me
entregou.
— Eu sei que adorou me chupar, mas eu nem te toquei ainda. A
gente vai demorar muito se eu não te foder logo. E é melhor a gente se
livrar de problemas, não é mesmo?
— Você fala muito enquanto transa. Vem — o chamei para vesti-
lo, já que havia desembalado a camisinha.
— E você é apressada.
Girei os olhos em órbita e virei no banco traseiro do carro;
apoiando as minhas mãos e joelhos no banco.
— Axel, pare de falar e me coma de uma vez! — exigi, virando o
pescoço para olhá-lo.
— De quatro?
— Não, Axel, de perna aberta. Vai. Logo — grunhi apressada.
De imediato, ele se ajoelhou com um lado da perna próximo aos
meus pés e, de repente, empurrou minha coluna para baixo e puxou minhas
mãos para trás, me deixando apenas com a bunda empinada pra ele. A força
não foi abrupta, então, a surpresa foi boa. Sorri, ansiosa, sentindo diversos
arrepios percorrerem o pé da minha barriga.
— Quando ficar de quatro pra mim de novo, tem que ser assim. —
Ele posicionou a mão que prendia meus pulsos no início da minha bunda e
a outra em meu pescoço. — Entendeu?
— Aham — gemi, sedenta por ele, enquanto suas mãos me
deixavam para ajustarem a minha bunda. Axel não hesitou em me dar um
tapa e eu gemi em resposta a ardência gostosa que era poder tê-lo comigo.
Depressa, apenas uma de suas mãos segurava meu quadril
enquanto o sentia massagear minha boceta com a cabeça do seu pau. Ele
tentou entrar em mim algumas vezes e aquilo já estava me deixando puta!
Por que ele só não enfiava de uma vez?
Empinei mais a bunda, para ver se o pau dele entrava logo, mas
fomos impedidos pela sua outra mão que segurava a base do seu pau.
— Axel, por favor? — gemi, manhosa. — Você quer que eu peça,
é isso? Eu não tenho problema com essa merda. Quero você dentro de mim,
já falei!
Seu corpo se inclinou sobre o meu, até a boca estar em meu
ouvido, o que me possibilitava senti-lo sorrindo, quando ele se afundou em
mim por inteiro. Nosso gemido alto não pôde ser contido; estávamos
grudados, úmidos, completos.
Sua mão se firmou em meu pescoço e ele falou tão devagar e
baixo, bombeando em mim, que pensei estar divagando.
— Os seus desejos são iguais aos meus, amor.
Axel afastou completamente o corpo, segurando em meus quadris,
enquanto metia fundo e apressado. Cada partezinha minha vibrava, sabendo
que o orgasmo seria surreal. Meu tronco, deitado no estofado do banco
traseiro, se movia a cada estocada dele, fazendo o bico do meu peito
excitado arranhar no local.
Aquilo me deixava fora de órbita.
Empinei mais, tentando rebolar, já fraca por ele.
— Me avisa — ele puxou o ar. — quando for gozar. Preciso
chupar você… pra não… — Sua voz falhou, porque estava inebriado em
nosso frenesi, ou fui eu quem não ouvi mais nada, mergulhando na sessão
prazerosa que sempre ocorria quando estávamos juntos assim.
Em uma mistura de gemidos e sôfregos abafados, ao sentir o que
parecia ser meu útero se contraindo e minha boceta o apertando, gozei sem
ao menos perceber ou conseguir avisar.
— Ai, caralho, Misha! Porra, caralho, puta que pariu! — Ele saiu
de mim apressado ao notar que eu já havia gozado sem dizer algo.
Nem consegui argumentar, pois meu corpo apenas tremia com os
espasmos e minha mente se acomodava em uma completa calma. Senti
Axel firmar as mãos em minha cintura e me virar, deixando-me deitada. Ele
se curvou e lambeu a minha boceta. Abaixei minha cabeça para olhar; uma
mão segurava meu calcanhar, mantendo meu joelho esquerdo flexionado, a
língua me lambia, sem segundas intenções, e a outra mão se masturbava.
— Para um novo orgasmo, sugiro chupar ou pressionar mais essa
língua — alfinetei, sem entender muito bem porque ele estava me
limpando.
Axel apenas rosnou em negativa, claramente puto, e focou em
terminar de se masturbar. Tentei levantar o tronco para o ajudar naquilo,
mas sua mão empurrou meu corpo de volta ao lugar pelo ombro. Seu
escrutínio em mim foi quente.
Só então entendi. Ele queria me olhar aberta e nua diante dele.
Um segundo depois, seu gemido fundo e jogar de cabeça para trás
sinalizavam que ele havia gozado. Respirando pesado, Axel tirou a
camisinha e a amarrou, jogando-a em qualquer lugar, para então deitar-se
em cima de mim, mas sem colocar todo o peso do corpo.
— Está bem?
— Uhum. Por que me limpou ao invés de só continuar?
— Você tá sem roupa de baixo. Não quero que ande por aí melada.
— Isso não é meio territorialista?
— Sei lá que caralho de palavra é essa. — Elevou mais o corpo e
beijou minha boca em um selinho rápido. — Só não queria você se sentindo
incomodada. — Então, ele enfiou uma mão por debaixo das minhas costas e
me virou, como se eu fosse uma pena, para deitar por cima dele. Foi tão
rápido que soltei um gritinho surpresa e ele riu de mim.
— Para. — Empurrei-o de leve pelo seu ombro, meio manhosa. —
Obrigada — sussurrei, escondendo o rosto em seu peito.
Não sabia dizer bem o porquê, mas aquele cuidado todo dele
comigo me deixava intimidada. Sem precisar, eu tive alguém novo e
ativamente prestativo com nosso relacionamento. Talvez eu não estivesse
acostumada com relacionamentos diretos e saudáveis.
— Por nada, amor. — Então, beijou o topo da minha cabeça.
— Você vai ficar me chamando de "amor" agora? Toda vez que a
gente transa você fica meio obcecado por mim, já percebeu isso?
— É um problema pra você?
— É — disse, crítica.
— Então, devia fazer algo a respeito. Como me chamar de amor de
volta, mentirosinha. — Sorriu de canto.
Cretino!
— Eu não te chamarei de amor. — Franzi os lábios, fingida.
— Ah, é só pra quando eu te tocar assim. — Ele arrastou a mão
pela minha coluna e amassou a minha nádega direita. Sorri de canto,
recebendo o mesmo em troca. — Ou assim… — E depois, me deu um tapa.
Minha bunda empinou, como se tivesse vida própria, acendendo meu corpo
para ele mais uma vez. — Assim também vale. — Subiu de novo a mão
para a minha coluna, fazendo um carinho leve de vai e vem.
— Eu posso ser pra sempre sua, amor, basta me dar tudo isso de
novo e de várias formas. — Alarguei o sorriso, o focando, e me aninhei
nele.
Axel inclinou o pescoço, quase encostando a boca em mim, e eu o
olhei, admirando cada partezinha de seu rosto.
— Então, você será minha para sempre.
Sua boca tomou a minha em um beijo calmo, confirmativo, como
uma longa dança lenta após uma noite agitada na pista.
Ali eu tive uma confirmação ainda maior de o quanto nós éramos
um do outro.
E sempre seríamos.
Bom, até ele não querer mais…
 
28

Até treinei algumas vezes com as líderes de torcida, mas naquela


sexta-feira fiquei pensando se aquilo era mesmo para mim. Eu não tinha
coragem de dançar na frente dos meus pais depois do incidente que
aconteceu na festa, quando decidi fazer uma apresentação de ballet pra
família, e muito menos depois de ontem.
Mas o dia da festa em família ainda era o que mais martelava em
minha mente.
— Ok, meninas, por hoje é isso! — A técnica encerrou os treinos;
estávamos apenas repassando o que rolaria naquela noite.
— Misha? — Emerson corria ao meu encontro. — Oi! — Sorriu,
me cumprimentando. — As meninas da fraternidade vão na festa dos
Wolves Crown e todas as animadoras estão convidadas. Queria saber se
você quer carona pra ir?
— Ah, não, não. Eu… acho que não vou.
— Mas, agora que namora um dos jogadores, precisa ir. Todas as
namoradas vão.
— Quem falou pra você sobre isso? — Estreitei os olhos em sua
direção.
— É normal as pessoas ficarem sabendo o que rola no luau pré-
jogo. Tá tudo bem, ninguém vai contar pro treinador.
— Eu acho que isso não importa muito, já que todos já sabem.
— Por que está com raiva? Eu falei algo errado? Juro, Misha, não
acho que isso te trará problemas.
— Tudo bem, Emerson. Eu só… Vamos nos trocar? — Apontei em
direção ao vestiário, onde conversamos com outras garotas horas adentro,
até todas estarem prontas; brilho, minissaia e cabelos com gel. Estávamos
lindas. Sorri de ponta a ponta, mas logo me lembrei que Saori tinha deixado
o dia de trabalho hoje para ver o jogo comigo.
Peguei minha nova câmera fotográfica, apressada – pois ainda
precisaria fazer fotos desse dia em meus momentos de pausa da
apresentação –, e corri para a frente da quadra; por sorte, o vestiário
feminino era ao lado do masculino.
Logo avistei Saori com sua saia amarelo pastel e blusa branca; ela
flutuava no ar como uma pétala. Acenei em sua direção.
— Amiga! — Encaixei meu braço no seu. — Você realmente veio!
— Rimos juntas.
— É claro. Eu não perderia o primeiro jogo oficial do nosso novo
astro Axel Marcone Martinez. — Minha amiga estirava a mão no ar, como
se lesse o nome dele.
— Achei que estivesse aqui por mim… — A foquei com as
sobrancelhas franzidas.
— Você quer finalmente falar sobre o dia da festa em família e por
que parou o ballet? Eu acho super importante falarmos disso.
— Ah, deixa pra lá! — Revirei os olhos, estressada por minha
amiga ser tão direta. Ela deu de ombros, caminhando comigo. — Onde viu
isso? — Estranhei.
— O quê?
— O nome completo dele. Isso parece meio stalker.
— Ah, é a vida. — Deu de ombros. — Sabe o que eu acho? —
Voltou a grudar nossos corpos enquanto sorria largo, animada.
— Não, mas tenho medo.
— Que devíamos ir à festa essa noite. Os Wolves Crown sempre
fazem uma, seja pra comemorar ou pra chorar, e acho que hoje vai ser uma
puta de uma comemoração! — Saltitou, animada.
— É, Emerson me falou que as líderes de torcida estão convidadas.
— Então, iremos? — Os olhos escuros de Saori brilharam em
minha direção.
— Não sei.
— Ah por favor, por favor?! Você me deve isso!
— Só porque perdeu um dia de trabalho? Você que tava animada
pra vir — disse, sorrindo.
— Não, sua falsa! Por não ter me contado que começou a namorar.
— Minha amiga riu, batendo em meu braço.
— Ah, isso… — Cocei a minha sobrancelha, a acompanhando no
riso.
— Então, o Axel, hein?! — Sorriu de canto, interessada em saber
mais.
— Olha, é complicado…
— Jeff ainda não sabe, é isso, não é?
— Bom, de certo modo, ele sabe que estamos juntos, mas não
namorando firme.
— Ai! — Saori deu um gritinho, animada, quando adentramos a
quadra. — Namorando firme — ela sussurrou mais próxima de mim. —
Você está com o mesmo brilho no olhar daquele dia no gramado. O sexo
entre namorados foi melhor ou igual quando amantes?
Meus olhos quase saltaram da órbita.
— Saori! — a repreendi.
Minha melhor amiga de infância gargalhou, jogando a cabeça para
trás.
— Não minta para mim, Misha — exigiu, enquanto já tínhamos
cruzado a quadra e nos aproximávamos das líderes de torcida. — Você tem
que me contar tudo.
— Ah, sim, com certeza, eu vou te contar detalhadamente como o
pau dele se enfiou na minha boceta e eu o apertei de quatro e…
— Ai, ai, ai, para! Socorro, sua pervertida! — Saori fez uma
careta, se afastando de mim e estapeando meu braço, apenas de leve, como
uma brincadeira.
— Você pediu! — gritei, fingindo estar revoltada, e então
começamos a gargalhar do quanto éramos bobas.
Saori se jogou em mim para me abraçar e eu enfiei meu rosto em
seus fios.
— Eu quero que vocês sejam felizes. Eu quero que você seja feliz,
amiga! — ela sussurrou em meu ouvido.
— Eu sei. E eu quero o mesmo pra você.
Naquele momento, eu soube que não era preciso nada para me
acertar com Saori ou algo do tipo. Nós tínhamos uma amizade real,
duradoura e verdadeira. Entendíamos nossas partes e momentos ruins, e
escolhemos sempre ficar ao lado uma da outra.
As amizades nem sempre são sobre estar o tempo todo com a
pessoa ou compartilhar sobre tudo. Eu e Saori nos dávamos bem como
éramos e isso não era tóxico, era apenas a mais pura realidade.

Algumas meninas eram arremessadas para o alto e, em seguida,


seria a minha abertura; tal como no ballet, na frente de todos. Em alguns
segundos, eu o fiz, cumpri meu dever. Ao voltar ao chão, ergui uma das
pernas acima da cabeça enquanto a outra me equilibrava e, assim, fui
realizando a coreografia até ela estar completa e eu poder fazer meu
agradecimento e voltar à minha posição inicial.
Não havia emoções, parecia que tudo em mim estava desligado.
Tudo meio turvo. Tudo como na noite da festa…
Várias pessoas da família de Jeff estavam lá e eu tinha combinado
com a minha mãe de apresentarmos juntas um dueto de ballet, mesmo ela
não sendo uma bailarina, mas tudo bem, afinal, ela era a minha mãe. Mães
sabem tudo.
Ou deveriam saber.
Passavam das oito e meus primos me chamaram para brincar.
Neguei.
Passavam das nove e meu pai Anthony me chamou para jantar.
Neguei.
Passavam das dez e meu pai Jeff me chamou para dormir. Neguei.
Mas todos da família já tinham deixado a casa mesmo. Eu sequer
havia notado…
— Papai, onde está a mamãe? — perguntei já em seu colo,
subindo as escadas.
— Ela deve ter tido um problema no trabalho, filha. Outro dia ela
vem, tá bom?
E assim ficou, sempre fica…
— Filha? — Notei Jeff me chamando, próximo de mim.
Eu estava meio distante das garotas, mas ainda na quadra, e o
foquei um tanto desnorteada, percebendo que estava chorando baixinho.
— Por que Montana não foi ver a minha apresentação de ballet na
nossa casa?
Jeff franziu o cenho. Não era intervalo de jogo, provavelmente ele
estava atrasado para voltar a olhar os meninos, então, me senti ainda mais
confusa.
— Eu não sei, mas se para fazer você parar de chorar você precise
enfrentar isso, então, te levarei até ela.
Eu devia ter pensado no time, nas meninas ou em todos, mas,
naquele momento, eu quis ser egoísta. Escolhi pegar na mão de Jeff, entrar
em seu carro e irmos juntos até o hospital em que minha mãe trabalhava
naquela noite.
Podia ao menos ter pensado em minha própria mãe, que estava
com a sala lotada de pacientes esperando, porém, tal como antes, eu não me
importei. Fui egoísta pela segunda vez naquela noite.
Jeff abriu a porta do consultório da minha mãe, logo após um
paciente, ouvindo mil e uma reclamações dos demais, e a fechou logo
quando passamos.
— Ela sabe tudo sobre a Emma, está até namorando o filho dela, e
também sabe o que aconteceu quando era pequena.
Claro que ele saberia, tudo naquela faculdade era uma fofoca.
— Misha — minha mãe falou meio assustada, se colocando de pé,
e indicou as cadeiras à sua frente para sentarmos. — O que aconteceu?
Caminhamos para os lugares. Me senti um pouco com vergonha,
sem saber ao certo por quê. Era meu direito saber por que fui negligenciada
por quem tanto amava e admirava.
— Tive um momento ruim durante a apresentação das líderes de
torcida hoje. Um gatilho. Quando eu era pequena, você não foi fazer um
dueto comigo na casa dos meus pais. Por quê? E por que sempre foi distante
de mim? Por que não fez de tudo para que Anthony ficasse com você em
New York, para que me criassem juntos?
— Bom, vamos com calma. Em primeiro lugar, Anthony e eu não
nos amávamos, ele foi comigo porque não tinha mais família, precisava de
ajuda para cuidar de você e eu ainda te amamentava, mas isso não era tudo.
Minha vida sempre foi muito corrida, a maternidade não era meu ofício, foi
uma obra do acaso, nada convencional. Mesmo assim, eu amei te ter,
porém, não tem como negar que era muito difícil para o Anthony
permanecer em um lugar sem nada ou ninguém conhecido. Ele preferiu
voltar para cá, tentar algo… Por sorte, ele deu certo com Jeff, mesmo
depois de muitos problemas. Isso não significa que eu não vinha te ver
porque não queria. Tínhamos uma vida difícil, só consegui vir por Emma,
mas Emma também tinha seus próprios problemas de merda. E eu desisti de
viver aquilo quando ela falou que eles voltariam a New York.
— Você negligenciou até a sua amiga?
— Eu não negligenciei ninguém, por Deus. Emma tinha os
problemas dela e eu tinha uma filha, ou seja, duas escolhas difíceis; ou eu
ficava aqui em SS com a minha filha ou voltava pra NY e cuidava da minha
amiga, que sequer entendia pelo que estava passando. Eu escolhi você,
Misha. E não fui a reunião de família dos D. porque, Deus que me perdoe,
mas a sua família é maluca, Jeff.
— Você não sabe de merda nenhuma, Montana!
— Não sei? Todos sabem, Jeff. Eles infernizam a vida de vocês
desde quando decidiu se juntar com Anthony. Eles são o diabo na Terra.
— Cala a porra da boca, Montana, porque, enquanto você vivia seu
sonho, tivemos que passar fome para criar a sua filha e, se não fosse por
eles nos aceitando depois, quem sabe onde estaríamos agora?!
— Por um milagre divino, após anos, a sua mãe aceitou vocês. Isso
não exclui o fato de que sofreram muito por eles e…
— Tá bom, tá bom — supliquei, já chorando. — Isso é demais pra
mim! Vocês podem parar. Eu entendo que os Daughety sejam complexos,
mas foi o dinheiro deles que nos salvou.
— Mas você não deve serventia a eles por causa disso. Era
desumano eles continuarem com aquela merda.
— Isso é… — Não consegui terminar de falar, pois me
desmanchei em lágrimas.
Jeff se aproximou de mim para me abraçar e eu permiti. Também
notei Montana saindo de sua cadeira e se agachando ao meu lado.
— Minha filha — ela me chamou. —, minha filha, olhe para mim.
— Sua mão puxou meu queixo em sua direção. — Não pudemos dar a
melhor criação do mundo a você. As coisas eram difíceis, eu não tinha
vocação para isso, mas… — Ela olhou em direção a Jeff. — Tenho certeza
de que fizemos todo o possível ao nosso alcance para dar o nosso melhor, e
pode não ter sido tão bom assim, com certeza não foi, mas saiba que nós
não estamos apagando a sua história ou o que passou conosco. Sempre
estaremos aqui para conversarmos e realinharmos as coisas, mas agora
precisamos pausar isso. Eu tenho pacientes e seu pai, um jogo. Não te
negligenciamos ou estamos fazendo isso agora, também não negamos
nossos erros, mas a vida acontece e demanda responsabilidade demais que
nem sequer imaginamos em nossos piores pesadelos.
— Você não é um fardo — Jeff disse, um segundo depois. Minhas
lágrimas não paravam de sair, assim como eu não conseguia proferir mais
nenhuma palavra. — Nunca pense isso. Talvez eu tenha deixado essa
impressão passar, mas é apenas porque sei como é ter que construir tudo de
modo negativo na sociedade, é impossível, e eu não queria você nessa
posição.
Os dois me abraçaram de uma vez só e nós passamos mais um
tempo chorando igual bobos e permitindo que toda a energia negativa se
dissipasse.
Quando voltamos para a quadra, os meninos estavam em péssima
posição, a vitória do outro time era evidente e todo o esforço do meu pai
para salvá-los das negativas do ano passado com o capitão tóxico poderiam
ir por água abaixo.
 
 
29

Perdemos.
Perdemos a porra do jogo.
Perdemos a porra do jogo em casa.
Eu tô muito fodido!
Jeff poderia piorar ainda mais a sua relação conosco, já que saiu e
voltou com Misha. Será que aconteceu algo? Por Deus, eu morreria se algo
acontecesse com ela.
Éramos obrigados a ir direto para o vestiário, e as animadoras
ainda se apresentariam pela última vez. Minha cabeça, confusa demais, não
me permitia pensar direito. Apenas me sentei em um dos bancos, esperando
tudo terminar para ver se conseguiria ir vê-la ou se ela viria até mim.
Mandei uma mensagem avisando sobre e aguardei.
E se ela tivesse passado mal? E se ele brigou com ela? E se eles
tivessem brigado mais porque ele soube que agora estávamos namorando?
— Bom jogo, pequeno irmão.
Kio.
Reconheceria sua voz a distância.
Elevei os olhos para o focar, meio puto com tudo e arriscando
socar a sua cara.
— O que quer aqui?!
— Oh, calma aí, irmão! Venho em paz. Os garotos estão todos
aqui, precisamos tomar banho e voltar para New York ainda hoje.
Não eram competições normais, éramos os melhores contra os
melhores. Éramos…
— Uhum — murmurei uma confirmação, fingindo entrar em seu
jogo.
— O que você faz por aqui? E onde está Calíope? As redes sociais
dela estão inativas desde as férias. Pensei que ela estivesse com vocês.
— Ela não está mais com a gente há anos — notifiquei, deixando
seus olhos de lado e abaixando a cabeça, nervoso.
Misha, esteja bem!
— Então, quer dizer que não a viu mais?
Voltei a olhar pra ele, irritado com sua insistência naquele assunto.
— Ninguém sabe onde ela está. Fui bloqueado de suas redes. E
não tem nada a respeito dela que te interesse.
— Não tem mesmo, Axel?
Me coloquei de pé, já puto com toda aquela conversa.
— Não! E pare de encher a porra do meu saco, Kio, senão, sou eu
quem vai enfiar a porrada na sua cara!
— Ou, ou, ou! — Tyler se aproximou de nós e quando me dei
conta, todos os meninos já estavam nos olhando. — Calma aí! Ninguém vai
bater em ninguém. Isso aqui é um lugar pacífico!
— É, só acho que o Axel não entendeu isso ainda — Kio mentiu
descaradamente, como se eu fosse o errado na história, nos dando as costas.
— Ah, mas você só pode tá querendo me foder…
Tyler segurou meus ombros, firmando meu corpo no lugar, e me
olhou no fundo dos olhos.
— Isso realmente vale a pena?
A luta da minha irmã valia a porra da pena, caralho, mas isso era
algo que Caliope já havia deixado claro que só ela resolveria.
E tudo se dissipou quando senti o celular vibrando em minha mão.
Misha:
Estou na porta do vestiário. Pode vir me ver?
Axel:
Claro, amor!
Apressei os passos em direção a porta e logo a vi. Seus cabelos
presos em um rabo de cavalo com os cachos leves saltando, a minissaia e a
blusa curta de manga comprida azul modelando seu corpo, mas já sem as
meias imensas.
Porra, eu tinha muita sorte de namorar aquela garota!
— Amor — meu coração acalmou um pouco quando consegui
puxar seus ombros para um abraço. Misha estava um pouco aérea, mas até
sorriu fraco em resposta a minha animação. —, o que aconteceu? Por que
saíram no meio do jogo?
— Ah, é isso. Desculpa, amor. Eu…
Parei sua fala com meu dedo.
Amor?
Tudo bem que ela já havia dito que me amava, mas isso era…
— Você me chamou de quê?
Misha revirou os olhos em minha direção.
— Você é bobo! Eu estava falando algo sério. Tivemos que deixar
vocês no meio do jogo.
— Eu queria falar sobre como você ficou linda me chamando de
amor. — Sorri de canto enquanto me aproximava para beijar sua boca, mas
bastou eu tocar seus lábios que sua mão me afastou.
— Aqui não.
Seu rosto analisava nosso redor, mostrando que haviam muitas
pessoas indo e vindo, por conta do fim do jogo.
— Você ainda não contou pro Jeff?
— Acabamos de começar esse namoro e — ela olhou de novo ao
redor — as pessoas já sabem. Ele já sabe — falou, meio cabisbaixa. —
Olha, eu não quero te criticar, mas você fez o pedido na frente de todo
mundo, mesmo sabendo que ele não devia saber ainda. Todo mundo
comenta sobre essas coisas. Saori e Emerson já sabem.
— Eu… não fiz por mal.
— Eu sei, tá?! Só que eu preciso falar com ele primeiro.
— Posso estar junto?
— Melhor não. Vamos manter as coisas do modo mais linear
possível, ok?
Uma barulheira de jogadores saindo em massa do vestiário
masculino interrompeu minha resposta. Olhamos em direção a eles. Hopi
nos notou e sorriu, vindo até nós.
— Garota fotógrafa, atendente da cafeteria e namorada do Axel,
onde estão as minhas boas fotos? — Quis saber, divertido.
— Fiz ótimas fotos de todos hoje. — Misha bateu em sua mochila
escorada no chão, próxima aos seus pés.
— Hmm… — Hopi a analisou. — Espero que seja verdade. Você
vai com Axel pra festa?
— Não.
— O quê? Por quê? — Jurava que ela ao menos iria à festa
comigo.
— Não gosto muito de festas, nunca gostei. — Sorriu fraco, mas,
de alguma forma, eu sabia que aquilo era mais do que uma simples mentira.
— Ok, se mudar de ideia… — Hopi entornou a cabeça em minha
direção, indicando que poderia levá-la. — Até mais, casalzinho vampiresco.
— Vampiresco? — perguntei, mesmo ele já se distanciando.
— Claro, eu só vejo vocês juntos de noite! — Riu, se afastando
mais.
Nos entreolhamos por dois segundos e caímos no riso também.
— Gosto dele — Misha comentou, apontando na direção que Hopi
havia saído.
— Hopi é… um chato, isso sim — eu disse, divertido. — Vamos
entrar? Preciso tomar um banho e me vestir.
— Na verdade, eu também preciso. — Apontou em direção ao
vestiário feminino.
— Olha ao redor, não tem mais ninguém aqui. Toma seu banho
comigo.
— Não, Axel, isso quebraria umas mil regras! — decretou, com o
rosto meio franzido.
— Se você não contar pra ninguém, eu também prometo não
contar, mentirosinha.
Misha olhou ainda mais ao redor, apreensiva. Um zelador limpava
o outro lado da quadra, ou seja, demoraria para chegar até nós e, mesmo
assim, ele só limpava os banheiros se não houvesse mais ninguém.
Chuveiros ligados significam pessoas lá dentro…
— Ok. Mas sem sexo! — Ela apontou em minha direção, com a
cara fechada.
— Que mente pervetida, mentirosinha. Desde quando transamos
em qualquer lugar?
— Bemmm sei das suas intenções comigo, Axel! Se deixar, você
me come até no meio dessa quadra!
— Não, que isso?! — Me aproximei de sua orelha. — Preciso
ouvir você gemendo. A quadra não seria um lugar apropriado.
Misha bateu em meu braço, afastando-se, fingindo uma carranca, e
jogou sua mochila sobre os ombros.
— Vamos, Axel. — Sua voz saiu grossa, ainda fingida.
Achei graça enquanto a seguia.
— Afinal, onde você e Jeff foram? — perguntei ao passarmos pela
entrada do vestiário. Misha seguiu para a parte dos chuveiros e eu tentei pôr
um banco contra a porta. Era melhor tentar impedir qualquer entrada. Pelo
menos algum barulho ia fazer.
— Eu precisava falar com a minha mãe depois de toda aquela
revelação que meus pais fizeram. Tinha medo de ela estar apenas
escolhendo o trabalho ao invés da família, amiga… enfim, tudo. Se fosse
isso, eu ia achar… eu ficaria bem nervosa pensando que nunca conheci a
minha mãe de verdade — contava enquanto tirava um par de roupas da
mochila e começava a remover a maquiagem.
— Entendo. — Aproveitei para pegar minhas coisas no armário e
separar a minha próxima roupa.
— Mas, graças a Deus, não era isso. Ela não tem ou teve vocação
para ser mãe, e tudo bem, certo? Essa questão de maternidade romantizada
é uma imposição patriarcal mesmo. O que importa é que ela se dedicou a
mim em todo o possível. E eu respeito isso nela.
Joguei minha toalha no ombro e me aproximei dela, por fim,
indiquei um espaço próximo aos chuveiros para colocar as toalhas e nossas
roupas, enquanto já ia em direção ao lugar.
— Você acha que ainda existe uma amizade entre as nossas mães?
— Acho que elas até saíram juntas quando vocês chegaram. Creio
que elas estão bem. — Misha deu de ombros.
— Que bom. E nosso namoro? Quando vai conversar melhor com
eles sobre? — Quis saber, ligando o chuveiro.
— Jeff contou à Montana esta noite — disse, tirando o uniforme e
levando a toalha com sua troca de roupa para próximo do chuveiro em que
eu estava. — Acho que ele ainda não se importa, já que não fizemos
aparições em público. Por isso, acho bom mantermos isso entre a gente
antes de falarmos com a família dele — revelou, meio cabisbaixa, também
entrando no chuveiro.
— Acha que ele vai te ajudar a conversar com a família? — Peguei
o sabonete que tinha acabado de usar e dei para ela, ainda me ensaboando.
— Senão, vai ser meio difícil conseguir algo, e eu não quero que a gente
não possa ficar juntos de verdade.
Sua cabeça se levantou de repente e ela tomou o sabonete da
minha mão.
— A gente já tá junto de verdade. Eu aceitei seu pedido de
namoro. Você é meu e eu sou sua! — Seu rosto todo estava enrugado,
tomado pela raiva.
Eu gostava mesmo daquilo e era estranho que fosse justo a Misha
a me despertar essas sensações.
— Você fica gostosa com raiva, mentirosinha. — Ri dela.
— Cala a boca! — Misha me empurrou de leve pelo ombro, mas o
sabonete caiu de sua mão e ela escorregou em meu corpo.
A segurei pelos ombros, impedindo sua queda.
Esperei que se distanciasse, já que nada aconteceu, mas seu
pescoço continuou para baixo e suas mãos firmes em meus braços.
— A água levou o sabão. Já pode me soltar, mentirosinha. A não
ser que queira algo mais, tão próxima assim do meu corpo.
— Eu vou sair — sussurrou, ainda grudada em mim.
— Sei, mentirosinha. — Continuei olhando-a de cima, achando
graça de como ela queria sair de perto, mas não conseguia parar de olhar
para o meu pau.
Decidi mover um pouco o corpo e nos jogar mais água. Talvez
assim ela relaxasse um pouco.
— Ai, droga! Você molhou meu cabelo, Axel — Misha deu um
pulo, correndo da água igual gato e, consequentemente, para longe de mim.
Seus dedos molhados passaram por seus fios compridos, os soltando e
estudando cada parte deles.
— Mas tá cacheado! — argumentei.
— Tá com babyliss e gel. Estava tão bonitinho. Você estragou! —
Pisando firme em minha direção, veio até mim, apontando o dedo para meu
peito. — Você não pode ser legal comigo agora que estamos namorando?
Analisei seu corpo nu de baixo para cima, tomando o tempo que eu
bem desejava, e depois foquei seu rosto enraivecido.
— O que aconteceu com suas manchas?
— O quê?
— As manchas roxas que tinha no seu corpo. O que aconteceu?
Tem bem menos e estão sumindo.
Tomando um tempo para se analisar, notou que o que eu disse era
verdade.
— Era estresse por guardar tudo pra mim — falou, meio murcha.
Puxei seu queixo para mim na mesma hora, não queria que ela me
escondesse nenhuma parte sua. Misha amarrou as mãos em meus ombros,
olhando para mim de baixo. Indiquei com a cabeça para que continuasse a
contar. — Acho que, como estou falando mais sobre meus sentimentos, elas
estão sumindo.
— Ok. E sobre o dia no carro?
— Na praia? — quis saber, confusa. Confirmei com a cabeça. — O
que tem?
— Você se machucou? Ou até mesmo não gostou de algo que fiz?
— exigi saber, apreensivo por tê-la feito algum mal.
— O quê? Por que acha isso? — Misha sorriu, achando que era
bobagem minha.
— Não sei se foi certo o que fiz. Não conversamos bem antes
sobre e…
— Tá, ok. Entendi. Você queria ter falado sobre antes, certo? Tudo
bem. Eu entendo e concordo. Mas nada do que você fez me incomodou. Na
verdade, eu gostei. Te dou total liberdade para fazer de novo.
— Achei que gostasse de dominar, pela nossa primeira conversa.
— Gosto, mas eu gosto mais de quando é você.
— Posso me acostumar com isso. — Sorri de canto, puxando seu
queixo para próximo da minha boca.
— Quero que se acostume. — Sua boca inclinou até a minha, me
beijando como se já fizesse muito tempo desde a última vez.
Me entreguei ao momento.
Seus braços circularam meu pescoço, friccionando o bico dos seios
contra meu peitoral. Desejei tomá-los na boca no mesmo instante.
Porra, a Misha me deixava maluco fazendo aquele movimento
sutil dos seios e chupando a minha língua, porque esse beijo… esse beijo…
era ela quem dominava, com certeza!
Arrastei minha mão por sua coluna, sentindo seus pelos arrepiados
e ela enterrando os dedos em meus fios. Então, segurei sua bunda e a elevei
um pouco, a deixando na ponta dos pés, esfregando o início da sua boceta
no meu pau duro. Engoli seu gemido agudo em resposta ao seu desejo
evidente.
Depressa, virei nossos corpos, a empurrando contra a parede.
— Você quer isso, amor? — quis saber, arrastando beijos por sua
mandíbula e pescoço, enquanto massageava seu seio esquerdo com uma
mão e segurava o início da sua coluna com a outra.
— Uhum — ronronou, manhosa.
Elevei os olhos para ela e notei que estava olhando pra cima e
mordendo os lábios para manter a boca fechada.
— Solta a porra da boca, mentirosinha! — exigi.
Seus olhos encontraram os meus, assustada.
— Não quero que escutem meus gemidos! — respondeu por cima
do meu tom de voz.
— Eu quero te ouvir. Só isso importa! — Arrastei minha mão por
sua bochecha, até seu queixo e o forcei para baixo, sentindo seus olhos
queimarem meu rosto assim como os meus incendiavam sua boca. Sem
retrucar, ela abriu a boca e eu enfiei meu polegar nela. — Chupa!
Um gemido interno me tomou quando ela chupou meu dedo. A
cada lambida, meu pau pulsava mais. Meus olhos tremeram, e levei a mão
para me masturbar, porém, Misha foi mais rápida e se antecipou,
massageando um pouco as bolas antes de se devotar por completo.
Notando seu ato, levei minha mão até sua boceta e encostei minha
cabeça na parede ao lado do seu ouvido.
— Porra, amor, sua boceta tá tão meladinha — falei, arrastando
meus indicador e dedo do meio pelos lábios externos e internos dela. Misha
gemeu uma exigência, sem poder falar. — Você falou que não íamos
transar, mas… — Não consegui terminar minha fala, porque ela parou de
me masturbar, tirou meu dedo da boca e apertou meu pau.
— Ou você me toca agora ou eu vou fazer pior com você —
ordenou, ainda me pressionando.
Gargalhei com a dor entalada e fixei meus olhos nos seus.
— Me espera pegar a camisinha?
— Em um segundo!
Me distanciei dela, sorrindo de canto.
— Gosto que sua pressa seja igual à minha — comentei, pegando
o pacote, abrindo e vestindo rápido.
Quando virei, indo de volta a seu encontro, ela mordeu a bochecha
por dentro, olhando direto pra mim.
— Se também quer tanto — começou, apertando as coxas uma na
outra. —, por que demora?
Alcancei seu corpo e o prendi contra a parede com o meu. Tomada
pela surpresa, Misha suspirou alto e segurou meus ombros com a mão e eu
posicionei as minhas de cada lado da sua cabeça.
— Eu estou indo com pressa, só que gostamos de nossas brigas,
então, prefiro que você esteja gritando ou sendo grossa comigo e, pra isso,
preciso ser mais… leve.
— Vai à merda, Axel. Para com isso ou eu não transo mais com
você! — disse, fingindo ódio.
— Caralho, eu realmente adoro isso em você.
— Gosto que você goste e que só você entenda os significados das
minhas mentiras. Eu te amo mais por isso — Misha falou em um meio tom,
sorrindo. — Pode, por favor, me comer de costas? — pediu, batendo os
cílios.
— Porra, que carinha é essa? Você muda muito rápido,
mentirosinha! — notei, virando seu corpo pelos ombros com força e
empurrando seu lado esquerdo. Ela virou o rosto em minha direção, já
abrindo as pernas e empinando para mim.
Tentei enfiar nela antes, bem devagar, para se acostumar com o
tamanho e não a machucar.
— Axel, por favor, eu estou me sentindo pingar! — gemeu,
abaixando a cabeça, entregue ao nosso frenesi.
Achava aquilo excitante demais para o nosso bem.
Enfiei nela e não saí por completo, repetindo o movimento, agora
mais rápido. Logo estava estocando mais vezes seguidas enquanto Misha
empinava para mim. Senti toda a descarga elétrica que era ter sua boceta
engolindo meu pau, fazendo cada parte minha se arrepiar.
Tomado pelo tesão, já não conseguia mais estocar moderadamente.
Tomei a raiz dos seus cabelos nas mãos, puxando com força exagerada sua
cabeça ao meu encontro, e a beijei. Nossos gemidos se misturavam,
estávamos ofegantes com o início de nosso orgasmos.
Misha começou a me apertar mais dentro de si, então soube que
estava próxima. Soltei seus cabelos e firmei minhas mãos em sua cintura,
metendo mais e mais rápido, focado também em sua bunda, onde estalei um
tapa.
Ela gemeu agudo, meio manhosa, e começou a estremecer com os
espasmos do orgasmo tomando seu corpo.
Tirei meu pau dela, ainda segurando sua cintura com minha mão
esquerda para a manter em pé, e joguei meu preservativo no chão. Me
marturbei mais algumas poucas vezes e a virei para ver o que faria.
Desejei aquilo com todo o ardor de meu peito e confusão de minha
mente. E Misha não pareceu contrariar. Então, gozei em sua perna,
deixando que escorresse até a última gota.
Misha apenas confirmava com a cabeça, sorrindo, ainda em meio
ao devaneio.
Me senti a porra de um animal, mas não me importei. Ela era
minha, caralho, e só minha!
Joguei seus braços por cima dos meus ombros e a sustentei no ar
enquanto a abraçava, segurando sua cabeça com as mãos.
— Eu te amo, Misha. Eu te amo pra sempre. Eu te amo de uma
forma que faz minha cabeça ter pensamentos demais. Tudo e muito mais é
verdade, arde aqui, amor. — Bati meu punho fechado em meu peito e voltei
a mão a sua cabeça. — Suas mentiras alucinam minha mente, sua boceta me
vicia e seus beijos são minha perdição.
— Eu também te amo. Eu também sempre vou te amar. Eu sou sua
e você é meu, isso é para sempre, Axel, para sempre! — Sorriu de canto,
olhando rápido para onde a havia marcado.
Nos beijamos ainda mais profundo, ainda mais intenso, e
demonstrando ainda mais nosso amor um pelo outro.
Eu nunca largaria aquela garota!
30

Até o último segundo de jogo, eu vibrei torcendo pelo Axel, pelos


Wolves Crown e pelo meu pai, mas a carranca com que ele me recebeu em
casa deixou claro que aquilo o havia desagradado, e muito.
— Precisamos conversar — disse, grosseiramente.
— Ok — anunciei, me sentando no sofá à frente deles.
Anthony arranhou a garganta, esperando Jeff dizer algo, mas ele
permanecia estático, focado no chão.
— Bom… — Meu pai alongou a sílaba. — Jeff me falou sobre a
visita rápida de vocês ao hospital. Vocês entendem que foi muito
inapropriado tanto para o trabalho de Montana, quanto para o de Jeff, certo?
Além, é claro, de você quase perder a performance das animadoras, filha.
Precisamos falar sobre isso.
— Misha precisava daquilo. Eu a levei e não me arrependo — Jeff
respondeu tosco, as íris azuis rapidamente me fitando.
Sorri leve, mas logo ele voltou a encarar o chão, com o corpo meio
curvado.
Eu não sabia o que pensar. Eram meus pais e minha mãe, era a
porcaria da minha família! Não me pareciam cem por cento certos, porém,
na mesma dose, não pareciam errados. Ora eles me defendiam, ora me
ultrajavam. Éramos como um emaranhado complexo. Parecia errado e
certo, quente e frio, na mesma medida.
Era como se eu tivesse que lidar com um novo pensamento sobre
eles a todo instante e isso cansava pra porra!
— Olha… — Arrumei a minha postura. — Eu acho que o nosso
relacionamento familiar é conturbado. Vocês me tratam bem em algumas
coisas, mas em outras, não. Uma parte de mim deseja que tudo seja bom,
mas sei que o colorido da inocência não volta. Acho que ontem fomos
ofensivos demais uns com os outros, mesmo ainda nos amando. Minha mãe
não tinha vocação para o ofício que lhe foi imposto e tudo bem, porque,
pelo menos, ela se saiu muito bem. Eu só… queria que as coisas fossem
melhores, queria entender melhor vocês.
— E nós também queremos entender você melhor, filha —
Anthony se apressou em dizer.
— Acontece que você gritar e vibrar a cada passe do Axel não
ajudou em nada na reputação da nossa família, ainda menos estarem
namorando sem nos avisar. E essa pauta vai ser levantada na próxima
reunião, deveríamos pensar no que vamos fazer.
Jeff era tão dualista! Neguei com a cabeça, rindo internamente.
— Eu torci por todos igual e não sei o que quer que digamos aos
Daughety, mas eu não esconderei meu namoro.
— Era o mínimo — resmungou, revirando o rosto.
— Nem vou me casar com ele — decretei.
— O quê? Não… a nossa situação só piora.
— Eu nunca quis casar. Não vou fazer isso agora só porque estou
apaixonada.
Um silêncio percorreu o lugar, varrendo para baixo do tapete todas
as nossas inseguranças.
— Tudo bem, filha — Anthony disse. — Vamos pensar no que
fazer, ok?!
— Mas algo terá de ser feito! — Jeff pontuou. — E que merda são
essas manchas roxas no seu corpo?
O temor se apossou de mim e eu me encolhi inteira.
— Como souberam disso? — sussurrei.
— Te demos um banho quando desmaiou, esqueceu? Fora esses
seus desmaios repentinos e a sua alimentação toda irregular. O que está
acontecendo, filha? — Jeff soou mais doce na última frase.
Minhas lágrimas escorreram sem eu ao menos perceber, notando
apenas o aperto no peito.
— Eu não sei.
— Como não sabe? É seu corpo! — Jeff quase gritou.
— Querido, calma! — Anthony pediu. — Filha, me diga, foi alguém
que fez isso com você ou é você que está se machucando?
— Não, não, por Deus, nenhuma das duas opções!
— Então, o que está acontecendo, filha? Confie em nós. Se quer ir
ao médico ver isso…
— Eu não… — interrompi. — Eu não sei ao certo o que é! —
Funguei, espanando as lágrimas das minhas bochechas. — Pesquisei sobre
e, ao que parece, é meu estresse e falta de alimentação regular, talvez
também o esforço que estou fazendo nos treinos de animadora. Podem ser
muitos fatores, mas, o mais provável, é meu estresse com as situações sobre
as quais não converso… — Curvei o rosto para o lado, muito tímida por
contar a eles uma parte física minha que era atingida por nossa relação
disfuncional.
— Está dizendo que as nossas brigas te deram isso? — Jeff exigiu
saber.
— Não! — Me apressei.
— Não minta!
— Eu não sei, ok?! Eu não posso ter certeza. Quer dizer, como eu
teria? — Funguei ainda mais, movimentando as mãos, nervosa, sem
conseguir os focar.
— Você está machucada por nós… — Anthony soou baixo. O
fitei. Seus olhos escuros, tais como os meus, e vidrados no chão, pareciam
ter visto algo temeroso. — É claro. Isso é bem comum. Digo, na clínica. —
Suspirou, engolindo em seco. — Não sei como chegamos a esse ponto
conturbado da nossa relação de pais e filha, meu amor — ele me olhou,
tomado pela certeza. —, mas vamos superar, ok? Vamos mudar isso,
melhorar. Tem minha palavra.
— Bom — Jeff puxou o ar, estufando o peitoral. —, essa conversa
já deu por hoje. Marque uma consulta e um psicólogo. Daremos um jeito
nisso e na minha família, não hoje e não agora, mas em breve — declarou,
colocando-se de pé e subindo as escadas, sem olhar para trás.
E eu desabei em lágrimas enquanto Anthony se compadecia,
sentando-se ao meu lado e afagando meus braços em um cafuné carinhoso,
me deixando descansar a cabeça em seu ombro.
— Jeff está nervoso com isso. Sabe como ele é, nunca ensinaram
sobre enfrentar seus incômodos de cara.
Pais… essas brigas eram tão cansativas.
 
 
 
31

Naquela noite, eu não consegui dormir. Algo, além de minhas


burocracias familiares, atormentava a minha mente.
Algo invisível.
Tentei ficar nas redes sociais, tomar um banho e até estudar, mas
nada aquietava meus pensamentos intrusos.
Algo de errado estava acontecendo.
Seria apenas algo meu ou que passei com meus pais nos últimos
dias?
Podia ser…
Finalmente, uma mensagem chegou para mim, mas, por ser de um
número desconhecido, meus músculos tencionaram.
 
Desconhecido:
Misha?
Misha:
Quem é?
Desconhecido:
É o Tyler. Acabei de avisar o treinador Daughety sobre a situação
do Axel. Vc pode vir com ele?
Misha:
Oq aconteceu?
 
Me apressei, colocando-me de pé, procurando pela minha bolsa e
algum casaco, com o coração batendo a mil por segundo.
 
Desconhecido:
Ele n estava passando bem, acho que tá intoxicado com algo…
Provavelmente drogas, Misha
N conte ao treinador
Pfv
Misha:
Claro
Vcs ainda estão em casa?
Desconhecido:
Sim
Misha:
Certo
Estamos a caminho
 
Saindo do quarto, encontrei Jeff já no início da escadaria.
— Vamos?
— Podemos — respondi apressada.
Meu pai dirigiu até a fraternidade dos meninos, sem som e sem
conversas, por isso, meu coração deu um salto quando o carro parou e ele se
virou para mim dizendo:
— Misha — me focou de uma forma cortante. —, você pode amar
ele e querer lutar para ficarem juntos, mas eu não permitirei que amarre a
sua vida a uma pessoa que toma decisões de merda!
Aquela foi, mais uma vez, meus pais sendo a contradição que
eram. Me criaram, me devotaram todo possível de si e me amavam, mas…
não tínhamos um relacionamento saudável de verdade, apenas essas
contradições complexas.
Porém, eu sabia que sermos como éramos não mudaria o fato de
precisarmos melhorar uns com os outros. Ao menos agora, entendíamos
isso.
— Eu mesma não me permitiria tal coisa. — Sorri sutil para ele.
Jeff sorriu de canto com minha resposta, confirmando com a
cabeça, como se eu tivesse acabado de fazer uma cesta. Era reconfortante
ouvir aquilo e ter aquele seu olhar em mim; uma confirmação silenciosa.
— Você pode ir, eu vou comprar remédios e comida. Tyler me repassa
o que acontecer. Se eu entrar, Axel pode ficar assustado e os outros
também. Apenas avise para Tyler para ficar aqui na frente e atento ao
celular.
De início, estranhei seu comando, mas compreendia sua
maturidade.
Acenei com a cabeça e desci do carro, um pouco insegura, com
medo do que precisaria fazer para deixar Axel melhor. Não queria piorar a
situação.

Axel estava sentado no telhado, segurando as pernas com uma mão


e com a outra, um cigarro.
Distante.
Conturbado.
Esvaecido.
— Você veio… — divagou ao notar a minha presença, ainda com
o olhar perdido. — Tyler te trouxe aqui? — Sua voz flutuava, passiva e
chorosa, deixando claro o quanto ele carregava um peso no peito.
Em leves e vagarosos passos, o alcancei. Estava apreensiva,
parecia que meu pobre coração seguia amarrado em uma prancha em alto
mar.
— Tyler me falou que você estava aqui em cima, mas eu vim por
querer. — Respirei fundo e me aproximei por completo, testando se estaria
tudo bem se eu me sentasse ao seu lado. Ele não se moveu, então me
acomodei. — Os meninos estão muito preocupados. — Axel riu em
escárnio, soltando mais uma lufada do fumo. — É sério, Axel. O que você
está fazendo… — O olhei de cima a baixo. Ele estava suado e grudento, os
olhos borrados de roxo pela noite em claro e o cheiro não era dos melhores;
cigarro, álcool e sujeira. A clara confusão que sua mente se encontrava
fazia minha alma esmaecer. — Está se destruindo a troco de que? Essa é a
sua oportunidade, o basquete é a sua real oportunidade! — Quase alterei
minha voz, nervosa por seu estado. Meu coração batia a mil e minhas veias
ferviam.
O tempo arrastava-se pelo espaço sem sua resposta, agoniando
cada mísera parte minha, e nem por um segundo ele me olhou. A minha
paciência estava por um fio. Parecia que nada estava o afetando; nem as
drogas, nem a degradação do seu corpo e nem a minha voz.
Eu deveria puxá-lo pelo colarinho do moletom velho, falar "ei,
moleque, você vai parar agora de fazer essas merdas consigo mesmo, seja lá
o que essas coisas signifique, mas eu nunca mais quero ver você assim e sei
que você também não quer", e então, talvez eu até sacudisse seu corpo, para
levá-lo ao seu banheiro e lhe dar um bom banho…
— E você…? — disse de repente.
— Eu o quê? — me assustei, voltando à realidade.
Seu pescoço virou bem devagar em minha direção.
— Você sentiu falta de mim, Misha? Quando me vê assim,
imundo, ainda pensa em mim como alguém que quer ao seu lado? Que você
guardaria em sua cama como seu segredinho sujo durante a noite para
acalentar? Eu sou só isso pra você, certo? Sua boa foda que dá um
pouquinho de trabalho por ser grudento, mas tudo bem, porque chupo seus
peitos e toco você como quer. Esse namoro não passa disso, não é mesmo?
Nem tentei disfarçar meu queixo caindo.
É isso que ele tá pensando?
— Não sei que porra tem nesse seu cigarro, mas está falando mais
bobagens que sempre! Vou socar a sua cara se não parar com isso! —
Fuzilei seus olhos vermelhos, sem um pingo de vontade de ser menos
ríspida.
Ele sorriu levemente, como quando se divertia ao brigarmos.
Éramos tão errados nisso…
— Já fumou? — Axel voltou a focar no horizonte.
— Algumas vezes, às escondidas com Saori, tabacos baratos e
outras ervas melhores com Brand.
— Quer? — Se virou para mim, entendendo-o.
Divaguei por um momento.
Existiam alguns tipos de drogados: aqueles que usavam pelos
outros; aqueles que se vigiavam, porque não sabiam dizer não; aqueles que
tinham sérios problemas e sua única escapatória eram narcóticos pesados; e
pessoas como o Axel, que estavam em algum tipo de limbo pessoal.
Esses últimos precisavam ser puxados de volta quando se estendia
a mão.
É muito difícil saber distingui-los, mas a dica que meu pai
Anthony me deu foi: alguns sempre fingem que nada acontece no outro dia
ou quando estão sóbrios; outros brigam, esperneiam, mas não de modo
brutal, como em alguns casos; alguns deles são melancólicos, nada
semelhante aos depressivos crônicos, eles são… diferentes. É uma dor que
escorre por seus olhos sem choros ou clareza para entendimento daquilo.
Eles querem ser puxados de volta à realidade, porque se lembram dela, a
desejam. Eles são quebrados e capazes de se reconstruir com ajuda.
Diferem-se uns dos outros, esses precisam de muito mais.
Não que fossem melhores, mas eu agradecia aos céus por ver Axel
com olhos pesarosos de melancolia, porque sabia de que tipo ele era.
— Aceito. — Me sentei ao seu lado, estendendo a mão e
esperando me entregar o cigarro.
Axel penetrou suas íris verdes em minha direção, parecendo ser
tomado por uma dose absurda de realidade.
— Você nunca devia aceitar uma merda dessa de ninguém! —
bradou, jogando até mesmo a embalagem do seu bolso do alto do segundo
andar.
— O quê…? — divaguei meio desentendida.
— Vamos — se colocou de pé, estendendo a mão para mim. —,
preciso que entre comigo.
Segurei sua mão e impulsionei meu corpo para me levantar.
Analisei seu semblante cansado por um segundo, até ele inclinar a cabeça,
nos indicando a entrada.
Sem demora, adentramos seu quarto e Axel trancou a porta assim
que passei por ela.
— Isso precisa ser arejado — evidenciei, caminhando até depois
da cama para abrir a larga janela que dava para a sacada. — Pode me dizer
se…
— Tô no banheiro. — Ouvi sua voz mais abafada.
Ele passou tão rápido pelas minhas costas que nem o vi?
Rumei em direção a ele.
Axel tirava seu casaco azul escuro e, em seguida, a blusa de time
mais velha, provavelmente da sua época de escola.
Tudo tão devagar.
Tão solitário.
— Vai ficar me secando mesmo? — alfinetou, sem se virar por
completo.
— Acho que posso secar meu namorado. Está nas cláusulas
contratuais.
Depressa, Axel virou e caminhou ao meu encontro, sorrindo largo.
— Queria tanto te beijar agora — sussurrou, já perto de mim.
— Por que não o faz?
— Você não merece estar com uma pessoa no estado em que
estou… — Arrastou as palavras ao passo que fazia o mesmo com seus
olhos pelo meu corpo.
— Você só fala bobagens quando está bêbado. Vamos, precisa se
banhar.
Confirmando com a cabeça ele adentrou o chuveiro e tomou o
banho sozinho.
Em puro silêncio.
Mas estar em silêncio com o Axel não era um problema.
Assemelhava-se a ter a mente em estado relaxado por tempo demais.
Quando o chuveiro desligou, voltei à realidade.
— Já? Pareceu que você acabou de entrar.
— Deve ser o horário, você já tá dormindo acordada. — ele já
voltara com seu sorriso leve.
— A toalha — estendi a ele. — Posso dormir com você?
— Claro. Jeff sabe que está aqui?
— Sim. Ele me trouxe. E também foi comprar comida e remédios
pra você.
— Certo… — divagou, enrolando a toalha no torso. — Ele sabe
que eu tô assim? — perguntou sem me olhar.
— Sabe.
— E te deixou ficar? — estranhou.
— Ele disse que se você for mesmo um idiota, eu estou fora disso
definitivamente. — falei de uma vez. Axel virou o rosto depressa em minha
direção. — E eu respondi que nem precisava…
— Porque você sairia antes. — ele completou.
— O que aconteceu, Axel? — perguntei ao me aproximar,
puxando seu rosto para mim. — Por favor, fala comigo — supliquei.
— Ontem meu pai me ligou. Você sabe que uma mulher vem nos
visitar por conta do homem que você furou e morreu.
— Ele avisou quando ela vem?
— No fim de semana antes do Halloween. — seu tom de voz era
baixo, como se escondesse algo ainda pior. — Ela deve ser alguém muito
bem treinada desde pequena. Vai até trazer uma acompanhante. Pelo que
Marcel disse, é a amante do marido dela. Se a amante do marido dela anda
com ela, que porra de poder essa mulher não tem? Eu sou só um moleque,
Misha — Axel olhou no fundo dos meus olhos. Havia temor demais ali. —
Ela é uma rainha, e eu sou o filho com péssima criação de outro rei doente.
— De verdade, eu entendo que a situação seja complexa, mas
vamos olhar pelo lado positivo, ok? Ao menos sabemos que ela vem com a
amante do marido, isso significa que sua mente deve ser mais aberta de
alguma forma. Talvez ela só esteja vindo para cumprir burocracia e
trazendo a amiga para não ficar só.
— A outra parece ser DJ. Alejandro disse que ela exigiu tocar na
boate antes da nossa reunião.
— Achei legal — disse em meio-tom. — Quem sabe elas são
minimamente decentes. O que pode acontecer? Elas não vão matar ninguém
— sorri, tentando tranquilizá-lo.
— Eu acho que elas podem matar quem bem desejarem.
A batida na porta do quarto tirou nossa atenção da conversa. Tudo
bem, o Axel devia só estar nervoso mesmo.
— A comida e o remédio — Tyler avisou.
— Eu pego. Vai deitar. — disse a Axel, dando um selinho em
seguida. Rumei em direção à porta, enquanto Axel se jogava na cama. Abri
a porta, dando de cara com o capitão, logo pegando a aspirina e a caixa de
pizza. — Obrigada — sorri fraco.
— Nada. Ele está melhor? — Tyler se preocupou. Confirmei com
a cabeça. — Certo — divagou. — Qualquer coisa pode me chamar.
Confirmei com a cabeça e acenei um tchau.
— Comida? — virei na direção do meu namorado, sorrindo
abertamente. — Tem água aqui?
— Tem — ele puxou uma garrafa imensa do lado esquerdo da
cama. Estendi a aspirina para ele, que tomou de cara feia e escondeu a caixa
debaixo do travesseiro fazendo uma carranca fofa.
Depois coloquei a caixa de pizza na cama e me joguei nela.
— Você não pode não gostar de remédios. Já é adulto — zoei.
— Que chata você, hm — retrucou de volta.
— Nem um pouquinho — estiquei minha coluna para beijá-lo. —
Você beija rápido — fiz um bico.
— Você ainda gosta mesmo de mim?
Franzi os lábios, estranhando a pergunta dele, e me sentei de novo.
— É claro que sim. Por que eu não te amaria mais? — exigi saber.
— Porque tava daquele jeito — falava do seu momento antes do
banho, as drogas…
— O que te fez ficar assim foi seu pai, certo? — Ele confirmou
com a cabeça. — E você vai deixá-lo ir ou vai continuar com isso?
Suas íris procuraram meu rosto e ele me fitou.
— Sei que não é o que queria ouvir, mas eu preciso continuar.
Minha mãe não tem nada nem ninguém. Sem o dinheiro dele não vamos
sobreviver e ele só nos ajuda se eu o ajudar. Ele deve querer me tornar
como ele… — abaixou a cabeça de novo.
— E você vai?
— Óbvio que não! — me fitou apressado. — Eu posso até ajudá-
lo, mas nunca serei como ele, Misha. Eu não vou ser o que cresci vendo.
Havia tanto amargor em sua fala, como se sua mente tivesse
viajado para tempos atrás em segundos.
 
 
flashback.3

Era 15 de novembro. Lembro como se fosse hoje. Minha mãe


estava grávida de uns oito meses, a barriga imensa e a fome igual. Não que
eu também não compartilhasse do segundo sentimento, mas, enquanto eu
era só um moleque sem comida por uns três dias, ela era uma mulher de
mais de trinta anos, grávida, sem comida e com dois filhos pra cuidar.
Calíope nessa época já quase não vivia em casa, sabe-se lá Deus
porquê, mas ela ainda era a minha irmã e precisava comer. Todos
precisávamos, mas acho que a minha irmã aprendeu a correr para a rua
justamente por já entender a dor que era conviver em casa.
Meu pai nunca havia demorado tanto para voltar como naquele
dia, não que eu me lembrasse.
— Axel! — ele gritou, como uma importunação a meus
pensamentos. — Eu não estou achando a porra da porta! Abram essa merda
agora, moleque! — gritava, gritava e gritava, enquanto eu já estava
correndo para a porta.
— Não estava trancada, papai. Como não a achou? — estranhei,
abrindo, mas logo o notei muito distante da entrada, procurando por algo.
— O que faz aí, pai?
— Quê? — Ele parecia não prestar muita atenção em mim, olhava
para trás como se esperasse ou visse algo. — Ah, o que faz aqui, moleque?
Está vindo chuva, apresse-se, precisamos entrar. — Mudou de assunto e me
empurrou pelos ombros para dentro de casa, tão apressado que eu até
tropecei.
— Papai, calma! — pedi, quando o ouvi fechar a porta atrás de si e
firmar seu corpo contra ela, a segurando, como se fugisse de algo. — Papai,
o senhor tem medo de chuva?
Suas pálpebras estavam fechadas com muita força, mas logo ele as
abriu e era como se os seus olhos fossem pular para fora; estavam
vermelhos e a parte de dentro sobressaltava. Era muito estranho, muito
estranho mesmo. Instintivamente, meu corpo se afastou em direção a parede
que dividia a escada e a cozinha, assustado demais com aquela sua
expressão de terror.
— Emma! — gritou, parecendo que não me via mais. — Emma,
porra, onde está?!
— Querido, querido, acalme-se. — Ouvi a voz de mamãe,
descendo as escadas. Sua mão firmada na base da coluna, a barriga imensa,
assim como seus cabelos acobreados. — Estou aqui. Já chegou? Que bom!
Quer que eu ponha sua janta?
— Onde está a porcaria dos papéis que Marcel deveria ter trazido?
— Papéis? Que papéis, amor?
— Não se faça de sonsa! — bradou, aproximando-se dela muito
rápido. Me encolhi ainda mais no lugar, mas eu parecia invisível para ele.
— Eu sei que me trai com ele. ONDE ESTÃO A PORRA DOS PAPÉIS
DO DIVÓRCIO, EMMA? — Sua voz estremecia cada partezinha do meu
corpo pequeno, mas eu não conseguia fazer um mínimo movimento, apenas
fechar os olhos.
— Amor, eu nunca te trairia. Quem falou uma coisa dessas para
você? — Minha mãe apressou os passos em sua direção, afagando seu
rosto. — Você está bem? — Olhava em seus olhos, os mesmo olhos
bizarros que notei antes.
— Eu sei que é com ele, Emma! Não tentem me esconder! —
exigiu, fora de si, e deu um tapa em seu rosto.
O som foi alto.
A dor em meu coração também.
Virei o rosto, com medo.
Parecia que a qualquer momento tudo iria se transformar em
poeira, aquela cena seria apenas algo que costumávamos ver na tevê, algo
irreal.
Mas não aconteceu.
Alejandro continuou batendo em minha mãe na minha frente.
Na nossa última viagem à Espanha, eu o vi bater nela grávida, de
novo, tal como na primeira vez que a vi apanhar. Foi naquele momento que
decidi fugir com a minha mãe e irmão para a casa de veraneio em SS de
novo.
Sem planos.
Morrendo de medo.
E sem querer viver aquilo novamente.
Mas eu acho que falhei, já que vivia me drogando para sair da
realidade também.
 
32

Minha cabeça estava baixa, pesada pela timidez de expor mais e


mais sobre meu passado para ela.
E se ela sentisse nojo de mim, por me achar parecido com meu pai,
e me deixasse?
— Olha pra mim, por favor? — A sua voz soava como um
sussurro de anjo, transmitia calma por todo meu corpo e mente.
— Eu não quero te perder, muito menos ser ruim pra você. Eu te
amo tanto, Misha. Mas se eu for igual a ele… eu… já estou trabalhando nas
mesmas coisas. O que mais falta?
— Você não é igual a ele e nem vai ser. Eu entendo tudo isso que
passou e seu medo de se tornar parecido com ele por estar nesse ambiente
de trabalho, mas não vai, tá? Eu juro pra você que nunca vou largar a sua
mão.
— Não sei porque gosta de mim, Misha. Você tem tudo e eu nunca
poderia te dar algo tão grandioso quanto seu nome de família. Não vale a
pena algo tão grande como isso ser trocado por mim.
— Para com essa merda agora! Eu não permitirei que se degrade
na minha frente. Te amo, porque arde em meu peito, porque você é o fogo
que arde em minhas entranhas, porque viu meu pior lado e não só ficou,
como também gostou.
— É bizarro, mas é verdade. — Sorri de canto, a puxando pelos
braços e depois cintura, para sentar-se em mim. Parecia que suas palavras
verdadeiras já eram o suficiente para acalmar meu coração. Misha mordeu
os lábios e sorriu largo, eu sabia que sua mente maquinava algo. — O que
foi? Por que esse sorrisinho?
— Nada — disse simples, virando um pouco o tronco e pegando a
caixa de pizza. Tirou um pedaço e colocou na minha boca. Depois,
enquanto eu já mastigava, ela levou até próximo a boca dela, mas parou. —
Eu vou com você ver as mulheres. — Então mordeu, como se a sua fala não
fosse nada de mais.
Quase me engasguei.
— Não vai porra nenhuma! Elas devem ser lutadoras e atiradoras
profissionais, armadas de todo tipo de coisa até os dentes.
— Ora, você não manda em mim. — Enfiou a pizza à força na
minha boca. — Acha que sou fraca e me intimido fácil? Ninguém toca no
meu homem!
Gargalhei, ainda tentando conter a comida em minha boca.
— Isso se trata de ciúmes, então? — perguntei após engolir.
— Pode ir tirando esse sorrisinho sarcástico do rosto. E, não, eu
não tô com ciúmes. É um fato, você acha que eu não conseguiria te
defender.
— Ah, claro. Até porque, você sabe muito bem desviar de uma
arma e atirar ao mesmo tempo — falei, puxando sua cintura mais para mim.
— Tá vendo? Não confia em mim!
— Não é questão de confiar, amor. Meu Deus! É algo perigoso!
— Eu não me importo! Quero estar ao seu lado em tudo e todas as
coisas. E se acha tão perigoso, é só me ensinar — deu de ombros.
— Desculpa, mentirosinha, mas eu nunca vou te ensinar a atirar.
Você já é um furacão sem uma arma, imagine com.
— Eu disse, você não confia em mim! — insistia, virando o rosto.
— Quer saber, tudo bem, eu não vou com você ver essas duas mulheres que
a gente nem sabe como são ou quem são…
— Temos fotos delas — disse, simples.
— Você ficou vendo o rosto delas esse tempo todo e eu sem nem
poder imaginar? Me mostre elas agora!
— Tá bom — falei, achando graça da sua pressa. — Mas você tem
que me prometer uma verdade — sugeri, curvando o corpo para o lado para
conseguir pegar o telefone.
— O quê? Se for para que eu não vá, não adianta.
— Isso vai ser assunto pra outra hora — expliquei, abrindo a
conversa de Marcel, que sempre me mandava fotos de tudo.
— Então, o que é?
Estiquei os lábios ao notar sua ansiedade e me aproximei de seu
corpo, colando nossos narizes.
— Está com ciúmes de mim?
— Não se iluda! Por que eu teria ciúmes de você se é você que é
obcecado por mim?
— Eu não sei, mentirosinha. Me diga você — falei, arrastando
meu olhar por todo o seu tronco e apertando sua cintura com minha mão
livre, enquanto estendia o telefone para ela.
— Nem nos seus sonhos! — disse, tomando o celular da minha
mão. — Ai, meu Deus. Elas são… Por Deus, realmente parecem rainhas!
Quantos anos elas têm? Parecem novas.
— Marcel disse que elas têm menos de 25, mas ninguém sabe ao
certo.
Com seu rosto tomado de surpresa, ela me focou, mas como eu
mantinha minha análise em seu corpo, ela se remexeu em cima de mim,
exigindo minha atenção.
— Eu conseguiria lidar com elas sem problemas, com certeza.
— Mentirosinha, não vai rolar — decretei, a encarando. — Não
tenho tempo para te treinar em qualquer coisa dessas, e você precisa estar
segura.
— Foda-se! Eu quero estar com você!
— É perigoso, caralho!
Suas sobrancelhas e início de bochechas se uniram em uma
carranca irada. Desejei rir de sua briga boba. Misha não ia, mesmo sendo
muito difícil manter minhas decisões com ela.
— Se você voltar ferido ou com algum problema, eu não vou te
ajudar! — disse por fim, tomada pela raiva.
— Eu vou voltar bem. Muito bem. Igual. Você vai ver.
— Você não pode me prometer uma coisa dessas! — ralhou,
pegando mais uma fatia de pizza e mastigando, ainda de cara fechada. — E
não entende que me preocupo com você.
— Eu acredito e amo a sua preocupação comigo, amor — falei, me
aproximando de seu rosto. — E agradeço — soprei em sua boca, notando
ela se hipnotizar por minhas palavras.
— Gratidão não paga sua descrença em mim.
— Então, eu preciso ser um namorado melhor — comentei e beijei
seu queixo. — Mais dedicado. — Desci para sua mandíbula. — Mais
incisivo… — Puxei sua cintura para que se sentasse melhor em cima do
meu pau.
Misha gemeu, assustada com a aproximação, e retornou o olhar ao
meu.
— O que pensa que vai fazer?
— Ser bom para a minha namorada — sussurrei com o rosto rente
ao seu seio, o beijando por cima da roupa. — Eu posso?
Desci minhas mãos pela base da sua coluna, firmando seu corpo, e,
em movimentos leves, a incentivei a se esfregar em mim.
— Pode. — Sua mão deixou a pizza cair na cama e sua cabeça
entornou para trás quando ela suspirou.
Após alguns segundos e ajudando, puxei seu queixo para mim.
— Olhe para mim — exigi, a beijando em seguida, indo o mais
intenso que conseguia, provando que voltaria bem e salvo para ela. E logo
nos separei, deixando vários selinhos em sua boca. — Eu vou voltar pra
você, tá bem? — afirmei e desci os beijos por seu colo, enfiando as mãos
por debaixo da sua saia, apertando sua coxa, enquanto ela continuava a se
esfregar.
— Se você não voltar… — começou, manhosa. Ao perceber que já
estava muito entorpecida pelo nosso momento, me olhou séria, firmou os
braços em meus ombros e as mãos em meus cabelos. Depois, ela puxou os
fios para que eu a olhasse de baixo. — Se não voltar bem, eu mesma vou
atrás dessas mulheres, seja lá onde for preciso!
— E se, por um acaso, alguma delas disser algo sobre uma
necessidade a mais? — sugeri a mentira, apenas para vê-la com raiva, e
precisei me conter muito com seus olhos transmitindo todos os parafusos da
cabeça dela rolando quando parou de se esfregar em mim.
— Que porra de necessidade, Axel?
— Você sabe, mentirosinha — falei, enfiando a mão na sua
calcinha. — Talvez alguma delas seja mais decidida e queira algo de mim,
diretamente. — Inventei, mexendo os dedos pelo meio da sua boceta e
notando o quão preparada ela estava para mim.
— Vai pra puta que pariu, Axel! Tira a porcaria dos seus dedos de
mim agora, se está pensando em me trair! — falou como um animalzinho
fofo e bravo, puxando meus fios para a focar. — Você é meu, ok? Só meu.
— Seriam apenas negócios… — sugeri ainda mais falso, não
escondendo a minha diversão com aquilo.
— Cala a porcaria dessa sua boca! Você só tá falando merda! —
exigiu, puxando meu pescoço para si, e me beijou enquanto movia os
quadris, me incentivando a masturbá-la.
Movi meus dedos para girar em seu clitóris e recebi um gemido
seu em confirmação, então, continuei. Misha deixou sua cabeça cair junto
da minha quando parou os movimentos e permitiu que apenas eu a guiasse.
Com a outra mão, puxei sua coluna para grudá-la contra meu corpo
e, em seguida, sua boca à minha. Nos beijamos e eu senti tudo dentro de
mim explodir, como uma confirmação certa de que não importasse o que
acontecesse agora, eu realmente tinha um lar.
Quando seu corpo estremeceu em minhas mãos e ela gemeu
manhosa aninhando o rosto na curva do meu pescoço, eu senti seu cheiro
doce se estranhando em minhas narinas… aquilo me fez completo.
Passei a mão por seus cabelos, satisfeito pelo que tínhamos
construído.
— Eu te amo, Misha. Eu te amo, eu te amo, eu te amo — falei em
meio a um desespero por pensar em perdê-la, a abraçando forte e sentindo
de volta seu abraço.
Seríamos para sempre.
 
 
 
33

Fumaças voavam ao meu entorno.


Meu coração apertava no peito.
A boate de meu pai estava lotada, brilhosa e com o som estridente,
como sempre.
A nossa atração principal essa noite já estava no palco: a mulher
loira e argentina de pele clara bronzeada, brilhos pelo corpo e penas em
volta da cabeça. Mas o que me preocupava era a sua companhia, ou melhor,
a minha atração principal da noite; Hinata, a mulher de pele opaca, cabelos
mais longos e retos que uma noite tortuosa e olhos cor de obsidiana, prontos
para metralhar qualquer um. Mas… sendo bem sincero, acho que a esposa
de um chefe de facção não anda com metralhadoras por aí, porém, sempre
tem um capanga como guarda-costas, ou seja, seria morto pelo cara que
circunda as duas, caso eu fizesse alguma merda.
Não posso falar merda. Não posso ser morto!
Nicola Peltz tocava músicas latino-americanas vez ou outra, mas
seu foco na noite eram as batidas eletrônicas clássicas, e Hinata Santori a
acompanhava, dançando leves movimentos ao seu lado. O palco parecia
feito para as duas mulheres. Majestades. Elas pareciam a própria realeza.
Seus cabelos contrastavam entre o loiro quase branco da DJ e os escuros
intensos da que dançava.
Talvez as luzes da noite estivessem me deixando ainda mais
maluco, mas realmente estava ficando desesperado. Não fazia ideia do que
elas haviam planejado. Eu era um moleque, nunca havia andado com meu
pai e não sabia como essas merdas funcionavam. Elas eram mulheres
experientes, mesmo parecendo muito jovens. Com certeza, eram, no
mínimo, precavidas; vieram juntas, além dos seguranças. Acontece que
Hinata ainda poderia ter vindo sozinha.
Por que Nicola está aqui?
Na verdade, pouco importava ser morto por uma ou outra, ou até
por seus seguranças. Qualquer um facilmente tiraria a minha vida em dois
segundos e, convenhamos, eu era jovem demais para morrer.
— Tá jogado nesse sofá há tanto tempo, olhando pra elas
hipnotizado. — Me assustei, notando o corpo alto e forte de Marcel
aparecendo ao meu lado. — Já vou logo avisando que Hinata e Rafael são
casados desde os dezoito anos e Nicola… bom, essa ninguém sabe ao certo,
mas deve ser amante de Rafael. Ou dos dois. — Marcel riu, ao propagar a
fofoca que todos sempre fizeram sobre a mulher loira.
— Não acho que ela seja a amante.
— Ele disse que ia mandar a esposa e as duas vieram. O que isso
significa, afinal? — Ainda sorria, convencido de que estava certo.
— Não sei. — Dei de ombros. — Mas, com certeza, isso não é da
minha conta! — Bati as mãos nas coxas e me coloquei de pé. — Que horas
são?
— Uma da manhã, chefinho — disse, zombeteiro, olhando o
relógio e, logo em seguida, para mim.
— Certo. Acho que já podemos ir, não é? Chame as meninas.
— Elas são as rainhas essa noite, não a gente — advertiu.
— E estão no meu território, na nossa casa. Devemos mostrar
alguma iniciativa caso queiramos ter alguma vantagem.
— Elas já estão na vantagem há tempos, chefinho.
— Axel Martinez? — Ouvi o tilintar de saltos finos logo atrás de
nós, ao som de uma voz aveludada, mas cheia de sotaque latino-americano.
Me virei, tenso, dando de cara com a cintilante pele branca cheia
de brilhos e os fios artificialmente ondulados, emoldurando seu rosto com
uma coroa de penas.
— Nicola Peltz. — Estendi a mão para ela, que a apertou, e logo
notei a outra atrás, sinalizando algo chamativo.
— Hinata fala bem pouco de inglês e basicamente não escuta, mas
entende tudo em língua de sinais. Serei uma boa tradutora, em todo caso. —
Ela sorria largo, amistosa, com Hinata já ao seu lado. — Podemos nos
reunir em um lugar mais apropriado?
— Claro. — Me apressei. — Hinata Santori. — Estendi a mão
para a mulher, quando já estava ao lado da loira. Hinata era bem menor,
mais magra, por mais que tivesse o mesmo olhar impositivo, vestindo preto
com vermelho, diferente da outra, que usava rosa cintilante com amarelo
brilhoso. — Este é Marcel. Ele vai nos acompanhar. — Indiquei meu
parceiro, que logo se aproximou.
Nicola seguia movendo as mãos, traduzindo tudo na língua de
sinais para Hinata.
— Sra. Nicola…
— Senhorita! Nunca serei casada — Nicola interviu, divertida.
Nunca?
— Srta. Nicola — Marcel falou, se desculpando. — e Sra. Hinata
— cumprimentou. Hinata apenas inclinou a cabeça em sua direção, em sinal
de respeito. — Iremos até a parte final do estabelecimento, para a sala de
reuniões. Seguiremos pelo corredor norte. — Marcel sinalizou quase onde
estavam as costas de Nicola. — Lá ainda é cheio de quartos e, por isso,
muitas pessoas. Depois, haverá um túnel, menos movimentado, apenas com
os nossos contribuintes. Será na última sala à esquerda. Podemos ir? —
Indicou com a mão a direção para seguirmos.
— Claro — Nicola respondeu um segundo depois de terminar a
explicação de Marcel na língua de sinais para Hinata.
Eu e Marcel seguimos na frente e as duas atrás.
Marcel fez um leve sinal com a cabeça para que eu o olhasse e
então, ele apontou para trás de nós, discreto, evidenciando que falaria algo
sobre elas.
— Será que ela veio apenas para ser tradutora? — ele sussurrou,
mas falava em espanhol.
— Eu creio que não. Parece algo mais — falei no mesmo tom.
Olhei rápido para as duas e elas também conversavam, mas por
língua de sinais, ou seja, além de nós não termos ouvido elas conversarem,
quem me garante que Nicola não traduziu todo o nosso espanhol para a
Hinata, afinal, ela veio da Argentina.
A movimentação de funcionários hoje estava um pouco demais e,
enquanto os olhava, ao passo que caminhávamos, aquela dúvida me deixou
mais tenso, mesmo que não tenhamos falado nada muito…
Um estrondo de um corpo grande sendo jogado contra a parede me
estagnou por completo.
Que porra tá acontecendo?!
Tudo pareceu estar em câmera lenta.
Olhei para o lado e Marcel focava no incidente, então, me virei por
completo para averiguar o que havia acontecido.
Hinata estava enforcando e paralisando meu professor de literatura
inglesa contra a parede em um golpe que só Deus sabe que arte marcial
aquela garota treinava para ter tanta força contra um homem tão mais velho
e musculoso.
Ela apenas inclinou com a cabeça para Nicola, como se
conversassem pelo olhar.
— Quem é ele? — a loira quis saber.
— É o meu professor de inglês — disse, meio perdido. — O que
aconteceu? — questionei, me aproximando junto de Marcel.
Desse cara eu não duvidava nada.
Assim que Nicola sinalizou a resposta que eu havia dado, Hinata
fez um gesto com a cabeça e respondeu algo em português.
— Ele estava fingindo apreciar meu show, mas passou todo o
tempo procurando vocês e nos seguiu até aqui. Tem algo de errado com ele
e não é sobre nós. — Nicola parecia uma máquina repassando informações,
enquanto se aproximava dele.
Olhei na direção do Sr. Dale, mas ele não movia um centímetro do
corpo para tentar fugir, muito menos suplicava por misericórdia. Apenas me
fitou de volta e sorriu.
Ele não sentia dor? Hinata podia não ter músculos, mas
desempenhava bastante força ali. E nem vai pedir por misericórdia?
— Marcel, cuide disso para a Sra. Hinata? — pedi, puxando o
celular do bolso e acionando outros seguranças.
— Você vai matá-lo onde? — Nicola quis saber, após Hinata dizer
algo em português.
Pisquei os olhos, meio atônito.
Matar?
Eu nunca matei ou quis matar, ou… eu não vou matar ninguém!
Cristo! Nunca. Isso não.
Marcel tomou meu olhar, rígido, como se aquilo realmente
precisasse acontecer.
Eu devia só mentir, certo?
— No galpão de mecânica. Está limpo, não é Marcel?
— Sim, Sr. — ele respondeu, parecendo bem surpreso.
Falei certo? Isso era bom? Por Deus, eu estava muito perdido
sobre o que fazer ali.
— Então, vamos! — Nicola se animou, como se matar alguém
fosse a mesma coisa que convidar para comer seu doce favorito.
— Pra onde? — quis saber.
— Para o galpão! Precisamos sempre dar preferência a resolver os
problemas do anfitrião, certo?
E, antes que eu pudesse responder com uma negativa em alto e
bom tom, Marcel disse:
— Claro! — Com o sorriso mais forçado que já vi em toda a
minha vida.
Se com “claro” ele queria dizer que Ele mataria o homem, tudo
bem, porque eu não faria isso!
— Como vai matá-lo, Sr. Martinez? — Nicola voltou seu corpo
para mim, em clara ansiedade para saber. O que se responde a isso? “Ah,
normal, com a porra de uma bala na testa”. Deus! — Porque, bem, ao que
parece, esse cara é um psicopata. Psicopatas não sentem dores. Podemos
degradar seu corpo para divertimento próprio, seria ótimo, mas sempre
temos tanto trabalho, às vezes é mais fácil para o Sr. o tiro certo na cabeça.
Desculpe-me pela minha animação, mas é difícil acharmos um assim por aí,
então, sempre me atrai saber como suas vidas terão fim.
Por Deus, ela era uma maluca sanguinária!

— Marcel, eu não vou fazer isso — disse, bem próximo de meu


companheiro, nada pronto para todo o caos que estava por vir.
Um de nossos seguranças carregava o Sr. Dale amordaçado à nossa
frente, enquanto as mulheres ainda seguiam atrás de nós.
— Com todo respeito, chefinho, o Sr. vai sim.
— Se eu matar alguém isso vai destruir a minha vida, vai mudar
quem eu sou! — Me contive para não gritar.
— Eu até diria que posso fazer pelo Sr., mas tendo elas duas aqui?
Sinto muito, chefinho, está em suas mãos.
— Preciso de um segundo! — exigi, me afastando de todos ao
voltar alguns passos no corredor.
Um segundo… um tempo… um momento? Ou até mais!
Engoli em seco.
Nem eu sabia ao certo o que precisava.
Que tipo de coisa se faz antes de matar alguém? Deus, eu estou
ferrado!
Eu não queria me tornar como meu pai, mas se isso ia acontecer,
então, eu precisava deixar Misha ir. Essa era minha única certeza. Era o
certo.
 
 
 
34

Saori me ligou por chamada de vídeo, pálida como um fantasma.


Me espantei com aquele nervoso estampado no rosto de minha amiga, mas
não tive tempo para responder, pois ela logo começou a falar.
— O que aconteceu com o Axel? — exigiu saber, fechando a porta
em um baque.
— Boa madrugada pra você também — disse, esfregando o olho.
Havia cochilado por dois segundos, esperando notícias do Axel
sobre a visita das mulheres.
— É sério, Misha! Que droga de mensagem é essa que ele me
mandou? Parece a porcaria de uma carta de despedidas.
— O quê? — Crispei os lábios, já nervosa.
— Eu te mandei. Dá uma olhada.
 
"De seu eterno garoto problema.
Axel Marcone Martinez."
 
Ai. Meu. Deus. Axel, o que você fez?!
— Que porra isso significa, Saori? — quis saber, sentindo cada
célula minha tremer em pavor.
— E eu que vou saber, Misha? — Soou ainda mais desesperada
que eu.
— Faz quanto tempo que recebeu isso? — perguntei, enquanto
procurava por minha conversa com ele.
Não tinha nem a porcaria de uma única mensagem.
— Uns cinco minutos. Eu vi e respondi perguntando o que tinha
acontecido, mas ele não me respondeu.
— Saori — chamei minha amiga em um fio. —, e se algo grave
tiver acontecido? Eu não sei… eu não sei o que pensar.
— Calma, amiga. Vamos esperar amanhecer, ok? E então,
poderemos ir na fraternidade procurar por ele.
Ele não estava na fraternidade. Ele estava com aquelas mulheres,
naquele lugar tosco do pai dele. Ele estava em perigo, isso sim!
 
 
 
35

Guardei o celular no bolso após pensar um milhão de vezes sobre


o que escrever para Misha.
Meu coração batia tão rápido quanto nos dias que meu pai chegava
em casa bêbado, só que agora eu não tinha medo de ser a vítima.
Eu tinha medo de ser o agressor.
Era melhor não dizer nada pra Misha mesmo, ela vai ficar melhor
sem saber sobre toda essa merda. Depois disso, nunca mais seria digno de
olhar para ela e muito menos do seu amor.
Eu seria sujo como ele. Como meu pai.
Então, para que me desculpar? Para que despedidas?
Em passos firmes, caminhei decidido até a área do galpão. Se era
pra acontecer que fosse rápido.
Dois dos nossos homens estavam mais distantes, Marcel próximo
ao corpo do professor Dale, pairando no ar por correntes do teto que o
amarravam, e as meninas mais distantes, porém, em igual admiração ao
corpo que se debatia pedindo para ser livre.
Toda aquela cena me enojava.
Dale ainda não tinha dito por que nos seguiu ou, pelo menos,
assumido se fez algo à Saori. Sendo bem honesto, eu preferia ter algum
mínimo motivo para matá-lo, além de uma possível perseguição.
É claro que ele estar seguindo e olhando a gente era suspeito pra
caralho, mas… por quê?
Por que se arriscar tanto para nada?
— Solte ele — ordenei a Marcel, me aproximando do corpo.
— Sr.? — Marcel sussurrou.
Nicola bateu os saltos no chão e sorriu, deixando claro o quão
animada estava para a matança.
Por Deus!
Hinata se mantinha quieta e passiva ao lado da loira, como um
pequeno passarinho calmo, sem pressa. Ela parecia doce.
Sorri leve ao notar o quão diferentes elas eram, ao passo que me
aproximava ainda mais do professor junto a Marcel.
— Isso pode ser perigoso — Marcel sentenciou em espanhol,
provavelmente para que o professor não entendesse.
Apenas dei um aceno com a cabeça para que ele não se
preocupasse.
O Sr. Dale caiu no chão após ser desamarrado. Por um segundo,
ele verificou os pulsos vermelhos e marcados pela minha demora em
mandar a mensagem para Saori e decidir se falava ou não com Misha.
Em seguida, ele levantou a cabeça, sorrindo debochado para mim.
— O que pretende fazer comigo, Axel? Ou devo dizer, Sr.
Martinez? — Ele se mantinha meio sentado no chão, levantando o pescoço
para me olhar.
— Por que nos seguiu? — quis saber, ainda mantendo uma certa
distância.
— Preciso saber se você se tornou o que dizem ter se tornado. O
sucessor de seu pai.
— E pra que isso te interessa?
Ele riu em escárnio, fazendo meu estômago revirar, pensando que
já sabia bem do que se tratava seu medo. Eu poderia muito bem socar a cara
dele agora.
— Depois do pequeno incidente na festa dos calouros…
— Incidente? Essa é a palavra que você escolhe usar?
— Sejamos sinceros, ela queria e você a levou até mim. — Ele
entornou a cabeça para o lado, como se as suas palavras fossem reais.
— Ela não queria aquela merda. Ela não queria que você fizesse
aquilo…
— Ah, ela queria sim. Não viu como ela se atirou em mim? Nem
conversamos, ela só me levou pro quarto.
Sem mais esperar por uma resposta dele, acertei um soco em sua
cara, vendo-o derrapar em seus próprios pés. A adrenalina correndo em meu
sangue me impediu de sentir dor, de me arrepender; na verdade, eu não
senti nada.
Nicola fez um som de animação e notei as meninas, assim como
Marcel, se aproximando. Porém, Dale apenas voltou e sorriu como um
animal moribundo.
— Saori já teve seu fim. Ela vai viver para sempre marcada com o
que eu fiz nela. Seus socos e o que quer que façam aqui comigo não mudam
isso em nada. Eu mesmo não sinto nada.
— Ai, meu Deus! Ele é perfeito para ser um de nossos testes! —
Nicola saltitou, animada. — Sr. Axel, permita-me sugerir levá-lo conosco.
Sempre é preciso fazer bons testes em ratos de laboratórios químicos como
os meus, com homens como ele.
— CALA A BOCA, NICOLA! — Meu Deus, ela quer levar o
homem para ser um experimento dela? Essas são minhas opções: matar ou
mandar ele direto pra tortura infinita?
Eu tô fodido!
— A loirinha é gata, mas eu não vou com ela — ele bravejou.
— CALA A PORRA DA BOCA TAMBÉM, DALE!
Nicola resmungou algo em português para Hinata, que soltou uma
risadinha. Aquilo me deixou mais puto. Me virei para encará-las, mas foi
tudo tão rápido que mal percebi.
Dale me atacou por trás com um mata leão e chutou meu joelho,
nos levando a cair um por cima do outro. Enquanto me debatia para me
soltar e as meninas assistiam tudo, Marcel se aproximou com pressa, junto
dos outros dois seguranças. Porém, antes que conseguissem fazê-lo me
soltar, Dale sussurrou em meu ouvido:
— Você sabe que ela mereceu aquilo.
A sua fala revirou meu corpo e minha mente. Tudo pareceu um
borrão.
Lembrei de todas as vezes em que meu pai batia na gente e dizia
que merecemos ou, pior, quando eram brigas apenas deles dois durante a
noite e ele gritava que minha mãe estava apenas recebendo tudo que sempre
quis, porque continuava ali, com ele.
Soquei a cara de Dale, prendendo seu corpo abaixo do meu, uma,
duas, três… incontáveis vezes. Marcel e os seguranças até tentaram ajudar,
tirando ele de perto, mas quando viram a minha raiva, se afastaram e só
assistiram.
Tudo passou rápido demais e eu já estava sem forças, foi então que
Dale me acertou um soco, fraco, mas o suficiente para me derrubar diante
dele. E quando os seguranças se aproximaram de novo, algo os impediu.
Tudo foi em câmera lenta.
Hinata o atacou pela frente, com um palito prendedor de cabelo
típico de culturas do leste-asiático, enfiando o acessório incontáveis vezes
em sua garganta. O sangue tomou todo o ambiente, até mesmo seu rosto já
meio rasgado por nossa luta.
Meu corpo se afastou alguns centímetros, chocado com a força e
agilidade daquela garota tão franzina. Ela estava tomada pela mesma raiva
que eu, mas tinha muito mais força e habilidade de luta. Seus golpes eram
certeiros, mas ela não parou, mesmo depois do corpo já estar sem vida.
Talvez eu devesse chamar Marcel para tirá-la de cima de Dale,
porém… ela não parecia do tipo que gostava de ser incomodada.
Um tempo depois, Hinata parou, tomando o ar apressada, já
parecendo voltar à realidade. Nicola se aproximou dela, dando uma mão
para que, como se fosse realmente uma rainha, ela se levantasse.
Hinata sussurrou algo em português, arrancando um sorrisinho de
Nicola que logo sinalizou enquanto falava comigo, e também me coloquei
de pé.
— Ela disse que você é igual a alguém que ela conhece muito bem
desde criança.
Isso era… bom? Deus, elas eram sombrias e malucas!
— As Sras. precisam de um banho…
— Vocês terão nossas armas enquanto estiver no comando —
Nicola cortou Marcel e falou, focada em mim, ao se aproximar. — Sinto
muito por sua amiga, Saori, Sr. Martinez. Saiba que, por mais que eu adore
um estuprador psicopata para meus experimentos químicos, seus atos são
uma marca eterna em nossas almas. — Tocando meu ombro, ela se
despediu com simpatia.
As acompanhei com o olhar enquanto elas saíam do galpão e voltei
a fitar o corpo morto à minha frente.
Havia um homem morto na minha frente.
Meu Deus, que vida de merda é essa?
 
 
 
36

Minha mente não se acalmava nem por um segundo.


O sol já tinha nascido em Stacy Scarllat, mas em meu coração tudo
era uma nuvem densa e solitária, revolta no pensamento de Axel estar bem
ou não. Já tinha até pensado se ele havia precisado fugir da cidade… não
sei.
Não sei que tipo de coisa faria alguém escrever aquela espécie de
carta que ele escreveu para Saori e nada para mim.
Nada para sua própria namorada.
Entre uma ideia tortuosa e um desespero evidente, me assustei ao
ver a janela do quarto ser, mais uma vez, invadida pelo corpo do garoto
moreno, derrubando mais plantinhas do que o possível.
— Ai, merda, droga! — Axel tentou juntar os vasinhos já
despedaçados, mas desistiu ao ver que era inútil e me focou em seguida.
Suas íris verdes estavam claras como água e logo seus olhos se
encheram de lágrimas. O temor de seu ser transmitiu-se para o meu,
arrastando dolorosamente por cada parte minha a pergunta que não queria
calar: afinal, o que aconteceu?
— Axel, ai, meu Deus! O que aconteceu? — As olheiras fundas e
a roupa tingida de escarlate me faziam crer que além de não dormir até
agora, ele esteve em alguma péssima situação.
— Misha, eu… — Seu corpo se arrastou ao meu encontro na
cama, mas ele se firmou no ferro da cabeceira, para não se encostar em
mim. — Eu… me desculpa, desculpa. Eu não sei estar mal e não vir aqui.
— Seu rosto se levantou ao meu encontro. — Você é meu refúgio, meu lar.
Desculpa te colocar nesse nível no meu coração. Eu me odeio por isso!
— Por Deus, Axel. Nunca mais diga isso! — o repreendi, me
pondo de pé na cama e o indicando para ir ao banheiro comigo. — Vamos,
me diga o que aconteceu!
Axel parou por um minuto, me olhando, e eu sabia que dali viria
uma confirmação que amarguraria meu ser.
— Dale estuprou a Saori. Ele me seguiu para saber se eu tenho
mesmo algum poder como meu pai, provavelmente para planejar um modo
de se safar de tudo, mas… — o olhar dele se perdeu. — em meio a uma
confusão, Hinata o matou.
Então, Axel continuou contando cada detalhe do que acabara de
ocorrer em sua vida, de como sabia que aquilo o mudaria, contudo, a única
coisa que pensou e conseguiu fazer foi vir ao meu encontro o mais rápido
possível. Enquanto ele contava, nós entramos no banheiro, ele começou a
tomar banho ao mesmo tempo em que eu já procurava um conjunto de
moletom para que ele vestisse.
— Meu Deus, Axel, eu até notei que ela estava diferente, mas
preferi acreditar que não era nada. Eu sou uma péssima amiga… — Meus
olhos já estavam cheios de lágrimas ao me escorar na parede contra a
cabine do chuveiro.
Como eu pude ser tão negligente com a minha melhor amiga?
— Calma, amor. Eu tentei falar diretamente com a Saori, mas ela
não queria se abrir sobre isso. Acho que precisamos respeitar o tempo dela.
— Você vai contar que ele morreu? — Funguei. — Terça-feira, no
dia das bruxas, seria nossa apresentação do trabalho. Ele não vai estar.
— Ainda não me decidi. Acho que devíamos falar com ela
juntos… Tem uma competição de skate hoje, podíamos ir todos juntos —
sugeriu, meio receoso.
— Pode ser.
Axel saiu do banho e eu lhe entreguei uma muda de roupas e
toalha. Enquanto ele se secava, me focou; sabia que estava apreensivo para
dizer algo.
— Sei que não devia falar isso, mas preciso. Você sabe que não
pode contar nada a ninguém, certo?
— Mesmo se quisesse, não conseguiria. Eu acho que nos
conectamos e essa merda deveria ser mentira, mas não é.
Axel sorriu, como se aquilo lhe causasse dor. A dor da
compreensão de que agora nossas mentiras tinham significados diferentes.
Nos amávamos, mas agora tínhamos um segredo. E esse fardo era
pesado demais, porém, um pouco mais leve por carregá-lo com o amor da
minha vida.
Notando aquilo e também vendo que Axel já saía do banheiro em
direção à minha cama, decidi pegar algo que guardava desde muito nova na
minha caixinha: o par do meu colar de cadeado que eu sempre usava.
O fitei, sabendo que ele era a pessoa certa.
— Nem em mil anos eu sonharia que nossas mentiras tinham
significados tão verdadeiros. — Caminhei em direção à cama, falando
diretamente com ele, mas olhando para o cordão. — Eu quero que fique
com meu colar de chave, porque você tem passagem direta ao meu mundo,
a quem eu sou de todas as formas. Guardo esse colar desde muito nova,
guardo para a pessoa importante da minha vida — terminei de falar, me
sentando ao seu lado na cama.
Seu sorriso era contido e a sua expressão de puro orgulho,
felicidade e respeito. Até jurei vê-lo piscar.
— Você, verdadeiramente, é o amor de toda a minha vida. Eu sou
grato por confiar em mim e espero honrar isso por toda a vida. — Axel
puxou meu queixo devagar para si e me deu um selinho. — Eu te amo.
Vamos resolver isso tudo juntos, ok?! Eu e você, pra sempre.
— Pra sempre.

Após dormirmos um pouco, acordei antes de Axel e o deixei na


cama. Pela primeira vez, senti que devia falar com meus pais. Mesmo que
não fosse toda a verdade, nem mesmo a pontinha dela.
Desci as escadas descalça, com um casaco longo e fino me
cobrindo ainda mais naquela manhã fria de domingo. Mal consegui dormir,
ainda estava muito cansada e julgava ser antes das nove da manhã.
Jeff bebericava um copo de suco de laranja enquanto Anthony
insistia para James comer uma fruta. Passei pela bancada, atraindo a
atenção dos olhos azuis de meu pai. Sorri simples, sabendo que ele me
conhecia o suficiente para saber que algo me incomodava.
— Vai comer o quê? — soltou a pergunta costumeira.
— Preciso só passar um tempo com vocês. — Me sentei à mesa,
acompanhada de Jeff.
— Bom dia, filha — Anthony cumprimentou, ainda focado em
fazer James comer.
O pirralho nem me deu atenção.
— Axel está lá em cima. Ele teve uma noite difícil. — Foquei em
Anthony, meu pai sabia o que aquilo significava.
— Eu entendo — ele respondeu.
— Entende? — Jeff quis saber.
Meu pai arranhou a garganta e nos olhou.
— Acho que o correto é falar com a sua família o mais rápido
possível — explicou. — Misha e ele não vão se esconder.
— Isso é uma situação complexa, você bem sabe.
— De certa forma, ela só tem o nome deles…
— E você acha que isso não importa? Para eles, tudo é sobre o
nome — Jeff argumentou, meio estressado. — Precisamos de algo melhor.
— E se… dissermos que sabemos que é algo passageiro?
Eu e Jeff viramos o rosto apressado para Anthony, descrente, pois
sabíamos que não era algo real.
— Mentir? — Meu pai elevou as sobrancelhas em direção ao
marido.
— Contar uma meia verdade. Misha e Axel podem tomar suas
próprias decisões no futuro. Até lá, planejaremos algo melhor.
— É, de certa forma, isso me parece bom. — Jeff assentiu,
refletindo. — Tudo bem, faremos isso!
Acenei com a cabeça, meio perdida.
Tudo bem, tudo bem… certo?

Insisti com Axel que devíamos espairecer e ir à competição de


skate que ele estava falando que rolaria aqui na cidade. Ele só aceitou ir
quando eu o lembrei que poderíamos levar Saori e que essa seria uma
oportunidade de podermos conversar com ela.
Pegamos minha amiga em sua fraternidade e ela não esperou um
segundo após fechar a porta do carro para perguntar sobre a mensagem da
noite anterior.
— Que porcaria de mensagem de despedida foi aquela, Axel?
Ainda por cima nos leva para sair hoje como se não fosse nada de mais.
Perdeu o sentido das coisas, garoto?
— Misha e eu achamos que te devo uma explicação, mas… é
complicado — divagou, focando apenas na estrada.
Me virei um pouco no banco para olhá-la. Sorri fraco, buscando
forças para falar o que sabia.
— Sabemos o que aconteceu na noite da festa dos calouros. —
Tirei um fio de cabelo que estava na minha boca por conta do vento. —
Sabemos o que Dale fez com você.
Imediatamente, minha amiga fechou todo o corpo, se recostando
no banco traseiro.
— Eu já disse pro Axel que não quero falar sobre isso.
— Ele está morto — Axel disse de repente.
— O quê? — Saori aproximou-se de nós. — Como assim? Como
isso…?
— Em uma perseguição. Mas nunca vão encontrar o corpo. Foi
queimado. Soubemos na boate — Axel mentia sem nem a olhar.
— Isso é… Ah, meu Deus! — Saori apertou as mãos no rosto,
chorando baixinho. — Obrigada. — Ela fungou. — Obrigada por me avisar.
— Então, você não gostava mais dele? — sondei.
— Meu Deus, mas é claro que não! — Minha amiga enxugou as
lágrimas e voltou a falar. — Depois que aquilo aconteceu eu fiquei meio
obcecada em tentar mantê-lo por perto. Eu tinha medo de… sei lá. Eu não
sei de que porcaria na vida eu tinha medo. Mas eu temia muito. Contudo,
quando fui aceita na fraternidade, as meninas nos deram muitas obrigações
e também explicaram sobre relacionamentos abusivos. De certa forma, os
trabalhos extras por ser novata ocuparam minha mente do falso sentimento
de amor que nutria por ele e as explicações das meninas clarearam as
minhas ideias.
— Que bom, amiga. Me chateio comigo mesma por não ter
notado. Eu… sinto que te negligenciei…
— Não, amiga. — Saori se aproximou de mim, segurando minhas
mãos. Funguei ao focá-la. — Axel veio diretamente falar comigo e eu não
queria relembrar. Eu nunca queria. Precisava de um tempo comigo mesma.
Pensar e repensar sobre mim mesma.
— Mesmo assim, me desculpa? Eu serei uma amiga mais presente.
— Você é meu presente perfeito, patricinha! — Saori sorriu
singela e bagunçou um pouco meus fios alisados naquele dia, tal como
quando éramos crianças.

A pista de skate estava lotada de pessoas e Saori sorriu animada
enquanto olhávamos de longe Axel falar com alguns competidores.
— Ai, meu Deus! Preciso me conter, mas aquele é o novo ator
contratado para fazer a série do momento que promete ser maior que
Stranger Things. — Saori disse empolgada, apontando em direção a um
rapaz loiro de óculos escuros, nos bastidores do palco, junto com a banda
que tocaria naquela tarde. — Dizem que ele é conhecido pela filantropia.
Ele deve ter vindo por estar financiando esta banda.
— Hmm, isso é bom, mostra que ele tem um bom coração. — Dei
de ombros, olhando um pouco admirada a bonita roupa de apresentação da
cantora; um cropped verde mostrando bastante do seu corpo midsize, e suas
costas sendo banhadas pela cascata de cachos em californianas.
Loiro no cabelo e verde na roupa combinou com ela. Gostei!
— Bom coração e um gatinho de rosto! — Saori disse, ainda
admirando o rapaz.
— Vamos, vamos ver a competição — falei, rindo, enquanto
caminhávamos para perto da rampa e Axel, que ainda conversou por mais
alguns minutos com os rapazes antes de ir até nós.
— Saori — ele a cumprimentou e ela logo abaixou a cabeça,
voltando sua atenção a rampa onde os competidores se preparavam, ao
passo que também firmou seu skate no chão. — Oi, amor! — E me beijou
rápido, já focando em assistir o desenrolar da competição.
Ali, ao lado de minha melhor amiga de infância, do meu namorado
e depois de resolver minhas questões familiares — dentro do possível — eu
percebi que estava feliz com o que esses dois meses haviam me
proporcionado de mudança e evolução pessoal.
Recebi todas as minhas verdades e as minhas mentiras, entendi o
significado do amor e estava com o coração em paz.
 
FIM
epílogo

 
A garota Buwan estava na festa com alguém. Ou melhor, alguém
não, mas sim a garota que fazia pinturas em algumas pessoas; seu rosto
estava abaixado e a cabeça coberta por um capuz. Uma fila imensa rodeava
as duas. Buwan organizava tudo e a outra atuava no trabalho.
Me aproximei, meio hesitante.
Ainda longe, conseguia notar que a garota pintora era como a
Buwan; ela tinha aquela energia magnética, só que era pior, diabólica.
Quando dei por mim, meus pés já estavam próximos demais das
duas, então, Buwan me focou. Estreitando as sobrancelhas, ela me olhava
de cima a baixo. Parecia confusa por eu estar tão perto.
É, eu também estava confuso.
— Axel! — ela me cumprimentou, sorrindo animada, mudando de
repente. — Vai pintar? Olha, temos vários tipos de tintas e artes. Escolha
uma, vai ser divertido!
— Ele vai pintar como eu — a pintora falou, ainda focada em sua
função, com o rosto coberto pelo capuz. Seu rosto se elevou apenas um
pouco e notei que sua pintura era de uma caveira de Tate, dando um ar
ainda mais sombrio a ela. Aquela garota me dava um leve medo por
lembranças do passado. — Como o diabo — seus olhos caçaram os meus,
me penetraram. Ela tinha uma… luz coberta de trevas.
Era bizarro e assustador.
E identificável.
Por impulso, pensei em sair dali, mas seus olhos de sereia
chamativos demais pareciam prender meus pés no lugar. Eu nunca ousaria
sequer desejar ver alguém desobedecê-la. Parecia que seus cabelos rosas
incendiariam ao passo que ela asfixiasse a pessoa.
Deus tenha misericórdia!
Esperei que ela falasse comigo como antes, que desse alguma
abertura, mas ela não disse nada. Apenas apontou a cadeira à frente para
que eu me sentasse, e assim o fiz.
E, como quando crianças, fechei os olhos enquanto ela passava o
pincel por todo o meu rosto; indo e vindo devagar. O vento frio da praia, a
tinta refrescante e a música animada me faziam lembrar da infância.
Corríamos livres e soltos por essas terras, sorrindo abobalhados. E,
quando ela aprendeu a pintar, vivia importunando a todos para serem
cobaias. Óbvio que eu sempre aceitei.
— Ficou bom — disse, me analisando. — Próximo! — Então, não
tinha mais sua atenção e tudo pareceu ser apenas uma velha miragem.
Levantei da cadeira meio atordoado e, alguns segundos depois,
Misha tocou meu braço, me amarrando a si.
— Ai, meu Deus, você ficou um gato! Sério! — Contudo, logo
notou que eu não estava bem. — Você tá meio aéreo. O que aconteceu?
Por um segundo, minha mente viajou para o passado, mas eu não
queria aquilo.
Eu não queria relembrar nada daquilo.
Ela não queria nada daquilo.
Olhei para Misha e tentei manter o foco nela. A analisei de cima a
baixo. Minha mentirosinha usava um arco angelical com uma roupinha
curta de anjo, toda cheia de rasgos.
— Você tá com alguma roupa por baixo dessa saia?
— O quê? — Ela analisou seu corpo por um segundo. — Isso é um
body e uma saia — divagou, mas ao olhar para mim e perceber meu
sorrisinho sarcástico, entendeu o que eu queria saber. — Tá fechado até lá
embaixo. Não vamos transar hoje!
— Ah, mas isso é limitar a nossa diversão! — Fingi não achar tudo
aquilo divertido e a puxei pela cintura, para falar no pé do seu ouvido: —
Vamos ao banheiro e eu faço você gozar rapidinho, nem precisa tirar essa
porcaria de roupa.
— Axel! — Misha bateu em meu ombro, me repreendendo. —
Nem aproveitamos direito ainda, mal dançamos.
— Eu acho que vamos aproveitar muito no banheiro.
— E também, você não pode dar ideias assim.
— Assim como?
— Irrecusáveis.
Gargalhei com sua carranca séria e a puxei para mim.
— Eu amo você, mentirosinha — falei, bem próximo a sua boca, e
a beijei rápido.
Corremos entre as pessoas para passarmos por baixo das
escadarias, onde eu sabia que havia banheiros na velha casa dos Harrison. A
porta estava aberta e, quando eu já estava puxando Misha para dentro, uma
garota de cabelos em twist saiu gritando do escritório de trabalho do Sr.
Harrison.
Misha e eu paramos de rir e nos entreolhamos, nervosos.
Uma voz gritou de dentro da sala.
Uma voz feminina.
Uma voz que eu conhecia bem.
— A porra da porta, amor!
Misha, assustada, caminhou depressa até o lugar, sem soltar a
minha mão. Adentramos a sala escura e, no mesmo instante, ela se fechou
sozinha, como que por uma engrenagem esquisita.
— Puta que pariu — a voz soou de novo, assustada. — Como
vocês entraram aqui? E o que aconteceu com a porra da porta?
— Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! — a garota que
trabalhava na cafeteria da Misha sussurrava, meio que chorando, próxima à
porta à nossa direita.
— Pare de chorar! — a menina de cabelo rosa exigiu, novamente.
— Porra, a gente tá fodido! — Só então a percebi olhando para as próprias
mãos, cheias de sangue, e depois para um rapaz no final da sala em frente à
porta dos fundos, e para o meio da sala.
O rapaz em específico, que tinha a pele bronzeada e os cabelos
ondulados compridos, parecia o mais assustado ali.
E o espaço ao centro da sala era a mesinha do Sr. Harrison. Ela
estava encharcada de sangue que jorrava de um corpo, provavelmente,
morto.
O sangue, ainda muito fresco, espirrava de seu rosto e tronco.
Quem quer que tenha feito aquilo não poupou esforços em o
danificar.
Como em câmera lenta e no mesmo segundo, Danton entrou na
sala por trás da garota do trabalho de Misha e uma desconhecida entrou
pelas portas do fundo, olhando para um garoto próximo de lá. Esses dois
últimos eu não conhecia, eram até um pouco mais velhos que nós; ele
principalmente.
— Ok, o que eu perdi? — Danton falou apressado, já fechando a
porta atrás de si, olhando para o corpo e depois para Misha e eu. Seus olhos
quase saltaram do lugar.
— E… por que precisava de mim…? — A garota desconhecida,
que entrou logo após Danton, perguntou ao se distanciar do telefone e olhar
para o garoto no fim da sala. Ele moveu seus olhos para o corpo, mostrando
a ela o problema. Espantando-se logo em seguida, ela deu dois passos para
trás, na intenção de ir embora. Tentou abrir a porta, mas não conseguiu.
Então, apressada, se virou e tentou outras diversas vezes, sem êxito. — O
QUE TÁ ACONTECENDO AQUI?! — gritou, com o corpo tremendo de
nervoso.
Olhei para Misha por um segundo e ela estava amarrada ao meu
braço como se fôssemos nos tornar um só. Calada. Tonta com toda aquela
situação.
— Ele morreu — a de cabelos rosa e caveira pintada no rosto logo
disse, meio sem reação, ainda olhando para o corpo.
— Não! — E então, a menina do trabalho da Misha gritou. — Ele
foi morto! — acusou, séria. — Assassinado! Eu vi tudo, não tem como
negar — e fitou a garota de cabelos rosa, Danton e o rapaz ao fundo.
— Coração, calma! — Danton a abraçou por trás, mas ela recusou
seus braços, parecendo enojada com tudo ao redor.
Olhei adiante e o rapaz mais velho no fundo do lugar, que tinha o
corpo todo tingido de sangue, se mantinha ainda mais recluso de todos.
Seus olhos estavam presos ora no morto e ora no chão, com as mãos muito
trêmulas.
— Assassinato, certo… — a garota no final, ao lado do menino,
deu um passo à frente e disse: — Então, quem matou? E quem é esse cara?
 
 
 
 
bônus

Puta que pariu, se eu pudesse, quebraria um carro com minhas


mãos.
Naquele momento.
Naquele exato segundo.
Meu pai desceu as escadarias da entrada do hospital alguns bons
passos à nossa frente, e minha mãe estava logo atrás de mim. Não via seu
rosto, mas presumi estar corando, as bochechas magras cobertas pelos fios
loiros esvoaçando com o vento forte por conta do verão ensolarado que
fazia em Stacy Scarllat.
— Você vem com ele amanhã. Eu vou trabalhar — meu pai
anunciou, rígido.
— Oh, sim. Sim, claro, amor. — Minha mãe apressou os passos e
tocou meu ombro. Ela era muito menor que eu, fora os músculos de capitão,
ou melhor, ex-capitão, de futebol americano, minha mãe era franzina e não
alcançava nem uns 1,60m de altura. — Como está se sentindo, querido? Eu
pensei em fazermos terapia. Ouvi dizer que muitas crianças fazem.
— Não sou mais a porra de uma criança, Valeri!
Seus olhos tão azuis e cristalinos como os meus pareceram trincar
com minhas duras palavras.
Eu era duro com ela, sempre fui, sei disso e nunca ousaria ser
hipócrita em negar.
— Só queria poder cuidar de você como quando era mais novo.
Ou, pelo menos, transferir isso de você para mim. Devia ter sido eu, filho,
essa maldição devia ser em mim, Danton! — Ela se debulhou em lágrimas.
Aquilo sempre me cortava por dentro.
Puxei-a para meus braços enquanto ela cobria o rosto, fechando o
corpo dentro de seu imenso casaco fino.
— Xiii. Tá tudo bem. Calma, tá? — A resguardei ao terminarmos
de descer aquelas escadas brancas e compridas demais para o que seria meu
provável terceiro lar; eu não ia largar a faculdade nem que me pagassem!
— Que porra tá acontecendo? — Meu pai aumentou o tom de voz,
notando minha mãe debilitada.
— Ela não tá passando bem — notifiquei, colocando-a no banco
de trás, e ele foi para o do motorista, sem sequer se importar em saber o que
ocorria com a esposa.
— Filho — ela me chamou, já muito descolada da realidade. —,
você é meu bem mais precioso. — Puxou a minha mão e a beijou.
Aceitei seu carinho materno, sabia que ela tinha a própria história
perturbadora, e depois fechei a porta do veículo. Mas antes que eu pudesse
abrir a da frente e me sentar no banco ao lado de meu pai, olhei para algo
adiante que me chamou atenção.
Duas jovens meninas andavam já próximas à escadaria do hospital
quando uma delas, a de cabelos escuros e compridos, disse:
— Se Mariana fizer espaguete essa noite você precisa comer com a
gente. É uma afronta aos Deuses você negligenciar aquilo.
— Eu vou tirar sangue, Nathasha, qualquer merda que me derem,
vou comer. — Deu de ombros. Essa, em particular, era a que detinha minha
atenção.
O corpo era pequeno demais, mas todo macio, os cabelos crespos
dredados em ondas na cor marrom, tal qual sua pele. Sua aura era o tipo de
figura tóxica aos humanos, uma tempestade certa, um envenenamento
contínuo e viciante de se olhar.
Me prendia. E, porra, eu não queria sair daquele frenesi nunca
mais. Seria fácil sofrer um naufrágio apenas com a visão daquela garota.
— Você passa tanto tempo no quarto ou emaranhada nos livros
naquele jardim que, às vezes, acho que não come. Me preocupo, Celicia…
Celicia.
Não ouvi mais nada do que a garota morena dizia. Nada mais era
importante mesmo.
Celicia.
Esse nome era como declaração de guerras, dominação de espaços
geográficos e conflitos bélicos. Eu, com certeza, enfrentaria qualquer coisa
para estar com ela.
Celicia.
Ela seria a porra da minha nova obsessão.
 
 
 
 
bônus

Subia as escadas apressada, após passar pela porta da frente de


nossa casa em Stacy Scarllat com minha bolsa de trabalho e jaleco em
mãos. Joguei tudo de uma vez em nossa cama de casal e corri para um
banho rápido. Já pronta, desci as escadas e logo avistei os novos residentes.
Após perder a possibilidade de entrar na NBA, Axel transformou a
parte de baixo de nossa casa em uma república, onde todo início de
semestre acabava recepcionando muitos novos integrantes.
Meu futuro marido se tornou o que menos esperava, mas o que lhe
dava orgulho, e eu o apoiava muito; ele cuidava da hospedagem dos jovens.
Depois de dar as boas-vindas, ele os direcionou para os quartos.
Uma das garotas se aproximou da escada que eu estava descendo, seus
cabelos eram longos, grossos e lisos, seus olhos eram saltados e suas
bochechas muito coradas, em contraponto à pele bronzeada, dando-lhe um
aspecto incisivo, mas ainda de boneca.
— Misha Daughety?
— Sim. — Sorri ao responder. — E você?
— Bel, Isabel Magnolia. Muito prazer, futura Sra. Martinez. —
Então, ela estendeu a mão.
— Prazer — a cumprimentei. — Como sabe sobre mim? — quis
saber, franzindo o cenho.
— Vi suas pesquisas sobre o câncer. Por que ainda não transferiu
sua pesquisa para New York?
— Tenho uma vida aqui. — Apontei ao redor. — E gosto dela.
Gosto de estar com meu noivo e cuidar das coisas aqui em casa.
— Eu vim transferida da mesma área que você. Quais as
possibilidades de conversarmos sobre uma mentoria online sua quando eu
estiver em New York após meu intercâmbio aqui?
— Bel, hm? Você é pretensiosa, garota.
— Puxei às minhas mães. Então, temos um acordo?
— Uma conversa — retruquei ao pontuar.
— É tudo que eu preciso. — A garota sorriu como se tivesse
vencido um caso antigo de tribunal.
Aquela garota tinha um ar de conquistadora, e eu mal esperava
para ver que tipo de aventuras ela nos traria.
 
agradecimentos

 
Meu eterno agradecimento à minha mãe por acreditar mais nesse livro que
eu e depositar toda sua confiança em mim.
Às meninas do editorial, que mesmo tudo estando uma confusão,
permanecemos unidas e conseguimos terminar. Em especial à Samantha,
você sabe o porquê amiga. Luna por estar sempre ali por trás das câmeras
me ajudando. Raquel por ter lido literalmente todas as incontáveis versões
desse livro (meu Deus, amiga, até hoje fico chocada, kkkkk).
Só eu sei tudo que passamos para conseguir publicar. Com certeza, foi o
meu livro mais difícil de todos até agora. E eu preciso de férias! Misha &
Axel sugaram tudo de mim.
Eu espero honrar a história deste livro, mas eu também espero ter tocado
seus corações. Mesmo que eu não o tenha feito, você está lendo isso, então,
meu muito obrigada.
Meanings
prólogo
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
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flashback.1
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17
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19
20
flashback.2
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flashback.3
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35
36
epílogo
bônus
bônus
agradecimentos
 

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