Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Capa
Genevieve Stonewell
(@gbdesigneditorial)
Diagramação
Alessandra Ferrer
(@autoralessandraf)
Leitura crítica
Camila Rodrigues
(@primaveraliteraria)
Í
Índice
Índice
Prólogo
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Epílogo
Recado da autora
"Na vida, como no xadrez, é sempre melhor analisar os motivos e
as intenções de alguém."
— Vladimir Nabokov
Prólogo
É o que vemos
Eu sei que se estou te assombrando
Você deve estar me assombrando
É onde vamos
É onde estaremos
Haunted - Beyoncé
— Eu estou com…?
— Não. — Dr. Foley respondeu. Ele odiava a ideia do meu
quadro piorar quase tanto quanto eu. Sua expressão estava
tranquila enquanto analisava os exames que fizeram em mim
horas atrás. — Eu te expliquei que dificilmente a sua condição irá
evoluir se você tomar a medicação corretamente, Kim. E nós dois
sabemos que jamais deixaria de tomá-los. Então por que o medo?
Relaxe um pouco, é apenas uma infecção simples. Vou prescrever
alguns medicamentos e depois de tomar o soro, pode ir para casa
ficar de repouso.
Respirei aliviada. Quando se tratava desse assunto, eu poderia
ser extremamente paranóica. Nenhum cuidado era o suficiente
para afastar o medo da situação piorar. No fundo, eu tinha
esperança de um dia me sentir menos suja, mesmo sabendo que
não haveria uma cura que pudesse proporcionar isso.
— Como vai Soraya? — quis saber. O rosto do médico se
iluminou com a menção à sua filha.
— Nunca vi a minha menina tão feliz, Kimberly. Está
caminhando para o nono mês de gestação. — Ele se afastou da
cama onde eu recebia soro através do acesso colocado em minha
veia, buscando seu celular na mesa próxima dali.
— E o bebê? — minha pergunta saiu em um fio de voz.
— Sem riscos de contaminação até o momento. Olhe só como
ela está radiante — me mostrou a imagem de sua filha. A barriga
arredondada estava tão grande que escapava da blusa branca que
usava. Ela tinha a mesma pele retinta do Dr.Foley, os cabelos
cacheados e um sorriso sincero nos lábios carnudos,
transbordando alegria ao abraçar seu marido.
Soraya sempre fora o contrário de mim. Tínhamos a mesma
condição de saúde infeliz, a diferença era que ela se descuidou, eu
fui condenada a isso desde que nasci.
Ela também fora a razão pela qual Sierra escolheu Hamlet
Foley para ser meu médico. Ele saberia ser sensível na hora de
lidar com as fases pelas quais eu passaria. E, de fato, foi. Dr. Foley
nunca me deixou desistir, sempre tinha uma palavra gentil ou uma
notícia boa sobre sua filha para me motivar.
— Você também pode viver isso, Kim. Basta se abrir para as
coisas boas entrarem na sua vida. — Sorriu, guardando o celular
no bolso do jaleco e voltando toda a sua atenção para mim.
Essa não foi a primeira vez que ouvi isso dele. Desde que
Soraya se casou, o médico de meia idade e cabelos quase
inteiramente grisalhos insistia cada vez mais que eu deveria me
“abrir para o que a vida poderia oferecer''.
No entanto, essa foi a única vez que o conselho conseguiu
ganhar força dentro da minha cabeça. Inevitavelmente pensei em
Brandon. Seria ele uma das coisas que o destino me reservava?
Será que eu precisaria dar-lhe mais abertura para descobrir
isso?
Ou melhor, eu seria capaz disso?
— Vou tentar, doutor — respondi, dando a entender que essa
era uma promessa.
— Vou cobrar da próxima vez que vier aqui. — Sorriu. —
Preciso checar outro paciente. Volto daqui a pouco para te dar alta.
Retribuí o sorriso. Ele saiu da sala e eu retornei a fitar o teto,
como fazia antes da sua chegada.
— Posso te fazer companhia? — dei um sobressalto em cima
do colchão graças ao efeito de ouvir a voz inconfundível de
Brandon repentinamente.
— Brandon? Não tem nenhum paciente para atender? — me
arrependi das palavras que usei assim que a última consoante saiu
por entre os meus lábios.
Ignorando o quanto eu era indigesta, ele riu, entrando na sala
sem esperar pela minha resposta. Arrastou uma cadeira
enferrujada que havia por perto e se sentou próximo ao meu leito.
Ainda vestia o scrub, mas agora o cardigã não encobria seu corpo.
Sem o excesso de tecido, Brandon parecia ainda mais
impressionante. Possuía braços fortes e sua pele um leve
bronzeado, destoando do seu rosto, um pouco pálido.
— Tive apenas duas consultas hoje. Estou livre agora. —
Explicou. Senti que havia uma segunda intenção por trás da última
frase. Ele pôs as mãos dentro dos bolsos da calça, sem desviar o
olhar da minha direção. Ali ficou bem claro que o interesse era
mútuo, mas por algum motivo Brandon não avançava de forma
direta, preferia a abordagem sutil, mascarando suas reais
intenções através da cortesia.
— Está dando em cima de mim enquanto estou sendo
medicada? — usei o tom de escárnio para não intimidá-lo.
Brandon sorriu.
— Você não está sendo medicada, Kim. Está tomando soro. —
Os lábios continuaram esticados enquanto falava, sugando toda a
minha atenção. De repente, a boca ficou seca e puxei o ar
devagar, umedecendo meus próprios lábios posteriormente. — E
eu não estou dando em cima de você, me desculpe se lhe passei a
impressão errada. — Sua voz ficou séria. Encarei seus olhos,
aflita. Acho que Brandon percebeu o quanto fiquei decepcionada
com a afirmação, pois logo retornou a sorrir e me olhou com
aquela cara de quem diz “te peguei”. — Eu estou me jogando em
cima de você, Kimberly. Apenas esperando um sinal de que quer
isso.
O medo e o desejo disputaram para ver quem seria o
responsável por guiar a minha resposta. Um tão forte quanto o
outro. Ambos desencadeando uma onda de adrenalina que
ressuscitou meu corpo inteiro quando ele continuou a provocar:
— Kimberly, Kimberly, estou preocupado com o rumo disso. Te
deixo sem palavras apenas fazendo as minhas cantadas toscas,
temo que não vá aprovar o que estou desejando fazer com você
fora daqui.
— E o que quer fazer comigo fora daqui? — fui arrebatada pela
curiosidade. Questionei, manhosa, uma luxúria desconhecida
tomando conta de mim. Antes que Brandon satisfizesse a minha
necessidade de ouvi-lo declarando seus anseios, Dr. Foley
retornou à enfermaria e nós dois acabamos com os indícios de que
uma forte atração estivesse crescendo por aqui. Ou pelo menos foi
o que pensamos.
— Importunando a minha paciente em plena luz do dia, Dr.
Lamont? — ele trazia consigo uns papéis e mantinha os olhos
neles ao se aproximar de mim, mas parecia bem ciente da nossa
interação cheia de lascívia momentos antes.
— Não pode me julgar, Foley. Sua esposa também era uma
paciente. Quem sabe eu não dou a mesma sorte? — Brandon
piscou para o colega de trabalho.
— Quem sabe. — Meu médico piscou para mim enquanto
retirava o acesso do meu braço.
Senti uma certa satisfação em ver Brandon tão solícito comigo.
Mas eu não podia me esquecer da vida que levava. As últimas
horas estavam muito fora da minha realidade.
— Me espere aqui. Vou te levar em casa. — Dito isso, Brandon
saiu antes que eu tivesse a chance de recusar sua carona.
— Ele é um excelente rapaz, lhe dê uma chance, Kim. Pense
menos e viva mais!
— Brandon e eu… Não vai dar certo, doutor. Tenho limitações,
sabe disso. — O medo sobressaiu o desejo quando imaginei nós
dois tendo um contato íntimo.
Dr.Foley suspirou. Em seguida levou o dedo indicador até o
meio da minha testa e disse:
— A sua única limitação está aqui dentro e pode deixar de ser
um problema se você entender de uma vez por todas que a sua
condição não é repugnante. Um homem de verdade vai saber
reconhecer isso também. — Se afastou depois de assinar os
papéis e me deixou sozinha no cômodo, pensando nos prós e
contras do que havia dito.
A dúvida ainda se espreitava entre as camadas de insegurança
e carência que revestiam a minha mente. Foram anos evitando
fazer amizades, relações afetivas, sexo… Eu sentia uma certa
necessidade de fugir de qualquer coisa que pudesse me lembrar
do que eu nunca iria ser capaz de escapar.
Quando Brandon retornou, acenando para que eu o seguisse
até a entrada do hospital, onde seu carro me esperava, ainda
sentia tal necessidade, contudo, uma outra, tão profunda quanto
essa, surgiu. Quis ter o homem dócil e ao mesmo tempo
imponente mais perto de mim. Quis sentir seu cheiro, tocar sua
pele, beijar seus lábios, deitar minha cabeça no seu peito,
desarrumar os cabelos tão perfeitamente alinhados. Uma
avalanche de anseios me dominou.
Aquilo me pegou desprevenida, estava acostumada a ter
sentimentos limitados, na maior parte das vezes depressivos,
nunca havia experimentado a sensação desconcertante provocada
pela luxúria.
Aspirei o cheiro do interior do seu automóvel depois de me
sentar no banco do carona. Brandon fechou a porta para mim, da
mesma forma carvalheira que fez ao abri-la. Seu Jeep Renegade
cheirava a baunilha. A fragrância era nostálgica, me recordava os
fins de tarde na casa de Sierra, quando eu, ela e Joshua nos
aventurávamos na cozinha fazendo bolos e tortas. Uma das
melhores recordações que tinha da minha infância.
— Você gosta de carros, Kim? — eu avaliava o interior do
automóvel quando Brandon perguntou. A cada vez que ele dizia
“Kim”, meu coração saltava dentro do peito. Praticamente todos
me chamavam assim, mas ninguém nunca provocou essa reação
abrasadora.
— Na verdade, não. Tenho medo de dirigir.
A confissão o fez sorrir. Ninguém nunca sorriu tanto para mim
em algumas horas. O pensamento fez um sorriso se abrir em
meus lábios também. Era estranho como ele conseguia me
conquistar a cada gesto simples que fazia. Não parecia
premeditado, mas eu sentia que Brandon exalava uma satisfação
fora do comum ao ver que estava me ganhando mais.
Manifestações do ego masculino, provavelmente.
— Você sorriu para mim e ainda me confessou algo sobre si
mesma. Isso é muito bom, Kim. Posso abusar mais um pouco da
sua cordialidade?
— Pode, Brandon. — Ri. Ele deu partida no carro, ficando
alguns instantes em silêncio até ter ideia de qual seria a próxima
pergunta.
— Qual o seu sobrenome?
Foi a minha vez de permanecer em silêncio para pensar.
— Salvatierra. — Respondi como se fosse outra confissão. De
fato, era. Representava outra coisa que eu gostava de fugir.
Brandon parou em um semáforo, aproveitando os segundos
para voltar a me encarar nos olhos. Torci mentalmente para que
ele não perguntasse sobre a minha família. No entanto, mais uma
vez ele pareceu ler meus pensamentos e saber exatamente qual
caminho não tomar ao perguntar:
— Fala espanhol? — indicava estar impressionado antes
mesmo de ouvir a resposta. A pronúncia do sobrenome mexicano
denunciou a minha experiência com essa língua.
— Espanhol, alemão, polonês, húngaro e pretendo aprender
russo. — De repente, quis me gabar. Foi a primeira vez que o fiz.
Sabia que era inteligente, mas nunca tivera vontade de mostrar
isso a alguém. Essa foi mais uma das coisas que apenas Brandon
despertou.
— Então estou dando em cima de uma poliglota?
Desviei o olhar para a frente, onde o semáforo trocou da cor
vermelha para a verde.
— Dando em cima não, se jogando. — Brinquei.
— Claro, como pude me esquecer?!
Eu morava há oito minutos do Virgínia Medical Center, em um
apartamento em Arlington. No geral, gostava da proximidade com
o hospital. O clima entre mim e Brandon se tornou mais leve,
passamos o restante do trajeto conversando sobre assuntos
triviais e também sobre a sua vida, o que me fez desgostar da
curta distância. Queria que o caminho fosse mais longo para que
pudéssemos prolongar esse momento ao máximo.
— Falando sério agora, Kim… — Com o carro parado na frente
do pequeno edifício, Brandon retirou o cinto e ficou de lado no
banco, podendo ter uma visão melhor da expressão apreensiva
que meu rosto exibia. Espiei o horário no painel de informações
sobre o automóvel. Eram quatro e meia da tarde, o sol estava se
pondo. A mesclagem dos tons quentes amarelo, laranja e um
pouco de vermelho incidia sobre o rosto dele através do vidro
aberto. A estrela central do sistema solar elevava a beleza de
Brandon a um nível absurdo. Ele espremeu os olhos, sensíveis à
claridade, para enxergar a minha reação ao dizer: — Eu senti
uma coisa quando te encontrei no elevador hoje cedo.
Não soube o que falar. Encarei o volante, incapaz de
corresponder da mesma forma sincera.
— Na verdade, diversas vezes cruzei com você pelos
corredores do hospital, mas o chão sempre parecia mais
interessante do que eu. Seus olhos nunca encontraram os meus.
— Ele riu um pouco. Fiquei ainda mais envergonhada. — Só que
você sempre pareceu mais interessante do que tudo ao meu redor.
Não sei explicar, é apenas… isso, sabe? Essa necessidade
estranha de querer te conhecer melhor, passar mais tempo com
você. Sente isso também, Kim?
— Também sinto essa necessidade estranha. Só que, Brandon,
eu…
Usando o polegar, ele me calou, pressionando o dedo
delicadamente sobre os meus lábios. Fiquei estática. Minha
respiração perdeu o ritmo. Apenas as pálpebras se moviam,
piscando de segundo em segundo.
— Uma hora.
— O quê? — indaguei, seu dedo ainda pressionava minha
boca.
— Assim que estiver melhor, teremos um encontro. Se em
uma hora de conversa você achar que não valho a pena, vou
entender e não insistirei mais.
— Não é sobre você valer a pena ou não, Brandon… — Talvez
fosse, mas não como estava pensando.
Ele libertou meus lábios. Senti falta do seu toque na mesma
hora que sua mão foi afastada do meu rosto para tirar o telefone
dele do bolso.
— Me conte sobre o que se trata no nosso encontro. —
Estendeu o aparelho para mim, desbloqueado e com a discagem
de número aberta. Não exitei em salvar o meu contato ali, o
cadastrando como "Kim".
— Você é um desses caras egocêntricos que tem certeza de
que vai me conquistar em tão pouco tempo? — Brandon não riu do
meu tom zombateiro, ficou sério demais, me deixando preocupada.
— Pouco importa quanto tempo levarei para te conquistar, o
importante é que em algum momento eu consiga.
Ao final da frase os pelos da minha nuca estavam eriçados,
sentia a pele formigar por dentro. Foi excitante vê-lo tão decidido,
mostrando a sua faceta imponente de forma explícita pela primeira
vez.
— Você fala como se fosse uma espécie de missão — insinuei.
— Uma missão, nada mais é do que quando traçamos uma
estratégia e a cumprimos até conseguir o que almejamos. — Pôs
a mão sobre a minha, ainda segurando seu telefone. Minha
respiração estava acelerada enquanto esperava, ansiosa pelo que
iria dizer a seguir. — Você não é uma missão, Kimberly. É uma
ambição dos meus olhos, que nunca viram nada que eu quisesse
mais do que te ter pra mim. Se você fosse uma missão, seria uma
de alta complexidade. Daquelas que não importa o quanto a gente
planeje, lute contra os riscos, preveja os erros, sempre haverá
igualmente as chances de falhar.
— Mas mesmo assim você não parece desanimado.
Brandon não fazia a menor ideia, contudo, o simples gesto de
encostar sua testa na minha desencadeou um retorcer inédito no
meu ventre. Seus lábios estavam perto demais e eu pude sentir o
hálito de menta próximo ao meu nariz. Bastava uma parte do seu
corpo entrar em contato com a minha que todo o meu interior se
ascendia, como uma árvore de natal em pleno funcionamento,
piscando e cheia de coisas reluzindo por toda a parte. Eu me
sentia assim naquele momento. E também um pouco
envergonhada por estar tão suscetível a um homem.
— Se eu fosse um soldado, seria daqueles que preferem uma
missão complexa a mil sem dificuldades. Porque coisas que valem
a pena sempre exigem esforço.
— Acha que vai encontrar algo que valha a pena em mim,
Brandon? — levantei os olhos até estarem nivelados aos dele,
nossas testas ainda se encostavam, meu corpo ainda parecia
estar em chamas.
— Tenho certeza disso, Kim.
Capítulo 03
— Não mesmo. Ainda mais com você estando linda desse jeito.
— Minha pele ficou quente quando Brandon voltou a tocá-la,
acariciando minha bochecha. Ele vestia uma blusa azul escura de
botões e calça preta. Estava lindo, como sempre. — Podemos ir?
" Não a quero aqui. Ela é nojenta como você, Beatrice. "
— Por quê?
— Não foi nada fácil para mim carregar o fardo de ser o médico
mais bonito dentre os meus colegas residentes. Agora,
trabalhando no Virgínia Medical Center, as coisas não ficaram
menos difíceis. É pesado ser o único nefrologista e também o
médico mais bonito do hospital. — Ele suspirou dramaticamente.
— Nunca mais?
Péssimo, Kimberly.
Lembrei de Joshua. A voz irritada invadiu meus pensamentos.
O prazer foi esvaindo, dando espaço para que a repulsa desse as
caras à medida que suas palavras ecoavam dentro da minha
cabeça.
— Não.
Fui atingida muitas vezes quando era apenas uma menina. Não
tinha uma armadura. As pessoas se aproveitaram disso para
destilar todo o ódio e a insatisfação com si mesmos em mim.
Então não, Kimberly não era uma mulher normal. Ela não
poderia doar sangue. Nem amamentar o seu bebê. Ela acreditava
que o vírus dentro do corpo dela era uma sujeira da qual nunca
estaria livre. E ninguém tiraria isso da sua cabeça do dia para
noite. Porque Kimberly não era um arquivo cheio de palavras para
serem substituídas.
Minutos antes, ela havia jogado Bispo F7, tomando o Peão que
protegia o meu rei, dando o primeiro Xeque[1] que antecederia a
sua vitória. A minha única alternativa era mover o Rei para E7, me
esquivando do seu ataque. No entanto, isso me expôs para outro
ataque do seu Cavalo, deslocado de C3 para D5.
— Xeque-mate, doutor.
Não era medo do sexo que ela sentia, mas um misto de euforia
e ojeriza. O temor se dava ao fato da expectativa. Kim se
importava com a opinião dos outros, não duvidava que eu tivesse
entrado para essa lista de pessoas das quais a faziam sentir que
estava pisando em ovos, e isso provocava algo dentro de mim.
Uma satisfação em saber que o que eu pensava tinha relevância
para alguém.
De todo modo, ela não tinha com o que se preocupar. Eu faria
tudo ser perfeito. Era bom em performar e o faria caso as coisas
desandassem.
— É sim.
— Não vai ser... fácil… porque eu... gosto muito de... você. —
Dois dos meus dedos faziam movimentos circulares sobre o clitóris
dela, impedindo-a de conseguir proferir uma frase inteira de uma
vez.
— Maravilhoso?
— Maravilhoso.
Visceral e flamejante.
— Ei, vai ser bom. — A puxei pelo queixo para que olhasse nos
meus olhos.
— Sei que vai. Só não quero estragar as coisas como fiz
ontem.
Eu te entendo, Kim.
Mas eu sobrevivi
E era o meu
Alive - Sia
Os anéis, ambos de ouro, reluziam sobre meu dedo anelar
depois que lavei as mãos e as sequei. Não gostava de ter de tirar
a aliança e o anel de noivado frequentemente. Sentia satisfação
em admirá-los todos os dias. Me lembrava o quanto a vida tinha
sido boa comigo nos últimos anos. Entretanto, devido a sensação
incômoda da água escorrendo pelas joias, eu as tirava apenas
para fazer a lavagem das mãos ou tomar banho.
Não foi.
— Sua porra deve ser muito rala, Brandon. Até hoje não
conseguiu engravidar a Kimberly. — Desprezível do jeito que era,
zombou baixo o suficiente para que apenas eu ouvisse em meio a
música.
— E o que seria?
Kimberly
— Pela forma como ela escreve, parece ter o mesmo jeito que
você.
Tentando driblar a curiosidade, Kim afastou o olhar de mim,
fixando-o na parede branca à nossa frente. O quarto em que
estávamos havia sido desocupado muito antes de nós nos
conhecermos, mas Sierra ainda o mantinha intacto, exatamente
como a minha esposa devia tê-lo deixado. Sabia disso apenas
pela observação das paredes, ainda exibiam as medalhas de
campeonatos científicos escolares e certificados de proficiência
nas línguas que Kimberly era fluente emoldurados, ocupando uma
parede inteira. Claro que ela não era o tipo de adolescente que
colecionava pôsteres, não esperava outra coisa dela.
Segurei o riso.
— É, eu entendi.
Together - Sia
Kimberly engolia metade do meu membro vagarosamente com
a sua boca graciosa. O que ela não conseguia pôr para dentro,
masturbava em um ritmo acelerado, proporcionando um contraste
prazeroso que me levava à loucura.
Eu repeti isso pelo menos umas cinco vezes até Kimberly calar
a minha boca com a sua. Ainda assim não me permitiu chupá-la
naquele momento, nem durante o banho quando chegamos em
casa e muito menos na nossa cama, antes de dormirmos.
A senhora Lamont era benevolente, contudo, também muito
intransigente.
— Sierra me disse que a carta foi enviada para a casa dela faz
cinco dias — contou sem que eu precisasse pedir. Afastei nossos
corpos apenas o suficiente para que pudesse observá-la por inteiro
enquanto falava. — Ou seja, é bem provável que Megan já tenha
dado à luz.
— Tem certeza?
— Acho que sim. Que tipo de segunda intenção ela poderia ter
com isso?
— Não sei. Quem teria contado sobre mim para ela? E dado o
endereço da casa de Sierra?
Helium - Sia
Brandon segurava a minha mão e me ofereceu um sorriso
encorajador enquanto aguardávamos a porta ser aberta, após
termos tocado a campainha.
— Por favor, não vão embora. Ela vai ficar chateada se souber
que vocês estiveram aqui e não conseguiu vê-los. — A súplica
convenceu meu marido, que sem receber um convite, se sentou no
sofá e me convidou a fazer o mesmo.
— Meg acordou e pediu que vocês fossem vê-la. Ela ainda não
pode se levantar da cama. — Assenti, morta de vergonha.
Seguimos corredor adentro na direção da porta que Calvin nos
instruiu a entrar. Ele iria se juntar a nós depois, primeiro tinha que
preparar algo para a esposa comer.
— Merda, Brandon! Agora ele vai pensar que somos
pervertidos que usaram o banheiro dele para transar! — ralhei
baixo, ainda à caminho do quarto onde minha irmã nos aguardava.
falaram
E eu?
94%
96%
98%
99%
Download concluído.
Salvo na nuvem.
Kimberly poderia ser ingênua para muitas coisas, mas por ser
insegura, escolheria acreditar na pior e mais errônea hipótese: de
que eu tinha um caso.
A mulher de cabelos castanho-claro e pernas esbeltas que
andou por algum tempo em volta do perímetro onde eu me
encontrava para só então se sentar no banco, mantendo alguns
centímetros de distância, seria um argumento plausível para tal
convicção. Tinha uma beleza encantadora mesmo envolta por
roupas escuras, óculos de sol e uma touca.
Sasha era dura na queda. Por isso era tão boa. Apesar de
reclamar, ela sabia que ser mulher lhe dava mais vantagem. Não
era à toa que tinha mais mérito do que eu com menos idade.
Ela não sabia dizer não. Nunca arredava para situação alguma.
Todo o seu mérito era justo. Em segredo, eu a admirava.
O celular apitou.
— Sei que sim. Só… Deixe de pensar que você é suja e eu sou
limpo. Pense que…. Aonde vai, Kimberly? Estamos conversando!
Fiz tudo exatamente como sempre fazia dia após dia: subi de
elevador até o segundo andar, comprimentei algumas outras
assistentes que encontrei pelos corredores, assim como alguns
seguranças que eu conhecia superficialmente.
Quando me dei conta de que algo podia estar errado, era tarde.
Uma mão sobre a minha boca impediu que eu falasse e o barulho
da porta se fechando atrás de mim foi o único ruído além da minha
respiração a ser ouvido por um instante.
Quase.
Era verídico.
Moscou, Rússia.
SEDE DO SERVIÇO DE INTELIGÊNCIA ESTRANGEIRO ( SVR)
Vassiliev.
— Prefiro que você repasse. Vai ser mais difícil para mim ter
disponibilidade de ir de um lado para o outro discretamente
trabalhando como médico e sendo casado. — Eu disse para a
minha parceira.
Me sentia renovado.
Irônico, não?
— Por que não pergunta logo se eu sinto algo por você? Por
que fui mãe? Você já adiou essa conversa por tempo demais,
querido. Isso só está te fazendo remoer uma mágoa
desnecessária.
Respirei fundo.
— Ela é Soropositiva?
Você me perseguiu
Como não achei que fosse possível, fiquei ainda mais tonta. O
choro subiu forte pela base da minha garganta e eu não pude
continuar a contê-lo.
Um alvo fácil.
— Ele tem que sentir alguma coisa por você, não é possível.
Nem que seja pena! — berrou de volta, totalmente furioso, batendo
com as mãos na mesa.
Pena.
— Ele com certeza sabe tudo sobre mim, enquanto eu não sei
nada sobre ele. Como esperam que eu ganhe de um inimigo sem
conseguir me igualar quanto às vantagens?
[...]
— Oi.
— Se sente melhor?
Mas Kimberly…
Você divide a cama com uma pessoa por anos da sua vida.
Era sim.
Eu a subestimei.
A SVR a subestimou.
Brigar com ele era como tentar resolver uma palavra cruzada
Realmente iria.
Pelo sim ou pelo não, com uma certa ira pulsando por minhas
veias, eu fiz um pedido para Luke:
— Posso te beijar?
— Kimberly…
Eu sabia disso.
Era isso.
— Não sou mau caráter como ele. Gostaria de ser, mas não
sou.
E se havia alguém que queria vê-lo ruir, esse alguém era eu.
Duro e Impenetrável.
Entre um ronco e outro dele, fui à cozinha e fiz o que nunca tive
o hábito de fazer: bebi uma xícara de café. Voltei para o quarto um
pouco menos solícita as tentativas das minhas pálpebras de se
fecharem por completo.
Dormir sem ele por uma noite foi o suficiente para que eu
ficasse desacostumada com a sua aura sedutora.
Foi sútil, mas eu estava tão atenta a cada gesto dele que
percebi o suspiro de alívio que soltou.
Pela forma como o peito dele relaxou, soube que meu tom
comedido lhe passou verdade.
— E o que descobriu?
Xeque.
Tão imersos que nos esquecíamos que aquilo era uma mera
encenação. Porque tudo parecia intenso e maior que qualquer
coisa que já sentimos antes.
— Eu posso…
— O que eu mandei você fazer, garota? Por que tinha que dar
uma de insolente e foder com tudo?
Não respondi.
Assenti positivamente.
Estava de luto.
Por mais que o casamento tenha sido uma farsa, não poderia
esquecer que foram os anos mais felizes da minha vida. Várias
vezes julguei ser a melhor coisa que fiz: dizer sim a Brandon.
Não estava.
Parecia certa do que diria a seguir:
— Fui firme, não dei o braço a torcer. Mostrei para Calvin que
não aceitaria menos do que um homem honesto e responsável.
Ele foi aprendendo a ser um novo alguém. Algo dentro dele levou
um choque de realidade depois do acidente também. Me lembro
dele chorando desesperadamente enquanto os paramédicos me
imobilizavam. Tive uma concussão e perdi a consciência a
caminho do hospital. Por isso não me recordo muito do que houve
depois. Mas ele ficou um ano inteiro sem dirigir e nunca mais usou
nenhum tipo de droga. Aos poucos foi deixando o hábito de usar a
bebida como válvula de escape e atualmente teve um problema no
fígado, e resolveu parar de beber definitivamente.
Ou...
Foi difícil fechar a porta e deixá-la para trás, mesmo que fosse
ficar a metros de distância. Continuei andando porque desde muito
cedo aprendi que a razão e a emoção eram como água e
eletricidade, nunca deveriam ser misturados. E por mais que
sentimentos intensos quisessem fazer a minha cabeça, resisti e fiz
o que era melhor para nós dois. Ser preso não ajudaria em nada
se eu quisesse levá-la comigo de volta ao meu país.
Cada vez mais ficava claro que nós não havíamos nascido para
ficarmos separados.
Viajar pelo mundo, ser quem eu quisesse, podia ser bom, mas
foi sendo Brandon Lamont que descobri o quão melhor era
pertencer a alguém, ter um lugar fixo para voltar depois de um dia
longo.
Foi com Kimberly que eu entendi como era incrível ser a casa
do coração de alguém e também fazer morada no de outra
pessoa.
Rápido e fatal.
— Vá. Pode ir embora. Não irei avisá-los. Volte para o seu país
de merda e comemore o sucesso da sua missão. Segredos de
Estado e medalhas de mérito é tudo o que importa, Alexei. — Um
último olhar de sofrimento na minha direção e Kim se distanciou,
me dando as costas.
Lana Del Rey agora cantava outra canção e minha esposa
havia retornado a observar o jardim. Enquanto isso, eu não me
movi nenhum centímetro. Nem para ir embora. Nem para tomá-la
nos braços. Fiquei ali, irritado com a melancolia que a música dava
ao momento.
— Kim…
— Não sei bem o que é o amor, por isso não posso afirmar e
nem negar. Não quero mentir de novo para você, Kim. — Tentei
ser sincero, achar um consenso entre a confusão que se
encontrava na minha mente, diante da novidade de expressar
meus pensamentos livremente, e a verdade de que ainda não
sabia se a cada vez que dizia “amo você"ao longo do tempo, isso
se tornava mais real.
— Vou dar uma volta pela rua e espero não te encontrar por
aqui quando retornar. — Fez menção de sair, mas quando eu
estava prestes a retrucar, falou: — Você é um babaca se pensa
que me levar junto com você é uma forma altruísta de se redimir.
Doeu pedir para que ele se fosse. Não somente porque sentiria
a sua falta, mas porque constatei que Brandon nunca iria embora
do meu coração.
— Eu diria que esse foi o dia mais feliz da minha vida, mas aí
me recordo do nosso casamento, e depois do dia em que disse
que me amava pela primeira vez... — Estanquei no lugar, sem
reação, ouvindo os passos soarem mais próximos das minhas
costas até sentir a mão de Brandon encobrir a minha, que ainda
segurava o porta-retrato. — Qualquer momento que compartilho
com você se torna especial, Kim.
— Não sei quem eu sou, mas sei o que não sou. — Tentei me
desvencilhar do seu aperto, mas ele não aliviou. Me segurava com
afinco, sem machucar, mas de forma determinada, assim como o
seu olhar, compenetrado e intenso. — A minha proposta não foi
justa, muito menos altruísta. E se devo algo a você depois de tudo
o que fiz, é colocar os seus sentimentos em primeiro lugar. A
escolha que fiz é para honrar isso.
— Isso não resolve tudo. Você mentiu para mim durante todos
os dias que estivemos juntos. Nós ficamos juntos por mais de
setecentos dias, Brandon. E toda vez que eu acordo, penso em
quantas mentiras você ainda teria me contado se não tivesse sido
descoberto. — Desabafei, antes que ele tivesse a chance de dizer
algo.
— A mentira não é necessariamente o oposto da verdade, Kim.
Ela pode ser uma versão melhor, mais ludibriosa e menos cruel do
que a verdade. Todas as coisas que eu te disse não foram
mentiras bem contadas, e sim fragmentos de uma verdade
assustadora para mim. Brandon Lamont, nada mais é do que a
verdade que eu queria viver, mas não tinha coragem de assumir,
largar os planos que tive ao entrar na sua vida. Então, Kim, não
tente decifrar quais palavras e atitudes foram sinceras ou não,
porque nem eu mesmo saberia te dizer precisamente.
FIM
Recado da autora
https://youtu.be/zhuGOXmigJs