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Copyright © 2022 Alessandra Ferrer

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.

Todos os direitos reservados.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº


9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

ATENÇÃO: Este livro não é recomendado para menores de dezoito


anos.

Capa
Genevieve Stonewell
(@gbdesigneditorial)

Diagramação
Alessandra Ferrer
(@autoralessandraf)

Leitura crítica
Camila Rodrigues
(@primaveraliteraria)

Í
Índice

Índice

Prólogo

Capítulo 01

Capítulo 02

Capítulo 03

Capítulo 04

Capítulo 05

Capítulo 06

Capítulo 07

Capítulo 08

Capítulo 09

Capítulo 10
Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Epílogo

Recado da autora
"Na vida, como no xadrez, é sempre melhor analisar os motivos e
as intenções de alguém."
— Vladimir Nabokov
Prólogo

— Você disse que eu era a sua rainha — com a voz


embargada, Kim prosseguiu: — Mas a verdade é que sou apenas
um mero peão no seu ardiloso jogo de poder, não é?

— Sim. — Fui sincero. Se queria o fim dos tempos de mentira,


deveria aguentar o peso da verdade.

O que aconteceu, no entanto, foi que Kimberly esperava


relutância da minha parte. Esperava que eu contornasse a
situação e a manipulasse.
Não faria isso.

Estava quase tão cansado de toda essa merda quanto ela.

Me certifiquei de fazer Kim me amar ao ponto de abandonar


qualquer senso. Fiz com que o seu amor fosse imune à lógica.
Justamente para me certificar de que quando esse dia chegasse
— porque eu tinha a consciência de que podia acontecer — ela
sacrificasse a razão por mim.
Eu falhei.
Os olhos dela eram escuros, mas se tornaram transparentes
para mim. Aprendi a lê-los, a interpretar o que cada olhar dela
significa. E esse olhar… Eu nunca o tinha visto. Não nos olhos da
minha esposa. As orbes cor de chocolate estavam nubladas,
permitindo que eu tivesse apenas um vislumbre do mar profundo
de decepção que Kimberly direcionava à mim.
— Como se sente, sabendo que destruiu as chances de que eu
confie em alguém novamente? Como se sente, sabendo que só
contribuiu para afirmar o que eu já achava antes: que se alguém
me amar e desejar, é porque está mentindo?
Lágrimas começaram a rolar bochechas abaixo de Kimberly.
Senti uma pontada de pena se sobressaindo a razão.
Mas os dois anos que passei ao lado dela, sentindo e sendo
feliz, não eram nada se comparados aos outros trinta e cinco anos,
manipulando e mentindo.
Estava enraizado no meu âmago o hábito de fingir, dissimular.
Não se foge de um costume a menos que se queira muito. E eu
não sabia se queria jogar tudo para o alto por ela.
Dois anos antes…
Capítulo 01

É o que vemos
Eu sei que se estou te assombrando
Você deve estar me assombrando
É onde vamos
É onde estaremos
Haunted - Beyoncé

Eu me convenci de que a solidão era um privilégio.


Os olhares de pena, as perguntas indigestas, a rejeição, o
preconceito… Foram os motivos que me levaram à essa vida
reclusa.
Não havia exceções, sempre que eu conhecia alguém e
ocasionalmente revelava o meu diagnóstico, recebia algumas
dessas reações. Com o tempo, foi se tornando desgastante
explicar que eu não era um monstro, que não haviam razões para
as pessoas terem nojo de mim.
Pelo menos era o que Sierra insistia em dizer toda vez que me
via chegar da escola chorando por mais uma vez ser vítima da
ignorância alheia.
Não foi fácil me manter firme nessa linha de pensamento. Não
quando até mesmo o corpo docente da escola me tratava como
uma anomalia. Diversas vezes fui chamada à sala da diretoria e
aconselhada a “evitar contato íntimo com os alunos”.
Como eu poderia continuar acreditando que não era uma
aberração, se em cada olhar que recebia era isso o que eu via
implícito?
Faltando pouco para terminar o primeiro ano do ensino médio,
não aguentei mais viver naquela situação. Implorei que Sierra
desfizesse a minha matrícula na escola e adotei o ensino
domiciliar, acreditando que as coisas melhorariam.
Mas já era tarde. Entrei em um caminho sem volta que me
levou ao estado de reclusão extrema que vivia. Na maior parte dos
dias era mesmo um privilégio não ter ninguém por perto para se
lamentar por mim.
O termômetro alertou que a febre chegara aos trinta e oito
graus. Meu corpo pegava fogo. O estômago não suportava
guardar nada no seu interior. A mente martelava que eu não
passava de uma mulher decadente. A vontade de chorar se fez
presente, algumas lágrimas até rolaram bochechas abaixo, mas
não havia tempo para drama, eu precisava ir ao hospital o quanto
antes.
Seria bom não estar completamente sozinha hoje. Ter alguém
para me ajudar no banho e chamar um táxi pouparia as minhas
forças.
O pensamento de que talvez o meu quadro clínico tivesse
evoluído para algo mais sério foi a motivação que eu precisava
para levantar da cama e me arrumar, afastando a vontade de não
ser tão sozinha em momentos como esse.
Eu não suportaria saber que fiz o tratamento corretamente
durante anos e isso não foi o suficiente para me impedir de ser
ainda mais degenerada.
Aos tropeços e sentindo uma tontura, cheguei ao banheiro e
me despi. Usava moletom e legging preta. Não estava em
condições para aguentar tomar um banho frio, mantive o chuveiro
em água morna.
Chorei quando uma vontade de vomitar me dominou e pus para
fora a bile que ainda restava dentro de mim.
Estava fraca, dolorida e depressiva.
Fiquei de joelhos no chão do box, embaixo do chuveiro. Me
xinguei mentalmente ao perceber que molhei o cabelo inteiro. Teria
de secá-lo antes de sair de casa. Era inverno na Virgínia, o que
ocasionaria em uma gripe severa caso eu não o fizesse.
Não queria sair de baixo da água. A dor de cabeça havia dado
uma trégua. Posterguei por mais alguns minutos a minha
permanência no banho. Um vento gelado arrepiou minha pele
quando saí do compartimento que abrigava o chuveiro. Mesmo
com o aquecedor instalado em todos os cômodos da casa, ainda
era possível sentir um pouco do clima glacial, típico do inverno na
cidade.
Me enrolei no roupão, indo descalça até o closet para escolher
uma vestimenta. Optei por um casaco felpudo, blusa de gola cinza
e uma calça preta, colocando também uma legging por baixo pois
eu sentia muito frio nas pernas durante essa época do ano.
Já vestida e com os dentes escovados, sequei meu cabelo
superficialmente com o secador. Ele era escuro. Liso na raiz e
levemente ondulado nas pontas. Sem dúvidas a coisa que eu mais
gostava em mim mesma.
Apesar de ter vomitado e estado em jejum desde a noite, meu
rosto não estava péssimo, como imaginei. Conclui ao olhar o
reflexo no espelho que exibia a face jovial e morena que eu
possuía. O tom castanho da minha pele era fruto da minha
herança genética mexicana, uma das poucas coisas que eu sabia
sobre os meus parentes. Os olhos pretos disputavam com os
cabelos e as minhas sobrancelhas, também escuras, para ver
quem possuía mais obscuridade.
Formavam uma boa combinação de características, pena que
não eram o suficiente para diminuir a repulsa que adquiri por mim
mesma.
Estava calçando as botas, sentada no sofá da sala, quase
pronta para sair, quando recebi uma notificação de mensagem no
meu celular. Era Sierra. Não precisava olhar a tela para ter
certeza. Ela era a única pessoa com quem eu mantinha contato
frequente pelo aplicativo de mensagens.
Peguei o aparelho em mãos, junto da minha bolsa. Não abri o
recado, apenas li o texto através da tela de bloqueio do celular.

" Millie está com febre, passei a noite em claro. Como


estão as coisas por aí? "

Ponderei respondê-la, chegando à conclusão de que seria melhor


não fazê-lo. Com certeza Sierra estenderia a conversação e em
algum momento ela perceberia algo estranho acontecendo. Nunca
soube exatamente como, mas a mulher era sensitiva o suficiente
para captar qualquer sinal incongruente na conduta dos seus
filhos. Nem mesmo a comunicação via internet nos deixava
escapar da sua intuição materna.
Ela ficaria chateada se soubesse que passei mal e não a
chamei para me socorrer.
Pensando em poupa-lá, resolvi que a responderia depois.
Sierra tinha muitas coisas com as quais se preocupar. Eu saí da
sua casa há três anos, pouco tempo depois ela arrumou outras
crianças para se responsabilizar. E como contou na mensagem,
Millie estava doente, não era justo eu sobrecarregá-la também.
Decidida a enfrentar os desafios de ser sozinha no mundo,
chamei um táxi pelo aplicativo e alguns minutos depois entrei no
carro rumo ao hospital.

As portas de vidro automáticas abriram assim que cheguei


perto o suficiente para que o sensor sentisse a minha presença. O
ar gélido do lado de fora foi substituído pela temperatura morna do
interior do hospital quando enfim adentrei o local e me dirigi à
recepção.
Por não ter uma consulta marcada, precisei aguardar a
recepcionista verificar se o médico que acompanhava o meu caso
clínico estava presente. Uma ligação e algumas palavras trocadas
depois, a simpática atendente informou que o Dr. Foley se
encontrava realizando uma consulta e que me receberia ao final da
mesma.
Agradeci com um sorriso contido, indo para a área onde três
elevadores eram disponibilizados para nos transportar pelos
andares do hospital, chamando um deles, da maneira que a
mulher me instruiu a fazer, como se eu tivesse esquecido o
caminho até a sala do meu médico.
Se um dia eu fosse capaz de esquecer completamente algum
lugar, o Virgínia Medical Center não seria uma opção. Os
corredores pintados com a cor marfim e o cheiro de coisas
esterilizadas eram parte de mim. Esse era praticamente o único
lugar que eu frequentava regularmente. E também o que eu jamais
desistiria de vir.
Por aqui não haviam olhares antiéticos ou a pura
discriminação. Era apenas o tipo de lugar onde as pessoas viam
de tudo e se acostumavam a lidar com as doenças de uma forma
razoável.
Dentro deste edifício o meu problema perdia um pouco da
significância, tamanha a quantidade de coisas mais graves que já
observei durante as minhas visitas rotineiras. Provavelmente o
conforto que sentia ao andar por esses corredores uma vez por
mês se dava a esse fato.
Era reconfortante saber que havia ao menos dois lugares no
mundo onde eu não seria considerada uma aberração.
A minha casa.
E o Virgínia Medical Hospital.
O elevador não estava compadecido com a minha situação.
Cinco minutos se passaram e ele ainda se encontrava parado no
quarto andar. O analgésico que tomei há horas atrás finalmente fez
efeito, aliviando um dos sintomas que mais me perturbaram. A
vontade de vomitar também cessou e eu agradeci aos céus por
isso, seria humilhante repetir o episódio de vômitos intensos que
protagonizei em casa.
Um suspiro saiu por entre os meus lábios quando as portas se
abriram e eu pude adentrar a caixa metálica. Relaxei o corpo.
Desejei mentalmente que estivesse tudo bem comigo. Mas não
consegui afastar a possibilidade de não estar. Vários cenários
passaram pela minha cabeça, todos depreciativos e humilhantes,
onde eu me tornava uma mulher que seria engolida pela doença
que tanto temia ter um dia.
A apreensão me dominou de tal forma que esqueci de onde
estava. O responsável por trazer a minha cabeça de volta à
realidade foi a figura masculina que se colocou entre as portas do
elevador quando estas estavam prestes a fecharem. Dei dois
passos para trás, encostando o corpo no espelho do elevador
devido ao susto. Ele firmou os pés no chão e ergueu o rosto.
Foi quando mirou as orbes esverdeadas em mim.
Foi quando senti meu corpo voltar a ficar quente. Um calor tão
perigoso quanto a febre que me acometeu horas antes.
— Desculpe. — A palavra pareceu diferente proferida no seu
tom de voz rouco, porém aveludado.
Balancei a cabeça em um gesto de compreensão. Seu olhar
permaneceu preso ao meu enquanto ele se mantinha parado no
meio do espaço, há poucos passos de mim. Parecia afetado pela
minha aparição, mas não surpreso.
O homem não sentia a necessidade de avaliar o que havia
abaixo do meu rosto. Talvez porque tenha achado mais
interessante o que viu nos meus olhos. De qualquer forma, eu
gostei de ter uma parte de mim sendo avaliada por ele, mesmo
parecendo que haviam colocado um holofote sobre a minha
pessoa.
As portas se fecharam.
A realidade novamente veio à tona no momento em que o
desconhecido quebrou contato visual e se recostou na parede
metálica, lateral a que eu permanecia próxima. Tentei disfarçar, no
entanto, tão logo quanto ele irrompeu elevador adentro, percorri
cada centímetro do seu corpo, como se a qualquer instante o
homem pudesse evaporar e eu perdesse as imagens dele vestindo
um scrub vermelho por baixo do cardigã preto e segurando uma
bolsa com longas alças de ombro que me permitiam ter um
vislumbre do seu jaleco branco guardado ali.
Ele exalava imponência e ao mesmo tempo leveza.
Os cabelos eram longos o suficiente para serem penteados
para trás e permanecerem ali sem a necessidade de uma pomada
fixando os fios naquela posição. Curtos dos lados, escuros por
toda a extensão. Um tom de castanho quase preto, da mesma cor
de sua barba, rala, mas que moldava o maxilar e a parte superior
dos lábios.
Suas feições tinham traços fortes, bem demarcados, porém os
olhos, de um verde claro, abrandavam a sua expressão facial,
dando o ar delicado que contrastava lindamente com o resto.
Pela primeira vez na vida eu quis ser interessante aos olhos de
alguém. O estranho havia provocado em mim um desejo de me
sobressair, sentir algo além da autodepreciação.
Foi estranho ser arremetida com essas sensações em poucos
minutos na companhia dele.
Um olhar.
Bastou isso para ele acordar a parte devassa adormecida
dentro de mim. Não pude deixar de pensar no quê mais esse
homem seria capaz de ativar se tivéssemos mais tempo juntos.
Ironicamente, acompanhado desse pensamento veio um
solavanco que antecedeu a parada do elevador. A caixa metálica
ficou estagnada no quarto andar, faltando dois andares para o meu
destino. Proporcionando o que eu desejei mentalmente.
— Acho que estamos presos. — Ele afirmou, soltando uma
risada fraca, parecendo despreocupado com a parada do elevador
e com o que isso afetaria no seu dia.
— É. — Me limitei a dizer.
Permaneci encostada no espelho, fixando o olhar no chão para
fazer pouco caso da sua presença.
— Você está bem? — buscou meus olhos. Não resisti, fiz
contato visual, sendo novamente surpreendida pela beleza do seu
rosto. Ele devia ser o colírio das enfermeiras se trabalhasse aqui.
Era o tipo de homem que chamava a atenção. Que sabia despertar
diversos tipos de pensamentos depravados, mas aparentava
inocência ao mirar os olhos incríveis na nossa direção.
— Estou.
— Você está pálida. — Afirmou, parecendo preocupado. —
Tem certeza de que está bem?
— Você não sabe qual é a minha cor naturalmente. Por que
acha que estou pálida?
Me surpreendendo, ele se aproximou, ficando a um palmo de
distância. Minha respiração ficou descompensada com a
proximidade repentina. Quis fugir. Tanto quanto quis me aproximar
e saber como seria abraçá-lo. O peitoral largo, aparentemente
firme, era um gatilho para a minha solidão. Diversas vezes desejei
ter alguém para me acalentar. Alguém em quem eu pudesse me
agarrar e me sentir segura. Dentre todos os desejos que esse
desconhecido provocou em mim, o de ter seus braços em volta do
meu corpo e seu peito colocado no meu foi o mais inevitável deles.
— Você é morena. Tem um bronzeado bonito que eu acredito
ser natural.
Ele levou a mão ao meu queixo devagar, me dando a opção de
recuar caso quisesse. Não quis. Ansiei seu toque como não
recordei de ter feito com nenhuma outra coisa ao longo da vida. Se
o fiz, foi insignificante. Nada poderia ser comparado com a
sensação dos dedos dele levantando meu queixo até meu rosto
estar num ângulo perfeito para que pudesse observar minhas
pálpebras.
— Licença. — Pediu, em seguida levou a outra mão para a
parte superior do meu olho e a puxou delicadamente, deixando
minha pupila exposta para a sua avaliação. Pisquei forte quando
ergueu o celular com o flash ligado na direção do meu olho
esquerdo. — Suas pupilas estão dilatadas. Isso somado a palidez
e o suor frio… São indicativos de que há algo errado.
— Eu não estou suando… — Me virei para olhar o meu reflexo
no espelho. Foi surpreendente constatar que o homem estava
certo: eu havia perdido a cor e minha testa exibia algumas gotas
de suor. Voltei a encará-lo. Ele ainda continuava perto demais. —
Como pode ter tanta certeza sobre o meu tom de pele natural se
não nos conhecíamos?
— Você é paciente do Dr. Foley, te vi algumas vezes por aqui.
Não era a primeira vez que ele me via.
Ele já reparou em mim antes.
E eu não havia reparado na sua presença nenhuma vez antes
de hoje.
Isso explicava porque não parecia surpreso ao me ver. Mas
complicou as minhas emoções. Passei longos instantes pensando
se eu me destaquei de uma forma positiva para ele em meio aos
corredores do hospital. Eu desejei ter conseguido fazer isso.
— E quem é você?
Ao puxar levemente um dos lábios num sorriso disfarçado, o
desconhecido me levou à loucura.
— Brandon. Trabalho como nefrologista aqui no hospital há
alguns meses.
A informação de que eu estava diante de um médico não foi o
que desencadeou o meu arquear de sobrancelhas e entreabrir de
lábios, foi descobrir a sua especialização.
Não recordava se cheguei a deduzir sua área de trabalho, mas
caso tivesse feito, nefrologia não teria vindo à mente. Era um
pouco peculiar. Pelo menos para mim, acostumada a frequentar
hospitais e observar médicos de todos os tipos. Nunca havia
conhecido um nefrologista jovem. Diria que o desconhecido, que
se chamava Brandon, seria um cardiologista, ou neurocirurgião.
Ele tinha muita cara de neurocirurgião.
Provavelmente estava sendo influenciada pelas séries de
televisão que glamourizavam a medicina e criavam uma espécie
de hierarquia para as especializações dessa área. No entanto, foi
inesperado de um jeito positivo saber essa informação a seu
respeito. Me mostrou que Brandon podia ser ainda mais
interessante.
— E o que significa as pupilas estarem dilatadas, doutor? —
questionei, nivelando nossos olhares depois que ele tirou as mãos
de mim.
— Esse sintoma isolado pode significar diversas coisas: dor,
danos cerebrais, excitação… É preciso analisar os outros sintomas
para chegar a um diagnóstico.
Preferi não continuar o assunto. Talvez eu tivesse que revelar o
motivo das minhas consultas frequentes. E isso faria cair por terra
o clima de flerte que havia entre nós.
— Eu estou me sentindo melhor, não se preocupe. —
Respondi, após vários segundos contemplando seu peito, ainda
parado diante de mim. Brandon assentiu e ao contrário do que
imaginei, não voltou a ficar onde estava, em vez disso, se pôs ao
meu lado, me observando.
— E você?
— Eu o quê?
— Quem é você?
Quem era eu?
Antes de cruzar com ele eu era reclusa, gostava de passar
despercebida, de não dar muitas informações sobre mim mesma
pois no fim das contas tudo me levava ao maldito diagnóstico.
No entanto, novamente eu me peguei desejando ser alguém
diferente perto do médico. Mais interessante. Menos insegura.
Quis ter um holofote sobre mim para realçar todas as minhas
qualidades na frente dele.
— Ouvi o Foley te chamando de Kim. Combina com você. —
Ele disse, quebrando o silêncio que eu causei ao não responder
sua pergunta de imediato.
— Sou Kimberly, paciente do Dr. Foley desde que eu tinha
quatro anos.
Pedi internamente que Brandon não quisesse se estender no
assunto. E principalmente que ele não soubesse sobre mim.
Parecendo ouvir as minhas preces, o médico mudou
completamente o rumo da conversa ao perguntar:
— Suas sobrancelhas são naturais?
Soltei um riso anasalado.
— São. Não parecem?
— Eu sou péssimo para distinguir essas coisas estéticas. Não
saberia dizer se são naturais ou artificiais. Mas posso dizer que
elas ficam lindas em você. Realçam os seus olhos e deixam o seu
rosto ainda mais expressivo. Isso sempre me chama a atenção
quando te olho. — Não contive o sorriso, quando dei por mim
estava entreabrindo os lábios e mostrando todos os dentes com
satisfação. O elogio me afetou, intensificou a necessidade de estar
perto dele. Eu quase nunca era elogiada por algo que não fosse
sobre o meu trabalho. — Te deixei constrangida?
Era desconcertante a forma como Brandon podia ser delicado
sem esforço algum e isso ter um efeito tão avassalador no meu
interior. A cada palavra que saía da sua boca eu me via mais
entregue a essa atração repentina.
— Me deixou feliz. — Mantive o sorriso, olhando-o com
determinação.
— Fico feliz em saber que te deixei feliz. — Riu. Mantivemos o
contato visual, ambos incapazes de conter a necessidade de não
querer nos perder de vista, mesmo estando em um lugar pequeno.
Esse era o tipo de situação que me fazia sentir vergonha alheia
quando via acontecer nos filmes de romance. O casal
desconcertado, nitidamente atraídos, mas presos aos limites dos
flertes e das investidas sutís por receio de dar o primeiro passo e
se precipitar.
Se precipite, Brandon.
Pedi mentalmente, querendo que mais uma vez as minhas
preces fossem ouvidas. No entanto, o contrário aconteceu. O
elevador voltou a funcionar. Rapidamente a caixa metálica
retornou a subir, chegando ao sexto andar, abrindo as portas,
interrompendo os instantes dos quais eu e Brandon gastamos
conversando através do olhar.
— Bom trabalho. — Me forcei a dizer, sem opção a não ser sair
do elevador e seguir para a sala do meu médico.
— Obrigado, Kim. Posso te chamar assim? — assenti,
mordendo os lábios para conter a vontade de sorrir feito uma
garota boba ao mais uma vez me sentir afetada com a sua
cortesia. — Se cuida.
Brandon ainda sorria quando as portas se fecharam.
Como algo simples poderia ser tão encantador quando vindo
dele?
Relutante, me afastei do elevador e segui caminho até a
recepção que antecedia a sala do meu médico.
Sentira uma conexão irracional com Brandon. Gostei da
maneira como me olhava, interessado em saber mais do que eu
deixava transparecer. Tive a impressão de que se passássemos
mais tempo juntos, eu seria capaz de revelar a minha vida inteira
sem hesitar enquanto aqueles olhos estivessem fixados em mim.
Foi assim que a partida começou.
Capítulo 02

Não consigo me conter


Não importa o quanto eu esteja tentando
Eu quero você todo pra mim
Você é um gim e suco metafórico
Então vamos lá, me deixe experimentar o gosto
Do que é estar perto de você
Não vou desperdiçar uma gota
Hands To Myself - Selena Gomez

— Eu estou com…?
— Não. — Dr. Foley respondeu. Ele odiava a ideia do meu
quadro piorar quase tanto quanto eu. Sua expressão estava
tranquila enquanto analisava os exames que fizeram em mim
horas atrás. — Eu te expliquei que dificilmente a sua condição irá
evoluir se você tomar a medicação corretamente, Kim. E nós dois
sabemos que jamais deixaria de tomá-los. Então por que o medo?
Relaxe um pouco, é apenas uma infecção simples. Vou prescrever
alguns medicamentos e depois de tomar o soro, pode ir para casa
ficar de repouso.
Respirei aliviada. Quando se tratava desse assunto, eu poderia
ser extremamente paranóica. Nenhum cuidado era o suficiente
para afastar o medo da situação piorar. No fundo, eu tinha
esperança de um dia me sentir menos suja, mesmo sabendo que
não haveria uma cura que pudesse proporcionar isso.
— Como vai Soraya? — quis saber. O rosto do médico se
iluminou com a menção à sua filha.
— Nunca vi a minha menina tão feliz, Kimberly. Está
caminhando para o nono mês de gestação. — Ele se afastou da
cama onde eu recebia soro através do acesso colocado em minha
veia, buscando seu celular na mesa próxima dali.
— E o bebê? — minha pergunta saiu em um fio de voz.
— Sem riscos de contaminação até o momento. Olhe só como
ela está radiante — me mostrou a imagem de sua filha. A barriga
arredondada estava tão grande que escapava da blusa branca que
usava. Ela tinha a mesma pele retinta do Dr.Foley, os cabelos
cacheados e um sorriso sincero nos lábios carnudos,
transbordando alegria ao abraçar seu marido.
Soraya sempre fora o contrário de mim. Tínhamos a mesma
condição de saúde infeliz, a diferença era que ela se descuidou, eu
fui condenada a isso desde que nasci.
Ela também fora a razão pela qual Sierra escolheu Hamlet
Foley para ser meu médico. Ele saberia ser sensível na hora de
lidar com as fases pelas quais eu passaria. E, de fato, foi. Dr. Foley
nunca me deixou desistir, sempre tinha uma palavra gentil ou uma
notícia boa sobre sua filha para me motivar.
— Você também pode viver isso, Kim. Basta se abrir para as
coisas boas entrarem na sua vida. — Sorriu, guardando o celular
no bolso do jaleco e voltando toda a sua atenção para mim.
Essa não foi a primeira vez que ouvi isso dele. Desde que
Soraya se casou, o médico de meia idade e cabelos quase
inteiramente grisalhos insistia cada vez mais que eu deveria me
“abrir para o que a vida poderia oferecer''.
No entanto, essa foi a única vez que o conselho conseguiu
ganhar força dentro da minha cabeça. Inevitavelmente pensei em
Brandon. Seria ele uma das coisas que o destino me reservava?
Será que eu precisaria dar-lhe mais abertura para descobrir
isso?
Ou melhor, eu seria capaz disso?
— Vou tentar, doutor — respondi, dando a entender que essa
era uma promessa.
— Vou cobrar da próxima vez que vier aqui. — Sorriu. —
Preciso checar outro paciente. Volto daqui a pouco para te dar alta.
Retribuí o sorriso. Ele saiu da sala e eu retornei a fitar o teto,
como fazia antes da sua chegada.
— Posso te fazer companhia? — dei um sobressalto em cima
do colchão graças ao efeito de ouvir a voz inconfundível de
Brandon repentinamente.
— Brandon? Não tem nenhum paciente para atender? — me
arrependi das palavras que usei assim que a última consoante saiu
por entre os meus lábios.
Ignorando o quanto eu era indigesta, ele riu, entrando na sala
sem esperar pela minha resposta. Arrastou uma cadeira
enferrujada que havia por perto e se sentou próximo ao meu leito.
Ainda vestia o scrub, mas agora o cardigã não encobria seu corpo.
Sem o excesso de tecido, Brandon parecia ainda mais
impressionante. Possuía braços fortes e sua pele um leve
bronzeado, destoando do seu rosto, um pouco pálido.
— Tive apenas duas consultas hoje. Estou livre agora. —
Explicou. Senti que havia uma segunda intenção por trás da última
frase. Ele pôs as mãos dentro dos bolsos da calça, sem desviar o
olhar da minha direção. Ali ficou bem claro que o interesse era
mútuo, mas por algum motivo Brandon não avançava de forma
direta, preferia a abordagem sutil, mascarando suas reais
intenções através da cortesia.
— Está dando em cima de mim enquanto estou sendo
medicada? — usei o tom de escárnio para não intimidá-lo.
Brandon sorriu.
— Você não está sendo medicada, Kim. Está tomando soro. —
Os lábios continuaram esticados enquanto falava, sugando toda a
minha atenção. De repente, a boca ficou seca e puxei o ar
devagar, umedecendo meus próprios lábios posteriormente. — E
eu não estou dando em cima de você, me desculpe se lhe passei a
impressão errada. — Sua voz ficou séria. Encarei seus olhos,
aflita. Acho que Brandon percebeu o quanto fiquei decepcionada
com a afirmação, pois logo retornou a sorrir e me olhou com
aquela cara de quem diz “te peguei”. — Eu estou me jogando em
cima de você, Kimberly. Apenas esperando um sinal de que quer
isso.
O medo e o desejo disputaram para ver quem seria o
responsável por guiar a minha resposta. Um tão forte quanto o
outro. Ambos desencadeando uma onda de adrenalina que
ressuscitou meu corpo inteiro quando ele continuou a provocar:
— Kimberly, Kimberly, estou preocupado com o rumo disso. Te
deixo sem palavras apenas fazendo as minhas cantadas toscas,
temo que não vá aprovar o que estou desejando fazer com você
fora daqui.
— E o que quer fazer comigo fora daqui? — fui arrebatada pela
curiosidade. Questionei, manhosa, uma luxúria desconhecida
tomando conta de mim. Antes que Brandon satisfizesse a minha
necessidade de ouvi-lo declarando seus anseios, Dr. Foley
retornou à enfermaria e nós dois acabamos com os indícios de que
uma forte atração estivesse crescendo por aqui. Ou pelo menos foi
o que pensamos.
— Importunando a minha paciente em plena luz do dia, Dr.
Lamont? — ele trazia consigo uns papéis e mantinha os olhos
neles ao se aproximar de mim, mas parecia bem ciente da nossa
interação cheia de lascívia momentos antes.
— Não pode me julgar, Foley. Sua esposa também era uma
paciente. Quem sabe eu não dou a mesma sorte? — Brandon
piscou para o colega de trabalho.
— Quem sabe. — Meu médico piscou para mim enquanto
retirava o acesso do meu braço.
Senti uma certa satisfação em ver Brandon tão solícito comigo.
Mas eu não podia me esquecer da vida que levava. As últimas
horas estavam muito fora da minha realidade.
— Me espere aqui. Vou te levar em casa. — Dito isso, Brandon
saiu antes que eu tivesse a chance de recusar sua carona.
— Ele é um excelente rapaz, lhe dê uma chance, Kim. Pense
menos e viva mais!
— Brandon e eu… Não vai dar certo, doutor. Tenho limitações,
sabe disso. — O medo sobressaiu o desejo quando imaginei nós
dois tendo um contato íntimo.
Dr.Foley suspirou. Em seguida levou o dedo indicador até o
meio da minha testa e disse:
— A sua única limitação está aqui dentro e pode deixar de ser
um problema se você entender de uma vez por todas que a sua
condição não é repugnante. Um homem de verdade vai saber
reconhecer isso também. — Se afastou depois de assinar os
papéis e me deixou sozinha no cômodo, pensando nos prós e
contras do que havia dito.
A dúvida ainda se espreitava entre as camadas de insegurança
e carência que revestiam a minha mente. Foram anos evitando
fazer amizades, relações afetivas, sexo… Eu sentia uma certa
necessidade de fugir de qualquer coisa que pudesse me lembrar
do que eu nunca iria ser capaz de escapar.
Quando Brandon retornou, acenando para que eu o seguisse
até a entrada do hospital, onde seu carro me esperava, ainda
sentia tal necessidade, contudo, uma outra, tão profunda quanto
essa, surgiu. Quis ter o homem dócil e ao mesmo tempo
imponente mais perto de mim. Quis sentir seu cheiro, tocar sua
pele, beijar seus lábios, deitar minha cabeça no seu peito,
desarrumar os cabelos tão perfeitamente alinhados. Uma
avalanche de anseios me dominou.
Aquilo me pegou desprevenida, estava acostumada a ter
sentimentos limitados, na maior parte das vezes depressivos,
nunca havia experimentado a sensação desconcertante provocada
pela luxúria.
Aspirei o cheiro do interior do seu automóvel depois de me
sentar no banco do carona. Brandon fechou a porta para mim, da
mesma forma carvalheira que fez ao abri-la. Seu Jeep Renegade
cheirava a baunilha. A fragrância era nostálgica, me recordava os
fins de tarde na casa de Sierra, quando eu, ela e Joshua nos
aventurávamos na cozinha fazendo bolos e tortas. Uma das
melhores recordações que tinha da minha infância.
— Você gosta de carros, Kim? — eu avaliava o interior do
automóvel quando Brandon perguntou. A cada vez que ele dizia
“Kim”, meu coração saltava dentro do peito. Praticamente todos
me chamavam assim, mas ninguém nunca provocou essa reação
abrasadora.
— Na verdade, não. Tenho medo de dirigir.
A confissão o fez sorrir. Ninguém nunca sorriu tanto para mim
em algumas horas. O pensamento fez um sorriso se abrir em
meus lábios também. Era estranho como ele conseguia me
conquistar a cada gesto simples que fazia. Não parecia
premeditado, mas eu sentia que Brandon exalava uma satisfação
fora do comum ao ver que estava me ganhando mais.
Manifestações do ego masculino, provavelmente.
— Você sorriu para mim e ainda me confessou algo sobre si
mesma. Isso é muito bom, Kim. Posso abusar mais um pouco da
sua cordialidade?
— Pode, Brandon. — Ri. Ele deu partida no carro, ficando
alguns instantes em silêncio até ter ideia de qual seria a próxima
pergunta.
— Qual o seu sobrenome?
Foi a minha vez de permanecer em silêncio para pensar.
— Salvatierra. — Respondi como se fosse outra confissão. De
fato, era. Representava outra coisa que eu gostava de fugir.
Brandon parou em um semáforo, aproveitando os segundos
para voltar a me encarar nos olhos. Torci mentalmente para que
ele não perguntasse sobre a minha família. No entanto, mais uma
vez ele pareceu ler meus pensamentos e saber exatamente qual
caminho não tomar ao perguntar:
— Fala espanhol? — indicava estar impressionado antes
mesmo de ouvir a resposta. A pronúncia do sobrenome mexicano
denunciou a minha experiência com essa língua.
— Espanhol, alemão, polonês, húngaro e pretendo aprender
russo. — De repente, quis me gabar. Foi a primeira vez que o fiz.
Sabia que era inteligente, mas nunca tivera vontade de mostrar
isso a alguém. Essa foi mais uma das coisas que apenas Brandon
despertou.
— Então estou dando em cima de uma poliglota?
Desviei o olhar para a frente, onde o semáforo trocou da cor
vermelha para a verde.
— Dando em cima não, se jogando. — Brinquei.
— Claro, como pude me esquecer?!
Eu morava há oito minutos do Virgínia Medical Center, em um
apartamento em Arlington. No geral, gostava da proximidade com
o hospital. O clima entre mim e Brandon se tornou mais leve,
passamos o restante do trajeto conversando sobre assuntos
triviais e também sobre a sua vida, o que me fez desgostar da
curta distância. Queria que o caminho fosse mais longo para que
pudéssemos prolongar esse momento ao máximo.
— Falando sério agora, Kim… — Com o carro parado na frente
do pequeno edifício, Brandon retirou o cinto e ficou de lado no
banco, podendo ter uma visão melhor da expressão apreensiva
que meu rosto exibia. Espiei o horário no painel de informações
sobre o automóvel. Eram quatro e meia da tarde, o sol estava se
pondo. A mesclagem dos tons quentes amarelo, laranja e um
pouco de vermelho incidia sobre o rosto dele através do vidro
aberto. A estrela central do sistema solar elevava a beleza de
Brandon a um nível absurdo. Ele espremeu os olhos, sensíveis à
claridade, para enxergar a minha reação ao dizer: — Eu senti
uma coisa quando te encontrei no elevador hoje cedo.
Não soube o que falar. Encarei o volante, incapaz de
corresponder da mesma forma sincera.
— Na verdade, diversas vezes cruzei com você pelos
corredores do hospital, mas o chão sempre parecia mais
interessante do que eu. Seus olhos nunca encontraram os meus.
— Ele riu um pouco. Fiquei ainda mais envergonhada. — Só que
você sempre pareceu mais interessante do que tudo ao meu redor.
Não sei explicar, é apenas… isso, sabe? Essa necessidade
estranha de querer te conhecer melhor, passar mais tempo com
você. Sente isso também, Kim?
— Também sinto essa necessidade estranha. Só que, Brandon,
eu…
Usando o polegar, ele me calou, pressionando o dedo
delicadamente sobre os meus lábios. Fiquei estática. Minha
respiração perdeu o ritmo. Apenas as pálpebras se moviam,
piscando de segundo em segundo.
— Uma hora.
— O quê? — indaguei, seu dedo ainda pressionava minha
boca.
— Assim que estiver melhor, teremos um encontro. Se em
uma hora de conversa você achar que não valho a pena, vou
entender e não insistirei mais.
— Não é sobre você valer a pena ou não, Brandon… — Talvez
fosse, mas não como estava pensando.
Ele libertou meus lábios. Senti falta do seu toque na mesma
hora que sua mão foi afastada do meu rosto para tirar o telefone
dele do bolso.
— Me conte sobre o que se trata no nosso encontro. —
Estendeu o aparelho para mim, desbloqueado e com a discagem
de número aberta. Não exitei em salvar o meu contato ali, o
cadastrando como "Kim".
— Você é um desses caras egocêntricos que tem certeza de
que vai me conquistar em tão pouco tempo? — Brandon não riu do
meu tom zombateiro, ficou sério demais, me deixando preocupada.
— Pouco importa quanto tempo levarei para te conquistar, o
importante é que em algum momento eu consiga.
Ao final da frase os pelos da minha nuca estavam eriçados,
sentia a pele formigar por dentro. Foi excitante vê-lo tão decidido,
mostrando a sua faceta imponente de forma explícita pela primeira
vez.
— Você fala como se fosse uma espécie de missão — insinuei.
— Uma missão, nada mais é do que quando traçamos uma
estratégia e a cumprimos até conseguir o que almejamos. — Pôs
a mão sobre a minha, ainda segurando seu telefone. Minha
respiração estava acelerada enquanto esperava, ansiosa pelo que
iria dizer a seguir. — Você não é uma missão, Kimberly. É uma
ambição dos meus olhos, que nunca viram nada que eu quisesse
mais do que te ter pra mim. Se você fosse uma missão, seria uma
de alta complexidade. Daquelas que não importa o quanto a gente
planeje, lute contra os riscos, preveja os erros, sempre haverá
igualmente as chances de falhar.
— Mas mesmo assim você não parece desanimado.
Brandon não fazia a menor ideia, contudo, o simples gesto de
encostar sua testa na minha desencadeou um retorcer inédito no
meu ventre. Seus lábios estavam perto demais e eu pude sentir o
hálito de menta próximo ao meu nariz. Bastava uma parte do seu
corpo entrar em contato com a minha que todo o meu interior se
ascendia, como uma árvore de natal em pleno funcionamento,
piscando e cheia de coisas reluzindo por toda a parte. Eu me
sentia assim naquele momento. E também um pouco
envergonhada por estar tão suscetível a um homem.
— Se eu fosse um soldado, seria daqueles que preferem uma
missão complexa a mil sem dificuldades. Porque coisas que valem
a pena sempre exigem esforço.
— Acha que vai encontrar algo que valha a pena em mim,
Brandon? — levantei os olhos até estarem nivelados aos dele,
nossas testas ainda se encostavam, meu corpo ainda parecia
estar em chamas.
— Tenho certeza disso, Kim.
Capítulo 03

O que você faz comigo é indescritível

Me deixa brilhando como uma esmeralda

Incendeia minha alma, me faz selvagem

Como o mar azul profundo

Nenhum outro garoto me fez sentir bonita

Quando estou em seus braços, sinto que tenho tudo

Queen Of Disaster - SirLofi


Não me lembrava quando fora a última vez que havia ficado tão
ansiosa para terminar o meu expediente no trabalho. Eu
costumava aproveitar o tempo em que passava organizando os
compromissos e documentos do meu chefe para não pensar muito
sobre a mediocridade que era a minha vida.

Aos vinte anos, me formei em Ciências Políticas pela George


Washington University. Na sequência fiz uma pós-graduação em
Relações Internacionais pela mesma universidade, sonhando com
o dia que seria aprovada no processo seletivo para trabalhar em
uma embaixada americana pelo mundo. Já era fluente em
algumas das línguas consideradas mais difíceis: polonês e
húngaro, quando fui rejeitada pela última vez e resolvi desistir.

Não tinha interesse em trabalhar com pesquisas nessa área,


muito menos lecionando. Então não sobraram muitas opções que
me satisfizessem. Passei um ano desempregada, ajudando Sierra
a cuidar dos seus novos filhos, sem perspectiva alguma de futuro.
Foi quando, graças aos seus contatos, ela me arranjou uma
entrevista de emprego para concorrer à vaga de assistente no
Departamento de Estado dos Estados Unidos. Também estava
longe de ser o que eu almejava, no entanto, poderia servir como
uma escada que me levaria ao meu objetivo.

Aos vinte e quatro, consegui o cargo e desde então era quase


como um braço direito para Richard Anderson, o Secretário de
Estado dos Estados Unidos.
De fato, estar lado a lado com ele me deu certa experiência e
conhecimento de figuras importantes do meio político do país.
Contudo, depois de tantas rejeições, senti que estava distante
demais da vontade de pegar este impulso e tentar alcançar o
mesmo objetivo de antes. Fui deixando o sonho morrer, me
acomodando na estabilidade que o cargo de assistente me
proporcionava.

Com vinte e cinco anos, tinha consciência da mulher medíocre


que havia me tornado. Do quanto eu poderia conquistar se
insistisse, do tamanho da minha inteligência. Sabia de tudo isso.
Mas estava afogada na própria mágoa, decaindo, ainda tão jovem.
Saindo de vez em quando da areia movediça que era a minha
cabeça apenas para tentar fugir do que escondia ali, mas
retornando toda vez que o exterior me fazia lembrar de que não
era possível fazê-lo. Sempre haveria algo ou alguém para
relembrar.

Essa seria a primeira vez que eu sairia do meu casulo e


tentaria realmente dar uma chance ao conselho do Dr. Foley.
Estava ansiosa enquanto caminhava até a sala do meu chefe e
batia na porta.

— Entre. — O Secretário Richard pediu, sem tirar os olhos do


seu computador.

— Vim apenas entregar estes últimos papéis, já estou de saída.


Precisa de mais alguma coisa? — me mantive parada a frente da
sua mesa após deixar as folhas ali. Ele levantou o olhar, seus
óculos pendiam sobre o nariz pontudo.

— Imprima os arquivos que estão neste pendrive, por gentileza.


E então estará dispensada. — Colocou o objeto pequeno sobre a
madeira. Engoli o suspiro de insatisfação e marchei para fora da
sala o mais rápido possível até a minha mesa.
Enquanto a impressora trabalhava, entrei no aplicativo de
mensagens do celular para avisar Brandon que iria me atrasar.

“ Meu chefe precisou de mim. Vou atrasar alguns minutos. Já


saiu de casa? ”

A resposta veio em poucos segundos.

“Sem problemas. Estou te esperando aqui fora.”

Parecia que milhares de borboletas se agitavam no meu


estômago ao pensar que veria Brandon novamente.

Faziam oito dias desde que estive no hospital e o conheci. Na


mesma noite ele me enviou uma mensagem pedindo que eu
salvasse o seu número. As conversas por texto se tornaram
frequentes desde então. Geralmente giravam em torno de
assuntos banais, que não causavam desconforto para mim. Vez ou
outra, ao longo do dia, eu me pegava checando o aplicativo no
telefone, em busca de uma notificação com o nome de Brandon.
Ficando levemente decepcionada quando não a encontrava.

Retornei à sala do Secretário de Estado Richard com a


sensação de ansiedade intensificando dentro do peito. Mal podia
esperar para olhar nos olhos verdes tranquilizantes e sentir o
toque abrasador do homem que me esperava lá fora.

— Obrigada, Kimberly. — Meu chefe disse, secamente. Dei o


expediente como encerrado, fechando a porta da sua sala e
passando pela minha mesa apenas para buscar a bolsa.
Assim que entrei no elevador e apertei o botão que levaria ao
andar térreo, foquei a atenção em detectar alguma imperfeição na
minha aparência pelo espelho. A saia lápis cor vinho estava
aderida ao meu quadril e pernas, exatamente como deveria estar.
A blusa de tecido fino, estilo social, tinha uma estampa branca com
bolinhas pretas e laço na altura do pescoço que davam um ar
jovial à vestimenta. Também carregava um cardigã nos braços
para o caso de sentir mais frio.

Eu estava vestida como costumava me vestir. A diferença


estava no meu rosto, levemente maquiado e com um sorriso a
todo momento ameaçando escapar sempre que pensava no que
essa noite poderia resultar. Era uma mistura de esperança e
apreensão. Vontade e repulsa. Desejo e medo. Todos unidos,
disputando espaço, me confundindo.

Os sapatos scarpin de cor preta faziam um barulho estridente


conforme eu andava para fora do prédio em direção ao carro de
Brandon, parado logo na entrada. Ao contrário de quando estive
nele pela primeira vez, o automóvel não cheirava mais a baunilha,
a fragrância masculina havia dominado o ambiente e impregnou
minhas narinas quando fechei a porta, imediatamente buscando os
olhos verdes do motorista.

— Esse cheiro… — Puxei o ar devagar. — É muito bom.

Arfei quando, de repente, as mãos firmes de Brandon


trouxeram o meu rosto para perto do seu e ele depositou um beijo
na minha bochecha.

— Pode sentir melhor. — Virou o rosto, me dando acesso ao


seu pescoço, a fonte do aroma amadeirado viciante que havia me
enfeitiçado. Aproximei o nariz da região, sem deixá-lo encostar na
pele, mas perto o suficiente para absorver a fragrância com mais
intensidade. — Gosta?
Oh, Deus, como eu gostava!

— Sim, como disse, é muito bom. — Envergonhada, me afastei


um pouco dele, apertando a bolsa que estava no colo como se
com o gesto, eu pudesse controlar a vontade de continuar
aspirando seu cheiro até o dia seguinte.

— Posso sentir o seu?

Estava tão nervosa que não consegui responder com palavras,


permiti através de um aceno de cabeça. Os dedos dele afastaram
os cabelos do meu ombro e ele se ajeitou no banco para ficar mais
perto. O cinto de segurança não o impediu de inclinar o corpo na
minha direção. Brandon roçou a ponta do nariz abaixo da minha
mandíbula, exatamente onde borrifei o perfume doce que gostava
de usar. Todas as partes do meu corpo se acenderam.

— Essa fragrância é doce e gostosa. Como você.

— Brandon! — ele riu, voltando a ficar ereto no banco do


motorista.

— Poxa, Kim, você achou mesmo que eu iria parar de fazer as


minhas cantadas toscas?

— Sei que não consegue se controlar. — Soltei uma risada


tímida.

— Não mesmo. Ainda mais com você estando linda desse jeito.
— Minha pele ficou quente quando Brandon voltou a tocá-la,
acariciando minha bochecha. Ele vestia uma blusa azul escura de
botões e calça preta. Estava lindo, como sempre. — Podemos ir?

— Claro. — Sorri de lado.

Ele afastou a mão do meu rosto para dar partida no carro e


seguirmos viagem.

Ao longo do tempo, me questionei algumas vezes se o grande


complexo que adquiri a respeito de mim mesma não passava de
um vitimismo sem fundamento, uma problematização exagerada.
Tentei pensar em como seria se eu não tivesse sido rejeitada pelo
meu pai, se não tivesse sofrido bullying no colégio. Tinha certeza
de que esses foram acontecimentos decisivos para mudar a forma
como eu me veria pelo resto da vida.

" Não a quero aqui. Ela é nojenta como você, Beatrice. "

" Você é suja, Kimberly."

" Não toque em mim, não quero me contaminar com a sua


podridão."

Nojenta. Suja. Podre.


Adjetivos que sempre foram usados para se referir a mim.

Uma vez, depois de ouvir vários comentários desse tipo, voltei


para casa disposta a amenizar essa sensação de estar
degenerada. No espelho, eu parecia limpa, não havia nada que
indicasse a sujeira da qual os meus colegas de turma se referiam.
Me despi, entrei no chuveiro e esfreguei meu corpo com uma
esponja por algum tempo. A pele ficava avermelhada na medida
em que esfregava com mais ímpeto, na tentativa miserável de não
me render aos insultos. No fim do banho, voltei a olhar o meu
reflexo no espelho. Tudo ardia. Não havia uma parte do corpo que
não estivesse vermelha, esfreguei todo pedaço de pele que pude,
mas a "sujeira" ainda estava ali. Sempre estaria. A ficha caiu
naquele momento, onde chorei desesperadamente. Porque
aquelas pessoas pareciam estar certas.

Elas tinham "argumentos", eram a maioria, eu era apenas… eu.


Acuada, confusa, solitária. Não houve como vencer essa disputa.
Me rendi ao senso comum, me voltei contra mim mesma e me
repudiei por todos esses anos com afinco.

Hoje, pela primeira vez na vida, eu estava gostando de ser eu,


estar no meu corpo, ter diversas imperfeições.

Um dia esporádico em que ser Kimberly Salvatierra não era


sinônimo de autodepreciação.

Aos olhos de Brandon, eu me tornava mais interessante. A


forma como ele olhava para mim, empenhado em decifrar o que
escondia por trás da minha reserva, me fazia esquecer do tempo
em que preferia ser ignorada.

O médico de sorriso fácil e olhar penetrante me fez desejar sua


atenção, ocupar todo o seu campo de visão para que ele nunca
mais deixasse de ver seja lá o que tenha visto de especial em
mim.

Estávamos há aproximadamente trinta minutos conversando,


sentados à mesa do restaurante escolhido por ele, com o cardápio
em mãos, mas sem vontade de interromper a troca de olhares
significativa e a conversa descontraída para fazer o pedido.

— Acho que o garçom está um pouco irritado conosco. —


Brandon comentou, tirando os olhos de mim para fixá-los no
cardápio. — Já tem uma ideia do que pretende pedir?

— Pensei em algo do Menu Vegetariano.

— Se importa se eu pedir o mesmo prato que você? — A


pergunta me deixou levemente encabulada. Às vezes o interesse
dele causava certa estranheza em mim. Não estava acostumada a
compartilhar muito da minha vida com pessoas que conhecia há
anos, quanto mais uma que conheci há alguns dias.

— Não. Mas por que faria isso?

— Quero conhecer os seus gostos, experimentar as mesmas


sensações que você.

Eu não costumava ruborizar, e nesse momento me sentia grata


por isso, pois Brandon não saberia o quanto suas palavras
mexeram comigo. Apesar de não terem um cunho devidamente
erótico, elas fizeram minha pele ficar quente, meu ventre se
contorcer e alimentaram os pensamentos libidinosos que vinha
tendo desde que o conheci.
Era incrível como Brandon conseguia despertar diversas
vontades que há anos estavam adormecidas dentro de mim.

Como o desejo de ter uma noite tórrida ao lado dele.

Será que ele também sentia essa ânsia?

No carro, quando foi me deixar em casa, revelou que tinha uma


necessidade desenfreada de me ter. Mas seria ela tão devastadora
quanto a minha?

Ele parecia compenetrado demais se comparado a mim. Talvez


eu estivesse mais acalorada por não ter uma relação sexual há
muito tempo. Se bem que eu nunca tive uma transa realmente
satisfatória, o repúdio nunca me permitiu.

De repente, todo o tesão se converteu em aversão com a


possibilidade de não conseguir me entregar ao momento e frustrá-
lo.

— Kim? — fui chamada de volta à realidade pela voz dele,


aveludada e ainda assim máscula sempre que era dirigida a mim.
Tirei os olhos do cardápio, onde eu observava e me distraí. —
Está tudo bem?

— Ah, sim, eu só… Estava distraída, desculpe.

O Bistrô Aracosia era um autêntico restaurante afegão,


escolhido por Brandon para ser o local onde teríamos o nosso
primeiro encontro. Durante as conversas por mensagens, lhe
contei sobre ser vegetariana. Ele se demonstrou interessado pelo
assunto, fazendo perguntas e mais perguntas a respeito dos meus
gostos para comida. Não foi surpreendente quando chegamos aqui
e eu descobri que o local tinha um menu vegetariano diversificado,
me deu uma pontada de satisfação ter um homem como ele se
esforçando para impressionar, como se sua beleza e gentileza não
fizessem isso por si só.

Dentre todas as opções incríveis que o restaurante oferecia


para uma refeição vegetariana, me decidi por um prato composto
de berinjela assada servida com arroz basmati de grão longo e
infusão de açafrão. A fotografia no cardápio deu água na boca do
meu acompanhante, que fez o pedido ao garçom escolhendo um
vinho branco para acompanhar.

— Então, Dr. Lamont, por que nefrologia? — esta foi uma


pergunta que guardei para fazê-lo pessoalmente.

— Então, senhorita Salvatierra, apesar das pessoas


menosprezarem bastante a minha especialização, ela pode ser
considerada um campo de atuação desafiador, sabia?

— Por quê?

— Não foi nada fácil para mim carregar o fardo de ser o médico
mais bonito dentre os meus colegas residentes. Agora,
trabalhando no Virgínia Medical Center, as coisas não ficaram
menos difíceis. É pesado ser o único nefrologista e também o
médico mais bonito do hospital. — Ele suspirou dramaticamente.

Aos trinta e cinco anos, Brandon esbanjava boa forma, fazendo


com que não aparentasse ter passado dos trinta. Era alto, esguio,
possuindo uma quantidade de massa muscular proporcional a sua
estrutura óssea, um contraste perfeito entre traços precisos e
delicados.
— Vejo que eu estava certa ao deduzir que seu ego é grande.
— Estava gostando de conhecer as camadas que esse mesmo
homem poderia ter. Lhe ofereci um sorriso astuto. Brandon
retribuiu, me dando a certeza de que haviam segundas intenções
por trás do repuxar de lábios ao dizer:

— O ego é apenas uma das várias coisas grandes que tenho,


Kim. Logo logo você irá descobrir. — Riu quando arregalei os
olhos, boquiaberta.
Capítulo 04

Aí está uma nova revolução, uma evolução


barulhenta que eu testemunhei
Nascida da confusão e da conspiração silenciosa
que eu conheço bem
Uma mulher moderna com uma constituição fraca,
porque eu ainda tenho
Monstros embaixo da minha cama dos quais nunca
pude me livrar
hope is a dangerous thing for a woman like me to have - but i have it -
Lana Del Rey

Os astronautas provavelmente se sentiam livres em meio à


gravidade os fazendo flutuar, longe do caos da terra e a milhares
de anos luz de todos os seus problemas.
Brandon me proporcionava uma sensação semelhante durante
o tempo em que jantávamos, intercalando conversas sérias com
flertes e brincadeiras, entre uma garfada e outra do nosso prato
delicioso.
O sentimento de estar longe da minha realidade, desfrutando
de uma atração volátil e conexão ímpar, era análogo a me
encontrar a uma distância significativa da terra.

Permanecíamos em um clima descontraído, Brandon soltando


aos poucos algumas informações sobre si e eu as coletando,
guardando cada detalhe para repassá-los depois.

Nascido na cidade de Portland, ele se formou em Stanford, fez


residência num hospital de Boston e já havia morado em alguns
estados ao redor de Washington até se firmar na Virgínia. Seus
pais, também médicos, morreram há dois anos em um trágico
acidente de carro. Sendo filho único, Brandon confessou que se
sentia sozinho no mundo após o ocorrido e por isso, passou a
trabalhar dobrado, querendo diminuir a sensação de solidão.

Me identifiquei. Sabia exatamente como era esse sentimento.


Descobrir que nem mesmo alguém como ele, de bem com a vida,
podia não ser imune a isso me deixou satisfeita, de uma certa
forma. Fortaleceu a minha conexão com Brandon, fazendo com
que eu estivesse mais confortável para abrir um pouco da minha
vida quando pediu:

— Me conte sobre a sua família, Kim.

Bebi um gole do vinho, esperando o líquido descer goela


abaixo para então dar-lhe parte do que solicitou.

— Fui adotada quando tinha quatro anos por uma assistente


social chamada Sierra. O marido dela não queria ter filhos, então
ela o largou e dedicou sua vida a adotar várias crianças e nos dar
uma perspectiva de vida melhor.

— A família de vocês deve ser enorme, então.

— Na verdade, não. A maioria dos filhos adotivos dela foram


viver suas vidas e ela continuou a adotar outras crianças. Apenas
eu e Joshua mantemos contato com Sierra. De vez em quando
ajudamos a cuidar das crianças.

Voltei a bebericar o líquido resplandecente. Não tinha o hábito


de ingerir bebidas alcoólicas e depois de duas taças, encontrava-
me em um estado de euforia esquisito. Brandon não parecia fora
do eixo, sua primeira taça estava na metade e era ele quem nos
guiava entre um assunto e outro.

Ao terminarmos nossos pratos, sugeriu que pedíssemos uma


sobremesa. Eu aleguei estar cheia. Brandon resolveu pedir apenas
uma para dividirmos. Fiquei tensa quando deixou a cadeira onde
estava para sentar ao meu lado no sofá de couro marrom. Foquei
minha atenção em inalar o aroma do seu perfume incrível e tentei
relaxar aos poucos.

— Está nervosa, Kim?

— Não. — A resposta saiu rápida demais. Meu corpo estava


muito rígido para alguém tranquilo, me denunciando. Não deu para
fingir serenidade quando Brandou pôs uma mecha de cabelo atrás
da minha orelha e sussurrou próximo ao meu ouvido:

— Vai me deixar beijar você no fim da noite?


Não saberia dizer se havia sido a bebida ou o efeito de
Brandon, mas no mesmo instante que a pergunta foi feita, algo
disse "sim" dentro de mim.

— No carro. — Sussurrei de volta. Recebi um de seus sorrisos


charmosos como resposta. O garçom chegou em seguida,
trazendo consigo um pudim de arroz afegão com cardamomo e
finalizado com pistache esmagado. Como o homem cavalheiro que
era, meu acompanhante me serviu o primeiro pedaço da
sobremesa.

— Delicioso, não? — Brandon mantinha os olhos fixos em


meus lábios ao perguntar. Passei a língua por eles, chamando
ainda mais a sua atenção.

— Sim. A sua escolha foi excelente. — Escondi um sorriso por


trás da taça de vinho que levei delicadamente até a boca.

Na vez de Brandon se servir, os papéis se inverteram. Eu


encarava os lábios finos com lascívia enquanto ele estava
concentrado em desfrutar do gosto divino do pudim. Não consegui
conter o pensamento de como seria ter sua língua acariciando a
minha. Esperava ser mágico, como tudo o que Brandon provocava
em mim.

Ele estava me devolvendo a colher para que eu provasse outro


pedaço da sobremesa quando seu telefone tocou.

— Preciso atender. Já volto. — Pegou o aparelho dentro do


bolso e se afastou da nossa mesa, indo para a parte externa do
restaurante. Eu o seguia com o olhar, observando-o levar o celular
ao ouvido e dizer algo a pessoa do outro lado da linha, não percebi
alguém se aproximar de mim, só tive consciência disso ao ouvi-lo
chamar:
— Kimberly?

Movi os olhos de Brandon para o homem alto e de cabelo


castanho claro cortado de forma irregular. Joshua expressava uma
mistura de surpresa e receio enquanto me olhava. Vestia um terno
preto padrão, a barba estava mais cheia do que o comum.

— O que faz aqui, Josh? — perguntei em um tom baixo.

— Estou trabalhando como gerente deste restaurante. E o que


você faz aqui? — se aproximou, cobrindo a visão que eu tinha de
Brandon a alguns metros dali. Cogitei mentir, dizer que estava em
um jantar a trabalho, mas assim que meu acompanhante
retornasse, Josh descobriria a verdade. Ele era especialista na
arte de me decifrar.

— Estou tendo um encontro, Joshua. Poderia voltar ao seu


posto, por gentileza? Depois nós conversamos.

— Kimberly… — Olhou na direção onde Brandon ainda estava


ao telefone e depois retornou a me encarar. Parecia prestes a dar
uma notícia ruim. Isso me abalou. Joshua conhecia muitas
pessoas na Virgínia, temia que tivesse algo desagradável a dizer
sobre o homem com quem eu aceitei jantar. Não queria ver a
magia que havia entre nós dois ruir. E muito menos retornar para a
vida sem graça da qual levava. — Por que não me procurou? —
Franzi o cenho, não entendendo ao que se referia. Ele refez a
pergunta: — Se queria ter uma noite de prazer, por que não me
procurou?

Fazia algum tempo desde a última vez que eu o vira. E anos


desde a primeira e última vez que fizemos sexo. Não havia sido
ruim, mas a atração que eu sentia por ele era inexistente. Fui
movida por vários motivos tortuosos quando resolvi transar com
Joshua. E não tinha coragem de dizer isso a ele. Na sua cabeça,
nós dois éramos fracassados e nos entendíamos bem.

— Não queria uma noite de prazer! Só queria jantar com


alguém e ter uma noite agradável como qualquer pessoa.

— Você não é qualquer pessoa. E aquele cara com certeza não


tem a intenção de apenas jantar com você. Ele parece mais
alguém que quer te jantar. — Bufou, começando a ficar irritado. —
Quando foi que se tornou essa mulher ingênua? A Kimberly que eu
conhecia sabia muito bem que homens como aquele ali não estão
dispostos a abrir mão de nada por ela. O que houve, Kimberly?
Acha que ele vai sentir orgulho de te apresentar para às pessoas?
Que vai querer ter filhos com você? Acorde, querida. Homens são
egoístas por natureza. Os sedutores são o pior tipo de nós, se
escondem atrás do seu charme e sugam tudo o que lhe
interessam das mulheres até que sobre apenas a sombra do que
eram. — Nitidamente irritado, se virou. Antes de seguir caminho
para longe, Joshua disse: — Exatamente como aconteceu com a
sua mãe.

As lágrimas ficaram acumuladas nos olhos. Lutei para não


deixá-las cair. Pisquei e algumas desceram bochechas abaixo.
Através do borrão que havia se tornado a minha visão, avistei a
silhueta de Brandon se aproximando. Limpei rapidamente os
vestígios de um quase choro, engolindo todas as emoções que o
discurso de ódio de Joshua havia provocado.

Ao se sentar, Brandon não perguntou sobre o homem que


conversava comigo segundos antes. Se notou a presença do
outro, não demonstrou. Já eu, agradeci internamente por isso.

— Sua vez. — Aproximou a colher dos meus lábios, o pistache


transbordava do metal arredondado, me melando conforme
abocanhava o pedaço generoso de pudim. — Caramba, Kim, você
se sujou inteira. Me deixe te ajudar com isso.

Surpresa, prendi a respiração enquanto sentia a língua de


Brandon varrer os arredores dos meus lábios. Não foi invasivo.
Mas também não fora sutil. Arrebatador? Instigante? Luxurioso?
Não me preocupei em perder tempo tentando encontrar um
adjetivo que definisse perfeitamente o que sentia. Só queria sentir.
E o fiz, esquecendo qualquer outra sensação que não fosse a de
ser desejada com tanto vigor.

Assim que o carro parou em frente ao meu apartamento,


removi o cinto de segurança. Estava eufórica. Ansiosa e
amedrontada com o que viria a seguir. Havia sentido a língua de
Brandon percorrer a parte externa da minha boca e não conseguia
parar de pensar no quão melhor poderia ser tê-la por dentro.

— Eu não faço isso há muito tempo. — Confessei, no silêncio


que se tornou o interior do automóvel depois do motor ser
desligado.

— Isso o quê, linda? — inspirei fundo quando virou o rosto e o


apoiou no estofado do banco, me olhando com lascívia. Eu não
deveria ter bebido. Parecia estar ficando mais sensível ao charme
de Brandon por causa disso. Em contrapartida, gostava de
experimentar a intensidade da luxúria.
— Beijar na boca.

Brandon sorriu. Não foi um sorriso de deboche. Era mais uma


espécie de satisfação. Permaneci imóvel no meu assento,
esperando os dedos dele percorrem o caminho do meu queixo até
colocar uma mecha de cabelo atrás da orelha. Senti satisfação
também. Esse simples gesto tinha um poder enorme de me
acalentar e incendiar ao mesmo tempo.

— Não se preocupe, linda. Se depender de mim você nunca


mais vai esquecer como se faz.

— Nunca mais?

— Nunca mais. — Ele estava tão perto. Eu podia sentir sua


respiração na minha bochecha enquanto roçava o nariz em minha
mandíbula e descia até o pescoço. Arrepios acometiam meu
corpo. Me mantive o mais estática possível, lutando contra os
choques de prazer que iam direto para o meio das pernas. A
região pulsava de um jeito incontrolável, sentindo a língua de
Brandon deixar seu rastro, subindo e descendo, os dentes
pegando para si um pedaço da pele, chupando, me testando.

Forcei uma coxa na outra, na tentativa falha de fazer parar a


vontade de tê-lo entre elas. Nunca havia deixado ninguém chegar
com a boca até ali. Era uma área restrita. A fonte da minha
repulsa. E por mais que estivesse sentindo uma necessidade de
saciar a fome que se alastrava pela minha intimidade, ainda não
gostava da ideia de ter a língua de Brandon zanzando por essa
parte de mim mesma.

— Só deixe fluir. Não tenha vergonha, vai acontecer


naturalmente. — Sussurrou, e no instante seguinte colou os lábios
nos meus em um selinho que me deu confiança para abrir minha
boca e recebê-lo. Sua língua não foi tão exigente como esperei.
Lambia a minha devagar, ao contrário do ritmo do meu coração,
batendo freneticamente no peito, alucinado por experimentar um
beijo depois de tanto tempo.

Nossas bocas faziam um barulho gostoso conforme iam


trabalhando para encontrar o encaixe perfeito. As mãos dele foram
parar no meu cabelo e cintura, ambas me segurando com firmeza.
Arrisquei fazer um carinho no seu braço, apoiado em minhas
pernas. Meus dedos iam e vinham entre os pelos que
despontavam sobre a pele macia. Brandon aumentava a
intensidade aos poucos, chupando minha língua e apertando o
punhado de cabelo que mantinha refém.

Não foi um momento mágico, pois parecia real demais. Eu


sentia cada toque, mordida e chupada com uma intensidade
absurda. Minha pele chegava a formigar, a respiração não
conseguia se manter ritmada.

Era como estar acostumada a ver tudo em preto e branco, não


conseguir sentir cheiros, texturas e gostos. Mas de repente, da
maneira mais inusitada, enxergasse uma imagem em cores tão
vívidas que você se questiona se foi verídica. Ao tocá-la, pela
primeira vez sente tudo. A pele macia sob os dedos. O cheiro forte
e amadeirado nas narinas. O sabor doce por toda a extensão da
língua. Impossível não ficar impressionada, conter as reações do
corpo em meio ao inesperado e magnífico poder do sentimento.
Ainda mais se nunca tivesse experimentado algo dessa magnitude
antes.

— Você deve estar se sentindo de volta ao ensino médio, tendo


que dar amassos no carro. — Insinuei, querendo disfarçar o
desconforto que me abateu quando Brandon deu uma pausa no
beijo e enfiou o rosto no vão entre meu ombro e pescoço.
— Acredite se quiser, mas eu não fiz sucesso no ensino médio.
Era mais reservado. Fazia parte do clube de xadrez da escola.
Isso não atraía muito as garotas. Estava fora da minha realidade
dar amassos dentro do carro. — Riu contra a minha pele, sensível
às suas carícias.

Não conseguia imaginar o homem galanteador que me beijava


com ímpeto há segundos atrás no papel de nerd excluído.

— Você ainda joga xadrez? — minha pergunta saiu em um fio


de voz, comprometida pela excitação de ver os dedos de Brandon
trilhando um caminho perigoso por minhas coxas abaixo.

— Faz tempo que não jogo. — Mordeu o lóbulo da minha


orelha, puxando a pele sem colocar muita pressão no gesto. —
Não quero que tenha uma má impressão de mim, Kim, mas estou
faminto para te tocar, entende? — balancei a cabeça, consentindo.
— Se achar que é cedo demais, me mande parar.

Balancei a cabeça novamente, dando a ele a permissão que


queria para afastar as minhas coxas e subir um pouco a saia de
couro que eu usava. Sua mão não demorou para encontrar o
caminho até a minha calcinha, afastando-a para o lado, investindo
dois dedos entre as minhas dobras e massageando o clitóris
lentamente.

Fechei os olhos, querendo impedir todos os pensamentos ruins


de me sabotarem. Eu era uma mulher normal, atraída pelo homem
que estava me dando prazer, talvez prestes a fazer sexo com ele.
Simples. Fácil. Ótimo.

Péssimo, Kimberly.
Lembrei de Joshua. A voz irritada invadiu meus pensamentos.
O prazer foi esvaindo, dando espaço para que a repulsa desse as
caras à medida que suas palavras ecoavam dentro da minha
cabeça.

Acha que ele vai sentir orgulho de te apresentar para as


pessoas? Que vai querer ter filhos com você?

Perguntas retóricas que esmagavam qualquer centelha de


esperança que ameaçasse crescer no meu coração.

— Ah, Kim. — Os dedos de Brandon faziam caminho pela


minha entrada, úmida e sensível, engolindo-os lentamente
conforme investia. — É tão apertada.

A respiração dele estava irregular ao pé do meu ouvido. Me


mantive de olhos fechados, a excitação havia diminuído, um
sentimento de raiva ganhava força.

Eu nunca conseguiria me entregar completamente a alguém,


desfrutar do sexo em sua plenitude, desvinculá-lo do meu
diagnóstico. Estava excitada, pronta, mas voltava à estaca zero
quando pensava na possibilidade de ter que contar para Brandon.
E eu teria de fazê-lo. Jamais poderia esconder isso dele ou de
qualquer pessoa com quem me relacionasse. Era isso o que
tornava tudo tão difícil.

Revelar e esperar pela reação da pessoa.

— Brandon… Pare. — Ele afastou a mão no mesmo instante,


permanecendo com o rosto próximo ao meu.
— Fiz algo de errado? — não quis olhar nos seus olhos,
observava a rua através do parabrisa.

— Não.

— Olhe para mim. — Continuei olhando o que havia em frente.


— No que está pensando?

Sentia vergonha e raiva. Pensava em uma forma de fugir dali


sem desapontá-lo.

— Acho que ainda é cedo. — Compreensivo, ele assentiu e


voltou a ficar ereto no banco do motorista. — Limpe a sua mão.

Franziu o cenho, sem entender.

— Por quê, Kim?

— Faça isso, por favor.

Assentiu novamente. Havia algo diferente no seu olhar, uma


revolta que cintilava pelas suas orbes, me surpreendendo quando
levou os dedos sujos com a minha lubrificação à boca e os lambeu
sem hesitar.

— Brandon! — praticamente gritei. — Você… — Fui


interrompida por ele, que pegou meu rosto entre as mãos e me fez
encará-lo.

— Não fui infectado, Kimberly. O vírus está indetectável. —


Preenchida por uma revolta irracional, me livrei do seu aperto,
tirando suas mãos de perto de mim sem delicadeza. Brandon ficou
na defensiva, escorado na porta atrás de si, observando o
desespero me dominar. — Não sei o que já te disseram para se
sentir mal assim, mas você é uma mulher normal, Kimberly. Pode
se relacionar, ter filhos, fazer o que quiser.

A palavra "normal" era o completo oposto de "aberração".


Tinham significados distintos. Efeitos divergentes no coração de
alguém quando ditas em voz alta. Estavam em pólos opostos
dentre as variedades de adjetivos existentes.

Sierra, Dr. Foley e Brandon faziam parecer fácil substituir as


palavras ruins que já foram usadas contra mim por outras com
significados bons. Como se a minha memória fosse um arquivo de
Word onde a função "Localizar e Substituir " estivesse à
disposição.

Quem me dera ter esse poder.

A realidade era que os elogios tinham um peso pequeno


quando comparados à condenação. Muitas delas foram feitas de
forma ignorante, devido a falta de informação por parte das
pessoas sobre o HIV. Outras usadas intencionalmente para ferir.

Eu descobri cedo que palavras podiam ser como balas de


revólver: letais, se conseguissem atingir o local certo.

Fui atingida muitas vezes quando era apenas uma menina. Não
tinha uma armadura. As pessoas se aproveitaram disso para
destilar todo o ódio e a insatisfação com si mesmos em mim.

Então não, Kimberly não era uma mulher normal. Ela não
poderia doar sangue. Nem amamentar o seu bebê. Ela acreditava
que o vírus dentro do corpo dela era uma sujeira da qual nunca
estaria livre. E ninguém tiraria isso da sua cabeça do dia para
noite. Porque Kimberly não era um arquivo cheio de palavras para
serem substituídas.

Eu era um produto do ódio e do abandono. Da repulsa e do


desejo. O resultado de uma mulher em decadência e um homem
amargurado. Uma bagunça de genes e vírus.

Uma garotinha esperando sua armadura finalmente ficar pronta


enquanto se escondia dos outros por medo de não estar
preparada para aguentar quando as balas a atingissem. Porque
palavras ruins sempre seriam mais usadas do que palavras gentis.

— Destrave a porta, por favor. — Pedi, à beira do choro. Ele


não insistiu para que eu ficasse, permitiu a minha saída do carro
depois de dizer:

— Me ligue quando estiver pronta para conversar sobre isso.

Foi triste vê-lo criar esperanças de que isso realmente


aconteceria, que no dia seguinte eu acordaria e me sentiria
confortável para falar abertamente sobre essa parte da minha vida.
Foram vinte e cinco anos evitando, e por mais que Brandon não
fosse ignorante e entendesse as minhas condições, ainda era
difícil. Porque no fim das contas, mesmo que ele não se
importasse em ter relações comigo sabendo do HIV, as pessoas o
julgariam. Seria como Joshua insinuou: Brandon aprenderia a se
envergonhar de mim ao longo do tempo.

As lágrimas caíam sem parar enquanto o elevador subia até o


andar onde eu morava. Sempre que entrasse em uma caixa
metálica dessas me lembraria dele. Do seu olhar penetrante, o
perfume gostoso e o sorriso perfeito.
Desesperançosa, voltei para a solidão que me aguardava no
meu apartamento e chorei madrugada adentro, ao som de Hope is
a Dangerous Thing for a Woman Like me to Have - but I have da
Lana Del Rey.
Capítulo 05

E eu vou te amar garota


Do jeito que você precisa
E ninguém vai nos parar
Ninguém vai nos parar
E vou te dar, garota, o que você implora
Eu sou a droga nas suas veias
Apenas lute contra a dor
What You Need - The Weeknd

Era interessante o quanto podíamos descobrir detalhes


sórdidos sobre uma pessoa apenas observando atentamente o
interior da sua casa.
É claro que também se fazia necessário ter uma percepção
aguçada para interpretar os sinais que certos hábitos e objetos
pessoais poderiam querer dizer sobre alguém.
Muitas pessoas diriam que Joshua Ryle era um porco e
desleixado se vissem a desordem que era a sua casa. Haviam
várias embalagens de fast food espalhadas por cima da mesa de
jantar e a de centro. Além de muito pó acumulado na superfície
dos móveis de madeira da sala. A crosta de poeira se desfez sobre
meu dedo indicador quando o esfreguei na cristaleira que tinha ali,
para constatar o que meus olhos já sabiam: o móvel estava
imundo. As peças de porcelana guardadas ali? Mofadas e
cheirando a rato morto.
A questão era que aquilo dizia muito mais sobre ele do que
apenas a sua falta de higiene. Para olhos como os meus, treinados
a enxergar traços de personalidade nos mínimos detalhes,
mostrava que Joshua estava tão insatisfeito com si mesmo e a
própria vida que não via razões para melhorar o ambiente ao seu
redor, já se sentia no fundo do poço e por conta dos pensamentos
depreciativos, de fato estava tendo a vida miserável de alguém
como tal.
Estive naquela residência uma semana antes, assim que
Joshua saiu para trabalhar na hora do almoço. Meu objetivo foi ser
rápido no que precisava fazer e me mandar pela porta dos fundos
logo em seguida. Não fiquei reparando muito se a cortina era cinza
ou preta ou se as paredes precisavam de uma pintura. O dia
estava claro, alguém poderia ver a minha entrada e isso arriscaria
a minha identidade.
Mas com certeza o local estava quase tão sujo quanto agora.
Só não haviam tantas embalagens de refeições pelos cantos, mas
o cheiro do ambiente denunciava que a limpeza não foi uma
prioridade para Joshua desde a semana passada. E eu
desconfiava que nunca seria.
O grande ponto era que a casa pela qual eu seguia andando,
fazendo o piso de madeira ranger conforme as minhas botas
batiam no chão, servia como um abatedouro para o dono dela
fazer sexo com menores de idade.
Localizada no fim de uma rua sem saída e rodeada de terrenos
desocupados, a residência era perfeita para quem queria se
esconder. À noite, as árvores em volta faziam uma sombra sobre a
estrutura e disfarçavam a existência dela se as luzes estivessem
apagadas. Bem macabra a visão de fora, exatamente como
aquelas casas dos filmes de terror americanos.
Eu só não entendia que merda aquelas garotas tinham na
cabeça para aceitarem transar com Joshua e ainda por cima
naquele lugar horroroso.
As filmagens da câmera que deixei escondida no quarto dele
confirmavam que a relação era consensual, elas realmente
estavam gostando do que faziam. Os vídeos mostraram meninas
entre 14 e 16 anos, em diferentes dias, tendo relações sexuais
com o homem de 29. Foi nojento ter que passar as gravações uma
a uma para me certificar de que todo o material havia sido coletado
corretamente.
Perplexo com a falta de responsabilidade das adolescentes
americanas, retirei a câmera minúscula que havia colocado
sorrateiramente na luminária do quarto e a levei comigo até a sala,
onde eu iria me preparar para receber Joshua. Fiz o download dos
vídeos no notebook que deixei me esperando lá, sempre
conferindo o relógio de pulso para ter certeza de que estava em
tempo.
Peguei o mais recente, onde uma garota loira com não mais de
dezesseis anos rebolava no pau de Joshua como uma puta
alucinada. Deixei o vídeo pausado, posicionando o notebook na
mesa de jantar com a imagem virada para a porta. Em seguida
apaguei todas as luzes, me colocando atrás do portal de madeira
envelhecido, aguardando a chegada do desgraçado.
Faltavam dois minutos para as três da manhã quando os faróis
do carro dele invadiram as janelas da sala. Aproveitei os minutos
enquanto ele estacionava na garagem para estalar o pescoço e
aguçar meus sentidos à medida que seus passos soavam mais
próximos da porta.
Um gato prestes a pegar o rato descuidado.
A adrenalina se espalhou por todo o meu corpo em um único
pico de epinefrina assim que Joshua atravessou o portal e eu o
puxei pelos cabelos, agarrando seu pescoço com o braço direito,
impedindo-o de respirar momentaneamente. Ele reagiu, por
reflexo, tentando puxar meu braço e batendo em meu peito com o
cotovelo, mas eu o contive, finalizando o mata leão ao pressionar
meu braço esquerdo na região entre o pescoço e o centro da
cabeça, exercendo força sobre as artérias dele, fazendo-o
desmaiar aos meus pés em segundos.
Joshua tinha alguns centímetros a mais do que eu, além de ser
mais encorpado. Se estivéssemos em um combate frente a frente,
talvez ele pudesse ter ganho ou ao menos sido páreo a mim.
Pegá-lo desprevenido foi decisivo para a minha unânime vitória, eu
sabia disso. Mas não estava ali com a intenção de disputar ego,
ver quem era mais forte. Meu objetivo era arrancar informações. E
se havia uma coisa que eu sabia fazer era jogar sujo para
descobrir ou manter segredos.
Arrastei o corpo abatido pelo chão até perto da mesa de jantar,
onde puxei a cadeira e o coloquei sentado de frente para o
notebook, preso a algemas eletrônicas que programei para abrirem
automaticamente dali a doze horas. Com as luzes acesas, voltei
ao quarto e vasculhei as coisas do maldito até encontrar um
perfume que pudesse usar para acordá-lo. Não foi uma surpresa
perceber que só haviam dois, baratos e de fragrância não muito
atraente. Escolhi o que era um pouco menos fraco e aproximei o
vidro do nariz de Joshua. Levou alguns minutos para suas
pálpebras se movimentarem.
— Que merda… — Olhou ao seu redor, o desespero
transformava lentamente a sua expressão preguiçosa em uma de
puro pânico conforme se dava conta de quem eu era, do que se
tratava o vídeo a sua frente e da impotência que as algemas lhe
proporcionaram prendendo seus pulsos atrás das costas da
cadeira. — Que merda está fazendo na minha casa?
— Preciso saber de umas coisas — fechei o vidro do perfume e
o deixei a alguns centímetros do notebook, para onde os olhos de
Joshua se voltaram depois da minha resposta. Sentei em cima do
tampão de madeira da mesa, a adrenalina havia se dissipado,
restando apenas o asco que sentia pela pessoa decadente à
minha frente.
— Cara, quem é você e que merda pensa que está fazendo me
algemando e dizendo essas coisas? — ele havia bebido. Senti o
cheiro de vodka exalando por seus poros apenas naquele
momento.
— Não está me reconhecendo? — puxei o cabelo dele para
que encarasse meu rosto. Joshua forçava a vista, espremendo as
pálpebras, na tentativa de se recordar. — Sou o cara que estava
jantando com a Kimberly.
Sua expressão se tornou esclarecida. Fazia algumas horas
desde que eu havia deixado Kim em casa e seguido para cá, certo
de que arrancaria dele as respostas que não consegui através do
meu contato. Joshua parecia se lembrar do ocorrido no Bistrô
apenas naquele instante.
— Aaah, é claro! O mauricinho galanteador! — debochou,
estalando a língua. — Você é do tipo possessivo? Por isso está
aqui me importunando?
Estava insuportável sentir o hálito quente de bebida que
soprava em meu rosto toda vez que ele falava, então soltei seus
cabelos. A cabeça dele tombou para trás, batendo no encosto da
cadeira. Joshua gemeu.
— Eu disse para a Kimberly que você não prestava —
murmurou, tentando se soltar das algemas.
— Cale a boca e pare de se mexer. — Apertei a tecla Enter do
notebook, iniciando a reprodução do vídeo imoral que Joshua
protagonizava. Foi como se algo dentro dele tivesse sido acionado
e somente ali ele entendesse a gravidade das coisas que fez.
— Como conseguiu isso, seu bastardo? Que tipo de psicopata
é você? — berrou. Eu quis rir. Ambos éramos deturpados, a
diferença básica se dava ao fato de que eu fui forjado para ser um
sociopata que serve a um propósito inteligente, Joshua não
passava de um garoto judiado que perdeu a sanidade pelo
caminho tortuoso que trilhou até se transformar exatamente no que
o feriu.
— O ponto aqui não é o que eu sou ou deixo de ser. O que
importa é que você é um pedofilo desgraçado que vai pegar quinze
anos de prisão. — Ele engoliu em seco, respirando com
dificuldade. — O que acha disso, Joshua? Ficar trancado em uma
cela por tanto tempo, sem sexo e correndo o risco de ser
estuprado pelos outros detentos?
— Foi consensual! Você não está vendo? Ela está rebolando
em cima de mim, me beijando… — Alternava o olhar entre mim e a
tela do notebook. — São vadias jovens que querem um cara mais
velho para realizar seus fetiches adolescentes. Não sou pedófilo
porra nenhuma!
— Pode até ser, mas será que elas vão admitir isso para os
pais? Na frente de um júri? Eu tenho minhas dúvidas. As
adolescentes de hoje em dia costumam ser bem cínicas. —
Ironizei.
Pela maneira como Joshua observava o vídeo, com um olhar
preocupado e a boca fechada em linha reta, eu sabia que estava
quase chegando ao ponto certo para poder manipulá-lo, faltavam
apenas alguns pontos a serem abordados para selar a sua
necessidade de escapar de uma denúncia séria como aquela.
— Imagine como Sierra irá reagir quando souber. Vai ser
decepcionante para ela ver que investiu tanto em você, te tirou do
lar abusivo em que vivia e te deu uma esperança de uma vida
melhor, e olha só o que você fez. — Acenei na direção do vídeo,
ainda rolando com a gravação, os gemidos da garota ecoando
pela sala bagunçada. — Nesses momentos as mães se
questionam onde foi que erraram. Não duvido que essa será a
primeira pergunta que ela se fará quando você for indiciado.
O silêncio foi a única resposta que me deu. Ele trincou o
maxilar enquanto pensava, olhando de um lado para o outro, em
busca de uma saída que não fosse se render a mim. De uma
forma inesperada e irracional, Joshua achou pertinente morder a
minha coxa como um cachorro sanguinário.
— Merda! — ralhei, puxando os cabelos dele, mais pego de
surpresa do que incapaz de lidar com a dor latejante dos dentes
perfurando a minha calça e pele. Pensando rápido em uma saída,
soquei a cabeça dele com a outra mão, batendo forte contra a
região próxima ao seu olho esquerdo. Foram necessários três
golpes para desestabilizá-lo e conseguir me afastar.
Estava do outro lado da mesa para analisar o estrago que
Joshua fez na calça jeans escura que eu usava. Após constatar
que a lesão não havia sido profunda e o tecido não fora tão
danificado, retomei a calma, voltando para perto dele, que me
encarava como se nada tivesse acontecido.
— O que você quer saber? — indagou, demonstrando
redenção no tom de voz.
Impulsivo e desorganizado. Um lunático total.
— Tudo que sabe sobre a infância e a adolescência da
Kimberly.
Ele me olhou com desdém, rindo ao dizer:
— Então você é mesmo um cara obsessivo? E eu achando que
Kimberly estava se iludindo sozinha!
Eu não gostava do tom debochado que Joshua usava para se
referir à irmã adotiva. Estava na cara que ele a manipulava desde
sempre e por algum motivo ainda desconhecido por mim, ela
levava em consideração as merdas que saíam da boca dele.
Essa seria a primeira coisa que eu mudaria quando me
casasse com Kimberly, acabaria com qualquer credibilidade que
Joshua tivesse na visão dela. Afastaria os dois de uma vez por
todas para que o bastardo não pudesse mais influenciá-la contra
mim como fez no Bistrô.
Em poucos minutos, seja lá dizendo o que, ele conseguiu fazê-
la retroceder, voltar a ficar insegura sobre tudo. Apesar de não ser
inteligente, o desgraçado sabia exatamente como manipulá-la,
provavelmente fazia isso desde a infância.
— O que disse para ela quando me afastei? — eu precisava
entender como ele havia chegado até aquele ponto sem abusar
dos únicos dois neurônios que ainda estavam funcionando dentro
da sua cabeça.
— Não lembro direito. Umas merdas sobre os caras não
gostarem de usar camisinha, talvez? Ela odeia tocar nesse
assunto. Faz ela lembrar que tem HIV. — Começou a gargalhar.
No mínimo devia ter fumado maconha também. — Kim se acha
horrível desde sempre. A mãe era uma vadia descontrolada que
dava para a cidade inteira até pegar o vírus e ser expulsa de casa
pelo marido. Ela estava grávida de Kim. As duas moraram nas
ruas por vários anos. Beatrice não sabia que não podia amamentar
a bebezinha, foi assim que passou o HIV para ela. Transmissão
vertical o nome disso, eu acho. Mas enfim, Beatrice não se cuidou
e teve AIDS. Morreu de uma pneumonia quando Kim tinha quatro
anos e como todos da família se recusaram a pegar a menina de
volta, ela foi parar em um orfanato. E o resto você já deve saber.
Nos registros, Beatrice Salvatierra não existia mais desde o
ano que Kimberly nasceu. Eu tinha um dossiê vasto sobre Esteban
Salvatierra, mas quase nada a respeito de sua esposa.
Provavelmente ela foi enterrada como indigente.
— A família nunca mais entrou em contato com Kim?
— A irmã sim. Megan o nome dela. Enviou uma carta para a
casa de Sierra uns anos atrás querendo falar com Kimberly. Mas
Kim se recusou a respondê-la e o assunto morreu.
Megan Cristina Salvatierra. Eu me recordava de ter lido alguma
coisa sobre ela durante o período que procurei informações a
respeito da sua família. Segundo minhas fontes, era seis anos
mais velha que Kimberly, formada em Análise de Sistemas e
estava noiva de um piloto da Nascar. Era uma das poucas pessoas
dentre os Salvatierra que ainda morava no Estado da Virgínia.
— Por que está tão interessado nela? Sinto muito em te
informar, mas é bem mais provável uma vaca voar do que
Kimberly Alejandra te deixar conhecer o meio das pernas dela. —
Deu um suspiro, como se o que estivesse prestes a dizer fosse
muito dramático. — Eu fui o único que já esteve ali e posso dizer
com propriedade que não foi do dia para a noite que consegui.
— Como assim, "já esteve ali"?
A risada ácida que ele deu conseguiu me irritar.
— Isso mesmo que está pensando. Tirei a virgindade de
Kimberly quando ela tinha dezenove anos. Desconfio que nenhum
outro homem tenha estado por lá depois de mim.
Joshua falava da parte íntima de Kimberly como se tratasse de
uma caverna inexplorada e ele fosse o homem que a descobriu.
Bastardo de merda.
Se não fosse pelas besteiras que disse para deixá-la insegura,
a essa hora eu estaria enterrado bem fundo naquela boceta
apertada. E qualquer lembrança da coisa desprezível que Joshua
tinha no meio das pernas iria parecer um pesadelo perto do que eu
a faria sentir sobre o meu domínio.
Não havia desistido disso. Só precisava entender exatamente
como a cabeça dela funcionava, quais eram seus medos, o quanto
os acontecimentos do passado a afetaram, para então desvendar
seus desejos e fazê-la ceder.
Faria tudo ser diferente, especial. Um conto de fadas moderno
que duraria o tempo que ela quisesse, contanto que soubesse
guardar segredos.
— Não devia se vangloriar tanto por isso, Joshua. Tenho
certeza de que Kimberly se sentia muito mal consigo mesma no
momento em que aceitou transar com você. Ao ponto de não
parecer tão decadente ter a sua coisa nojenta dentro dela. —
Esgotado das falas egocêntricas sem sentido de Joshua, fechei o
notebook e o guardei na bolsa de couro que usei para levá-lo. Não
arrancaria mais nada de útil do lunático agora que ele se sentia
glorioso com o rumo da conversa.
Como Kim conseguia suportá-lo?
Sua carência deveria ser maior do que previ para que pudesse
ver em Joshua um alicerce.
— Nojento ou não — sorriu para mim, se sentindo triunfal pelo
que estava prestes a dizer. — Eu meti o quanto pude naquela
bocetinha virgem e abri o caminho que você está louquinho para
percorrer.
Soltei uma risada anasalada. Começava a pensar que talvez a
culpa fosse de Kimberly por dar tanta liberdade a um patife como
ele.
— Onde está o seu celular? — apalpei os bolsos da sua calça
jeans, não encontrando o aparelho e nem mesmo a sua carteira.
Apenas a chave do seu automóvel se encontrava ali.
— No carro. Não é como se alguém fosse me ligar a essa hora
para saber como estou.
Com a chave em mãos, parti para fora da casa pela porta da
frente e logo estava diante do Audi A4, bem conservado,
estacionado na garagem. O cheiro do seu interior era muito
superior ao da casa inteira de Joshua. E ao contrário da sujeira de
papéis e poeira da residência, o automóvel estava impecável, os
bancos de couro extremamente limpos e uma fragrância delicada
parecia ter sido borrifada há não muito tempo.
Estava claro que o automóvel era uma das únicas coisas que
Joshua considerava importante na sua vida.
O smartphone encontrava-se no porta objetos próximo à
marcha. Apressado, apanhei o aparelho e estava prestes a fechar
o carro quando percebi a presença de uma carteira no chão do
banco do passageiro. Abri novamente a porta, pegando-a para
averiguar o que havia no seu interior. Mais por curiosidade do que
por acreditar que encontraria algo de proveitoso.
Me deparei com uma fotografia que teve um impacto esquisito
na minha mente. Reconheci o rosto oblíquo no mesmo instante,
como se meus olhos estivessem prontos para reconhecê-la em
qualquer circunstância. De fato, estavam. Já tinha visto diversas
imagens dela antes de me aproximar e perceber que nenhuma
fotografia fazia jus à sua beleza excêntrica.
Mas aquela em específico, revelada no formato de polaroid e
desgastada pelo tempo, demonstrava uma beleza imaculada,
olhos cálidos e a pele morena numa versão mais jovem de
Kimberly.
Não devia ter mais de oito anos quando a foto foi tirada.
Abraçava o menino branco e de cabelos loiros com afinco. Apesar
de não estar sorrindo, parecia ligeiramente feliz.
Ela sorria com os olhos. Constatei que desde criança tinha
esse poder de transpassar seus sentimentos, em específico a
alegria, que eu sabia não ser muito constante na sua vida, através
do olhar. Por isso não cabia dentro das orbes cor de chocolate,
moldadas desde cedo pelas sobrancelhas arqueadas e ofuscadas
pelo cabelo extremamente escuro, levemente azulado, a felicidade
enquanto agarrava Joshua em um abraço cheio de significado,
vestidos de Wednesday e Pugsley Addams.
Eu enxerguei mais do que a lembrança de um halloween
qualquer através daquela imagem. Vi o reflexo de dois adultos
quebrados, que mesmo muito jovens sabiam exatamente o quanto
deviam se agarrar à oportunidade que receberam. Entendi a
situação por uma nova ótica.
Quando se nasce sem o amor e o apoio necessário, tornamos
o oferecido suficiente. Vemos esperança nas migalhas de afeto e
distorcemos as coisas para que caibam na nossa perspectiva
limitada de merecimento. Um mecanismo de sobrevivência para
aqueles que precisam lidar com a rejeição.
Era por isso que Kimberly olhava para Joshua e via um
alicerce. Porque sua capacidade de discernimento havia sido
comprometida pelo abandono, ao ponto de ver algo bom onde só
existiam meros fragmentos do homem que ele poderia ser caso a
vida tivesse sido menos cruel.
Me peguei pensando no quanto Kimberly precisava de algo
melhor em sua vida, mesmo que fosse uma ilusão. Alguém
disposto a realizar cada uma das coisas que ela sempre quis viver.
Foi com esse pensamento serpenteando o lado sombrio da
minha mente que amassei a fotografia entre os dedos e a joguei
no chão apenas para pisar em cima diversas vezes.
— Que tipo de lugar você e Kim frequentam juntos? —
perguntei, ao retornar.
— Quando ela topa sair de casa, vamos ao cinema… —
Respondeu, vagamente, como quem tem mais a dizer, mas não
tem certeza se deve.
— E o quê mais, Joshua?
— Bom, tem um clube de xadrez há dois quarteirões da casa
dela que de vez em quando ela me chama para encontrá-la por lá.
Não é um programa legal, se quer a minha opinião. Eu fico horas
sentado, tendo que observar enquanto Kim ganha de homens da
meia idade. É entediante.
— Não quero a sua opinião. — Aproximei o dedo médio de
Joshua do sensor de digital do smartphone para desbloqueá-lo. —
Vou marcar um encontro com ela, mas você não vai aparecer,
entendeu?
— Onde quer chegar com tudo isso, cara?

“Ei, Kim. O que acha de nos encontrarmos naquele clube de


xadrez horroroso? Amanhã às sete.”

— Não te interessa. — Respondi. Encarava a tela do celular,


esperando que a resposta chegasse o mais rápido possível.
— Não pode pelo menos me dizer quem é você? — irritante
como era, Joshua insistiu.
O barulho de notificação de mensagem veio meio minuto
depois.

“Fechado. Te encontro lá.”

— Eu sou o futuro marido da Kimberly.


Deixei o aparelho em cima da mesa e Joshua com uma
expressão confusa ao sair da casa com a bolsa de couro em mãos
e convicto de que, dessa vez, Kim não me escaparia.
Ele me gritou do lado de dentro, querendo que o soltasse.
Eu a faria feliz. Me casaria com ela. Seríamos perfeitos
enquanto o segredo perdurasse.
Capítulo 06

Por que eu sou um problema com problemas, eu sei quem sou


E eu não sou boa
Você pode me ter essa noite ou nunca, achei que tivesse entendido
Querido, algumas pessoas são feitas para serem amadas
Outras apenas amam
Então pegue o que eu tenho para dar, ame ou odeie
wRoNg - Zayn feat. Kehlani

As ruas de Arlington estavam gélidas e tranquilas durante a


caminhada até dois quarteirões depois da minha casa. Vários
carros, em sua maioria modelos antigos, estavam estacionados
em frente ao enorme galpão onde todas as noites aconteciam
partidas acirradas de xadrez.
Descobri o local através de um senhor que conheci no
mercado. Gentil, ele puxou assunto comigo enquanto
aguardávamos na fila do caixa e em algum momento o assunto
rumou para o jogo de tabuleiro. Alfred revelou que um dos seus
amigos de infância havia fundado um clube de jogos nos fundos da
sua fábrica e que eu estava convidada para dar uma passada por
lá quando quisesse.
Não tinha coragem de aparecer sozinha, então sempre trazia
Joshua como minha companhia, apesar de ele odiar jogos de
tabuleiro e passar a maior parte do tempo escorado em uma das
paredes, mexendo no seu celular. Foi surpreendente receber um
convite dele na noite anterior para nos encontrarmos ali, visto que,
todas as outras vezes, a atitude partira de mim. E sempre
acompanhada da sugestão de passarmos em algum lugar para
comer por minha conta, pois somente assim o convenceria.
Eu o aguardava do lado de fora, abraçando o próprio corpo por
cima do cardigan de caxemira que usava para me esquentar.
Joshua estava quarenta minutos atrasado. Nada de novo no seu
comportamento.

“Está a caminho ou irá se atrasar mais? Está muito frio aqui


fora!”

Enquanto aguardava a resposta, tive a impressão de estar


sendo observada. Corri os olhos pela fileira de carros estacionados
na calçada à minha frente, não encontrando ninguém atrás dos
vidros de qualquer um dos automóveis.

“Vou demorar mais um pouquinho. Me espere lá dentro.”

Fiquei em dúvida se entrava desacompanhada ou não.


Olhei mais uma vez ao meu redor. Dessa vez, meus olhos se
fixaram no Jeep Renegade de cor preta estacionado do outro lado
da rua. Não pude conter a lembrança de dominar meus
pensamentos. Ainda conseguia sentir o cheiro dele impregnado
em mim.
Estaria Brandon esperando a minha ligação até essa hora?
Esperava que não. Eu não tinha a menor pretensão de ligar.
Pensei que a pior parte daquilo era contar a verdade para as
pessoas e aguardar as reações.
Um doce engano.
Descobrir que ele sabia sobre tudo esse tempo todo e eu agia
como se nada escondesse, foi pior.
Me senti como se estivesse apresentando uma peça onde o
final foi modificado e todos da plateia me aplaudiram, fingindo não
saberem que na verdade a história deveria terminar de outra
forma.
Brandon me fez sentir covarde por não gostar de falar
abertamente sobre o meu diagnóstico quando me desmascarou
dentro do seu automóvel. Eu não queria me sentir dessa forma
novamente, por isso, sempre que pensava em ligar, não finalizava
a ligação clicando no botão “chamar”. Apenas encarava seu
número brilhando na tela do meu Iphone, incerta de que a minha
armadura estivesse pronta para sair do casulo seguro que criei
para me proteger.
Afastei os pensamentos que me conectavam a Brandon e
finalmente adentrei o galpão. Um silêncio sepulcral me recebeu,
sendo cortado pelo ruído das minhas botas batendo no chão
enquanto andava até próximo à mesa principal, onde um grupo de
senhores observava uma partida que acontecia ali.
Outras pessoas também jogavam ao redor, mas todos os
observadores só tinham olhos para os movimentos de Henry
Dawson, quem estava levando a melhor no momento que me
aproximei. Com cabelos inteiramente grisalhos e sempre
acompanhado da sua bengala de cor marrom, ele era a sensação
daquele lugar, um ícone por conta das suas jogadas sábias e nada
previsíveis. Era palpável o temor do seu adversário enquanto
raciocinava uma saída que não tivesse sido pensada por Henry.
Essa era a melhor parte do xadrez: o raciocínio frenético, a
mente trabalhando em alta velocidade para prever as jogadas do
adversário e todos os cenários possíveis que isso acarretaria, para
só então se decidir por uma abordagem e mover uma das peças.
O xadrez sempre teria a ver com traçar uma estratégia em cima
da dedução e da sagacidade. Mover um peão pensando em abrir
passagem para o bispo. Movimentar a rainha apenas no momento
mais importante e preservar o rei até que se diga o tão aguardado:
— Xeque-mate. — Henry deixou escapar a glória que sentia
por si mesmo ao anunciar.
Fui influenciada a jogar ainda criança pelo pai de Sierra. Ele
morou no porão da nossa casa até ter um derrame e falecer aos
setenta e oito anos. Era como Henry: um viúvo e jogador assíduo
de xadrez que fingia não ser grande coisa ter uma mente pensante
ao ponto de conseguir jogar várias partidas simultaneamente e não
perder em nenhuma delas.
Com doze anos eu me tornei difícil de ser vencida aos cinco
minutos de partida, como acontecia antes. E aos quinze comecei a
ganhá-lo em uma partida ou outra. Não que eu fosse ruim nisso,
mas Craig Campbell era excepcional. Eu teria evoluído muito mais
se não tivesse parado de jogar depois da sua morte.
— O que acha de jogar comigo? — permaneci imovel no lugar
onde estava, de costas para a voz, de frente para os homens que
vibravam com a vitória unânime de Henry Dawson.
Queria fugir na mesma medida que queria me virar e matar a
saudade de olhar para ele. A segunda vontade prevaleceu,
ganhando de lavada da covardia para dar de cara com um
Brandon vestido socialmente, as mãos escondidas dentro dos
bolsos da calça preta de tecido elegante que usava. Um blazer
pendia de um dos seus braços e a blusa social cor vinho tinha os
dois primeiros botões desabotoados, revelando pelinhos escuros
despontando do seu peitoral.
— Brandon? O que faz aqui? — indaguei, olhando ao redor
para ver se encontrava Joshua por perto.
Dois homens desocuparam uma mesa ao lado de onde
estávamos. Brandon se sentou, pondo seu blazer estirado na
cadeira, e respondeu:
— Te respondo enquanto ganho de você no xadrez. Sente-se,
Kim. — A “ordem” veio acompanhada de um sorriso.
— Brandon… — Adverti. A verdade era que eu sentia falta das
nossas conversas, só não queria retomar de onde paramos na
noite anterior.
— Vamos jogar uma partida e conversar como os dois adultos
inteligentes que somos. — Ele havia escolhido as casas de peças
pretas e olhava para o tabuleiro com um semblante inseguro.
— Tem certeza de que está em condições de me vencer?
Ontem você contou que não jogava há um tempo…
— Só estou me familiarizando novamente com as peças. —
Lançou um olhar com segundas intenções na minha direção, do
jeito enlouquecedor que Brandon fazia e me tirava o raciocínio. —
Estou seguro o suficiente para fazer uma aposta. E você?
Encarei a tela do telefone que eu ainda mantinha em mãos.
Nenhuma mensagem de Joshua havia chegado.
— Eu estou… — Brandon me interrompeu, estalando a língua.
— Vamos lá, Kim. Jogue uma partida comigo e deixe as coisas
fluírem. — Disse, provocativo.
Ri da situação.
— As coisas não fluem comigo, Brandon. O que aconteceu
ontem é a prova disso.
— Fluiu quando nos beijamos. E vai fluir quando você se sentar
e nós começarmos a jogar. Apenas pare de pensar no assunto que
não quer conversar e se concentre nesse tabuleiro.
Me dei por vencida, colocando o celular dentro da bolsa e
pendurando-a no braço da cadeira que sentei.
— Não respondeu a pergunta que fiz.
— Houve um congresso no hospital hoje e na volta para casa
eu resolvi cruzar a sua rua. Talvez estacionar e te ligar tenha
passado pela minha cabeça, mas de qualquer forma, não precisei
acabar com a minha dignidade interfonando para todos os
apartamentos até descobrir o seu porque, lá estava você assim
que desliguei os faróis: caminhando em direção ao final do
quarteirão. — Eu prestava atenção no tabuleiro, tramando a
abertura que faria para começar o jogo enquanto Brandon falava.
— Sabe quando você entende que não deve fazer algo por vários
motivos plausíveis, mas quando dá por si mesmo já está fazendo?
— assenti com a cabeça, sem tirar os olhos das peças. — Bom, é
exatamente por isso que estou aqui.
Iniciei a partida com Cavalo C3. Uma jogada que me serviria
para controlar a parte central do tabuleiro.
Ele optou por Peão E5.
— Você não pretendia me ligar, não é? — a pergunta carregava
uma afirmação convicta, e não uma dedução insegura, como
deveria acontecer com alguém que me conhecia há uma semana.
Ele possuía a mesma habilidade que Sierra de enxergar nas
entrelinhas.
— Não mesmo. — Deixei escapar uma risadinha ao mover
Cavalo F3, ameaçando o Peão que Brandon desenvolveu.
Sabiamente, ele protegeu a sua peça com a jogada Peão D6.
— Você é virgem, Kim? — perguntou, quase num sussurro.
Perdi a linha de raciocínio. Meus olhos varreram o local ao nosso
redor antes de dizer:
— Não! — a satisfação que estava começando a sentir se
esvaiu, tão rápido quanto um balde de água fria pondo um fim nas
chamas de uma pequena fogueira.
— Quando foi a última vez que fez sexo?
— Não vou responder a essa pergunta, Brandon! — alterei um
pouco o meu timbre, ofendida.
— Tudo bem. — Me lançou um olhar apaziguador. — Só me
diga, Kim: o que te fez mudar de ideia sobre mim? Em um
momento você se sentia muito confortável com o meu toque e no
outro… Pareceu estar em um pesadelo. O que eu fiz de errado?
Um ruído quebrou o silêncio entre nós quando desloquei o meu
Peão para a casa E4. Eu segurava firme a peça de madeira e a
posicionei com ímpeto sobre o tabuleiro feito do mesmo material.
— O seu único erro é achar que podemos nos relacionar como
se isso não existisse. É comprar a ideia de que eu sou uma mulher
comum, que pode ter uma vida normal e sem julgamentos. —
Coloquei para fora o que estava me incomodando. Era exaustivo
para mim lidar com o otimismo alheio.
— Tudo bem, talvez eu esteja romantizando um pouco as
coisas, tornando-as mais simples do que realmente são, mas isso
não quer dizer que elas precisem ser tão complexas como você
coloca. — Ele deu uma pausa no discurso para jogar Bispo H5. —
Eu só acho injusto você se enxergar dessa forma distorcida, como
se não fosse digna do meu desejo. É linda, inteligente, muito
intrigante e pode sim fazer mais do que pensa por si mesma,
nunca vou abrir mão desse pensamento. Mas isso não quer dizer
que eu não entenda as consequências que envolvem o seu
diagnóstico, apenas quero propor que se permita mais.
— Esse discurso é muito bonito, Brandon, mas não funciona
na prática.
— Você é tão teimosa — murmurou, fingindo impaciência. —
Então vamos pensar no que poderia funcionar na prática para
você.
Eu não diria que o tinha feito beirar a irritação, ele parecia estar
sentindo aquela inquietação que sentimos quando estamos certos
de algo e alguém testa a nossa paciência, tentando provar o
contrário.
Era o máximo de displicência que Brandon conseguia ter
comigo.
— Pelo visto, o problema gira em torno de sexo, não é? —
insinuou. Eu não respondi de imediato, fingia estar pensando na
minha próxima jogada. Ele continuou: — Sei que me quer quase
tanto quanto eu te quero, Kim. Mas algo acontece dentro da sua
cabeça sempre que percebe isso e te impede de se entregar. Eu
não tenho problemas em esperar, só não quero criar esperanças
enquanto você se recusar a enfrentar os seus demônios.
— Eu não estou pedindo que faça isso, Brandon. Muito pelo
contrário. Você quer algo que eu jamais serei capaz de dar. O
melhor é… — Abaixei a cabeça, deixando subentendido o que
ficou claro para mim desde a noite anterior: Brandon e Kimberly
seriam mais felizes longe um do outro. Ele precisava de uma
mulher sem limitações. Eu precisava aprender a lidar com os meus
traumas. O desejo e a conexão que tínhamos, infelizmente, não
seriam suficientes para derrubar o muro de coisas
incompreendidas que nos separava do futuro feliz.
Eu possuía uma vantagem nítida na distribuição de peças pelo
tabuleiro. Qualquer pessoa que passasse o olho ali saberia que as
brancas estavam em posições privilegiadas e um ataque bem
executado era iminente. No entanto, Brandon agia como se não
percebesse ou não ligasse para isso.
Após a minha jogada de Cavalo E5, ele contra-atacou com
Bispo D1, tendo a audácia de tomar a minha Dama.
— Quero fazer uma proposta indecente — disse, objetivo e
confiante.
— Você está a poucas jogadas de perder, Brandon. Não é um
bom momento para propor algo. — Não havia soberba na minha
forma de falar, apenas um aviso de que apesar dele ignorar, seria
iminente, como o fim de algo que nem ao menos chegou a
acontecer entre nós dois.
Pensar que nunca saberia como seria tê-lo dentro de mim por
uma vez sequer despertou a sensação de necessidade que me
abateu quando os lábios dele tocaram os meus.
Vontade não faltava. A pele ficava quente só de imaginar
cenários onde eu e ele nos conheceríamos intimamente. O que
complicava tudo era a vulnerabilidade, que insistia em se esconder
pelas beiradas e se revelava ao mínimo sinal de coragem,
aparecendo e derrotando a minha valentia, me deixando nua frente
às situações que me comprometi a vencer.
Uma coisa que ninguém fala sobre a coragem é que ela não se
trata de um estado de ser.
Ela é algo que se vestia para ir à luta.
Não nos isenta de ter medo.
Apenas nos faz sentir que ele não é maior que a nossa vontade
de vencê-lo.
Por isso eu comparava a coragem à uma armadura e ansiava
o dia que me vestiria com ela e sairia de casa com medo do que
enfrentaria, mas certa de que a vontade de encarar estaria
inflamando dentro do meu peito.
— Eu prefiro perder esta partida a perder a chance de ter você
por pelo menos uma vez na vida. — Brandon me olhava com
determinação, uma rebeldia desconhecida tentava se esconder por
trás da feição séria, entretanto, o singelo levantar de sobrancelhas
a denunciava.
— Nós podemos ser amigos… — Uma voz dentro de mim
pensou e eu externalizei.
— Kim… — Me repreendeu, inspirando fundo. — Se soubesse
o tipo de coisa que penso em fazer com você… Saberia o quão
inviável é essa proposta. Jamais vou conseguir te olhar e não
querer te ter pra mim.
— Daqui a um tempo você não irá mais se sentir assim. Vai
passar, Brandon. É apenas uma atração momentânea. Nós
podemos ser bons amigos...
Eu realmente acreditava nisso?
— Eu não me vejo conseguindo ficar ao seu lado sem insistir. E
também me sinto frustrado por estar insistindo — ele apoiou os
cotovelos na mesa e passou as mãos pelo cabelo, empurrando-os
na mesma direção onde estavam escovados; para trás. — A partir
de amanhã, eu quero tudo ou nada de você.
Era confuso como eu não tinha pretensão de me render e ao
mesmo tempo me sentia na corda bamba para fazê-lo depois de
perceber que o perderia.
— E hoje?
— Hoje eu quero que me deixe terminar o que comecei ontem
no meu carro. Sem inseguranças ou segredos nos separando. Só
você recebendo prazer e eu sentindo você.
Minha calcinha diria que essa seria uma excelente ideia para
utilizar a lubrificação que escorria pela minha fenda e molhava o
tecido conforme eu tomava consciência das palavras de Brandon.
— É mesmo uma proposta indecente. — Foi o que consegui
dizer, em meio a batalha entre a razão e a emoção.
Um dizendo "melhor não".
O outro gritando "melhor sim".
— Eu avisei. — Sorriu daquele jeito devastador que terminou
de encharcar a minha calcinha.
Capítulo 07

Eu posso ver em seus olhos

Eu posso sentir o seu corpo tremer

E o calor entre suas pernas

Você tem medo do amor e do que ele te causou

Você não precisa fugir, eu sei o que você passou

Apenas um toque e eu posso te libertar

I Feel It Coming - The Weeknd


Se Kimberly fosse tão atenta às intenções das pessoas à sua
volta como era às do seu oponente no xadrez, não seria um alvo
perfeito para mim.

Devido a sua astúcia, ela continuava em vantagem após perder


a Dama. Havia retomado um pouco da sua autoconfiança,
exalando expectativa enquanto aguardava a minha próxima
jogada.

Kim não sabia, mas estávamos jogando duas partidas distintas.

Ela levava vantagem sobre o tabuleiro.

Eu levava vantagem sobre o jogo de quem ditaria o rumo do


nosso futuro.

A tensão sexual era palpável nos olhares que trocávamos. No


movimento de umedecer os lábios que Kim fazia. Na minha
respiração entrecortada ao me imaginar mais perto de concluir o
objetivo que me levou até ela.

Sacrificar as minhas opiniões e vontades em prol de uma meta


a ser cumprida se tornou excitante depois de muitos anos vivendo
dessa forma.
Como um cachorro doutrinado a ir atrás do brinquedo, trazê-lo
de volta ao seu mestre e somente depois receber o petisco, eu
suportava o caminho porque haviam me ensinado que a sensação
de missão cumprida fazia valer a pena a longa caminhada.

Um vazio me acometia quando imaginava abandonar essa


vida, não ter mais novos propósitos pelos quais valiam a pena
servir. Não sabia se seria capaz de encontrar motivos que me
fizessem acordar pela manhã e me sentir útil, necessário para uma
finalidade que realmente importasse. Apenas que, naquela altura,
servir era uma parte irreparável de mim. Abandonar a causa seria
como ter um membro amputado.

Por isso ignorava o pensamento de que aos trinta e cinco anos


eu não me recordava de nenhum momento onde tenha sido eu
mesmo. Escolhido um sabor de sorvete porque era o meu favorito.
Ido ao cinema assistir um filme que eu escolhi. Viajado para um
lugar que eu quisesse.

Vivia à mercê das pessoas que me propus ser ao longo da


vida.

— Não tenha medo da derrota, Doutor Lamont — Kim zombou


da minha demora. Aos poucos, ela ia se soltando e se
familiarizando com a ideia de que seria minha hoje.

As coisas estavam ficando mais divertidas. Apesar dela ser


bem resistente, eu gostava mais do que deveria da tarefa de fazê-
la ceder. Estava longe de chegar ao meu objetivo final, mas me via
cada vez mais interessado em aproveitar o processo, usufruir do
sabor da ressalva de Kimberly e de todo o seu corpo gracioso.

— Não tenho medo de perder, Kim. — Eu tinha horror mesmo.


Contudo, isso não se aplicava a uma mera partida de xadrez. Meu
ego gostava de vitórias maiores. — Apenas quero encerrar essa
partida sabendo que fiz tudo o que podia para reverter o jogo.

Minutos antes, ela havia jogado Bispo F7, tomando o Peão que
protegia o meu rei, dando o primeiro Xeque[1] que antecederia a
sua vitória. A minha única alternativa era mover o Rei para E7, me
esquivando do seu ataque. No entanto, isso me expôs para outro
ataque do seu Cavalo, deslocado de C3 para D5.

Os lábios dela se abriram em um sorriso esticado quase até a


altura das suas orelhas. Minha virilha pulsou quando usou um tom
aveludado para dizer:

— Xeque-mate, doutor.

A caminho de onde deixei meu carro estacionado, percebi que


a minha excitação se dava pelo temor de Kimberly.

Não era medo do sexo que ela sentia, mas um misto de euforia
e ojeriza. O temor se dava ao fato da expectativa. Kim se
importava com a opinião dos outros, não duvidava que eu tivesse
entrado para essa lista de pessoas das quais a faziam sentir que
estava pisando em ovos, e isso provocava algo dentro de mim.
Uma satisfação em saber que o que eu pensava tinha relevância
para alguém.
De todo modo, ela não tinha com o que se preocupar. Eu faria
tudo ser perfeito. Era bom em performar e o faria caso as coisas
desandassem.

— Onde quer ir? — perguntei, assim que chegamos próximo ao


meu Jeep.

— Podemos ficar no seu carro. — Tentou demonstrar


neutralidade. Ela era péssima nisso. Tudo nela exalava frustração
e desconfiança sem que Kim pudesse ter controle.

— Você tem um fetiche pelo meu carro ou coisa assim? —


brinquei. Consegui arrancar uma risada nervosa dela.

— Esse foi o combinado, não?

— Foi sim. Só estou brincando. — Meu sorriso a tranquilizou.


Ele tinha esse poder de passar confiança. Ninguém imaginaria que
eu odiava sorrir, principalmente o tempo todo, como precisava
fazer na presença de Kimberly.

Deixei que ela entrasse primeiro no banco de trás e só então


me sentei ao seu lado e fechei a porta. As luzes no interior do
automóvel demoraram alguns segundos para apagarem e nos
abandonaram no breu que pareceu deixá-la mais confortável.

— Gosto de você, Brandon. Mas não me sinto bem quando faz


parecer que as coisas são simples e eu é quem sou complicada.
— Declarou, me deixando surpreso. Sua dificuldade de se abrir era
irritante para mim. Finalmente ela estava revelando algo sem que
eu precisasse insistir. — Você deve conhecer a minha história.
Todo mundo nessa cidade conhece. Eu tenho fragmentos de
memória da época em que morei nas ruas com a minha mãe. Ela
era digna de pena. Cometeu um erro e foi abandonada por todos,
não só o marido. A família tinha vergonha dela, passavam por nós
e fingiam que não a conheciam. As pessoas nos olhavam com
nojo. Por nós duas vivermos sujas e também pelo que sabiam
sobre o HIV. Ninguém teve a capacidade de informar que ela não
deveria amamentar o seu bebê… — A voz de Kim começou a ficar
embargada ao chegar nesse momento da confissão. Tateei o
couro do banco até encontrar a mão delicada, apoiada em suas
coxas, e acariciei o dorso, tentando passar conforto sem
interrompê-la. — E mesmo depois de ser adotada por Sierra,
ganhar roupas limpas, comida e ter um chuveiro a disposição, eu
ainda recebia olhares de repulsa ou de pena.

— Sinto muito, Kim. — Cheguei mais perto, apertando seus


ombros de encontro ao meu peito. Ela apoiou a cabeça em mim e
prosseguiu:

— Você sente pena, Brandon. Não é capaz de sentir o


desgosto que carreguei durante muitos anos por ser eu mesma.
Não é na sua cabeça que estão gravadas as palavras horríveis
que já disseram para mim. Você não faz a menor ideia de como
doeu ser alvo de chacotas na época da escola e crescer….

— Shhhh — pus o dedo indicador entre os seus lábios,


calando-a. — Não vou mais pedir que esqueça, porque aprendi
que não é fácil para você. Só vou pedir que não pense. Consegue
fazer isso, Kim? — Resvalei vagarosamente a ponta da língua pelo
lóbulo da orelha dela. — Deixe tudo o que te aflige adormecido
dentro da sua cabeça e preste atenção em mim, no que eu vou te
fazer sentir.

Ela murmurou alguma coisa que não compreendi e se


desmanchou nos meus braços ao sentir as minhas lambidas
descerem por seu pescoço abaixo. Vestia uma blusa branca de
manga por dentro da calça preta de cintura alta e um casaco de
caxemira. Justo na vez que resolveu me permitir explorá-la, estava
usando uma vestimenta nada prática.

— Posso? — meus dedos tateavam o botão da calça dela,


esperando permissão para abri-lo.

— Não sei porque, mas acho tão sexy quando pergunta se


pode fazer alguma coisa — Kim respirava com dificuldade
enquanto eu abria sua calça, expondo a frente da sua calcinha
estampada com flores verdes. — Finge que estou usando uma
lingerie supersexy.

A luz do poste que havia na esquina próxima de onde meu


carro estava estacionado me permitia ter um vislumbre da peça,
bem como da expressão envergonhada dela.

Querendo avançar os limites que atingi na noite anterior,


percorri uma das minhas mãos pelo caminho do umbigo até o vale
entre os seios de Kimberly. O tecido revelava um pouco do formato
deles, amparados por um sutiã pequeno sem bojo que ao levantar
parcialmente a blusa, percebi se tratar do conjunto da calcinha
florida.

— Eu acho essa lingerie de flores supersexy. — A ponta dos


meus dedos acariciou a carne escondida pelo tecido, fazendo Kim
se remexer no banco. Ela parecia experimentar uma aflição
prazerosa tomando conta do seu corpo.

— Está dizendo isso para me agradar. — Rebateu. Para


compor o argumento que apresentaria a seguir, engatei os dedos,
um em cada taça do sutiã, e expus os seios dela. Os mamilos
marrom-claro apontavam na minha direção, se intumescendo
ainda mais quando rocei a ponta dos dedos sobre o bico.
— Eu não vou usar palavras para te agradar, Kim. Sempre vou
preferir atitudes.

Soltou um suspiro com a surpresa do contato da minha língua


e a pele do seu seio esquerdo, que engoli o máximo que coube
dentro da boca de uma só vez.

Os dentes prendiam a carne enquanto a língua brincava com o


mamilo sensível. Ora o instigando. Ora o maltratando. Meus lábios
faziam barulho conforme eu aumentava a intensidade da sucção.
Kim ofegava baixinho, as mãos acariciando as minhas costas.

O primeiro gemido a ser audível escapou quando abandonei o


seio esquerdo para me dedicar ao direito, levando-a ao ápice do
prazer silencioso, precisando finalmente libertar os sons
empoderados que imploravam para reverberar pelas suas cordas
vocais enquanto me sentia devorá-la.

— Ah, Brandon — meu nome saindo da sua boca mais parecia


um pedido de misericórdia.

Uni os dois seios pequenos nas mãos e os juntei até estarem


espremidos um rente ao outro. Retornei a chupar os mamilos com
voracidade, alternando entre eles, deixando a pele de Kim
marcada naquela região.

Foi possível ver o rastro vermelho do meu aperto sobre o


castanho-claro dos seios pequeninos de Kimberly ao soltá-la.
Eram perfeitos para chupar de uma só vez, colocando-os inteiros
dentro da boca.

— Te quero no meu colo — admiti, também excitado e sentindo


uma necessidade abrupta de me enterrar dentro dela, mesmo que
fosse apenas usando os dedos.
— Você está me deixando louca… — Com a respiração
entrecortada, Kim se movimentou sobre o banco e veio parar no
meu colo, mantendo uma distância entre nossos sexos ao
permanecer sentada nas minhas pernas. Fiz menção de beijá-la,
mas fui impedido por uma de suas mãos que suspendeu meu
maxilar antes que eu me aproximasse mais. — Precisa me
esquecer depois disso.

— Não sou capaz disso. Eu já disse.

Ela balançou a cabeça positivamente e sussurrou:

— É sim.

Era frustrante quando Kimberly me fazia pensar que a havia


dominado e no minuto seguinte me mostrava que eu estava bem
distante de conseguir isso.

— Você vai conseguir? Me esquecer do dia para a noite? —


deixei escapar a irritação que me corroía naquele momento.

— Não importa o que eu vou fazer. Estou acostumada a lidar


com a decepção.

Enfurecido, tirei a mão que me suspendia de beijá-la e a


agarrei com ímpeto, empunhando um pouco do seu cabelo,
trazendo seu peito de encontro ao meu. A boca dela se chocou
contra a minha. Eu invadi os lábios finos e forcei a passagem entre
os dentes dela até estar totalmente infiltrado.
Havia esquecido do que fui ensinado a fazer com ela. Só
pensava em fazê-la entender que eu podia lhe dar tudo o que
sempre quis. Do jeito delicado não estava funcionando. Precisava
de algo mais… Brutal. Como um choque que a despertasse para a
realidade entre nós, a fizesse sentir que não encontraria aquilo
com nenhum outro homem.

Então reivindiquei cada parte dela. Lambia e sugava a sua


língua, apalpava a bunda modesta por cima da calça, puxava o
cabelo curto entre os dedos…

Me apossava de tudo o que deveria ser meu.

— Sua calcinha está muito molhada para alguém que pretende


me esquecer — recebi um olhar repressor enquanto afastava o
tecido e dedilhava o clitóris inchado. Apesar disso, ela não me
impediu de continuar estimulando-a, se remexia sobre o meu colo
à medida que recebia ondas de prazer irradiando do seu núcleo.

— Não vai ser... fácil… porque eu... gosto muito de... você. —
Dois dos meus dedos faziam movimentos circulares sobre o clitóris
dela, impedindo-a de conseguir proferir uma frase inteira de uma
vez.

A lubrificação era tamanha que escorria pelos lábios vaginais,


descendo o períneo abaixo. Os pelinhos finos que despontavam
da região roçavam a minha mão conforme eu a movimentava rente
ali. Os gemidos contidos de Kimberly disputavam com o som da
fricção dos meus dedos em contato com o tecido sensível e os
seus fluidos escorrendo.

— Acho que…eu...eu vou… — Tentou dizer. Ela agarrava meu


pescoço com firmeza, encarando o teto do carro para fugir do meu
olhar, que a fazia ficar envergonhada.
— Gozar? — Kimberly assentiu positivamente, ainda sem olhar
para mim. — Então vai, se liberta, deixe meus dedos melados com
o seu prazer.

Para a minha surpresa, ela se inclinou e colou nossas bocas


em um beijo desconcertado.

Eu podia sentir seu quadril se remexendo devido aos


espasmos gerados pelo gozar desesperado. Se a luxúria tivesse
um aroma, seria o que Kimberly exalava naquele momento. Uma
fragrância doce e fervorosa que acionava a volúpia crescendo
desenfreada entre nós.

— Meu Deus. Isso é tão… — Kim tentou pôr em palavras o que


sentia depois do prazer cessar, mas falhou novamente.

— Maravilhoso?

Algo parecia ter se iluminado dentro da cabeça dela.


Suspirando, repetiu:

— Maravilhoso.

— Eu também acho. — Sussurrei.

Kim passeava com os dedos pelo tecido da minha camisa, na


altura do meu peito, sem pressa para colocar um fim no que
crescia entre nós a cada segundo.
Engoli um suspiro ao senti-la percorrer o caminho que levava
em direção ao meu umbigo, descendo ainda mais e brincando com
a fivela do meu cinto.

— Kim… — Não a repreendi. Meu tom deixava claro que


gostaria daquilo, entretanto, queria que caso começasse, fosse até
o fim.

— Nunca fiz isso — desafivelou o cinto, não abrindo a calça de


imediato, deixando que eu me acostumasse com a ideia de
permitir que retribuisse. — Pode me ensinar como você gosta?

— Com todo prazer, linda.

Os dedos finos me apalparam sobre a cueca boxer que eu


usava. A rigidez da região não deixou Kimberly assustada ou
acanhada, ela parecia estar… Curiosa. Ia da extremidade à ponta
do meu membro delicadamente, olhando e investigando até decidir
se aventurar pela parte de dentro, puxando o tecido.

Meu pau saltou de dentro da cueca, apontando para o meio


das pernas dela.

— E agora? — quis saber, perdida e fascinada com o que via.

— Junte as mãos em torno dele e movimente para cima e para


baixo.

— Assim? — contive um gemido de satisfação ao senti-la


pressionar a palma das mãos e os dedos em torno do meu pau,
inchado de vontade de comê-la. — Isso é tão satisfatório. Está
bom assim?
Ela não havia sido a única a melar sua peça íntima, eu
ostentava uma quantidade considerável de líquido pré-semen e
isso facilitou para que Kimberly pudesse me masturbar.

— Melhor do que isso só você sentando em cima dele, linda.

O olhar dela encontrou o meu.

Visceral e flamejante.

Afastei os fios de cabelo ondulados que jaziam até a altura dos


ombros e tomei o rosto dela entre as minhas mãos, arrastando o
polegar pelas bochechas salientes.

— Por que não senta nele, Kim? Se não gostar, é só se


levantar. Não vou impedir que continue caso não queira. Apenas
experimente.

Minha voz rente à sua boca soava como a de um discípulo do


diabo, instigando Kim a se render à tentação do desejo carnal.
Terminando de empurrá-la no precipício que seria o nosso futuro.

— Você realmente vai me deixar louca.

Eu soube que a convenci quando Kimberly saiu do meu colo


apenas para despir a calça, permanecendo de calcinha e me
esperando encontrar uma camisinha na carteira. Enquanto eu
vestia a proteção apressado, ela respirava pesadamente ao meu
lado, olhando na direção do para-brisa.

— Ei, vai ser bom. — A puxei pelo queixo para que olhasse nos
meus olhos.
— Sei que vai. Só não quero estragar as coisas como fiz
ontem.

— Pare de pensar besteira e venha aqui. — Ajudei Kimberly a


voltar para onde estava, sentada nas minhas pernas. Ela olhava
de mim para o meu membro, incerta do que deveria fazer a seguir.
Segurando seu quadril, afastei sua calcinha e a posicionei sobre a
minha glande, roçando-a na sua entrada bem lubrificada. — Com o
tanto que está molhada, vai ser fácil entrar inteiro em você.

Kim apoiou as mãos em meus ombros e engoliu a superfície do


meu pau vagarosamente, descendo e retornando quando chegava
ao limite da base, se acostumando. Eu salivava feito um cachorro,
engolindo em seco à medida que sentia o canal vaginal dela se
expandindo para me receber.

Estava genuinamente alucinado. Surpreso e cheio de vontade


de gozar a qualquer segundo, mas me mantendo firme, vendo
Kimberly experimentar a sensação do deleite puro e ficando
satisfeito por estar atingindo o objetivo.

Ela se movimentava de um jeito tímido, no entanto, não menos


prazeroso para ambos. Havia encontrado um ritmo que a satisfazia
e mantinha os olhos atentos ao encontro das nossas partes, me
ignorando. Provavelmente era mais fácil para ela lidar com as
coisas que abalavam a sua confiança se não olhasse nos meus
olhos. Os gemidinhos também eram acanhados, ecoando no
ambiente fechado do automóvel, me instigando ainda mais.

— Posso? — quando ela assentiu, a livrei do casaco e em


seguida a despi da blusa, puxando-a pelos seus braços esticados.
Também dei um jeito no sutiã, o arrancando e desprezando no
banco. — Quer sair? — sabia que ela não queria levantar do meu
colo nem tão cedo, mas gostaria de vê-la provando isso.

— Não… — Me lançou um olhar desconfiado. — Você quer?


Não gostou?

Minha risada a deixou confusa. Eu não fiz questão de explicá-la


com palavras, trouxe seu corpo para perto do meu, a segurando
pela nuca e cintura. Movimentei meu quadril de encontro ao dela
com firmeza, fazendo-a revirar os olhos.

Engoli seu gemido com um beijo estalado enquanto a


empalava sem parar.

O barulho dos nossos sexos se entrosando era instigante


demais. Quando o ar faltou, Kim afastou a boca da minha para
respirar. Seu corpo era pequeno, tinha curvas sutis e um tom
reluzente mesmo no breu parcial. O bico dos seios continuavam
entumecidos, apontando para a minha boca conforme ela movia os
quadris em cima de mim. Abocanhei um deles, com fome da pele
dela, chupando o broto marrom-claro como um bebê fazia com o
bico da sua mamadeira. Ávido e necessitado.

Senti o exato momento em que o gozo subiu até a extremidade


do meu pau e ameaçou ser despejado sem o meu consentimento.
Por sorte, Kimberly estava à beira de outro orgasmo. Foi preciso
apenas chupar seu seio com um pouco mais de pressão para que
ela não aguentasse e se desmanchasse nos meus braços.

Me libertei também. Gozando feito um animal. Rugindo.


Apertando a bunda dela. Movendo o quadril até sentir a última gota
se esvair. Voltando a respirar somente quando Kim saiu de cima
de mim, a respiração igualmente irregular.
— Você não pode me dar a melhor foda da minha vida e pedir
que eu te esqueça, Kimberly.

Estava sendo verdadeiro. Aquele havia sido o melhor sexo que


já tive. Caso as coisas fossem diferentes e eu não tivesse que
permanecer ao lado dela pelos próximos anos de qualquer jeito, a
transa sendo boa ou ruim, eu não conseguiria esquecê-la.

Eu não iria querer esquecê-la.

Kim seria uma das minhas coisas favoritas se eu fosse um


homem que pudesse ter vontade própria.

— Eu já não era capaz de te esquecer antes, agora menos


ainda, Brandon. — Virou o rosto na minha direção. Estava
assustada, mas confiante ao declarar: — Você acabou de tirar a
graça de todas as coisas que já fiz na minha vida.

Eu te entendo, Kim.

No fim das contas, o caminho poderia ser mais satisfatório que


a sensação de dever cumprido quando se tratava dela.

Eu seria capaz de mentir a vida inteira por essa recompensa.


Dois anos depois...
Capítulo 08

Mas eu sobrevivi

Encontrei um consolo no lugar mais estranho

Bem no fundo de minha mente

Vi a minha vida num rosto de uma estranha

E era o meu

Alive - Sia
Os anéis, ambos de ouro, reluziam sobre meu dedo anelar
depois que lavei as mãos e as sequei. Não gostava de ter de tirar
a aliança e o anel de noivado frequentemente. Sentia satisfação
em admirá-los todos os dias. Me lembrava o quanto a vida tinha
sido boa comigo nos últimos anos. Entretanto, devido a sensação
incômoda da água escorrendo pelas joias, eu as tirava apenas
para fazer a lavagem das mãos ou tomar banho.

— Você ainda vai me amar do mesmo jeito depois que me ver


de olhos escuros? — Brandon perguntou, do lado de fora do
banheiro, em tom brincalhão, depois que retirei o excesso de tinta
das minhas mãos na pia.

— Não prometo nada — brinquei. O tanto que eu amava


aquele homem era sem medida. Não seria uma simples mudança
na cor dos olhos que abalaria isso.

A passos incertos, Brandon adentrou o banheiro.

Ele possuía o outro par da aliança e também o carregava no


dedo anelar esquerdo. Tanto as mãos, quanto o pescoço e o rosto
estavam pintados de tinta branca enquanto dava uma volta para
que eu avaliasse a sua vestimenta. Os olhos verdes haviam sido
substituídos por lentes pretas. Ele ficara diferente de um jeito
desconcertante. Tão lindo quanto, mas com uma aparência
ligeiramente mais intimidante. Meu marido agora estava
devidamente caracterizado de Gomez Addams.
— Uau! Ficou incrível! — eu me coloquei mais perto dele,
querendo ver melhor o caimento do terno preto de listras brancas
sobre o seu corpo. Tínhamos alugado nossas fantasias na semana
passada e provamos ambas assim que chegamos em casa. Agora,
com a maquiagem feita e os cabelos arrumados, Brandon parecia
mais fiel ao físico do Sr.Addams do que quando provou o terno.

— Você também ficou maravilhosa, amor. — Pegou meus


pulsos e me fez dar uma volta para analisar o meu traje. A barra
do vestido preto jazia derramada pelo chão, exatamente como o
modelo original da Morticia Addams. O decote ia quase até a altura
do umbigo e expunha a metade dos meus seios. Assim como
Brandon, eu também pintei todas as partes visíveis do corpo de
tinta branca.

— O que acha do meu cabelo grande? — apalpei as madeixas


escuras da peruca comprida que usava. Brandon pôs as mãos na
minha cintura e me contemplou por um longo instante.

— Amo você exatamente do jeito que é, Kim. Está linda de


Sra.Addams, mas eu sou louco pela Sra.Lamont.

— Que bom, porque eu realmente não gosto de ter cabelos


longos. — Nós dois rimos.

— É estranho me ver com os olhos de cores diferentes da


natural. — Ajeitou a gravata, lançando um olhar nostálgico para
mim através da superfície espelhada. — Sem eles, talvez eu nem
teria conseguido chamar a sua atenção naquele dia no elevador.

— Eu já te expliquei que andava muito distraída pelos


corredores do hospital. Se soubesse que a minha felicidade estava
caminhando por ali todos os dias, eu teria ficado mais atenta.
Envolvi Brandon com os braços. Graças aos saltos, pude
apoiar o queixo no seu ombro, venerando seu rosto mais de perto.

Dois anos mais velho, ele ainda continuava incrivelmente lindo.


A barba havia ficado um pouco maior. As sobrancelhas
continuavam grossas e escuras. Os lábios se mantinham cheios e
rosados, bem como os cabelos permaneciam sendo penteados
para trás.

Desconfiava que meu marido era como vinho: quanto mais


velho, melhor.

O meu maior medo com relação a casar precocemente era de


Brandon se demonstrar ser outra pessoa após a convivência. Isso
acontecia muito por aí. Mas felizmente, ele ainda era o mesmo
homem gentil que conheci no elevador do Virgínia Medical Center.
Às vezes parecia um pouco estranho a forma como ele
permanecia exatamente a mesma pessoa. Não só em relação a
aparência, como também os gostos e os hábitos.
Talvez fosse uma paranoia da minha cabeça. Eu havia mudado
consideravelmente nesse meio-tempo. Estava um pouco mais
distante daquela mulher que vagava desesperançosa por aquele
hospital devido à terapia.
Através dela eu me encontrava aprendendo a buscar forças em
mim mesma, olhando para a minha evolução, por mínima que
fosse, e comemorando, vendo uma nova Kimberly renascer pouco
a pouco.
Desde a noite que experimentei a intensidade do meu desejo
por Brandon em seu carro, eu não consegui me enxergar tendo um
futuro sem ele. Prestes a perdê-lo, decidi que doeria menos abrir a
minha vida para recebê-lo do que vê-lo me dar as costas e quem
sabe seguir com outra pessoa.
E, de fato, eu estava terrivelmente certa.
Depois de ouvir como me sentia e perceber que simplesmente
esquecer não era uma opção, Brandon encontrou uma forma de
tornar as coisas mais fáceis, menos impossíveis para a minha
cabeça fragilizada.
Ele foi devagar, me ensinando a colocar para fora o que me
afligia. Respeitando quando eu não queria conversar sobre
determinados assuntos. Fazendo propostas indecentes. Piadas
toscas. Sexo gostoso. Se orgulhando de me ter como namorada.
Abrindo caminhos para tornar real o fato de que poderíamos sim
ter um futuro juntos. Me pedindo em casamento aos seis meses de
namoro. Me levando para conhecer o México na nossa lua de mel.
Comprando uma casa incrível para morarmos.
Me fazendo sentir especial todo santo dia!
Tudo começou com uma atração e se transformou em um amor
avassalador.
Àquela altura eu jamais me arrependeria de ter dito “sim”.
Acreditava que havia encontrado o verdadeiro amor. Bem como
a felicidade, a esperança e a vontade de viver.
As pessoas classificavam como uma das formas mais puras de
amor encontrar alguém que as fizessem ser melhores.
Assim como elas, eu também pensava dessa forma enquanto
depositava um beijo carinhoso no ombro do meu marido.
Ainda aprenderia que o amor verdadeiro tinha mais a ver com
honestidade, compaixão e renúncia, do que com melhores versões
de nós mesmos.
— Está pronta? Sierra deve estar louca tendo que lidar com a
distribuição dos doces sozinha. — Quebrando o transe em que nos
encontrávamos, Brandon questionou.
— Falta apenas retocar a tinta das mãos.
— Vou aquecer o motor do carro enquanto te espero na
garagem. — Depositou um beijo cálido em meus lábios pintados
de vermelho e deixou o banheiro.
Waterfalls, da banda TLC, tocava baixinho através da caixa de
som que minha mãe adotiva mantinha em sua sala praticamente
desde que eu vim morar com ela.
Em um mundo onde iPods, JBLs e Alexas existiam para
reproduzir músicas, Sierra ainda era adepta à boa e velha caixa de
som tradicional.
— Pode vir aqui para conversarmos, querida? — ela me
chamou da cozinha. Estava prestes a colocar uma forma de
cookies no forno quando adentrei o cômodo.
Seus cabelos, totalmente pintados de branco, eram aparados
em um corte estilo Pixie rente a nuca. Os olhos possuíam um tom
de azul cristalino e a pele porcelana era quase tão branca quanto a
tinta que eu passara em meu corpo mais cedo.
Sierra era uma mulher de cinquenta e seis anos moderna.
Aparentava ser mais jovem se não prestassem atenção nas suas
bolsas de olheiras profundas que denunciavam as diversas noites
mal dormidas e o trabalho incessante para dar conta da tarefa de
ser mãe adotiva de mais de dez crianças ao longo da vida.
— Aconteceu alguma coisa, anya? [2] — questionei. Quando
criança, eu não conseguia chamá-la de mãe. Era desconfortável
para mim e triste para ela não ouvir tal palavra saindo da minha
boca uma vez sequer. Ao estudar húngaro, encontrei uma solução
para os nossos problemas. Resolvi que a chamaria de mãe sim,
entretanto, não na nossa língua.
Desde então ela era "anya"para mim.
— Megan enviou outra carta. — Se virou, ficando de costas
para o forno, que trabalhava assando os cookies. Ostentava uma
expressão de preocupação no rosto maquiado. A fantasia
escolhida por ela havia sido a de bruxa do 71. — Eu tomei a
liberdade de ler e… por favor, Kimberly. Apenas leia.
— Anya, isso me machuca, você sabe.
— Ela não é como ele. Se está te procurando, é porque quer
você na vida dela de verdade. Ao contrário dele, que nunca fez
questão de saber se você ao menos sobreviveu.
Eu não era a única a não conseguir chamar alguém da forma
como deveria. Sierra sentia desconforto em mencionar o nome do
meu pai. A vida inteira se referia a Esteban como “ele”. A
pronúncia carregava mágoa em cada letra.
— Talvez ele nem seja o meu pai. Você mesma disse que
Beatrice teve muitos affairs por aí. — Contra-argumentei, querendo
impor uma distância do rumo principal da conversa.
Não conhecia Megan, não fazia a menor ideia de como era seu
rosto, quais eram seus gostos… Ela era uma incógnita de um jeito
ruim. Sua imagem na minha cabeça estava ligada a ele. E isso não
me fazia nada bem. Toda a minha evolução ameaçava ir para o
ralo sempre que eu era trazida de volta ao passado. Por esse
motivo procurava evitar situações ou pessoas que pudessem ser
gatilhos.
Queria evoluir.
Conhecer Megan me faria retroceder.
— Ouça bem o que vou te dizer, Kim. Nada, absolutamente
nada, justifica um homem jogar a sua esposa na rua junto com a
sua filha. Não importa o que Beatrice tenha feito. É desumano o
que Esteban fez. — Fechou os olhos, tamanho o desgosto que
sentiu ao perceber que disse o maldito nome. Se havia uma
pessoa no mundo que repudiava a crueldade humana mais do que
qualquer coisa era Sierra. Ela preferia levar uma bala no peito a
testemunhar uma execução sem fazer nada.
Essa era Sierra Campbell.
Altruísta, honesta e bondosa.
Seu coração não se contentava em apenas deter o mau. Ela
tinha que fazer o bem. E mesmo assim, ele não se aquietava
dentro do peito. A assistente social precisava estar cuidando e
acolhendo pessoas também no seu tempo livre.
— Nunca mais tente defendê-lo na minha frente, Kimberly. —
Desapontada, Sierra pediu.
— Está certa, me desculpe.
— Pegue — colocou o envelope branco sobre o mármore da
ilha da cozinha. — Vou respeitar se não ler… mas acho que um
dia você irá se arrepender caso não faça.
Apesar de não ter pretensão de ler naquele momento, peguei o
envelope para não decepcioná-la.
Capítulo 09

Mas quando estou perto de você, sinto chamas


Eu toco o fogo, eu me queimo
Eu sinto essa pressa debaixo dos meus pés, é como
se eu estivesse caindo
Isso é amor?
Oh, isso é amor?
Flames - Tedy

Minha sogra não gostava de mim.


Sentado confortavelmente em uma das poltronas da sala da
casa dela, eu observava o móvel de madeira antigo à minha frente,
onde diversos porta-retratos exibiam fotografias da família
Campbell.

A única que eu aparecia estava localizada na última fileira,


escondida parcialmente por outro porta-retrato com uma moldura
maior.

Poderia parecer que essa fora uma escolha impensada, sem o


intuito de expressar uma opinião.

Não foi.

Sierra estava longe de ser a mulher calorosa e receptiva que


era com os outros na minha presença. Nunca havia me tratado
mal, mas também não tinha o costume de ser mais do que
educada comigo.

Eu apostava que a sua intuição lhe dizia algo intragável ao meu


respeito. Sierra era uma pessoa extremamente sensitiva.
Acostumada a ter uma percepção aguçada sobre seus filhos, ela
devia ter enxergado em mim coisas que Kimberly jamais foi capaz
de vislumbrar. No entanto, se percebeu algo, não alertou minha
esposa. Apenas fingia gosto pelo nosso casamento, se mantendo
imparcial quanto a mim pelo menos nas atitudes conscientes.

Inconscientemente, enquanto arrumava as fotos em seu


armário, ela deixou escapar a intuição ruim que tinha sobre mim.
Pôs a moldura da fotografia do meu casamento com Kimberly para
trás, a encobrindo por outra de Joshua na formatura da faculdade.
Um detalhe que não passou despercebido pelo meu olhar atento e
incomodou a minha mania de perfeccionismo.
Eu havia agradado todos ao redor dela, talvez fosse por isso
que Sierra não se sentisse confiante para expor o que pensava.
Hamlet e Nora Foley, que dançavam alegremente ao som de um
Jazz no tapete da sala, me viam como o filho que eles queriam ter
tido; Millie, a pequena garotinha hiperativa que agora corria pela
casa atrás de sua colega, sossegava sempre que eu a pegava no
colo. E também Chris, seu irmão biológico quatro anos mais velho
que fora adotado junto com ela, me tinha como um exemplo a se
seguir, idolatrava a minha profissão e dizia que seria um homem
tão bem sucedido quanto eu um dia.

Joshua revirava os olhos, em deboche, sempre que ouvia isso.

Coincidentemente, ele voltou do jardim, onde estava


consertando os pisca-piscas, e se sentou na poltrona ao meu lado.

— Sua porra deve ser muito rala, Brandon. Até hoje não
conseguiu engravidar a Kimberly. — Desprezível do jeito que era,
zombou baixo o suficiente para que apenas eu ouvisse em meio a
música.

Eu sentia pena de Joshua. Se havia alguém degenerado


naquela família, era ele. Se vestia como um advogado, mas
cheirava a naftalina e decepção.

Não entendia o que Kimberly tinha visto nele que a deixasse


minimamente excitada para fazer sexo. O bastardo de merda
adorava se vangloriar de ter tirado a virgindade da minha esposa
todas as vezes que me via. Hoje, no entanto, ele apelou para outro
tipo de comentário ridículo. Mas em geral não perdia a
oportunidade de jogar isso na minha cara. E apesar de não lhe
deixar sair por cima em todas as vezes que o fazia, eu ficava
mexido. Um sentimento de posse ganhava força. Foi comigo que
Kimberly experimentou o verdadeiro prazer, tinha consciência
disso. Era o meu toque que ela ansiava todos os dias, fosse um
carinho na bochecha ou um tapa estalado na sua bunda.

Ela era minha de um jeito que nunca seria de mais ninguém.

— Você ficaria engasgado se engolisse um pouco dela. —


Revidei. Joshua estava prestes a rebater quando Kim apareceu na
sala e veio se sentar no meu colo com um envelope em mãos.

Devidamente intimidado graças à ameaça que velei há dois


anos atrás, ele nunca ousava falar mal de mim na presença dela.
Por isso mascarou o escárnio através da pergunta feita em um tom
manso:

— Quando você e o Brany vão me dar um sobrinho? — Kim


não viu, mas eu trinquei o maxilar ao ouvi-lo me chamar pelo
apelido que ela criou. O merdinha sempre encontrava uma forma
de me alfinetar indiretamente. Provavelmente esse era seu único
dom.

Ela se ajeitou no meu colo, mexendo na saia longa do vestido


para fugir do olhar inquisidor de Joshua. Hamlet e Nora haviam
parado de dançar e pareciam prestar atenção na conversa.

Uma tensão se espalhou pela atmosfera da sala como um gás


letal entrando pelos ductos de ar e asfixiando minha esposa, que
ficou acanhada com tamanha pressão. Eu vi quando prendeu a
respiração. Ela fazia isso sempre que estava intimidada.

— Por enquanto estamos apenas praticando. — Intervi,


acariciando as contas de Kimberly como um sinal para que
relaxasse. Ela soltou o ar devagar, me oferecendo um sorriso sem
dentes aliviado.
— Besteira — Joshua insistiu. Filho da puta ridículo. Não está
vendo que ela ficou desconfortável com esse assunto? — Alguém
precisa furar as suas camisinhas, Brany.

— Joshua! — minha esposa o repreendeu, se levantando do


meu colo e me pegando pela mão para que a acompanhasse. —
Vamos conversar lá em cima.

Estávamos no alto da escada, ela ainda me puxando pelo


caminho, quando seu irmão adotivo berrou:

— Espero que não tenha trago camisinhas, Brany.

Kim bufou, acelerando o passo até estarmos dentro do seu


antigo quarto e fechar a porta atrás de si depois que entrei.

— Quero que veja uma coisa por mim — enigmática, se jogou


na cama de casal antiga e colocou o envelope entre os seios, os
mantendo ali, escondidos do meu olhar curioso. Me sentei perto do
seu corpo, dobrando uma das pernas sobre a outra.

— E o que seria?

— Megan… a minha… você sabe, irmã, me mandou uma carta.


Eu acho que não quero criar um vínculo com ela, mas Sierra deu a
entender que o conteúdo que está aqui é importante…

— Você acha que não quer criar um vínculo com ela?

— É. Ainda estou decidindo…. Enfim, quero pedir que leia a


carta por mim e só me conte sobre o que fala se Megan estiver
doente ou à beira da morte. — Ficando ereta sobre o colchão, ela
pôs o envelope no meu colo. — Pode fazer isso por mim?

— Posso, Kim. É claro que posso.

Um sorriso sincero entreabriu os meus lábios enquanto eu


abria o envelope e retirava o papel com os dizeres. Após o tempo
de convivência, Kim havia conseguido me fazer sorrir de forma
espontânea diversas vezes.

Kimberly

Sei que a sua falta de resposta na última carta significa que


não está disposta a me dar uma chance. Eu entendi. Respeito a
sua decisão. Resolvi te escrever mais uma vez porque estou com
medo. Um fato importante que você precisa saber sobre mim é
que sou extremamente medrosa. E paranóica também! Sempre
pensei que teria um ataque fulminante, mesmo sem nunca ter tido
problemas no coração, e morreria antes dos trinta (a propósito,
tenho trinta e três anos). Nunca passo por debaixo de uma escada,
muito menos vou à cozinha sozinha de madrugada. Também tenho
pavor de dormir só. Sou medrosa! É isso, não tenho vergonha de
admitir porque você é minha irmã, mas, dessa vez eu tenho um
motivo extremamente plausível para estar amedrontada. Amanhã
eu irei fazer uma cesariana e não consigo dormir. Fico pensando
na anestesia, nos riscos da minha pressão cair, como aconteceu
com a nossa mãe quando ela me teve, na possibilidade de eu
pegar uma infecção hospitalar, em alguma coisa dar errado e o
meu bebê não resistir…. Aí você me pergunta: por que não faz um
parto normal? Porque tenho medo de não conseguir ser forte o
suficiente e isso prejudicar o meu filho!

Eu disse, sou extremamente medrosa. Mas também sou muito


carinhosa. Adoraria te ter aqui comigo, apertar a sua mão, te
abraçar. Sinto saudade de você sem nem ao menos ter te
conhecido, Kimberly. E senti que deveria te escrever mais uma vez
para caso algo dê errado, você tenha duas cartas para se lembrar
de mim.

Se decidir conhecer o meu bebê, independente de quantos


anos ele tiver porque sempre será o meu bebê, vou te receber de
braços abertos, Kim. Como sempre desejei fazer.

É isso. Eu estou prestes a me tornar mãe. Você vai se tornar


tia. Espero que tudo dê certo.

Beijos, Meg Salvatierra.

Um número de telefone e um endereço foram deixados no final


do texto.

Os olhos da minha esposa me fitavam com expectativa.

— Tenho a impressão de que ela se parece muito com você. —


Disse a primeira coisa que me veio à cabeça. Já tinha visto a foto
da carteira de motorista de Megan. Ela possuía o mesmo padrão
físico da irmã: cabelos pretos, pele morena e olhos escuros.
Contudo, não tinham traços parecidos. Kim era uma cópia feminina
de Esteban, enquanto a outra era parecida com Beatrice.

Apesar de não serem cópias uma da outra, Megan e Kimberly


compartilhavam da mesma personalidade insegura e carente.

— Por que diz isso? O que ela falou?

— Pela forma como ela escreve, parece ter o mesmo jeito que
você.
Tentando driblar a curiosidade, Kim afastou o olhar de mim,
fixando-o na parede branca à nossa frente. O quarto em que
estávamos havia sido desocupado muito antes de nós nos
conhecermos, mas Sierra ainda o mantinha intacto, exatamente
como a minha esposa devia tê-lo deixado. Sabia disso apenas
pela observação das paredes, ainda exibiam as medalhas de
campeonatos científicos escolares e certificados de proficiência
nas línguas que Kimberly era fluente emoldurados, ocupando uma
parede inteira. Claro que ela não era o tipo de adolescente que
colecionava pôsteres, não esperava outra coisa dela.

— Megan está bem, então?

— Eu não diria bem… — Voltou a olhar na minha direção no


mesmo instante. Estava nítido que havia vontade da sua parte de
dar uma chance à irmã. No entanto, quando se tratava de
Kimberly, caminhar por um piso feito de concreto podia parecer tão
instável quanto pisar em ovos. — Está passando por um
momento... difícil.

— O que houve, Brandon? Ela está morrendo? — o tom de voz


já não estava mais tranquilo, assim como o semblante, as
sobrancelhas unidas em preocupação.

Segurei o riso.

— Não exatamente. Quer dizer, tem chances disso acontecer…


— Os olhos dela se arregalaram. Kim tentou pegar o envelope das
minhas mãos, eu o tirei do seu alcance antes disso. — Ela não
está doente ou morrendo. Pode acontecer dela morrer, mas você
disse que não quer se envolver.
— Eu disse que não sei se quero ter um vínculo com ela! —
determinada a passar por cima do que propôs, Kimberly se
debruçou sobre o meu peito e apanhou o envelope que eu
mantinha em uma das mãos com o braço esticado.

— Vocês duas já tem um vínculo — fui ignorado pela minha


esposa. Sua atenção agora era toda do pedaço de papel que tinha
entre os dedos. Continuei mesmo assim: — O sangue é o vínculo
mais poderoso que existe.

Não que eu necessariamente concordasse com isso. Essa era


uma fala do meu pai, na sua voz imponente parecia mais
verdadeiro do que realmente era no nosso caso.

Ao final da leitura, Kimberly havia perdido o brilho no olhar que


tanto lutei para ver cintilando nas orbes escurecidas que
escondiam sua vulnerabilidade.

— Ela só está grávida — declarou, voltando a me encarar. —


Não está morrendo.

— É uma cirurgia. Sempre há riscos em qualquer procedimento


cirúrgico.

— Você entendeu o que quis dizer.

— É, eu entendi.

Os nossos momentos de silêncio geralmente eram carregados


de diálogos muito mais significantes do que os que tínhamos
verbalmente.
Era no silêncio que Kimberly se abria, me deixava entrar, ouvir
o trabalhar frenético dos seus neurônios para pensar nos assuntos
difíceis, o coração espancando a sua caixa torácica, os pulmões
travando uma guerra com o seu sistema nervoso autônomo que os
impedia de bombear o sangue por alguns instantes. Porque ela
não podia parar o mundo quando não soubesse o que fazer ou
como agir, mas poderia interromper o seu fluxo sanguíneo, tentar
não sucumbir em meio a avalanche de temores que a perseguiam
a vida inteira.

— Será que ela já teve o bebê? — depois de vários minutos


sem dizermos nada, ela perguntou.

— Não sei. — Em momentos como esse, eu aprendi que o


melhor era deixá-la raciocinar sozinha. Vez ou outra dizer algo,
mas não tentava influenciar nas suas decisões. Eu já manipulava
uma parte significativa da sua vida, não seria justo dominar toda
ela. — Deite aqui comigo. Vamos nos beijar e entrelaçar os dedos
dos pés.

O sorriso que apareceu no rosto dela modificou a atmosfera do


quarto como um sol despontando num céu carregado de nuvens
sombrias.

Escolhi acreditar que aquilo funcionaria como uma troca.


Muitas coisas estavam em jogo além do coração dela e o meu
prazer. Se nós dois fizéssemos a nossa parte corretamente,
ambos sairíamos ganhando.

Ela teria o companheiro leal e resiliente que tanto queria.

Eu teria os segredos e o prazer que tanto necessitava.


Kim se livrou dos seus sapatos e também retirou os meus,
largando as minhas meias pelo chão e vindo se deitar
aconchegada no meu peito.

— De todas as propostas que você me faz, essa é a que eu


mais amo. — Confessou, e então uniu nossos lábios em um
selinho que se transformou num beijo de língua potente.
Descalços, entrelaçamos os dedos dos pés ao mesmo tempo que
as mãos dela percorriam meu rosto e cabelo enquanto as minhas
exploravam sua bunda envolta pelo tecido do vestido.

Meus batimentos começaram a ficar acelerados e o sangue a


se acumular na virilha quando Kimberly sentou sobre o meu corpo
e retornou a me beijar com luxúria.

— As preces de Joshua foram ouvidas, eu realmente não


trouxe camisinhas. — Interrompi o beijo para alertá-la. O
preservativo não era de todo essencial na nossa relação. Assim
como ela, eu também fazia uso do medicamento antiviral. Ele
controlava a multiplicação do vírus no corpo dela, tornando-o
indetectável pois ficavam em uma quantidade tão pequena que se
tornava intransmissível sexualmente. Em mim, também impedia a
multiplicação caso eu fosse infectado. A proteção funcionava como
mais uma precaução das inúmeras que Kimberly fazia questão de
tomar para amenizar a sua paranóia.

— Eu sei. — Apesar de dizer que sabia, ela tornou a esfregar


sua intimidade na minha. — Não tem problema. Acho que você
não vai querer nada o impedindo de sentir por inteiro a minha
língua no seu pau, vai?

O barulho da fivela do meu cinto sendo aberta era o ruído


característico da minha expectativa.
Eu sabia que era perigoso estar tão à mercê de alguém na
posição em que me encontrava. Mas acreditava estar a par de
todos os riscos, de tê-los sob controle.

— Não mesmo. Quero sentir sua língua mexendo com cada


terminação nervosa minha.
Capítulo 10

Venha agora, coloque fogo no passado

Se levante, erga seu rosto para o céu, meu amor

Juntos, podemos ir mais longe

Together - Sia
Kimberly engolia metade do meu membro vagarosamente com
a sua boca graciosa. O que ela não conseguia pôr para dentro,
masturbava em um ritmo acelerado, proporcionando um contraste
prazeroso que me levava à loucura.

Os dedos finos agarravam a minha pele de forma determinada.


Dedicada, ela não descansou até aprender como usar seus lábios
para me fazer sucumbir. Em pouco tempo se tornou capaz de
extrapolar o meu controle sobre os meus próprios orgasmos,
arrancando grunhidos que reverberavam por minha garganta
afora, enlouquecido, sem domínio.

Ele era todo dela quando me excitava daquele jeito. Da mulher


meiga e ingênua que havia dominado a arte de me seduzir e
algemar ao seu corpo. Dela, que me encarava vez ou outra sobre
os cílios volumosos, insegura, mas sem deixar de dar o seu melhor
enquanto chupava a minha glande e fazia movimentos de sobe e
desce sobre o meu comprimento.

— Kim, não aguento mais do que isso — avisei, recebendo um


olhar que me mandou aliviar meus sentidos. Permitiu que eu
parasse de conter a pressão e esvaziasse todo o conteúdo das
minhas bolas na sua boca, que não parou de me satisfazer até não
restar mais nada a ser despejado, apenas a minha respiração
entrecortada e o som do meu sêmem terminando de descer por
sua goela.

Eu precisei de alguns minutos para me recompor mesmo


depois de ela guardar meu pau dentro da cueca e fechar a calça,
voltando a se deitar no meu peito. Arrastei os dedos pela lateral do
vestido dela, puxando o tecido para cima. Kim afastou a minha
mão polidamente, balançando a cabeça em negação.

— Me deixe compensar você — o pedido foi negado com outro


balançar de cabeça. Em pouco mais de um ano de casados, ela
ainda não havia me deixado fazer sexo oral nela nenhuma vez
sequer.

— Não tem que retribuir. Eu faço porque gosto.

— Eu gostaria de fazer se você me permitisse.

— Não vamos começar com isso, Brandon. — Entrando na


defensiva, se desgrudou de mim, mas ainda ficando deitada ao
meu lado na cama.

— Kim, não percebe que esse é mais um dos complexos sem


sentido que você tem? Eu sou médico. Se houvesse altos riscos,
eu seria o primeiro a dizer que não deveríamos fazer. Mas que mal
há eu chupar você se nós tomarmos os medicamentos
corretamente?

— Eu não gosto! — a afirmação poderia ter sido feita com uma


falsa convicção, mas o olhar dela a entregava. Ele nunca mentia
para mim. Exibia a inverdade descarada, clara como água,
estampada nos olhos escurecidos. — Pare de me olhar com essa
cara de quem não acredita!

— Eu não acredito — coloquei o cotovelo sobre a cama,


apoiando a cabeça em uma das mãos para observar bem o rosto
dela enquanto dizia: — Porque não é verdade. Você gosta de tudo
que eu faço.

— Não seja egocêntrico.

Os lábios dela se espremeram para conter um sorriso de


escapar entre eles. Já eu, permiti mostrar-lhe os meus dentes ao
desafiá-la:
— Então me diga pelo menos cinco coisas que eu faço e você
não gosta.

— Não vou conseguir pensar em cinco agora…

— Me diga apenas uma, então. — Meu sorriso ficou maior à


medida que os segundos passavam e ela fitava o teto, fingindo
que realmente poderia ter algo sobre mim em mente que não a
agradasse.

— Ah, Brandon, pare de me irritar com esse seu egocentrismo!


— desistiu, cruzando os braços sobre o peito. As sobrancelhas
finas, destacadas no rosto pintado inteiramente de tinta branca,
estavam unidas, os lábios coloridos com batom vermelho,
fechados em uma linha fina. Estava linda, fingindo fúria e
fantasiada de Morticia Addams.

— Quando vai me deixar beijar a sua bocetinha? — usei a


minha voz melodiosa para perguntar. Isso a deixou mais
envergonhada do que já estava.

— Shhh — dois dos seus dedos foram colocados sobre os


meus lábios, na tentativa de me calar. — Nem tão cedo. Agora
pare de falar desse jeito.

— Quando vai me deixar beijar a sua bocetinha, Kim?...

Eu repeti isso pelo menos umas cinco vezes até Kimberly calar
a minha boca com a sua. Ainda assim não me permitiu chupá-la
naquele momento, nem durante o banho quando chegamos em
casa e muito menos na nossa cama, antes de dormirmos.
A senhora Lamont era benevolente, contudo, também muito
intransigente.

Ela não veio me receber na porta como sempre fazia quando


regressei do trabalho no dia seguinte. Meus passos foram
abafados pelo som de Lana Del Rey cantando alguma música
triste que não reconheci a letra, conforme me aproximava da
cozinha, onde encontrei Kimberly fatiando pepinos, concentrada
demais no movimento da faca e no que estava consumindo seus
pensamentos ao ponto de se esquecer que aquele era o horário da
minha chegada.

Às cinco e meia da tarde eu retornava a nossa casa todos os


dias e era recebido por uma esposa sorridente que não me
esperava pendurar o casaco no cabideiro atrás da porta para se
jogar no meu colo.

— Brany! — entusiasmada, envolvia minha cintura com as suas


pernas e beijava minha boca, assim como as bochechas, a testa e
o nariz.

Hoje, entretanto, Kimberly parecia alheia a nossa rotina. Ela


chegava mais cedo do que eu em casa e desde que nos casamos,
pegou para si a tarefa de preparar o nosso jantar. Geralmente a
refeição já estava pronta naquele horário. Algo devia ter
acontecido para que ainda estivesse fazendo o preparo. Era claro
que alguma coisa havia dado errado!
Se Lana Del Rey estava tocando, era porque minha esposa
não estava bem.

— Kim? Eu cheguei. — minha voz a pegou de surpresa,


fazendo-a dar um sobressalto. Virou-se de frente para mim, me
olhando assustada, perdida na própria confusão.

— Já são cinco e meia? — indagou, voltando à realidade. —


Eu perdi muito tempo lá em cima. Não vi a hora passar, me
desculpe.

Acabei com a distância que havia entre nós caminhando até


onde ela se encontrava em pé, com um pano de prato nas mãos.
Meus dedos seguraram seu pescoço à medida que eu a beijava
delicadamente, um selinho que fez Kimberly retornar de vez ao
presente.

— Sierra me disse que a carta foi enviada para a casa dela faz
cinco dias — contou sem que eu precisasse pedir. Afastei nossos
corpos apenas o suficiente para que pudesse observá-la por inteiro
enquanto falava. — Ou seja, é bem provável que Megan já tenha
dado à luz.

Os ombros estavam duros. O olhar vagava entre o meu rosto e


a geladeira atrás de mim, inquieto. Kim mantinha as mãos atrás
das costas, um típico sinal de ansiedade, característico de
situações onde queremos ocultar nossas reservas, quando se há
medo ou desconfiança.

— Você quer vê-la?


— Não, eu pensei em comprarmos um presente para o bebê e
enviarmos pelo correio.

Havia uma incongruência entre suas palavras e o que a


linguagem não-verbal expressava.

— Hoje? — negou com um balançar fraco de cabeça. Ela


queria sim.

— Você está cansado, trabalhou o dia inteiro… Ainda nem


jantou… — Virou-se de costas, retornando a cortar o pepino. A
música havia parado de tocar, restando somente nossas vozes
ecoando pelo ambiente. — Vamos deixar para outro dia.

— Vamos ao The Fashion Centre, me lembro de ter visto uma


loja de artigos de bebês por lá. — Ela largou a faca no mesmo
instante, mudando a expressão apreensiva para uma de alívio.

— Tem certeza?

Nunca a tinha visto tão inquieta em todo esse tempo de


convivência. Sabia que se não resolvêssemos aquilo logo, o
assunto iria continuar a corroê-la, afetando seu sono e
desempenho no trabalho. Diante disso, me desfiz da bolsa que
costumava levar para o hospital, tirando dali a minha carteira e as
chaves do carro, e a deixando pendurada atrás da porta.

— Tenho, Kim. Vamos.

Assim como imaginei, ela não foi relutante, abandonou o


preparo do jantar em prontidão para sairmos. Buscou sua bolsa
em cima da mesa e calçou os sapatos que a aguardavam
próximos a porta.
— Amo você, Brany. — Beijou meu nariz antes de atravessar o
portal que, cavalheiro como sempre era, eu segurava para que
passasse antes de mim.

A tal loja de artigos de bebê do The Fashion Centre at


Pentagon era uma bebelândia. Por fora não parecia tão cheia de
artefatos quanto era por dentro. Qualquer coisa relacionada a
crianças de até dois anos poderia ser encontrada em meio aos
corredores repletos de prateleiras e envoltos por coisas de
decoração para o quarto de recém-nascidos.

Estávamos há alguns minutos andando pelo local que mais


parecia um labirinto do que uma loja, somente observando as
infinitas possibilidades de presentes. Kim parecia extremamente
confusa sobre o que levar. Carregava cinco opções variadas
dentro da cesta de compras e mesmo assim, insistia em continuar
a explorar as seções.

— Ela deu a entender que se trata de um menino, mas estou


com medo de ter entendido errado — disse, pegando um chocalho
em forma de bola de basquete e de olho na chupeta fluorescente
que brilhava no escuro.

— Eu também entendi que era um menino. Na carta ela se


refere a “meu filho” e “meu bebê”.
— Bebê é uma palavra universal. — Não resistiu e trouxe a
chupeta para junto dos itens que já haviam na cesta. — E às
vezes ela pode ter relativizado na hora de escrever, porque
geralmente quando temos um filho e uma filha, nós falamos “meus
filhos”. Ortograficamente falando, o pronome masculino deve ser
usado para representar o pronome feminino em uma fala
generalista.

— É claro que Megan levou isso em consideração enquanto


escrevia uma carta, amedrontada e cheia de sentimentos
conflitantes dominando seus pensamentos — falei para mim
mesmo.

— O quê, Brandon? — Kim ouviu o sussurro e indagou.

— Você escolheu dois macacões amarelos, essa é uma cor


universal, não tem com o que se preocupar.

— Justamente por isso. E se ela pensar que eu sou tão


displicente que não me importei em ter o trabalho de passar mais
de cinco minutos escolhendo? — o suspiro que Kimberly deixou
escapar foi de pura tensão. Os ombros caíram em decepção e o
olhar buscou apoio no meu.

— Megan sabe que você não é displicente, ela deixou bem


claro que entende os seus motivos de se manter distante. Aposto
que será uma surpresa feliz receber um presente seu para o filho
dela.

Kimberly sorriu, ficando mais tranquila. Ela confiava no que eu


dizia, então resolveu que levaria sete presentes para o seu
sobrinho. Ou sobrinha.
— O quê? Eu não sei se vou fazer parte da vida dele. De
qualquer forma, estou comprando presentes para os próximos sete
anos adiantado. — Explicou enquanto andávamos até a fila do
caixa.

Minha esposa estava muito contente quando deixamos o


shopping com as sacolas em mãos e nos dirigimos até o carro.

— E se ao invés de enviarmos pelo correio, nós deixássemos


na porta da casa dela? — eu manobrava para sair do
estacionamento no momento que a proposta foi feita.

— Não sei, Kim. Isso soaria um pouco indigesto… — Os lábios


dela se fecharam em um bico sutil. Era impressionante como eu
não conseguia ignorar qualquer coisa que os gestos dela me
contassem. — Podemos passar por lá para você ver a casa em
que ela mora, mas acho que seria mais educado enviar as coisas
pelo correio caso decida que não quer fazer uma visita.

— Tudo bem, vamos até lá para que eu veja a casa dela. — Me


surpreendendo, Kim retirou da sua bolsa a carta e recitou o
endereço. Em mais ou menos trinta minutos depois, parei o carro
na frente da casa onde Megan e Calvin, seu marido, moravam.

A residência era uma Townhouse. Tinha um jardim modesto e


uma Ferrari estacionada em frente a garagem.

— Você acha que Megan está sendo sincera sobre me querer


na vida dela?

— Acho que sim. Que tipo de segunda intenção ela poderia ter
com isso?
— Não sei. Quem teria contado sobre mim para ela? E dado o
endereço da casa de Sierra?

— O endereço ela pode ter conseguido com alguém do


orfanato onde você ficou antes de ser adotada. Megan tinha seis
anos quando a mãe foi enxotada de casa, com certeza deve se
lembrar dela grávida.

Kim passou os próximos minutos em silêncio, pensativa. Eu


movi minha mão até a sua nuca e fiz carinho na região,
tranquilizando-a.

— Sabe o que eu acho, amor? — ela virou o rosto na minha


direção, apoiando a cabeça no encosto do banco. Me lembrou o
dia que nos conhecemos oficialmente, quando a deixei em casa
depois de sairmos do hospital. — Que você não tem nada a perder
se formos até lá e conhecermos a sua irmã. Se Megan não for o
que pensou ou tiver alguma intenção que te desagrade, nós
voltamos para a nossa vida com a sensação de paz no coração
por termos dado uma chance a ela. Você tem uma mãe, irmãos,
amigos e um marido incrível, não precisa mais se sentir vazia caso
as lembranças do passado venham à tona.

Minha esposa sorriu abertamente.

— O que foi? — eu quis saber, dessa vez não conseguindo


compreender o motivo do seu contentamento repentino.

— Você sempre fala "nós"e se propõe a estar junto comigo em


todas as situações. Eu me sinto tão feliz com isso, faz parecer que
os anos em que fui solitária não existiram porque é natural acordar
e saber que você vai estar ao meu lado para me proteger. —
Emocionada, ela acomodou o rosto no vão entre meu pescoço e
ombro, envolvendo os braços ao meu redor, aspirando o cheiro do
meu perfume. — É como ser privada de ar puro a vida inteira e um
dia estar livre para respirar com qualidade.

Kim, você não deveria dizer isso… Tornará as coisas piores


quando se der conta do que realmente éramos um para o outro.

— Eu sempre vou estar aqui para viver todas as situações ao


seu lado — por que proferir essas palavras foi como se um
canivete estivesse sendo retirado da minha garganta? — Sempre.

Ah, talvez porque fosse desconfortável mentir enquanto


Kimberly estava tão perto de mim daquela forma, me apertando
como se eu fosse a sua salvação.

— Eu quero ir — limpou algumas lágrimas teimosas que


escaparam de seus olhos sem permissão. — Quero conhecê-la e
passar por cima disso com você do meu lado.

Contrariando a sensação estranha que me acarretou, eu sorri.

— Vamos nessa, então.


Capítulo 11

Eu sou mais forte porque você me enche

Mas quando o medo vem

E eu fico à deriva do chão

Tenho a sorte de ter você por perto

Helium - Sia
Brandon segurava a minha mão e me ofereceu um sorriso
encorajador enquanto aguardávamos a porta ser aberta, após
termos tocado a campainha.

— Sim? — um homem alto, de cabelos loiros claríssimos e sem


barba apareceu no portal. Devia ter mais de trinta e menos de
trinta e cinco anos. A pele branca era pálida como neve.

— Olá — meu marido tomou a iniciativa de falar já que naquele


instante eu me dei conta de um detalhe que me paralisou: e se
Esteban estivesse ali a visitar o neto? — Megan se encontra?
Viemos fazer uma visita. Sou Brandon e essa é Kimberly, irmã
dela.

O homem arregalou os olhos na minha direção.

— Deus, claro! Entrem — ele abriu mais a porta, nos dando


passagem. Adentramos a casa de mãos dadas, eu me deixando
guiar por meu marido. — Sou Calvin, marido da Meg. É um prazer
finalmente conhecer vocês.

— Igualmente, Calvin. — Brandon respondeu, me lançando um


olhar que tinha implícito "diga alguma coisa, amor".

— É. Estamos contentes em finalmente conhecê-lo.


— Meg teve o bebê faz três dias, conseguimos fazê-lo dormir
um pouco depois do almoço e ela aproveitou para descansar.
Daqui a pouco irá acordar.

Eu olhei de soslaio para Brandon.

— Não queremos incomodar, podemos voltar outro dia… —


Tentei propor. Meu cunhado logo tratou de negar, interrompendo a
minha fala.

— Por favor, não vão embora. Ela vai ficar chateada se souber
que vocês estiveram aqui e não conseguiu vê-los. — A súplica
convenceu meu marido, que sem receber um convite, se sentou no
sofá e me convidou a fazer o mesmo.

— Vamos ficar sim, não se preocupe, Calvin.

O loiro ficou mais aliviado ao me ver sentar no sofá, disposta a


aguardar. Uma senhora adentrou o ambiente, se movendo sem
fazer barulho. Tinha os mesmos cabelos e tom de pele de Calvin,
aparentando ter por volta de cinquenta anos.

— Filho, o Noah acordou. Trouxe ele para o outro quarto para


não acordar Meg, preciso de ajuda. — A moça disse, quase num
sussurro.

— Vocês querem alguma coisa? Água, chá ou quem sabe um


café? — nós negamos com um balançar de cabeça sutil. — Se
incomodam se eu me ausentar por alguns minutos? Preciso entrar
no modo pai. Volto assim que as coisas estiverem mais calmas.
— De forma alguma, amigo. Vamos estar aqui aguardando. —
Confortável no sofá macio, Brandon o tranquilizou. Meu cunhado
se retirou junto com a moça e sumiram do nosso campo de visão
ao seguirem pelo corredor.

O interior da residência era decorado de forma simples, nada


muito elaborado, tons neutros de branco e bege, móveis de
madeira polida e cortinas brancas. Nos porta-retratos haviam
somente fotografias de uma mulher loira e um garotinho também
caucasiano.

— Acho que ela também está ansiosa para te conhecer.

— Espero que sim. — Pus a sacola com os presentes


embrulhados ao meu lado no estofado. — Preciso lavar as mãos.
Onde será que fica o banheiro social?

— Talvez seja aquela primeira porta à direita.

Segui até o local onde Brandon sugeriu e forcei a maçaneta,


incerta de que se tratava de um banheiro. Respirei aliviada ao
constatar que era sim. Havia somente uma pia e um vaso sanitário
ali. Fechei a porta com delicadeza, voltando a minha atenção para
o espelho, onde encarei o meu reflexo por alguns instantes.

Me achava bonita. Não exuberante, mas com uma certa


beleza. Tinha adquirido o hábito de usar um pouco mais de
maquiagem, os cabelos continuavam sendo cortados na altura dos
ombros e as unhas estavam sempre bem feitas.

Eu adquiri uma vaidade que me renovou, deixou mais jovem e


melhorou a minha autoestima. Estava admirando o meu reflexo
com orgulho quando Brandon bateu na porta.
— Kim? — entrou no cubículo, fechando a porta atrás de si.
Tinha me esquecido de trancá-la. — Tudo bem?

— Sim, só estou conferindo o meu cabelo — menti, o


encarando através do espelho.

— Está linda — chegou mais perto, encostando o quadril na


minha bunda e subindo as mãos pelos meus braços. Beijou o topo
da minha cabeça. Era uns bons centímetros mais alto do que eu.
— E nervosa também.

— Não sei o que esperar, o que devo dizer — os lábios dele


beijaram a minha clavícula. Eu usava um vestido de manga
comprida que deixava a região entre o pescoço e os seios exposta
e um par de botas com salto, que me tornava um pouco mais alta
que o armário da pia, onde Brandon espremia o seu corpo contra o
meu descaradamente.

— Peguei isso na sua bolsa. Acho que pode ajudar. — Ele


colocou o vibrador em forma de batom sobre o balcão. Nem
sempre eu conseguia gozar somente com penetração, então meu
marido me comprou um acervo de vibradores para que pudesse
me estimular enquanto penetrava. Esse em específico era para ser
carregado na bolsa para ocasiões como aquela: sexo inesperado
em um local inapropriado.

— Brany… — Repreendi, começando a ficar lubrificada apenas


com a adrenalina provocada pela ameaça de sermos flagrados.

— Bebês recém-nascidos dão muito trabalho, sabia, Kim?


Calvin não vai voltar nos próximos dez minutos. — Enquanto
falava, subiu meu vestido até a cintura e pegou meu pescoço com
uma das mãos, mantendo a minha cabeça apoiada em seu peito.
Usou a outra para se infiltrar na minha calcinha branca. A parte da
frente era rendada, dava um vislumbre do meu monte de vênus
depilado.

Nossos olhares estavam compenetrados em nosso reflexo no


espelho. Atrelados. Começando a esquentar a lenha que era a
nossa relação. Ele ascendeu mais rápido, estava duro atrás de
mim. Eu melei seus dedos com a minha lubrificação quando parou
de me instigar e checou a situação em que se encontrava a minha
intimidade.

Deixou que a calcinha caísse sobre os meus pés, roçando os


dedos pelo comprimento das minhas coxas suavemente. Fiquei
inteiramente arrepiada. O simples toque me deixou sensível, alerta
para as outras carícias que vieram a seguir. Um beijo no canto da
orelha, um chupão no pescoço e um aperto no seio esquerdo. Sem
contar o roçar de quadril, o volume coberto pela calça maltratando
a pele nua das minhas nádegas.

— Assim — instruiu meus cotovelos a ficarem firmes sobre a


bancada da pia e meus joelhos a se curvarem um pouco. Não
precisou pedir que eu empinasse a bunda, o fiz assim que
compreendi qual seria a posição em que ele me comeria,
afastando as pernas, ficando debruçada no móvel de mármore. —
Excelente.

— Oooh — choraminguei ao sentir um tapa ressoar na minha


nádega direita. O outro veio logo a seguir, enquanto eu espremia
os lábios para conter a inquietação que a ardência do primeiro
tapa havia provocado.

— Não gosto de número ímpar. — Brandon justificou. Pude ver


um sorriso brincar em seus lábios através do seu reflexo no
espelho. Ele me deixou naquela posição, se afastando um pouco
para que pudesse abrir a calça e vestir o preservativo que tirou do
bolso.
— Por que tem uma camisinha no seu bolso, Senhor Lamont?
— indaguei, em tom baixo, mas o ruído ecoou pelo cômodo. Eu
continuava a encarar o rosto dele pelo objeto à minha frente.

— Ah, é que… — Espremi os olhos, lhe olhando feio, à espera


de uma resposta. — Eu ia usá-la com a minha amante. Mas ela
não apareceu no hospital hoje então… Infelizmente vou ter de usar
esse preservativo com você.

Brandon sorriu largo quando fiz menção de sair da posição, me


mantendo no lugar com uma mão nas minhas costas e outra
guiando o membro até a minha entrada.

— Não seja boba. Eu tinha planos de fazer duas refeições em


cima da mesa hoje — resvalou a glande, introduzindo seu
comprimento pouco a pouco pelo caminho que havia se
acostumado a recebê-lo. — O jantar — empurrou até a base
vagarosamente. — E você. — Revirei os olhos e soltei o ar pela
boca. Devagar conseguia ser mais gostoso quando era Brandon a
me empalar.

— Ridículo — o ofendi, entre uma penetração e outra sendo


feita num ritmo lento e prazeroso.

— Se para você é mais plausível eu ter uma amante do que


ansiar te comer em cima da mesa, é porque estou fazendo algo de
errado. Então me diga, Kim, o que preciso fazer para que acredite
que estou satisfeito com o que tenho em casa? — Não fui capaz
de responder porque Brandon me tirou a habilidade de fala
momentaneamente quando aproximou o batom-vibrador do meu
clitóris e moveu-se em compasso com o brinquedo. — Diga.

— Tape a minha boca enquanto me...


— Enquanto te fodo? — Acatou o meu pedido, pondo os dedos
sobre meus lábios, me prendendo junto ao seu corpo sem parar
com a penetração. — Tão promíscua essa Senhora Lamont!

Ele sorria, triunfal, observando pelo espelho nossos corpos se


chocando no ritmo que ditava, pressionando minha boca na palma
da sua mão, o pau indo e voltando até o limite da minha vagina, o
brinquedo vibrando na potência máxima bem no meu centro de
prazer.

Era natural a forma como sabia me manusear, provocar


sensações avassaladoras em meu corpo toda vez que me tocava.
Eu esperava o dia em que isso acabaria, que pararia de entrar em
curto circuito daquela forma quando fôssemos fazer sexo, restando
apenas o piscar fraco, como uma árvore de natal antiga que tinha
o mesmo pisca-pisca há dez anos.

Isso não seria um problema. O amava demais, por diversos


motivos que faziam os orgasmos parecerem insignificantes. Mas
como se não bastasse o cuidado e a proteção que me oferecia, lá
estava Brandon, mais uma vez fazendo minhas pernas
fraquejarem sobre o efeito dos tremores enquanto gozava. Me
amparando com seus braços fortes que se tornaram o meu lugar
preferido no mundo.

Abafando o som dos seus grunhidos com o rosto enterrado no


meu pescoço, ele aumentava o ritmo das estocadas conforme se
aproximava de gozar. Meus joelhos encostavam na porta do
armário embaixo da pia toda vez que entrava com tudo no meu
canal. Brandon havia deixado o vibrador de lado após meus
espasmos cessarem e agora se concentrava em sentir os dele.
Estava tão duro, me alargando como uma britadeira abrindo um
buraco no chão: ágil e preciso. Quadril em movimento. Braços
exercendo força sobre mim. A boca mordiscando minha orelha.

— Porra, Kim… — O rosto havia ganhado uma coloração


avermelhada conforme o orgasmo se aproximava. — Vou gozar
tão forte…

E o fez. Eu senti o preservativo inchando dentro de mim. Ele se


contorcendo com o corpo grudado no meu. Estremeci também
sobre o efeito da satisfação de ser o motivo do prazer dele.

— Está mais relaxada? — perguntou depois de me soltar e


desprezar o preservativo no lixo.

— Minhas pernas estão moles como gelatina. Isso responde?


— falei, sentada na tampa do vaso para me recompor após subir a
calcinha e descer o vestido.

— Esse calmante nunca falha — riu fraco.

— Bobo — lhe dei um selinho de agradecimento. Já vestidos,


nos encaminhamos para sair do cubículo. Saí na frente, abrindo a
porta e dando de cara com Calvin, que acabava de passar pelo
corredor. Ele olhou de mim para Brandon, as sobrancelhas
arqueadas e sorriu, nitidamente constrangido.

— Meg acordou e pediu que vocês fossem vê-la. Ela ainda não
pode se levantar da cama. — Assenti, morta de vergonha.
Seguimos corredor adentro na direção da porta que Calvin nos
instruiu a entrar. Ele iria se juntar a nós depois, primeiro tinha que
preparar algo para a esposa comer.
— Merda, Brandon! Agora ele vai pensar que somos
pervertidos que usaram o banheiro dele para transar! — ralhei
baixo, ainda à caminho do quarto onde minha irmã nos aguardava.

— Ué, não foi exatamente o que fizemos? — o olhei de soslaio.


— Você se importa muito com o que os outros pensam, Kim.

Dito isso, ele tomou a iniciativa de girar a maçaneta, abrindo o


portal para que eu passasse na sua frente.

— Vou buscar os presentes que deixou no sofá. Volto logo.

— Brandon — segurei seu braço antes que escapasse. —


Entre comigo, depois você pega os presentes.

Ele olhou de mim para a entrada do quarto.

— Vocês precisam de uns minutos a sós.

— Você disse que estaria do meu lado!

— Se depender de mim sempre vou querer estar do seu lado,


mas e quando eu não puder? Precisa se acostumar a contar
consigo mesma, Kim. Precisa entender que apesar de termos nos
tornado um só depois de nos casarmos, você ainda vai ter de
enfrentar certas coisas sozinha e isso não te tornará menos forte.

Naquele momento eu quis chorar. Sabia que ele estava certo,


tinha um pouco de consciência do quanto necessitava aprender a
me sentir segura andando com as minhas próprias pernas, sem
precisar do apoio de ninguém. Entretanto, saber era diferente de
pôr em prática. Praticar significaria me arriscar, apanhar da vida.
Mal sabia eu que o ensinamento de Brandon teria me prevenido
contra o tapa sem mão que ele me daria algum tempo depois.

— E se eu morrer, Kim? Se eu entrar em coma? O que vai


fazer? — chorar em posição fetal até o fim dos tempos. — Não,
Kim. Você não vai chorar em posição fetal pelo resto da vida! —
adivinhou meus pensamentos, astuto como era. — Vai chorar por
alguns dias, mas depois vai levantar da cama e seguir com a sua
vida, enfrentando um dia de cada vez, aprendendo a se lembrar de
mim e não desejar ter morrido junto comigo.

— Já entendi, vou entrar, não precisa ficar fazendo discurso! —


algumas lágrimas se acumularam em meus olhos só de imaginar
aquele cenário onde Brandon não existiria e eu teria de viver sem
o calor do seu corpo e o seu sorriso galanteador. Rapidamente
conhecer Megan pareceu mil vezes mais simples do que antes.

Meu corpo estava quase inteiramente dentro do cômodo


quando Brandon sussurrou:

— Estou orgulhoso, amor.

— Vá embora! — fechei a porta na sua cara, mas não sem


antes vislumbrar o sorriso que iluminou o rosto lindo dele.

— Seu marido parece ser incrível. — Essa foi a primeira coisa


que Megan disse. Me virei, atônita, encontrando-a deitada na
cama com um cobertor cobrindo da sua cintura para baixo. A luz
estava apagada, o que iluminava o ambiente era o abajur na sua
mesa de cabeceira. — Posso estar errada, mas acho que fez uma
boa escolha.

— Teoricamente foi ele quem me escolheu.


— Ele é incrível mesmo então. — Sorriu, salientando as duas
covinhas que tinha, uma de cada lado da sua boca. — Sente-se
aqui. — Apontou para a poltrona localizada próxima a sua cama.

— Parabéns pelo bebê — eu disse, já sentada. De perto pude


observar melhor o rosto dela. Os cabelos estavam presos em um
rabo de cavalo bem feito. As bochechas eram grandes,
combinando com o formato oval da sua face. A boca tinha um
tamanho médio, diferente da minha, que era extremamente fina.
Nossas semelhanças estavam no tom de pele castanho e nos
olhos pretos. O cabelo de Megan era castanho escuro, enquanto o
meu era preto naturalmente.

— Obrigada. Calvin vai trazê-lo para que o conheça daqui a


pouco.

Apesar da iniciativa dela, nosso diálogo tinha um aspecto


mecânico no começo. Nos olhávamos o tempo inteiro, buscando
semelhanças que não existiam e recordações que nos foram
roubadas pelo rompimento dos nossos pais. Eu escrutinava o rosto
dela em busca de memorizar cada detalhe e associá-los à
realidade de que agora não éramos mais duas pessoas ligadas
somente pelos laços sanguíneos. Megan agora tinha um rosto,
uma voz e um cheiro de lavanda para a minha mente.

— Antes que Calvin e Brandon retornem, quero te dizer que


nunca perdoei nosso pai pelo que fez com você e a nossa mãe.

— Ele não vem te ver?

— Como eu disse… Nunca o perdoei e nem pretendo. Ele, por


sua vez, não fez questão do meu perdão. Então nós não nos
falamos faz algum tempo. — Desviou o olhar do meu, aparentando
estar envergonhada com a situação.
Em um ato impensado, peguei a mão dela e a trouxe para junto
da minha.

— Sinto muito por ter demorado tanto tempo.

— Você chegou na hora certa.

— Nós chegamos na hora certa mesmo! — A voz de Calvin


irrompeu pelo quarto quando abriu a porta para que Brandon
entrasse com o recém-nascido nos braços. Meu cunhado
carregava uma bandeja com o jantar da esposa e a colocou sobre
o colo dela. Agora a luz do cômodo estava acesa e pude constatar
que Meg era ainda mais bonita do que eu já tinha notado.

— Lindo, não? — foi meu marido quem perguntou, se referindo


ao nosso sobrinho descansando em seus braços. O pequeno
estava com o rosto levemente inchado e os olhinhos fechados,
descansando sobre o peito de Brandon como eu também gostava
de fazer.

Fiquei contente ao perceber que havia encarado uma parte


significativa do passado que me magoava e… Tinha conseguido!
Estava ali, ao lado da minha irmã, cunhado, conhecendo o meu
sobrinho e sorrindo para o meu marido ao responder:

— Sim, ele é a coisa mais linda e delicada que já vi.

Eu tinha evoluído. Percebi que conhecer Megan jamais me


faria retroceder como cheguei a pensar antes. Conhecê-la
preencheu o último espaço vazio que ainda havia em mim.
Capítulo 12

Meu passado tem um gosto amargo há anos

Então eu apresento uma fachada dura

Bondade é apenas fraqueza, pelo menos é o que me

falaram

I’LL Be Good - Jaymes Young


Por mais que as pessoas não tivessem coragem de revelar,
todo casamento escondia segredos. Fosse uma traição, um lugar
inusitado onde gostavam de transar ou uma dívida por causa de
jogos de azar.

Os segredos, tanto os guardados entre os dois ou para si


mesmos, funcionavam como uma apólice. Nós os mantínhamos
para proteger algo do nosso valor.

Se parássemos para pensar, toda relação tinha suas


confidências.

Um funcionário encobria as próprias gafes para que não


chegasse aos ouvidos do seu chefe.

Os filhos mentiam para seus pais com o intuito de não


perderem a sua confiança.

Alguns maridos escondiam traições. Outros, revistas da


Playboy.

E eu?

Eu escondia o crachá da minha esposa.


Podia ouvir os sapatos de salto baixo de Kimberly batendo
sobre o piso no andar de cima enquanto tentava encontrá-lo. Eram
quase oito da manhã e ela estava atrasada para pegar o metrô em
direção à Washington.

A tela do meu notebook exibia o número 92% há exatos dois


minutos e eu prestava atenção nos movimentos de Kim ao mesmo
tempo em que implorava mentalmente que essa coisa carregasse
mais alguns porcento rápido.

94%

Ela saiu do quarto e andou até o closet.

96%

— Encontrou, Brandon? — berrou do andar de cima.

— Ainda não, amor.

Respirando fundo, batia com os dedos sobre o espaço próximo


ao teclado, como se o gesto fosse capaz de fazer o carregamento
ser mais rápido.

98%

No pior instante possível, Kim começou a descer as escadas.


Corri e encostei a porta. Isso me daria alguns segundos para
retirar o cartão. O escritório ficava há bons metros longe do hall de
escadas, mas da forma como ela andava, desesperada por estar
atrasada, seus passos estavam mais velozes do que o normal. Em
malditos segundos chegou ao último lance de escadas.

99%

— Merda! Anda logo! — ansioso, minha mão segurava o cartão


ao passo que meus ouvidos estavam atentos no ruído da
aproximação de Kimberly, pronto para retirá-lo assim que possível.

— Não sei mais o que faz…

Download concluído.

Puxei o cartão segundos antes de ela irromper porta adentro


com um semblante preocupado. Kim não notou a movimentação
da minha mão, fingindo erguer o objeto de dentro da gaveta da
mesa. Era naturalmente desatenta, principalmente quando ficava
nervosa.

— Encontrei — exibi o crachá com a sua foto e o código de


funcionária.

— Nossa, que alívio! Não passo da porta sem isso daqui. —


Pegou o objeto da minha mão, me dando a oportunidade de fechar
a tela do notebook imperceptivelmente quando beijou meus lábios
em um selinho de agradecimento. — Vou buscar a minha bolsa e
então poderemos ir? Estou atrasada para pegar o metrô das oito e
dez.

— Claro, só vou recolher minhas coisas e te encontro na porta.


Desfiz o sorriso quando ela deixou o ambiente e voltei a me
concentrar no que fazia antes. Ainda faltava algo a ser finalizado.
Abri novamente a tela do notebook.

Salvo na nuvem.

Agora sim estava feito.

Não tinha mais a respiração irregular e a tensão pressionando


meu corpo ao guardar meu computador na bolsa e fechar a porta
do escritório para levar minha esposa até a estação do metrô.

Outra coisa relevante a se dizer sobre os segredos era que


quanto mais tempo nós os mantínhamos, mais convencidos de
que o sigilo se fazia necessário nós ficávamos.

Existiam diversas maneiras de interpretar o que eu fazia


sentado num banco de uma praça com o notebook no colo e um
boné na cabeça, quando deveria estar fazendo consultas no
hospital.

Kimberly poderia ser ingênua para muitas coisas, mas por ser
insegura, escolheria acreditar na pior e mais errônea hipótese: de
que eu tinha um caso.
A mulher de cabelos castanho-claro e pernas esbeltas que
andou por algum tempo em volta do perímetro onde eu me
encontrava para só então se sentar no banco, mantendo alguns
centímetros de distância, seria um argumento plausível para tal
convicção. Tinha uma beleza encantadora mesmo envolta por
roupas escuras, óculos de sol e uma touca.

Talvez essa não fosse uma hipótese totalmente errônea. Mentir


também era um tipo de traição, certo? Pelo menos foi o que me
ensinaram. Mentir era a pior das traições.

— Anton está orgulhoso. Você tem conseguido brincar de


casinha direitinho. — Sasha disse. Inveja transbordava das suas
palavras como veneno escorrendo das presas de uma cobra
depois de morder sua vítima.

— Não é tão fácil quanto parece.

Com a tela do notebook aberta nas configurações, ativei o


bluetooth. Sasha havia deixado o telefone entre nós no banco.

— Ah, deve ser tão difícil manipular aquela bonequinha com


quem se casou. Mulheres são muito mais suscetíveis a se
deixarem influenciar quando estão apaixonadas. Homens
importantes desconfiam até da própria sombra.

Por um segundo, cometi o deslize de olhar na sua direção.


Logo retornei a fitar a árvore à nossa frente depois de vislumbrar o
perfil dela.

— Isso quer dizer que o meu trabalho é muito mais simples?


— Com esse par de olhos azuis e o pau gostoso de sentar,
nada fica difícil para você, V. — A inveja ficou nítida no modo de
falar. Só que dessa vez era dirigida à Kimberly.

— Eu devo me desculpar por ser privilegiado, então?

— Deve agradecer aos céus. — A resposta veio ríspida.

Sasha era dura na queda. Por isso era tão boa. Apesar de
reclamar, ela sabia que ser mulher lhe dava mais vantagem. Não
era à toa que tinha mais mérito do que eu com menos idade.

Ela não sabia dizer não. Nunca arredava para situação alguma.
Todo o seu mérito era justo. Em segredo, eu a admirava.

— Essa droga vai demorar muito? Não tenho o dia inteiro.

— Não sei o que está acontecendo — mantive o olhar fixo na


direção à frente, controlando o reflexo de observar o celular ao
meu lado. — Hoje o sistema está devagar.

— Está feliz com a sua vida, V?

Era uma merda falar sem poder olhar no rosto da pessoa.


Tinha me esquecido disso.

— Sim, na medida do possível. Por quê?

— Eu odeio a minha. Acho que chegou a hora de parar, ter


uma vida normal.
— Não. Nem pense…

— Só vou até o fim do mês. Depois disso vou me libertar.


Pensei que você gostaria de vir comigo.

— Do que está falando, P?

— Bélgica, você e eu. Uma casa de dois andares, um cachorro


e quem sabe… alguns filhos? — não tinha vestígio de gozação na
forma como falou. Estava falando sério.

— O que deu em você, Sasha? Eu tenho trabalho a fazer e


você também.

— Anton disse que só mais um ano e você será liberado — um


ano? Eu preciso de mais tempo… — Você vai poder tirar férias,
curtir a vida. Não gosta da ideia de passar um tempo comigo?
Estou cansada de viver uma mentira, V.

— Me apaixonar por você? Com quem pensa que está


falando? Com o ursinho Pooh? — me irritei. Não queria porra de
férias nenhuma. Tinha que continuar. Ainda havia muito o que
poderia ser feito. Se precisasse ficar mais dez anos, eu ficaria com
prazer. Me traria o maior mérito da minha vida. E se fosse para o
meu coração bater por alguma mulher um dia, já teria acontecido.
Não aos meus trinta e sete anos de idade e ainda mais com
Sasha!

— Tem algo de errado comigo? — ela cometeu o erro de olhar


para o lado.

— Você é igual a mim. Fria, ardilosa e calculista. Não daria


certo.
Soltou uma risada anasalada.

— Posso presumir que você gosta das sonsas, então?

— Kimberly não é… — Ela era sim. — É, talvez eu goste. Faz


um bom contraste com a minha personalidade.

Não precisei olhá-la para saber que estava sorrindo. Sasha


adorava estar certa.

O celular apitou.

— Gosta, é? — riu. — Nosso trabalho não pode ser prazeroso,


V. Sabe por quê? Porque se algo der errado, a culpa não será da
tecnologia. — Se levantou depois de guardar o telefone. Fechei a
tela do notebook e me permiti olhar a lente dos seus óculos. —
Será sua, V. Exclusivamente sua. E Anton morrerá de desgosto.

Após ejetar o veneno, Sasha fez menção de sair andando, mas


parou poucos passos adiante. Tinha algo que ainda precisava
dizer.

— Se divirta com a songa monga até o dia em que não puder


mais.

— Foi bom te ver, P. Se divirta tendo uma vida normal enquanto


eu me torno o melhor da nossa turma. — Sorri abertamente,
velando a rivalidade que sempre existiu entre nós. Foi um erro
transar com ela. Jamais seríamos bons como uma dupla, muito
menos como um casal.
O relógio de pulso marcava quatro horas e cinco minutos
quando me levantei do banco e escondi a mini-câmera que Sasha
havia deixado num bolso dentro do meu cardigã e dei o fora dali.

Era a hora de buscar a minha linda esposa no trabalho e


concluir a última obrigação do dia.
Capítulo 13

Posso chorar, arruinando a minha maquiagem

Lavando todas as coisas que você tomou

E eu não ligo se não estou bonita

Garotas crescidas choram

Quando seus corações estão partidos

Big Girls Cry - Sia


Sem fazer a menor ideia de que meu mundo iria ser virado de
cabeça para baixo no dia seguinte, eu lia uma matéria de um jornal
online russo, sentada na poltrona da sala, enquanto Brandon,
Chris e Millie trabalhavam para montar um quebra-cabeça de mil
peças antes da meia noite.

A semana estava sendo agitada e essa era a primeira vez que


eu conseguia uma brecha para estudar. Aproveitei o entusiasmo
do meu marido em fazer atividades com meus irmãos para ligar o
iPad e tentar colocar o atraso em dia. Chris e Millie dormiriam na
nossa casa hoje pois Sierra estava enrolada com o trabalho.

Entre uma palavra e outra que eu parava para descobrir o


significado, me peguei pensando que, depois que casei, perdi o
ritmo para aprender línguas que tinha antes. Comecei aos
dezesseis anos, quando me interessei por RBD, a série mexicana
de adolescentes que criaram uma banda. Eu simplesmente odiava
assistir aos episódios dublados, então assistia os traduzidos que
encontrava na internet. Me lembro de achar o sotaque incrível e
começar a tentar reproduzir as falas mentalmente. De episódio em
episódio, e de reprodução em reprodução, fui associando os
significados às pronúncias naturalmente. Em pouco mais de sete
meses, já era capaz de escrever textos e sustentar diálogos
durante as aulas de espanhol no colégio.

Minha antiga professora de língua espanhola foi quem me


mostrou que eu tinha habilidade para tal. Ela disse que haviam
estudos que comprovaram que pessoas expostas a outras línguas
quando criança tinham maior facilidade em aprender novos
idiomas. E esse era o meu caso. Beatrice cantava para mim em
espanhol enquanto me ninava nos seus braços.

Desde então nunca mais parei. Depois veio o alemão, que


também me encantou pelo sotaque e no fim das contas não foi tão
árduo de aprender. Havia algumas palavras oriundas do inglês,
isso ajudou um pouco a descomplicar as coisas na minha cabeça.
Posteriormente resolvi aprender Húngaro, porque era tida como a
sexta língua mais difícil do mundo. De fato o processo foi bem
mais complexo do que com o alemão, mas para alguém que
passava dia e noite assistindo vídeos, lendo livros e rabiscando
textos para praticar a língua, nove meses foram suficientes para
me tornar apta a conversar com nativos da Hungria por um fórum
na internet.

O que me instigava nesse processo todo era a imersão que eu


tinha ao decidir qual delas aprenderia. Passava meses fissurada,
conhecendo as palavras como uma analfabeta, ensandecida com
a memória trabalhando a mil para se recordar de tantas coisas e
sem esquecer as outras línguas que aprendi. Procurava sempre
ouvir uma música ou ler um texto dos idiomas já estudados para
não esquecer.

Após ter minha habilidade colocada à prova com o polonês e


passar por cima dos desafios mais uma vez em pouco mais de
onze meses, decidi que aprenderia russo em menos de um ano.

E ali estava eu, perdida em pensamentos, dois anos depois,


sem estímulo para continuar lendo a notícia em russo. Gostava do
idioma, era elegante, igualmente desafiador se comparado ao
último que havia estudado. O problema estava no motivo pelo qual
comecei esse hábito. Para esquecer as coisas que não me
agradavam ao meu redor, eu me transportava para outros lugares
através das palavras que descobria.
Hoje já não era mais necessário fugir da realidade. Estava mais
do que satisfeita com a vida que levava. Talvez por isso o russo
tenha ficado em segundo plano. Eu buscava usar meu tempo livre
para ficar ao lado de Brandon e vice-versa, éramos aquele tipo de
casal que em qualquer oportunidade estava aconchegado no sofá
assistindo um bom filme abraçados.

— Perdemos! — afirmou Chris, um pouco decepcionado. Ele


esperava que conseguissem montar o quebra-cabeça, mas já
eram meia noite e dois e faltavam por volta de duzentas peças a
serem encaixadas.

— O que vale é a superação — foi meu marido quem disse,


otimista. — Olhe só — apontou para o quebra-cabeça
parcialmente montado em cima da mesa de centro. —
Conseguimos encaixar oitocentas peças. Isso é coisa pra
caramba!

Desfazendo o desenho da baleia que a junção das peças


formava, Millie passou as mãos pela mesa e as espalhou por ali. O
gesto ingênuo da criança espoleta foi o auge da decepção para
seu irmão, que se despediu e foi dormir no quarto de hóspedes.

— Hora de você dormir também, Millie. Dê boa noite para a titia


Kim. — A pequena de cabelos cacheados me deu um beijo cálido
na bochecha e seguiu escadas acima no colo de Brandon.

Deixei o iPad de lado, me sentando no sofá para esperá-lo


retornar e pensando no quão apto ele aparentava estar para ser
pai. Hoje parecia uma boa oportunidade para tocar no assunto. A
maioria dos casais planejavam a quantidade e até o nome dos
filhos, enquanto nós não havíamos nem sequer perguntado um ao
outro se desejávamos ser pais.
— No que está pensando, amor?

Não notei que Brandon havia retornado até senti-lo me puxar


para o meio das suas pernas no sofá.

— Sobre filhos. Você lida tão bem com crianças, já faz um


tempo que me pergunto se tem vontade de ser pai.

— Não sei dizer se tenho vontade propriamente dita. Tenho


curiosidade. Deve ser interessante ajudar a formar um ser
humano.

— Sierra faz parecer fácil… mas provavelmente não é.

Minhas orelhas esquentaram com os dedos de Brandon


fazendo carinho nelas.

— Mas eu gosto da ideia de transar sem camisinha e gozar


dentro de você. Podemos tentar quando quiser. — Riu contra a
minha cabeça, que descansava em seu peito.

— Você pelo menos considera a possibilidade de ter um filho


comigo? — movi minha cabeça para ver sua expressão enquanto
respondia.

— Kim — Se ajeitou sobre o estofado e eu me afastei, entrando


em alerta com o rumo da conversa. — Não estou dizendo que não
é capaz, mas acho que a gravidez é uma coisa muito séria. A partir
do momento em que fizermos um bebê, não poderemos voltar
atrás. Na hora do parto, se você não estiver se sentindo preparada
para ser mãe, não vai ser possível adiar esse momento. Não vai
ser como quando você adiou abrir a porta do quarto da sua irmã. O
bebê vai estar saindo, você vai precisar estar pronta…
— Eu tenho consciência disso, Brandon. — Alterei o tom.

— Eu sei que tem… — Passou as mãos pelo cabelo, querendo


se retratar. — O que quero dizer é que ainda há um caminho pelo
qual você precisa percorrer antes de ser mãe. Entende? Se é o
que quer, tudo bem, vamos nos planejar. Mas antes, preciso saber
que está disposta a não adiar a sua evolução quando estiver
diante das dificuldades.

— O que mais eu preciso superar? — perguntei como se não


soubesse. Tinha consciência sobre os pontos que ele apresentaria.
Mas o que eles tinham a ver com uma gravidez? Quase nada!

— Você sabe bem, Kim. Estamos juntos há dois anos e nunca


transamos sem camisinha porque até hoje você entra em pânico
com a ideia de me infectar...

— Um mero detalhe. Camisinha não previne só contra IST[3],


também é um método contraceptivo, doutor. O único que eu uso,
se não se recorda. — Deixei que o escárnio inflamasse cada uma
das minhas palavras. Não costumávamos discutir, entretanto,
quando acontecia, eu era a pessoa que soltava as farpas e
também saía mais ferida.

— ...e sem contar o lance do sexo oral. São "meros detalhes"


— fez o sinal de aspas com os dedos. — , que fazem toda a
diferença! Querem dizer que você não evoluiu de verdade, que o
complexo ainda está aí e você continua se enganando.

— Eu me preocupo com você, inferno! — meus olhos se


encheram de água. Não adiantava o quanto ele ou a minha
terapeuta dissessem que estava tudo sob controle, um tipo de
asco me corroía ao pensar em tê-lo nu dentro de mim.

Era confuso, não sabia dizer exatamente quando começou,


apenas que soava repugnante para minha cabeça. Aquele tipo de
coisa que era tão nojenta que eu não gostava nem de pensar.

Quando aquilo passaria?

Eu precisaria me arriscar mesmo com medo e todas as


inseguranças juntas como fiz quando conheci Megan?

Parecia a única solução da qual eu ainda não tinha tentado.

— Sei que sim. Só… Deixe de pensar que você é suja e eu sou
limpo. Pense que…. Aonde vai, Kimberly? Estamos conversando!

Não queria ouvi-lo, estava esgotada daquele assunto. De todos


esses anos sendo perseguida por uma nuvem de estigmas e
inseguranças. Minhas pernas moveram-se para fora da sala,
dando as costas para meu marido com satisfação.

— Me faça uma receita de anticoncepcional. Amanhã vamos


transar sem camisinha. — Disse alto o suficiente para que ouvisse
de onde estava. Subi as escadas e fui dormir com uma mágoa que
me acompanhou até o dia seguinte, me deixando completamente
alheia ao pressentimento de que as coisas desandariam dali a
algumas horas.
Depois de Brandon me deixar na estação e seguir para o
trabalho como fazia todos os dias, eu peguei o metrô das oito e
dez em direção à Washington, chegando ao Departamento de
Estado em pouco mais de vinte minutos.

Tranquila, pendurei o meu crachá de funcionária no pescoço e


passei pelo detector de metais. A máquina não apitou pois estava
programada para ignorar os adornos que eu e outras mulheres que
trabalhavam ali costumávamos usar.

Fiz tudo exatamente como sempre fazia dia após dia: subi de
elevador até o segundo andar, comprimentei algumas outras
assistentes que encontrei pelos corredores, assim como alguns
seguranças que eu conhecia superficialmente.

Dean era um desses. Fazia pouco mais de um ano que havia


sido contratado como segurança particular do Secretário de
Estado Richard. Geralmente seu posto era ficar próximo à porta da
sala dele, de frente para a minha mesa, o dia inteiro. E quando
nosso chefe tinha reuniões, ele o acompanhava até o lado de fora
da sala.

— Dean — cumprimentei, lhe entregando um copo de café que


trouxe da máquina que ficava há alguns metros dali. Isso também
fazia parte da rotina, comprar capuccino para ele e o Secretário de
Estado, e um descafeinado para mim.
— Kimberly — acenou em agradecimento, pegando um dos
copos que continha o seu nome no engradado. — Obrigado.

Dean tinha o porte físico típico de um segurança: altura digna


de um jogador de basquete, abundância de músculos, mãos
grandes e postura ereta. Entre esses detalhes haviam a pele negra
retinta, a cabeça raspada, a barba bem aparada e o rosto traçado
em linhas duras, másculas e bem delimitadas. Além do maxilar
destacado e um queixo bonito.

Era um homem atraente por si só, a voz grave servia como


mais um agravante da magnetização fatal que o seu porte
provocava.

Não senti nada de diferente ao deixar minha bolsa pendurada


na cadeira e me mover até a sala do Secretário de Estado para
lhe entregar o seu café. Minha cabeça estava em um lugar
distante, preocupada demais com coisas pessoais para perceber
em primeiro momento que não era meu chefe quem encontrei
sentado atrás da sua mesa, mas um homem de meia idade
vestindo terno de grife e luvas de couro que eu nunca tinha visto
por aqui.

Quando me dei conta de que algo podia estar errado, era tarde.
Uma mão sobre a minha boca impediu que eu falasse e o barulho
da porta se fechando atrás de mim foi o único ruído além da minha
respiração a ser ouvido por um instante.

Uma sucessão de coisas inesperadas aconteceu.

Como se não bastasse o gesto de me tirar o direito de fala, o


segurança instruiu:
— Fique calada até que alguém lhe diga para falar, Kimberly. —
E então afastou a mão dos meus lábios.

Minha garganta ficou seca. Prendi a respiração pelos segundos


que se seguiram ao descobrir que era Dean quem estava atrás de
mim. Nunca tinha estado perto o suficiente para saber qual seria o
seu cheiro. Agora tinha consciência de que o aroma que emanava
da sua pele era algo com sândalo.

— Meu nome na verdade é Jayden Miller e sou agente da


Agência Central de Inteligência. — O poder da revelação teve um
impacto de arrepiar os pelos da minha nuca, tamanho o
nervosismo e apreensão que havia flutuando pela sala fechada. —
A CIA.

Apesar de trabalhar para o governo há quatro anos e ser


formada em Ciências Políticas, eu enxergava a CIA como uma
lenda urbana. Todos diziam que existia, já tinha ouvido falar de
histórias sobre eles, mas nunca tive uma comprovação da atuação
deles. O que sabia era que essa organização não se metia em
coisas pequenas ou sem fundamento.

Eles dispunham das melhores tecnologias para lidar com o


terrorismo, a espionagem e qualquer outra ameaça em potencial
desse cacife.

Havia um motivo grave para a visita deles ao Departamento de


Estado. Eu estava sentindo isso e a agonia de precisar me
envolver fazia meu coração espancar a caixa torácica.

— E esse é o diretor de operações, Mark Harrison. — Soltei o


ar pela boca quando Jayden deu a volta por mim e ficou estático
um pouco mais a frente, perto o suficiente da mesa para pegar o
objeto minúsculo de cima dela. Não prestei atenção no que era,
estava olhando para o homem do outro lado. Devia ter por volta
dos cinquenta e cinco anos e seu olhar na minha direção
transmitia um misto de escárnio e descontentamento. — Está
vendo isso aqui, Kimberly?

Era uma pergunta retórica, agora eu prestava atenção no


objeto sendo segurado na altura dos meus olhos. Era semelhante
a um dado, entretanto, da mesma cor da luminária do Senhor
Anderson, um verde vibrante, e possuía uma parte adesivada,
provavelmente para ser fixado em algum local.

Balancei a cabeça positivamente, com medo de falar e ser


repreendida.

— É um dispositivo de escuta de última geração. Foi


implantado há exatos dois dias na luminária da mesa do Secretário
de Estado Richard Anderson. — Meus olhos se arregalaram
automaticamente. Jayden me censurou com apenas um olhar
quando eu estava prestes a tentar me defender. Permaneci calada,
mesmo contra a minha vontade. — Sabemos que não foi você.

— Já viu este homem em algum lugar, senhora Lamont? — o


desconhecido, que até aquele momento apenas observava, enfim
se pronunciou. Ele deslizou uma fotografia sobre a tampa da mesa
e Jayden se afastou para que eu pudesse me aproximar e ver do
que se tratava.

Uma carteira de identidade russa.

Reconheci pelo design diferenciado, a folha era tingida de


branco e possuía uma mancha rosa que sobrepunha metade dela
e algumas das informações escritas em russo.
Me lembrei da vez que numa das minhas sessões de estudos li
uma notícia de um jornal russo onde um homem recebeu aval para
usar um escorredor de macarrão na foto de identificação.

Eu não pude deixar de rir da situação.

Que tipo de homem pediria para usar um escorredor de


macarrão na cabeça para tirar a foto da sua identidade?

Possivelmente um homem mais digno do que o da fotografia


que estava à minha frente.

Olhos de esmeralda. Cabelo aparado em corte militar. Maxilar


livre de pelos. Uns vinte anos a menos…

Quase não acreditei que estava diante do registro de quem


estava.

Quase.

Aquele olhar era único demais para que eu me confundisse.


Havia passado os últimos dois anos o admirando, sempre
fascinada com a potência daqueles olhos verdes.

Por que esse homem tem o olhar idêntico ao do meu marido?


Os lábios fartos, o cabelo escuro e até o nariz perfeito! — Não
pude conter o pensamento. Me permiti ter um último lapso de
ingenuidade, pois sabia que o choque de realidade que me seria
dado a seguir mudaria tudo.

— Não reconhece, Kimberly? Você dormiu ao lado dele por


todo esse tempo. — Jayden chegou mais perto, intensificando a
minha falta de ar.

De repente, desejei não ter ido trabalhar naquele dia. Talvez


assim eu pudesse ter mais um dia de ilusão, onde as mentiras não
me encontrariam para dizer adeus antes das verdades serem
lançadas contra mim como um julgamento por ter tido esperança.

No minuto seguinte, eu ainda não me sentia pronta para dizer


adeus ao meu castelo de mentiras. Nem no outro. Muito menos
nos próximos minutos. Foi preciso o homem de terno de grife jogar
uma caderneta vermelha sobre a mesa para que eu saísse do
transe.

— O mesmo homem dessa foto, só que três anos mais velho.


Ele entrou aos vinte anos no exército russo. Essa é a sua Carteira
de Identidade Militar. Dê uma olhada, veja se refresca a sua
mente. — Agora o asco predominava na maneira de falar dele,
sempre imponente, demonstrando superioridade enquanto eu
respirava com dificuldade, apavorada.

Peguei o documento com as mãos trêmulas e o abri. Dentro


havia uma fotografia, bem como coisas escritas em russo. Li em
voz alta o nome com um pesar, sentindo a intensidade com que as
paredes do meu coração se espremiam, querendo diminuí-lo na
tentativa de lidar com toda a dor que velava a ameaça de reduzi-lo
a milhares de pedaços caso aquilo fosse verídico.

— Alexei Vassiliev. — Nunca desejei tanto não conseguir


traduzir duas palavras como quis enquanto lia os dizeres escritos à
mão e em letra cursiva da caderneta.

— Você sabe o que isso significa, Kimberly? — o suicídio do


meu coração, Diretor Harrison? Ele entendeu que eu não teria
coragem de responder e prosseguiu sem ter um pingo de empatia
por mim: — Seu marido é um espião russo em solo americano,
Kimberly.

Era verídico.

Meu coração se despedaçou como uma taça jogada contra o


chão.

Em mil pedaços fodidos.


Três anos antes...
Capítulo 14

Eu nasci do gelo e da neve

Com os lobos do inverno, no escuro, sozinho

Na noite mais selvagem, eu me tornei o escolhido

Power is Power - SZA, The Weeknd, Travis Scott

Moscou, Rússia.
SEDE DO SERVIÇO DE INTELIGÊNCIA ESTRANGEIRO ( SVR)

O (único) lado bom de ser filho de um espião renomado da


época da KGB era contar com os olhares de admiração para
elevar o meu ego conforme andava pelos corredores.

As pessoas olhavam para as várias medalhas penduradas pela


minha farda e depois encaravam meus olhos com devoção.

Vassiliev.

Era sinônimo de honra, mérito e dedicação. Um sobrenome


que falava por si só. Eu não precisava contar sobre o tempo que
passei no Afeganistão ou as coletas de informações sigilosas que
vinha fazendo nos últimos anos para a SVR. Se meu sobrenome
era Vassiliev, estava mais do que comprovada a minha
competência!

Tudo isso graças à geração que antecedeu o homem que me


esperava na porta do elevador.

Bisneto, neto e filho de espiões, Anton era uma relíquia da


KGB. Ele sorriu sem mostrar um dente sequer quando dei alguns
passos para fora da caixa metálica com a boina no braço esquerdo
e carregando uma maleta com o direito.

— Estamos apenas esperando você para começar, Alex. —


Bater continência para meu pai na frente dos funcionários que
trabalhavam freneticamente no centro de operações o fez abrir um
sorriso. — Fez boa viagem?
— Para alguém que já dormiu dentro de uma caixa, a classe
econômica é o paraíso.

— Vamos para a sala encontrar o resto da equipe. — O segui


entre os corredores da Sede até a sala enorme e equipada com a
mais renomada tecnologia. Telões de alta resolução estavam
fixados na parede principal, que dava para a mesa enorme e larga,
com diversas cadeiras, para que pudéssemos nos sentar e discutir
os detalhes da próxima missão que iríamos iniciar nos Estados
Unidos.

Desabotoando o terno, meu pai se pôs a frente da ponta da


mesa. Já eu me mantive o mais longe possível, sentado na outra
extremidade, a diversas cadeiras de distância.

Outras pessoas também fizeram parte da reunião. Agentes


instrutores e psicanalistas.

— Sua arrogância é tamanha que exala por seus poros, V. — A


voz aguda e meticulosa de Sasha soou perto dos meus ouvidos.

Só reparei na sua presença naquele instante. Ela estava


diferente, sentada na cadeira ao meu lado esquerdo. Os cabelos,
naturalmente ruivos, foram tingidos de castanho-claro, bem como
as sobrancelhas. Não a reconheci quando passei os olhos de
forma panorâmica pelo ambiente. Entretanto, não foi uma surpresa
saber que faria parte do time. Sua habilidade poderia ser muito útil
para o que precisavam.

Sasha Popova era especialista no que chamávamos de


"Armadilha de Mel". Consistia em atrair o alvo para uma situação
comprometedora e usá-la para o chantagear. Conseguindo a partir
disso Segredos de Estado e vantagem para o nosso país.
Mulheres eram mais adequadas para executar tal estratégia.
Com a sua beleza arrebatadora, Popova já havia encruzilhado
muitos homens de poder. Os deixava arrebatados através do seu
corpo espetacular para então fazê-los ficarem de joelhos e lhe
entregar tudo o que queria.

— Você poderia exalar imponência também, eu não te julgaria.


Afinal, tem um currículo quase tão digno de arrogância quanto o
meu. — Devolvi a farpa.

— … O foco dessa operação será o Departamento de Estado


dos Estados Unidos. — Meu pai tornou a falar e Sasha desistiu de
retrucar para prestar atenção no que ele dizia.

No telão, uma planta da estrutura interna do edifício foi


transmitida para que acompanhássemos o raciocínio.

O plano se resumia a conseguir as informações de diversas


formas. Explicado quais documentos nós deveríamos encontrar e
roubar, fomos instruídos, um a um, sobre quais papéis iríamos
desempenhar em prol daquele objetivo.

O meu seria atuar disfarçado como um nefrologista na cidade


da Virgínia.

Em seguida, foram colocadas pastas na frente de cada agente


sentado à mesa. Nela continham informações sobre o nosso alvo.

A espionagem obtinha como propósito a vantagem militar e


política de um país. Essa era a finalidade de roubarmos
documentos confidenciais e mantermos o sigilo.
E para tal, nem sempre nós precisávamos ir direto à fonte para
ter esse proveito. A forma indireta podia ser sempre menos óbvia e
mais segura. Porque não adiantava apenas conseguir o segredo, a
missão estava concluída somente após repassarmos o que
descobrimos. De nada valia a descoberta de um documento se
não pudéssemos entregá-los aos nossos superiores para estudo e
estratégia.

Nós chamávamos a pessoa que iria ser a nossa ponte


mediadora de “alvo”. Consciente ou inconscientemente, era ela
quem nos daria a vantagem.

Eu soube que naquela missão o meu alvo me daria bem mais


do que isso quando abri a pasta e fiquei atônito com a pequena
fotografia 3x4 que encontrei logo na primeira folha. Só fui folhear o
resto do documento um tempo depois, porque senti uma
necessidade latente de descobrir tudo sobre aquela pessoa.

Kimberly Alejandra Salvatierra.

Se as palavras daquelas folhas fossem água, eu teria ficado


engasgado enquanto as engolia em uma velocidade absurda,
tamanha vontade de conhecer a personalidade dela. Ao final da
leitura, entretanto, não descobri nada significante que pudesse me
dizer que tipo de pessoa era ela.

As informações que o governo russo tinha de Kimberly giravam


em torno apenas do seu trabalho como assistente do Secretário de
Estado, das suas conquistas acadêmicas e do seu processo
adotivo.

— Como nossa movimentação nos Estados Unidos foi


reduzida, não poderemos fornecer uma extensa rede de apoio em
terra firme. Vamos monitorá-los daqui e formaremos duplas entre
vocês para que repassem as informações que obtiveram até os
poucos agentes que já estão em missões por lá… — Diretor
Vassiliev pegou o tablet de cima da mesa e prosseguiu listando as
duplas. — … E por último, Popova e Alexei.

Nas missões anteriores, eu havia repassado tudo para um


agente da inteligência que residia na Inglaterra e me encontrava
num dos pontos pré-determinados por meio da mensagem
codificada que eu enviava, na hora exata instruída e recolhia o
pendrive ou o telefone que havia sido deixado lá, repassando-os
para serem analisados.

Dessa vez, contaríamos com uma tecnologia mais sofisticada.


Que nos permitiria passar os documentos via bluetooth por meio
de aparelhos criptografados. Ainda teria que haver um encontro
pessoalmente, mas esse avanço aumentava as chances de
sucesso na transmissão de informações.

— Prefiro que você repasse. Vai ser mais difícil para mim ter
disponibilidade de ir de um lado para o outro discretamente
trabalhando como médico e sendo casado. — Eu disse para a
minha parceira.

Sasha riu, descrente.

— Você é muito convencido mesmo, Alexei. Nem conhece a


mulher, mas já tem certeza de que ela irá querer se casar com
você. E se ela for do tipo que prefere ficar sozinha?

Dei uma outra espiada na fotografia dentro da pasta.

Olhos expressivos, uma boca fina e nariz pequeno e arrebitado.


Belos cabelos pretos e pele morena.

As sobrancelhas… Meu olhar se fixou nelas.

Arqueadas e finas. Escuras como seu cabelo.

Kimberly devia chamar muita atenção dos homens à sua volta.

— Que seja. Meu trabalho será fazê-la mudar de ideia, então.

— Seu trabalho é manipulá-la usando sexo. Não é tão diferente


do que eu faço.

Sexpionagem era o termo usado para classificar o que eu faria.

Usar o sexo para manipular alguém por um período longo de


tempo. Fazer dessa pessoa refém de um prazer na maior parte
das vezes proibido, que a faria colocar o amor na frente da razão,
e sugar dela toda a informação enquanto fosse possível, até
sermos descobertos.

Seria a primeira vez que eu iria seduzir uma mulher solteira.


Nunca havia interpretado o papel de cônjuge e estava disposto a ir
além dos meus limites para ser bem sucedido na missão.

Afinal, a minha vida se resumia àquilo.

Honra e mérito era tudo o que importava, não?

— Seu trabalho é muito mais simples. Seus alvos estão


conscientes de que você é um mal necessário. Sem contar que as
suas missões duram o quê? Um ano, no máximo? As minhas são
construídas a longo prazo. Exigem desenvoltura.

— É verdade. Para enfiar o pau numa boceta precisa ser muito


desenvolto…

— Depois da reunião, me encontre no banheiro do terceiro


andar e eu te mostro como.

Sorri majestosamente ao vê-la engolir em seco. Não esperava


o convite tão descarado. Mas também não negaria uma
oportunidade de transar comigo. Fazia anos que nos
conhecíamos, fizemos parte da mesma turma de formação no
Exército e seguimos rumos diferentes depois disso. O reencontro
aconteceu na SVR e desde então, Sasha vinha camuflando sua
atração através das farpas que jogava na minha direção.

Ela não disse mais nada, moveu a cabeça para frente e


retornou a prestar atenção em meu pai e suas instruções solenes.

— Como sabemos que uma boa espionagem depende de uma


boa tecnologia à disposição, vocês vão receber um cartão
NAGRA, pontos de escuta de última geração, celulares e
computadores criptografados, e claro, documentos falsos.

A assistente terminou de colocar os itens à nossa frente pouco


após o término da fala dele. Agora eu tinha os equipamentos, o
dossiê do meu alvo e um propósito em mente.

Me sentia renovado.

Prestes a assumir uma nova identidade e viver como se fosse


outro alguém, eu fui dominado por uma falsa sensação de
contentamento.

Dali a alguns dias seria um novo homem, mas com os mesmos


dilemas de identidade que sempre tive.

Sem saber o que gostava e o que não gostava. O que queria


viver e o que não queria. À mercê do pensamento de que uma vida
sem propósito não era uma boa vida.

— Escolhi vocês a dedo porque confio a minha vida em vocês,


Agentes. Não me decepcionem. — Por fim, Anton Vassiliev disse.

Talvez, se aquilo valesse algo para mim as coisas tivessem


sido diferentes.

Se eu não tivesse aceitado aquela missão mesmo cheio de


incertezas sobre mim mesmo, as coisas teriam outro resultado.

Porque eu ainda iria perceber que, para não se perder em meio


a uma manipulação, você precisaria ter muita certeza de quem era
e porque fazia o que fazia.

E eu me levantei daquela mesa sem saber nenhum dos dois.


Vladimir, Rússia.

PRISÃO CENTRAL DE VLADIMIR

Quando a porta da pequena sala de interrogatório foi aberta,


um ruído ressoou do lado de fora, alertando que as grades foram
fechadas e que a detenta já estava do lado de dentro.

O agente penitenciário retirou as algemas que adornavam os


pulsos finos e pálidos da mulher assim que passaram da porta.

Ele se recostou na frente do portal, assumindo uma postura


defensiva, como um boneco sem vida, olhos fixados na parede
atrás de mim, mãos entrelaçadas à frente do corpo e pernas
abertas, fincadas no chão com determinação e alguns centímetros
entre elas.

Branka acariciou a carne que antes era oprimida pelas


algemas, apreciando a liberdade ilusória, e a passos contidos se
aproximou da mesa onde eu a esperava com uma pasta sobre a
tábua de metal.

— O tempo nunca te faz mal, Alex. Você me faz uma visita a


cada dois anos e sempre aparece mais bonito do que da última
vez. — Me deu um sorriso amarelado. Os cabelos, loiros naturais,
estavam presos em um rabo de cavalo mal feito, oleosos e
embolados nas pontas. Olheiras arroxeadas criavam uma bolsa
abaixo dos seus olhos. Não havia vestígios da mulher elegante e
linda que um dia fora.

A prisão fazia aquilo com as pessoas. Deteriorava o melhor


delas. Castigando-as por seus atos de má fé.
Com minha mãe não foi diferente.

Uma escolha impensada a fez perder tudo. A ambição e a


soberba a fizeram ignorar as consequências. E agora ela
definhava diante dos meus olhos.

Branka não pensou em mim quando colocou sua liberdade a


perder. Eu não deveria pensar nela enquanto tivesse uma vida
bem sucedida e cheia de conquistas.

Mas de alguma forma bem distorcida, eu me sentia mais


conectado com ela do que com meu pai.

Irônico, não?

Era leal ao meu país e aos propósitos, mas me sentia melhor


em conversar com uma mulher presa por traí-lo e dar vantagens
ao nosso inimigo.

— E você está pior do que da última vez. — Foi inevitável,


deixei que a mágoa se sobressaísse na minha escolha de
palavras. Nunca admitiria, mas guardava rancor dos meus pais por
terem sido tão distantes emocionalmente, individualistas, frios.

Eu sabia que não seria um bom pai. Justamente por isso


tomava cuidado para não engravidar ninguém. Por que Branka e
Anton não fizeram o mesmo?

Ela ainda conseguia ser pior do que ele.

Enquanto Anton não descansou até me transformar em alguém


cego e leal ao que ele quisesse que eu fosse, Branka não se deu
ao trabalho de interferir ou tentar me moldar. Simplesmente me
tratava com indiferença. Nem com carinho nem com desgosto.

— Por que não pergunta logo se eu sinto algo por você? Por
que fui mãe? Você já adiou essa conversa por tempo demais,
querido. Isso só está te fazendo remoer uma mágoa
desnecessária.

— Você me ama, Branka? Alguma vez passou pela sua cabeça


que para criar um filho você precisa dar-lhe amor e carinho?

A mulher vestida com o macacão verde me olhava impassível.


Estava presa há mais de quinze anos e já tinha se familiarizado
com tal vestimenta. Eu ficava agoniado só de me imaginar
perdendo a liberdade de viver e de escolher o que iria vestir pro
resto da vida.

— A resposta para a primeira pergunta é não. A respeito da


segunda, discordo parcialmente. Para criar um adulto normal você
precisa dar-lhe amor e carinho. Para formar alguém excepcional,
capaz de ser auto suficiente, que desenvolva a habilidade de se
camuflar e ler as pessoas, você precisa dar-lhe responsabilidade e
técnica.

Fiquei em silêncio, pensando se era eu quem estava errado em


me sentir daquela forma ou Branka quem tinha uma mente
deturpada em pensar que Anton fez um bom trabalho comigo.

— Além do mais, você não pode esperar que dois espiões


tenham um filho e lhes dê uma criação tradicional. É como
multiplicar dois vezes dois e querer que dê cinco ao invés de
quatro! — continuou a argumentar. O seu senso de superioridade
era irritante. Se ela era tão boa no que fazia, por que escolhera
colocar tudo a perder e afundar sua carreira?
— Por que fez aquilo? Arriscou o resto da sua vida para trair o
nosso país? Você tem talento, poderia se tornar uma lenda para a
história da espionagem… Por que mantém esse ar de
superioridade se envergonhou a Rússia, Branka? Onde está o
triunfo nisso?

— Não há triunfo, querido. Por isso é tão interessante. Eu


tenho um talento nato e fiz uso dele para apostar grande. Mas
quando se perde uma aposta desse tipo, a queda é grande
também. É só isso que precisa saber.

— Não. Você mesma disse que eu devo perguntar para acabar


de vez com isso…

— Uma última pergunta. E depois traçaremos o perfil do seu


próximo alvo.

Respirei fundo.

Pensei bem no que exatamente queria saber. Tinha muitas


dúvidas sobre a minha própria mãe. Ela era uma incógnita muito
complexa por conta da sua habilidade de ler as pessoas.

Olhando-a nos olhos, desleixada e envelhecendo, mas ainda


mantendo a arrogância, enxerguei algo que não tinha notado nas
outras vezes que estive aqui.

A inteligência era a única coisa que ninguém tiraria dela. Por


isso Branka se sentia superior.
Também reparei que havia algo mais por trás da sua reserva e
da vontade de encerrar o assunto.

Um motivo que a deixava realmente envergonhada. Não a


traição. Muito menos a desonra que gerou para meu pai, que
lamenta até hoje ter se unido a ela perante a lei.

Algo a ver com o seu cônjuge na última missão.

— Você se deixou influenciar pelo amor que fingia sentir e abriu


mão da sua lealdade por ele?

Sua primeira reação foi ficar perplexa, lábios entreabertos e


olhos esbugalhados.

A segunda foi tomar a pasta das minhas mãos e a trazer para o


seu lado da mesa, fugindo do meu olhar inquisidor ao responder
vagamente:

— Que outra aposta pode ser tão grande quanto esse


sentimento de merda? Ele é a verdadeira praga de todos os
séculos. — Dando o assunto por encerrado, ela abriu a pasta e leu
as informações folha por folha, levando os próximos cinco minutos
para captar o que eu não fui capaz.

Um dos vários mitos sobre os espiões era o de que não


passávamos de pessoas frias e sem sentimentos. Sendo que, nós
sentíamos sim, não de forma natural, nós manipulávamos nossos
próprios sentimentos, mas tínhamos emoções como qualquer ser
humano. A diferença era que precisávamos anulá-las e absorver
as dos personagens que nos eram impostos.
Acho que minha mãe se perdeu justamente nessa linha entre o
real e o fictício.

— Vinte e cinco anos e já é fluente em três línguas. O que isso


diz sobre ela, Alex?

— Que é dedicada e disciplinada. Deve levar uma vida


comprometida com os seus objetivos.

— Ela não teve uma figura masculina presente, com certeza


deve ter dificuldade para lidar com homens. Além do mais, o HIV
não passa uma boa impressão para eles…

— Ela é Soropositiva?

— Pelo menos é o que diz o relatório médico — me mostrou


uma das folhas com a cópia de um exame. — Não se esqueça de
tomar os antivirais.

Tinha deixado essa informação passar. Estava tão


entusiasmado em busca de coisas mais palpáveis que ignorei o
histórico médico. Era normal esse tipo de informação estar no
dossiê do alvo. Nem sempre significava que haveria algo
significativo a respeito disso.

No caso de Kimberly, sim.

Não fiquei assustado, estava mais para surpreso. Aceitando


bem o desafio que ela seria.

— Provavelmente ela não confia em homens, já que se deixou


enganar por um e ganhou consequências que a perseguirão pelo
resto da vida… — Supus, calculando a dificuldade que seria para
me aproximar.

— Na verdade ela adquiriu o vírus ainda criança, por meio da


transmissão vertical. A mãe era soropositiva.

— Pode ser amarga por causa disso. O pior tipo de


ressentimento é o que temos por nossos pais.

Branka me encarou, captando a indireta bem direta.

— O ponto aqui não é como Kimberly se sente, mas o que ela


realmente quer. — Fechou a pasta e deixou o olhar vagar pela
sala, se perdendo em seus pensamentos ardilosos.

— Ela quer estabilidade emocional.

— Mais do que isso — voltou a olhar para mim. — Kimberly


quer segurança. Quer ir dormir tranquila porque saberá que no dia
seguinte você ainda vai estar lá, ao lado dela, em prontidão para
fazê-la feliz. Kimberly precisa de uma atenção incondicional, um
porto seguro em forma de homem…

— Posso ser isso.

— Precisa dar-lhe garantias de que você sempre estará por


perto. Esse é o segredo: fazê-la sentir que uma vida sem você não
é algo do qual ela poderá suportar mais.

Minha respiração ficou pesada ao chegarmos naquele ponto do


assunto. A sensação de tornar alguém dependente de mim não me
agradava.
Recolhi a pasta das mãos dela sem dizer mais nada, a
conversa já havia ajudado a esclarecer a maioria das coisas na
minha cabeça.

— Foi bom ter a sua ajuda, Branka.

— Volte sempre que quiser, querido. Gosto muito de conversar


com você. — Assenti com um sutil balançar de cabeça e me movi
em direção à saída. O guarda estava abrindo a porta quando
minha mãe voltou a falar: — Sei que não tenho esse direito, mas
me orgulho de você, Alex.

Depois de ouvir da sua própria boca que não me amava,


nenhuma outra coisa que ela dissesse causaria um efeito positivo
em mim.

— Não tem mesmo, mas agradeço pelo apoio.

Dei-lhe as costas e me forcei a deixar encarcerado com ela


naquela prisão de segurança máxima qualquer necessidade de
afeto que eu um dia tivesse sentido.
Dias atuais…
Capítulo 15

Você me perseguiu

Como um lobo, um predador

Senti-me como um cervo nas luzes do amor

Você me amou e eu congelei no tempo

Faminto por aquela carne minha

She Wolf ( Falling To Pieces) - David Guetta feat. Sia


Lágrimas confusas escorriam pelas minhas bochechas e
faziam caminho por dentro da gola da minha camisa social.

Eu engolia em seco, fitando a mesa como se estivesse diante


de um monstro invencível.

De certa forma, estava mesmo.

O Diretor de Operações da CIA parecia impaciente, odiando ter


que respeitar o tempo que eu precisava para recapitular as coisas.

— Sente-se aqui, querida. Vou te contar uma história.

Compenetrado, Jayden puxou a cadeira para que eu me


sentasse à frente do seu chefe. Quando o fiz, Mark Harrison
suspirou e em seguida iniciou com a sua aula de história
aparentemente fora de contexto:

" Markus Wolf foi o chefe do serviço de inteligência da


Alemanha Oriental, a Stasi. Ele foi o maior desenvolvedor da
técnica de sexespionagem na Guerra Fria.

A grande sacada dele foi desenvolver um programa de


espionagem com agentes experientes que foram chamados de
"Romeos" quando o leste precisava estar a par do que o oeste
pretendia.

Wolf acreditava fielmente que deixar uma pessoa apaixonada


era o segredo para conseguir tudo o que quisesse dela. Por isso,
em 1970 enviou um grupo de Romeos para a Alemanha Ocidental
com o intuito de seduzir secretárias e descobrir as estratégias dos
inimigos. "

Um calafrio percorreu o caminho da minha espinha e se fixou


na nuca. O tom melancólico do Diretor Harrison me intimidava. E à
medida que ele desenvolvia a história, eu entendia onde queria
chegar.

O julgamento estava implícito em cada palavra dele e no olhar


cínico que me lançava entre uma pausa e outra, incitando a
sensação de humilhação que eu já estava sentindo.

" Não preciso nem dizer que a operação foi um sucesso. Os


agentes infiltrados iam aos locais onde as secretárias da OTAN
frequentavam e então as seduziam.

Charmosos e bons de lábia, rapidamente eles as envolviam em


uma relação apaixonada e calorosa. E eu não estou inventando
essa parte, realmente existem relatos de mulheres da Alemanha
Ocidental que foram usadas através desse método.

Mulheres vazias de sentimentos, com vidas monótonas e que


não eram atraentes. Não tinham companheiros, nunca haviam sido
casadas e viviam sozinhas.

Wolf soube enxergar uma oportunidade nisso e enviou agentes


que pudessem suprir as necessidades delas, ganhar vantagem em
cima do fracasso dessas mulheres.
Foi assim que Markus Wolf liderou a operação mais bem
sucedida da Guerra Fria. "

— Para escolher o alvo perfeito, eles se perguntavam: ela tem


acesso às informações que precisamos? — dessa vez, quem deu
seguimento foi Jayden, sentando na beirada da mesa, a poucos
centímetros de mim. — Se a resposta fosse sim, eles partiam para
o ataque. Porque quando eles dessem a elas a falsa sensação de
serem amadas, essas mulheres se sentiriam incríveis. E seriam
capazes de qualquer coisa para não perderem essa sensação.

— Isso te lembra alguém, senhora Lamont? — Mark se inclinou


sobre a mesa, querendo ver a minha expressão de perto.

Estar naquela sala, tendo que ouvir tudo aquilo calada, a


respiração descompensada, a cabeça girando com tantas
acusações e as mãos tremendo me lembrou a época do colégio.

Tinha me esquecido como foi horrível sofrer bullying, mas


bastou estar ali encurralada por alguns minutos para relembrar.

A minha sorte era ter sentado. Se estivesse em pé, teria cedido


e encontrado o chão.

— Eu não fazia a menor ideia… — Era óbvio para eles, mas


me senti na obrigação de reforçar. Quem sabe assim parassem de
me julgar através do olhar de desgosto que lançavam para mim,
exatamente como meus colegas de turma faziam.

— Ele é um agente renomado da SVR, é claro que você não


desconfiou. São treinados com maestria. — Apesar de suas
palavras serem de compreensão, o tom de Mark Harrison ainda
era de crítica.

— O que nós queremos de você é que seja nosso cavalo de


tróia, Kimberly.

Como não achei que fosse possível, fiquei ainda mais tonta. O
choro subiu forte pela base da minha garganta e eu não pude
continuar a contê-lo.

Choraminguei da mesma forma que uma criança depois de


descobrir que Papai Noel não existia. Os ombros sacudiam
freneticamente e o ruído da minha desgraça preencheu a sala em
meio ao silêncio que os homens fizeram.

Não queria demonstrar fraqueza, já havia sido humilhada o


suficiente, não podia dar mais motivos para eles pensarem que
além de burra, eu era imprestável. Entretanto, não soube parar de
chorar no mesmo instante, perdi o controle, me sentia
transbordando com os piores sentimentos que já tinha
experimentado na vida: a dor, a humilhação e a decepção comigo
mesma.

— Preciso que me responda uma coisa, Kimberly — levantei a


cabeça para prestar atenção no homem do outro lado da mesa,
ainda sem conseguir conter as lágrimas e os soluços. — Você
deixou que Alexei entrasse aqui há dois dias atrás?

Alexei. Alexei. Alexei.

Chorei mais forte, com uma raiva ganhando espaço no meu


coração despedaçado. Fui direcionada pela minha mente até o
acontecimento.
Fiquei surpresa quando ele apareceu no meu trabalho, e ainda
por cima, antes do horário da minha liberação. Mas jamais
pensaria que havia uma intenção maldosa nisso. Só estranhei.

— O que faz aqui? — indaguei quando me deparei com ele


saindo do elevador. Minha mesa não ficava muito distante dali, me
proporcionando vê-lo antes de chegar até mim, que grampeava
documentos para entregar ao meu chefe depois que saísse da
reunião.

— Um paciente desmarcou a consulta e eu resolvi te poupar de


pegar o metrô. — Sorrindo, meu marido se aproximou e se inclinou
para beijar meus lábios suavemente.

— Agradeço, mas faltam vinte minutos para a minha saída…

— Eu te espero. — Olhou de um lado para o outro,


averiguando ao nosso redor. Não havia ninguém ali. Dean tinha
acompanhado o Senhor Anderson à sala da reunião no terceiro
andar e permaneceria lá até o término dela. Restara apenas eu,
colocando em ordem a papelada. — Posso ficar lá embaixo se
quiser. Mas antes preciso muito ir ao banheiro. Tem um nesta
sala? — apontou para a porta do escritório do meu chefe.

— Tem, mas é melhor você ir no lá de baixo. Ele pode voltar a


qualquer momento…

— Estou muito apertado, amor. Não vou demorar. Por favor,


abra para mim e fique de olho.

— Brany… por que não foi lá embaixo? Tem vários banheiros


por lá…
— Mais um minuto e eu vou mijar nas calças, Kim. — Inspirava
fundo, balançando a perna, agoniado. Me dei por vencida e peguei
a chave reserva dentro da gaveta e deixei que ele entrasse,
fechando-a em seguida.

Não voltei para o meu lugar atrás da mesa, fiquei sentada na


beirada dela, encarando as portas do elevador, ameaçando
abrirem e me deixarem encrencada.

O Secretário Richard Anderson era um homem minucioso


quanto aos serviços que exigia dos funcionários. Eu me sentia em
uma corda bamba enquanto aguardava Brandon sair, pensando se
talvez não estivesse arriscando meu emprego ao deixá-lo entrar.

Arrependida, desencostei da mesa em um rompante e bati os


saltos até a porta da sala. Não temia por não confiar em meu
marido, mas por meu chefe interpretar isso como um ato
displicente.

De fato, era. Entretanto, me mantive certa de que não havia


nada com o que ficar preocupada ao adentrar a sala, pensando
que teria de bater na porta do banheiro.

Como prometera, Brandon não demorou para se aliviar.


Quando entrei, já estava fora do banheiro, mais precisamente
perto da mesa, segurando a luminária que quase deixou cair ao
passar com pressa.

— Essa foi por pouco. — Devolveu o objeto a uma posição


segura, em pé um pouco distante da beirada.

Soltei o ar pela boca, aliviada. Crente de que se a luminária


estava intacta, tudo estava bem e resolvido.
— Eu o deixei ir ao banheiro — minha resposta, depois de
muitos instantes em silêncio, não agradou o Diretor de Operações
da CIA. — Sinto muito…eu…

— Você foi burra, já entendi! — me interrompeu, revirando os


olhos. Se encostou no espaldar da cadeira de couro e apoiou os
cotovelos no apoio, me encarando com determinação. — A sua
sorte é que no mesmo dia conseguimos interceptar Sasha Popova
depois de ela ter se encontrado com ele e descobrimos sobre a
escuta. Ou então você estaria ainda mais encrencada.

— Quem é Sasha? — busquei na memória qualquer lembrança


de uma mulher próxima a Brandon e não encontrei. Ele não tinha
amigas ou parentes vivas.

— Outra espiã atuando disfarçada em solo americano. Os dois


chegaram juntos. Acreditamos que faziam uma dupla. Ele
conseguia as informações através de você e repassava para ela
em um dos encontros como o que interceptamos há dois dias.

Minha cabeça girava com tantas informações e dúvidas que


surgiam.

— Se interceptaram a troca, por que não prenderam ele? —


questionei Mark, mas quem se deu o trabalho de responder foi
Jayden.

— Temos outros planos para Alexei.

— Sasha Popova é uma sanguessuga russa que estava


chantageando o Secretário de Estado Richard Anderson com
imagens comprometedoras de um deslize que ele teve… — Diretor
Harrison passou a mão pela testa, como se estivesse rondando
uma zona perigosa. Por deslize, estava mais do que claro para
mim que seja lá o que meu chefe tivesse feito, prejudicaria seu
casamento e imagem. — Precisávamos tirá-la de cena o mais
rápido possível. Mas Alexei… ele pode ser útil para que viremos
esse jogo maldito que a Rússia vem ganhando há muitos anos.

Eu tinha noção do quanto os russos eram agressivos e


certeiros quando o assunto era espionagem. As histórias mais
fascinantes de roubo de informações sigilosas possuíam como
protagonistas agentes da KGB e da sua sucessora, a SVR.

Eles eram sorrateiros, inteligentes e ambiciosos. Muito mais do


que as autoridades dos Estados Unidos gostava de admitir.

— O que vocês querem de mim? Eu vou ser acusada junto


com ele?

Os dois se entreolharam. Jayden respondeu:

— Você não será acusada se cooperar e demonstrar


arrependimento pela sua ingenuidade. Precisamos que continue
fingindo que não descobriu nada sobre seu marido e siga as
nossas instruções para nos dar o que precisamos.

— Como… — Olhei para ele, desesperada. Não seria capaz de


dissimular dessa forma. Não aguentaria viver uma farsa por mais
tempo. Sentia vontade de fugir dali e bater com a minha cabeça
contra uma parede, para quem sabe perder a memória dos últimos
anos. — Como posso dormir na mesma cama que ele sabendo
tudo o que sei agora? Não vou conseguir...

— Da mesma forma que você fez durante todo o tempo que


ficaram juntos. — Pela primeira vez desde que se revelou, Jayden
demonstrou insatisfação através das palavras. Me fez sentir pior
ainda.

— Alexei mistura técnicas clássicas com técnicas tecnológicas.


Ele é um pesadelo para nós do serviço de contra-espionagem. —
Interrompi a troca de olhares com o agente Miller para voltar a
encarar Mark Harrison. — É um peixe grande. Se tivermos acesso
aos seus aparelhos criptografados, poderemos saber qual foi a
dimensão das informações que adquiriu nesses anos casado com
você. E a única forma é tendo o computador e o smartphone em
nossas mãos.

— Eles usam um tipo de criptografia que se interceptada por


alguém, não vai revelar as verdadeiras mensagens, e sim uma
porção de letras e números desconexos. — Jayden me explicou,
voltando a se manter neutro.

— Então eu só preciso encontrar esses aparelhos e entregar a


vocês para tudo isso acabar?

O sorriso cínico fez presença nos lábios pálidos do Diretor de


Operações da CIA.

— Depende. Acha que existe a possibilidade de Alexei vir a


sentir algo por você?

Em um ato impensado e transbordando escárnio por mim


mesma, tive uma crise de riso.

Meus ombros se moviam com mais ímpeto do que quando


chorei instantes atrás. Ri tanto que algumas lágrimas me
escaparam também. Ri até que elas se acumulassem em montes
nos meus olhos e incomodassem a minha garganta, pedindo para
saírem, descontroladas e me fazendo parecer mais patética.
Observei o meu reflexo na janela atrás de onde Mark estava
sentado e me fulminava com o olhar. Não conseguia admirar a
mulher que via ali. Enxergava apenas fracasso e degeneração.
Naquele momento parecia ser tudo o que me compunha.

De um dia para o outro, eu não era mais uma mulher feliz e


realizada.

Era ingênua e solitária.

Um alvo fácil.

Uma peça insignificante em um jogo ardiloso de poder.

Não havia nada de sedutor nisso. Eu não era uma femme


fatale.

— Olhe para mim, Diretor Harrison. Acha mesmo que um


homem treinado pela SVR vai se derreter pelo que está vendo?

Os olhos dele desceram avaliando meu corpo, parecendo ter


um raio X nas suas orbes que fosse capaz de enxergar por
debaixo das minhas roupas.

— Sinceramente, senhora Lamont — as lágrimas queimaram


minhas pupilas com uma raiva potente ganhando força através
delas. Parecia que ele fazia de propósito, me chamava com o meu
sobrenome de casada só para me humilhar ainda mais. — O que
vejo não é de todo ruim. É uma mulher recatada, meiga e
aparentemente ingênua. Essa combinação pode ser muito
interessante se você souber impressioná-lo entre quatro paredes.
Os homens adoram essa nuance de dama na mesa e puta na
cama.

O choro deu lugar a uma vontade de vomitar só de pensar em


tentar usar meu corpo para dissimular, fazer o mesmo que
Brandon fez comigo.

Além do mais, desconfiava que nem mesmo o prazer que


demonstrava quando fazíamos amor fosse sincero.

— Ele é um mentiroso profissional! Fazê-lo gozar uma vez ou


outra não vai mudar isso! — berrei, aos prantos.

— Ele tem que sentir alguma coisa por você, não é possível.
Nem que seja pena! — berrou de volta, totalmente furioso, batendo
com as mãos na mesa.

Pena.

A palavra me deu um choque de realidade brutal.

Era a coisa que as pessoas mais sentiram pela minha pessoa a


vida inteira.

Da mesma maneira que uma bomba sem cronômetro, algo


dentro de mim explodiu sem aviso prévio.

— Preste atenção, Kimberly. A espionagem é como o xadrez.


Nós defendemos e atacamos ao mesmo tempo. — A analogia de
Jayden me convenceu ainda mais de que eu precisava me
reerguer.
Uma onda composta de raiva, decepção e coragem me
inundou, preenchendo cada célula do meu corpo com a mistura
que me encheu de vontade de reverter aquela situação. Deixar de
ser um mero peão e me tornar a rainha do jogo que usava a minha
vida de tabuleiro.

Forcei os pulmões a voltarem ao trabalho normalmente. A


cabeça doía e o estômago parecia revirado, mas não tinha outra
escolha. Apesar de estar confusa sobre os meus sentimentos e
incerta a respeito do futuro, teria de conseguir o que eles queriam.

— Quero saber mais sobre ele — a determinação no meu tom


de voz foi de surpreender a mim mesma. Mark Harrison balançou
a cabeça em negativa.

— Não vou te dar informações confidenciais, garota. Você já


sabe tudo o que precisa saber.

— Ele com certeza sabe tudo sobre mim, enquanto eu não sei
nada sobre ele. Como esperam que eu ganhe de um inimigo sem
conseguir me igualar quanto às vantagens?

O olhar de Jayden fez Mark repensar no assunto. Com uma má


vontade nítida, ele acenou para o agente e permitiu que me
contasse apenas as principais informações a respeito de Alexei
Vassilev.
Capítulo 16

Saiba que eu te amei tanto

Que eu deixei você me tratar assim

Eu fui sua cúmplice voluntariamente, amor

[...]

As coisas que eu fiz

Só para eu poder te chamar de meu

As coisas que você fez

Bem, espero que eu tenha sido seu crime favorito

Favorite Crime - Olivia Rodrigo


O conteúdo do meu estômago parecia ter sido revirado quando
ouvi o ruído da porta sendo fechada e os passos se aproximando
da cozinha.
Dei uma última olhada para a luminária, onde eu escondera a
mini-câmera, e sequei o suor das mãos, passando-as pela minha
saia antes de ele atravessar o portal.
— Eu cheguei, Kim. — Disse, como se esperasse algo. Sei que
chegou. Meu corpo inteiro não estaria arrepiado se não tivesse
adentrado o ambiente. — Não vai ao menos me cumprimentar?
Era isso o que ele esperava. Que eu me jogasse em seu colo
como costumava fazer todos os dias na sua chegada.
Não faria.
Meus pés estavam fixos no chão de forma que pareciam duas
âncoras me impedindo de dar um passo sequer na direção de
Brandon.
Ele aguardava a resposta do outro lado do cômodo enquanto
eu fingia estar concentrada em tirar as coisas que comprei no
mercado de dentro das sacolas.
Escondi as duas garrafas de vodka dentro do armário inferior a
pia e me ergui, o encontrando mais próximo do que estava antes,
escorado na ilha da cozinha, olhando com intensidade para mim.
— Não te ouvi chegando. — Não me esforcei em convencê-lo,
deixei que ficasse nítida a minha desculpa esfarrapada. Impactado
pela frieza, Brandon desviou o olhar, passando as mãos pelo
cabelo. — Abra a garrafa de vinho enquanto eu corto o queijo
vegano.
Seus olhos voltaram a me avaliar, surpresos.
— Você está me fulminando com o olhar e mesmo assim quer
fazer a noite do vinho?
— Não estou te fulminando com o olhar. — Dei-lhe as costas
com o queijo vegano em mãos para fatiá-lo na bancada.
— É claro que está, Kim. A gente sempre se resolveu numa
boa, nunca dormimos brigados. Mas ontem você foi dormir sozinha
e não quis saber de reconciliação. — Sentia sua voz se
aproximando de onde eu estava até que estivesse diante de mim
novamente. Se sentou no banco que dava para a mureta em frente
a bancada e pôs uma folha em cima dela, bem à frente dos meus
olhos. — Fiz a receita que me pediu. Do anticoncepcional.
Foi um esforço enorme conter o meu maxilar de trincar. Mordi o
lábio, reprimindo a ira que tentava escapar pelos meus poros.
Como ele podia ser tão cínico?
Tive de comedir também a minha vontade de lhe perguntar qual
fora a escola de artes cênicas que frequentara. Sua encenação era
impecável, quase perfeita.
Quem sabe lá eles me ensinassem a ser tão dissimulada ao
ponto de conseguir beijá-lo enquanto meu coração sangrava por
sua causa.
— Tá. — Me limitei a dizer. Lágrimas de raiva arranhavam a
minha garganta.
— Kim… — Meu nome saindo da sua boca daquela forma
melodiosa era um afronta para a minha capacidade de odiá-lo. —
Não estou te desafiando.
— Sei que não. — Até porque, devia me achar muito burra para
competir com você.
A vontade de chorar alto, gritar, acusá-lo de me iludir se
intensificou quando imaginei o que ele devia pensar de mim na
segurança da sua mente.
Apostava que se sentia esplendoroso em saber que me tinha
na palma da sua mão.
Não tinha mais.
A bela adormecida havia sido acordada e queria ver a ruína do
seu príncipe encantado.
— Só quero que a gente passe por cima de mais uma coisa
juntos. — Continuou se explicando. Eu cortava o queijo em
pequenos pedaços em forma de cubos, movendo a faca agilmente,
sem parar para pensar, querendo sucumbir sob o olhar de Brandon
fixo em mim.
— Ai! Merda! — larguei a faca e pressionei meu dedo indicador
esquerdo na minha outra mão. Tinha me cortado.
Brandon deu a volta na bancada e se pôs ao meu lado,
querendo examinar o estrago que a lâmina havia feito.
— Você poderia ter perdido metade do dedo, Kim. Precisa ser
mais atenta. — Esfregou de leve a pele avermelhada devido ao
corte. Realmente, mas se eu fosse mais atenta, você não teria
chance de me manipular.
Não sei se foi por conta das emoções conflitantes que me
incendiavam por dentro e consumiam a minha cabeça ou pelo
corte ter sido mínimo, mas eu não senti tanto a dor da laceração.
Depois que Brandon me fez um curativo e assumiu o meu lugar na
cozinha, fui tomada por um súbito relaxamento.
Beberiquei alguns goles do vinho que ele tinha aberto e me
servido uma taça e fiquei observando-o até terminar de fatiar os
dois tipos de queijos que comprei.
— Vamos? — perguntou, já pegando a tábua com os pedaços
e a garrafa do vinho. Assenti com um balançar de cabeça e o
acompanhei até a sala.
Às sextas-feiras na nossa casa eram de puro deleite e
aconchego. A noite do vinho sempre terminava em sexo no tapete
e com nós dois dormindo de conchinha.
Pensar que os últimos dois anos foram uma farsa, que cada
gesto de carinho, palavra de apoio, cada “eu amo você” não tinha
sido verdadeiro me sufocou, fez o ar faltar nos pulmões e a mão
que segurava a taça vacilar.
— Está doendo, amor?
Meu rosto se contorceu em uma careta, como se eu realmente
estivesse sentindo dor.
E de certa forma, estava.
Doía perceber que ele não tinha limites na hora de entrar no
personagem e me ludibriar.
— Só ardendo um pouco. — Usei meu melhor tom manhoso,
me recordando do que Mark Harrison havia dito, que me fazer de
sonsa poderia funcionar.
Com um sorriso galanteador, Brandon levou meu dedo até seus
lábios e beijou o curativo.
Eu sorri também, totalmente contra a minha vontade e
querendo disfarçar o meu engolir em seco.
— Me perdoa por ontem? Não quis te magoar. — Estávamos
sentados no tapete, do mesmo jeito que sempre fazíamos, nossos
ombros quase se encostando, os olhos dele averiguando os meus,
a boca carnuda tentando seduzir a minha.
— Tudo bem.
Estremeci quando se aproximou mais, roçando o nariz na
minha bochecha e a mão acariciando meu braço.
Brandon engoliu um suspiro que quase soltei ao ter sua língua
entreabrindo meus lábios e forçando caminho. Deixei que
entrasse, que me lambesse e chupasse. Correspondia fazendo
movimentos sutis com a minha língua, sem tocá-lo com as mãos.
Um ruído ressoou quando afastou o rosto e nossas bocas se
descolaram. Aquele som característico, gostoso, de um beijo
sendo finalizado.
— Um dia sem te beijar e eu já sucumbi de saudade. — Sorriu,
pegando as taças de cima da pequena mesa de centro a nossa
frente e me entregando uma delas.
Eu bebi o restante do líquido que havia nela de uma vez só.
Se fosse para fingir que ainda acreditava nas suas mentiras,
precisava de um pouco de álcool circulando velozmente pelas
veias.
Sorri de volta.
— Também senti saudade.
Não consegui sustentar a pose de vingativa, da mulher que
serpenteava o diabo e esperava uma oportunidade para apunhalá-
lo, por muito tempo, pois logo Brandon retornou a ficar próximo,
beijando meu pescoço e abrindo minhas pernas, aumentando a
sensação de sufocamento.
— Hoje você vai deixar eu te beijar aqui? — passou a mão pela
minha intimidade, coberta pela meia calça preta que eu usava.
— Não sei… — Podia parecer excitada, respirando com
dificuldade e me esquivando dos seus chupões, mas tinha me
dado conta de que uma mini-câmera nos filmava e estava nervosa.
Mais cedo, eu havia implantado elas nas luminárias de todos os
cômodos da casa para tentar descobrir o que ele fazia na minha
ausência. As imagens eram enviadas para o computador que Mark
Harrison me deu. O tinha deixado na casa de Sierra por
precaução. Essas máquinas eram próprias para se camuflarem em
meio a claridade excessiva e eu temia me expor intimamente
daquela forma.
Aparentando não desconfiar de nada, Brandon se infiltrava no
interior da minha calcinha depois de driblar a barreira que a meia-
calça impunha. Tinha puxado o tecido fino para o meio das minhas
coxas e agora fazia movimentos circulares sobre o meu clitóris.
— O dedo está te incomodando, amor? Você não está ficando
lubrificada.
As suas mentiras então me incomodando muito, senhor
Vassiliev.
Numa tentativa de me esquivar da câmera, fiquei de costas
para a luminária, que jazia no canto do ambiente, com um pé de
metal a sustentando no chão.
A mesa de centro cobriria meu corpo se eu deitasse.
— É, estou um pouco incomodada com o corte, está latejando.
— Menti.
— Não tem problema — puxou meu calcanhar, me fazendo
ficar de costas para o chão e uma das pernas levantada, lhe dando
acesso ao meio das minhas coxas. — Fique quietinha, eu vou
molhar você.
— Brandon! — berrei quando rasgou a meia calça e me abriu
mais, puxando meu quadril na sua direção e se inclinando na da
minha intimidade. Pude sentir o ar saindo da sua boca, tamanha
proximidade, e me contraí. — Aaaaah — ele praticamente engoliu
o que havia no meio das minhas pernas, não deixando escapar
nada dos seus lábios famintos.
Perdi o raciocínio.
Brandon estava ali, me comendo como tanto queria,
explorando cada pedacinho com a língua. Mordia os grandes
lábios, depois sugava o clitóris e me penetrava duro com um dedo.
Por alguns instantes me desviei da ira, esqueci quem ele
realmente era e relaxei o quadril, jogando a cabeça para trás.
Não havia HIV nem CIA nem Rússia.
Era apenas Brandon, sua língua gostosa e o meu sexo
pulsando de prazer.
— Que delícia, Kim! — o sussurro que soltou entre uma sucção
e outra foi o que me trouxe de volta à realidade.
Nada daquilo era verídico.
Nada que saía da boca dele poderia ser levado em
consideração.
Tudo o que fazia tinha uma razão e ela somente beneficiava a
ele e ao seu país.
— Brandon…Pare. — Com certa relutância da parte irracional
do meu cérebro, eu agarrei os fios do cabelo do meu marido e
forcei sua cabeça para cima.
Meus fluídos, agora descendo em abundância por meu canal
afora graças aos seus estímulos, brilhavam sobre a barba bem
aparada de Brandon quando ergueu o rosto e olhou para mim.
Parecia um lobo.
Terríveis olhos verdes, cabelos cheios e escuros, bagunçados
por meus dedos. Uma boca carnuda e predatória.
Era claro que aquilo não poderia ser verdade. Aquele desejo
reluzindo nas orbes esverdeadas.
Em que mundo um homem desse se sentiria satisfeito com
uma vida medíocre ao meu lado? Se cada parte dele exalava
exuberância e luxúria?
Eu, que sempre gostara de coisas simples e sem graça, me vi
cobiçando um item de luxo no dia em que o conheci no elevador.
Eu deveria ter resistido. Porque no fim das contas, Brandon era
uma bijuteria que foi banhada a ouro, feita sob medida para me
impressionar. O que o fez cintilar sob os meus olhos foram as suas
mentiras.
Estava convencida disso quando me apoiei nos cotovelos e
sentei no tapete, afastando-o da minha vagina, pulsante e melada,
que ele fingia ser seu objeto de desejo.
— Isso é tão nostálgico. Me lembra o dia em que te toquei pela
primeira vez no meu carro. — Não parecia decepcionado ao falar,
aparentava estar conformado. Já eu, sentia o ar me faltar
novamente e a decepção dar as caras ao recordar de dois anos
atrás.
Como ele pôde ser tão dissimulado por todo esse tempo?
Eu não conseguiria esconder o quanto aquilo tudo me sufocava
e magoava por mais de alguns dias. O pouco que dividia espaço
com ele, sentia meu coração ser prensado, queria chorar em
posição fetal por boas horas e parar de me repudiar por ter caído
nesse jogo de poder desgraçado.
— Não chore, Kim. Não estou chateado. Está tudo bem, eu fui
insistente. Me desculpe. — Os dedos longos de Brandon limparam
as lágrimas que escaparam sem o meu consentimento. — Respire,
amor.
Uma de suas mãos desceu para meu tórax enquanto a outra
massageou minhas costas, me encorajando a inspirar e expirar
normalmente.
Aquilo fez ceder o fio que me impedia de desmoronar, acabar
com toda a farsa.
Em um rompante, me desvencilhei do seu toque e levantei do
chão, deixando-o confuso.
— Preciso sair, espairecer. — Confessei, sendo essa a primeira
verdade que lhe disse nesse dia.
— Onde quer ir? Eu te levo e depois te busco…
Brandon se levantou do chão, erguendo de forma imponente
todo o seu tamanho à minha frente.
Se me sentia sufocada ali, em um ambiente ventilado e aberto,
imaginei que seria pior dividir o espaço pequeno do interior do seu
Jeep Renegade.
— Não. Vou caminhando.

Estava tão desnorteada que nem me lembrei de pegar o


telefone na cozinha, saí apenas com os meus documentos e
dinheiro na bolsa, casaco e cachecol para me aquecer, e diversos
sentimentos me confundindo quando bati a porta sem olhar para
trás.

Para terminar de massacrar a minha cabeça com lembranças


ruins e potencializar a minha sensação de fracasso, encontrei Luke
Dawson na cafeteria há dois quilômetros de casa.
Na verdade, eu o vi e desviei o olhar de volta para a minha
mesa, onde um cookie de M&M e um copo de chocolate quente
me encaravam, à espera de serem devorados.
— Kimberly? — a voz soou atrás de mim.
— Luke. — Forcei um sorriso ao me virar e encontrá-lo em pé.
Estava sozinho, seu pedido tinha acabado de sair e segurava um
suco verde e um croissant nas mãos. Uma refeição estranha para
se fazer às sete da noite.
— Está esperando alguém?
— Não, pode se sentar.
Quando o fez, se acomodando na cadeira ao lado da minha,
seu joelho esbarrou no meu e o hálito amargo inundou minhas
narinas ao perguntar:
— Você se casou?
Por reflexo, olhei para a aliança de ouro e o anel de noivado,
ambos no meu dedo anelar esquerdo, e senti uma pontada de dor
no peito.
— Surpreendente, não?
— Claro que não, Kimberly. Você é bonita, inteligente, muito
legal. É claro que se casaria! — tentou se redimir, entrando na
defensiva.
— Não precisa fingir, Luke. Sei que a sua opinião na verdade é
bem diferente disso.
Ele, assim como outros garotos e garotas na época do ensino
médio, achavam que ninguém deveria se sujeitar a sequer me
tocar, quem dirá ter um contato mais íntimo comigo.
— Kimberly… — Inspirou pesadamente, parecendo ter algo
muito profundo a dizer. — Eu nem sei por onde começo a me
desculpar.
— Não se dê ao trabalho. Um pedido de desculpas não faz
diferença agora que já estou afogada num mar de degradação. —
Alterei o tom, desnorteada e descontando tudo nele.
— O que houve? Me conte, quero ajudar. Fui imaturo e
totalmente preconceituoso no passado, hoje eu vejo isso e me
envergonho muito, Kimberly. Não sou mais aquele garoto…
De fato, Luke estava bem longe de aparentar ser jovem. Tinha
a mesma idade que eu, vinte e sete anos, mas seu físico era de
um homem de quase quarenta.
O corpo, exageradamente musculoso, talvez fosse o
responsável por dar essa impressão. Ou poderia ser o rosto, com
linhas de expressão bem demarcadas e uma barba rala
despontando do maxilar.
Algo nele me passava a ideia de que sua vida não estava
melhor do que a minha. Que Luke também vivia uma farsa.
O cheiro de cigarro exalando por seus poros e o suco verde
não condiziam. Sem contar nas olheiras escuras e criando bolsas
abaixo dos olhos.
— O que houve com você, Luke? Parece cansado.
— Ontem foi o meu dia de ficar com a minha filha, Bethany. Ela
tem microcefalia e precisa de auxílio para fazer praticamente tudo.
É bem cansativo as noites em que dorme lá em casa. — Me vi
entreabrindo os lábios, surpresa com tal revelação. Luke era o
típico quarterback queridinho do colégio. Ninguém imaginaria que
no futuro estaria vivendo uma coisa difícil como aquela. — Beth
tem dificuldade de cognição e eu tive de tirá-la da escola por estar
sofrendo bullying dos outros alunos. É de partir o coração,
Kimberly, ver a falta de respeito e empatia das pessoas. Por isso
digo que foi repugnante o que fiz com você quando estudávamos
juntos. Me envergonho até hoje quando penso.
Por mais que eu não tolerasse o fato de que ele demorou
quase dez anos para se dar conta disso, deixei de lado essa parte
do passado depois de saber que o destino se encarregou de lhe
mostrar o outro lado da moeda.
Pelo menos ele aprendera em algum momento. Haviam outras
pessoas que morreriam ignorantes.
— Tudo bem, Luke. Aceito suas desculpas, estou vendo que é
de coração.
Ao sorrir, notei que seus dentes estavam mais amarelados do
que o comum. Provavelmente andara abusando da cafeína para
se manter disposto nos dias em que precisava cuidar de Bethany.
— Agora me diga, o que está acontecendo com você? Parece
devastada.
— Ah, não, nada demais… É só que, descobri que meu marido
me contou diversas mentiras… — Debochei da minha situação.
Não havia nada que Luke pudesse fazer.
— Bom, já fui casado e posso dizer com propriedade que
mentiras podem ser um tipo de traição. O pior tipo, eu diria.
— Eu sei. É por isso que dói tanto.
— E o que vai fazer a respeito? Vai pedir o divórcio ou dar uma
nova chance à ele?
Foi confuso me sentir incomodada por precisar escolher uma
das duas opções. Eu não pretendia tomar nenhuma dessas
atitudes.
Por que precisava ser tudo assim, preto no branco, uma coisa
ou outra?
Ainda não sabia o que faria exatamente. Estava concentrada
em conseguir o que a CIA queria e evitava pensar no futuro depois
disso.
— Nem um nem outro. Não me sinto pronta para deixá-lo e
nem preparada para lhe dar outra chance de me enganar.
— O casamento é uma eterna corda bamba, Kimberly. É
possível cometer um deslize e não se machucar se houver um
colchão embaixo. Mas se tiver um abismo, um deslize é o fim de
tudo.
— O abismo seria o quê?
— Seria quando a sua relação foi construída a base de
mentiras e rancor. Já o colchão seria uma base sólida, onde os
dois são honestos e sabem perdoar para recomeçar.
Se fosse assim, meu casamento era um fio de barbante sobre
um abismo. E eu estaria a poucos passos de um deslize.
Capítulo 17

Me diga, quem vai me salvar de mim mesmo?

Quando essa vida é tudo que eu conheço

Me diga, quem vai me salvar deste inferno?

Sem você, estou completamente sozinho

Pray For Me - The Weeknd, Kendric Lamar


Eu estava com as chaves do carro em mãos, prestes a sair em
busca da minha esposa quando ela retornou, batendo a porta de
casa e me encontrando na sala.

— Oi. — Tomei a iniciativa de dizer.

Estava confusa ao sair, falando que precisava espairecer.


Mesmo preocupado, a deixei ir.

Duas horas depois, Kim regressou. Não parecia melhor, pelo


contrário. Algo nela emanava desapontamento e um sofrimento
latente.

— Oi.

Meu coração deu um salto dentro do peito.

— Se sente melhor?

Lágrimas se acumularam nas suas orbes. Minha preocupação


havia aumentado em duzentos porcento. Pela primeira vez, não
sabia o que passava pela sua cabeça e isso me agoniou, fez uma
apreensão se instaurar, um medo que nunca experimentei se
apossar de mim.
Estava à beira da impulsividade antes de Kimberly aparecer.
Não pensei com clareza, conforme a noite caía, aumentava a
minha vontade de pegar o carro e ir ao encontro dela, invadir o
espaço que havia me pedido.

Nós sempre nos resolvíamos através de uma conversa, mas


dessa vez, ela nem ao menos quis tentar. Alguma coisa fora do
meu conhecimento a perturbava e Kim não queria me contar,
preferiu se afastar.

Quando bateu a porta e se foi, fiquei vazio e aflito.

Tentei não pensar no quanto isso era perigoso, bebi quatro


taças de vinho, subi e desci as escadas várias vezes para acalmar
o meu pensar frenético… Mas em duas horas eu não pude mais
conter.

E agora, vendo-a me encarar com alguma revelação nada


agradável se escondendo através das lágrimas, eu não consegui
controlar a inquietude do meu coração, que pareceu ter sido
pisoteado sem dó quando ela enfim respondeu:

— Eu beijei outro homem.

Naquele instante, tive uma noção sobre o que meus


sentimentos significavam.

Nem no dia em que minha mãe foi presa me senti tão


impactado por alguma coisa.

Isso tinha uma explicação.


Branka nunca me fez sentir nada além de desgosto por tê-la
como mãe.

Já Kimberly… ela estava sempre me fazendo sentir alguma


coisa e eu ignorava.

Até ela me fazer sentir uma dor aguda no meu âmago.

Foi então que não pude mais desconsiderar.

Minha mente havia sido comprometida inicialmente pela dor,


depois pela angústia. Meu peito queimava de aflição e a saliva se
tornou o reflexo da minha amargura quando engoli em seco.

— Você o quê, Kimberly?

Eu não era masoquista por pedir que repetisse, queria ouvir de


novo para que ela tivesse a chance de se retratar caso não fosse
exatamente aquilo que estivesse dizendo.

— Encontrei Luke Dawson, um ex colega do ensino médio na


cafeteria, e o beijei.

— Você não tinha amigos no ensino médio.

— Por isso disse colega.

Se havia uma coisa da qual eu não arriscava fazer era colocar


a minha mão no fogo por alguém. Dizer " não, tal pessoa jamais
faria isso comigo. "
Faria sim. E duas vezes pior.

Mas Kimberly…

Eu jurava que a conhecia, que não teria uma faceta daquela


mulher que não fosse capaz de reconhecer.

Acho que esse era o problema.

Na maioria das vezes a confiança é o melhor tipo de ilusão que


se tem no matrimônio.

Você divide a cama com uma pessoa por anos da sua vida.

Vocês dividem os problemas. A felicidade. O dinheiro. A


tristeza. O guarda-roupa. Os momentos.

Mas não dividem quem realmente são.

O que são capazes de fazer quando certas coisas estão em


jogo.

Você não era assim quando nos conhecemos.

Era sim.

Mas você só viu a faceta que lhe convinha. Ou a que convinha


ao seu cônjuge de te mostrar.
O lado que Kimberly me revelou, inconsequente e sem
consideração, foi tão bem camuflado que passara despercebido
até mesmo por meus olhos altamente treinados.

Se ela foi capaz de escondê-lo de mim, tinha capacidade de


fazer muito mais coisas do que eu havia previsto.

Eu a subestimei.

A SVR a subestimou.

Mais a frente Kimberly me provaria isso de forma ardilosa.

— Preciso ficar sozinho. — O pedido não a deixou surpresa ou


desconfortável. Ela parecia esperar por isso, como quando no
xadrez prevemos uma sucessão de jogadas do nosso adversário e
ficamos contentes quando ele move a peça exatamente do jeito
que imaginamos.

— Vou pedir que Sierra me busque para dormir na sua casa.

E mal deixou seus sapatos na entrada e já saiu novamente,


assim que concordei com a sua partida. Sem pedir desculpas ou
se explicar.

Também não fiz questão de perguntar. Precisava pensar, isolar


as emoções conflitantes e colocar a razão na frente, como fui
ensinado a fazer, mas agora parecia que eu nunca tivera essa
instrução, que na verdade não passava de um homem comum,
sofrendo, sem saber como lidar com o peso que a revelação de
Kim colocava sobre o nosso casamento.
Eu estava perdido na linha entre o real e o fictício. Preservando
o matrimônio como se ele fosse verdadeiro. No fundo, uma
vozinha irritante me dizia que era a coisa mais verídica que já tinha
vivido. Mas não dei atenção, me tranquei no escritório com uma
garrafa de vinho e todos os sentimentos de merda que Kimberly
deixara comigo.

Passei as mãos pelo rosto, esfregando uma pele na outra,


odiando estar nessa situação. Duas possibilidades disputavam
espaço para ver quem ditaria a minha decisão enquanto me servia
com mais uma taça de vinho e recordava que as nossas sextas-
feiras eram os meus dias preferidos.

Foi como assistir um filme dentro da minha própria cabeça.

Nós dois, sentados no tapete da sala, Bruno Mars cantando ao


fundo sobre o tintilar das nossas taças quando fizemos um brinde.
A risada contida de Kim ao me ouvir fazer alguma piada tosca e o
gosto da mistura de queijo e vinho da sua língua se mesclando ao
da minha quando nos beijávamos.

Uma lembrança tão palpável, tão vívida que a minha mente


conseguia reproduzir com exatidão, aguçando todos os meus
sentidos.

— INFERNO! — joguei a taça vazia na parede, sendo esse o


primeiro ato rebelde e impulsivo que fiz em muito tempo.

A sensação foi boa. Reduzir algo aos cacos. Tratar alguma


coisa da mesma forma que fizeram comigo a vida inteira: como um
objeto simplório. Uma coisa usada para uma atividade específica,
que se não fosse para isso, não teria outra utilidade.
Estava começando a ficar cansado disso. De sacrificar a minha
alma para ser tratado dessa forma.

Em um surto, escancarei a porta do escritório e segui para


outro portal que havia no corredor. Desci as escadas e acendi as
luzes do porão, observando o chão com vigas de madeira para
encontrar o que procurava.

Não vinha aqui frequentemente. Eu e Kimberly não éramos o


tipo de casal que tinha muita quinquilharia para ser guardada ali,
então o cômodo ficava quase desocupado.

Mas não era menos importante por causa disso, afinal,


embaixo daquelas vigas haviam todos os meus segredos.

Encontrado o ponto, pus os dedos no pequeno espaço que


tinha entre uma viga e outra e puxei os pedaços de madeira para
cima. Havia ainda uma tampa feita de aço que precisei usar da
minha força braçal para abrir. Feito isso, o buraco escuro e fundo
que tinha ali embaixo me saudou.

Sem um pingo de receio, pulei lá dentro, aterrissando não


muitos metros depois e tateei as paredes do cubículo para
encontrar o interruptor e acender a única luz.

Se tratava de um quarto do pânico subterrâneo.

Possuía 20 metros cúbicos, divididos entre um banheiro e um


espaço com uma pequena cama de solteiro. Além de monitores
para observar as imagens das câmeras internas da casa e
alimentos não perecíveis para o caso de eu precisar me trancar ali.
A caixa de madeira com todos os meus documentos
verdadeiros se encontrava escondida num compartimento dentro
da cama de metal.

Estava quase decidido sobre o que faria quando a peguei nas


mãos e tirei meu passaporte e identidade, mas um lampejo de
razão me acometeu.

Eu tinha trabalhado duro por todos esses anos, abdicando das


minhas próprias ambições, dos meus desejos, em prol do sucesso,
e agora pensava em jogar tudo para o alto por causa do ego
ferido.

Valeria a pena deixar o orgulho atrapalhar o meu sucesso na


missão?

Não sabia responder naquele momento.

Uma irritação dava as caras ao imaginar Kimberly beijando


outro homem.

Um vazio ameaçava me perseguir pelo resto da vida caso eu


fosse embora.

Seria ruim estar com ela e pior viver sem ela.

— PORRA! — chutei a madeira da caixa, cansado de não ter


mais controle sobre os meus sentimentos e ações.
O cansaço me venceu e acabei pegando no sono no sofá da
sala, prevendo que dormir na cama de casal sozinho só serviria
para intensificar a minha inquietação por sentir falta de Kimberly.

Acordei às seis da manhã do sábado, um pouco menos


confuso e com a mente mais sã. Não tinha o costume de fazer
uma refeição matutina então pular essa parte e ir para o banho
não foi uma novidade para o meu cérebro.

Conforme a água morna descia pelo meu corpo nu, dúvidas


serpenteavam a minha mente. Em minutos eu voltei a ficar tenso.

A verdade era que a preocupação não estava no fato de ela ter


beijado outro homem. Isso mexia com o meu sentimento de posse.
A possibilidade de Kim ter gostado foi a responsável pelo meu
colapso na noite anterior.

Tirando o ego da equação, restava a insegurança.

Não tinha dedicado dois anos para conquistá-la, fazê-la feliz,


para um homem qualquer tirar Kimberly de mim.

Foi com isso em mente que saí do chuveiro, determinado a


voltar para o jogo, usando todas as cartas a meu favor. Vesti uma
blusa de mangas e gola alta preta e um jeans escuro. Borrifei
perfume no pescoço e pulsos, penteei o cabelo e parti para a casa
de Sierra.
Capítulo 18

Brigar com ele era como tentar resolver uma palavra cruzada

E perceber que não há resposta certa

Me arrepender dele foi como desejar que nunca tivesse descoberto

Que o amor poderia ser forte assim

RED - Taylor Swift


Eu ia beijar Luke Dawson.

Realmente iria.

Se não fosse a minha consciência me impedir.

Você não é mau caráter como ele. — Minha mente alertou.

De fato, não era.

Mas talvez eu tivesse aprendido um pouco com ele a ser


dissimulada.

Uma fúria irracional me tomou quando imaginei que além de


mentir sobre quem realmente era, Brandon também poderia estar
escondendo uma relação com a tal Sasha Popova.

Não que me usar para roubar documentos do governo fosse


menos pior do que ter uma amante, os dois eram graves, me
envergonhavam.

Só que, durante todo o tempo em que ficamos juntos, eu nunca


me senti tão segura na vida, tão bem amparada e verdadeiramente
amada. Provavelmente esse era algum tipo de truque psicológico
que a SVR lhe ensinara, mas ele parecia leal e sincero sobre me
desejar.

Pelo sim ou pelo não, com uma certa ira pulsando por minhas
veias, eu fiz um pedido para Luke:
— Posso te beijar?

As íris castanhas dele foram engolidas pelas pálpebras que se


semicerraram.

— Que tipo de pedido é esse, Kimberly? Vingar uma traição


com outra não é uma boa solução para retomar o seu casamento.

Essa era a grande questão: eu não queria retomar e nem


terminar o meu casamento. Queria sentir algo além de angústia,
ódio e desejo pelo homem que me esperava em casa. Precisava
saber se o feitiço dele fora potente ao ponto de impedir que
nenhum outro fosse capaz de me despertar luxúria e prazer.

— Essa é uma decisão minha, Luke. Só eu sei como dói


pensar que talvez nunca seja capaz de encontrar alguém que me
toque e me beije como ele…

— Kimberly…

— Você me deve isso, Luke. Você e os outros me fizeram


acreditar que ninguém nunca iria querer fazer sexo comigo, quanto
mais me amar.

A consciência dele ficou abalada com as minhas acusações.

Eram verídicas, entretanto, um pouco injustas se colocadas


como uma chantagem dessas.

Eu sabia disso.

Mas estava farta de ver as pessoas agirem de má fé comigo,


enquanto eu continuava a seguir uma ética que só me levou a ser
mais enganada.

Luke observou meu rosto, aproximando uma mão e tocando a


mecha de cabelo escura que jaziam perto da minha bochecha.
Não estremeci nem ansiava que chegasse mais perto. Só fiquei
lá, esperando. E não desejando, como acontecia quando era
Brandon a colocar uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.

O espaço entre nós foi diminuindo gradativamente ao passo


que Luke se inclinava na minha direção.

O cheiro do cigarro ficou mais forte.

Meu coração não deu sinal de vida.

Meus pelos não se arrepiaram.

Me lembrou a primeira e única vez que fiz sexo com Joshua.

Estava no auge da autodepreciação. Me olhava no espelho e


pensava que um saco de lixo era mais atraente. E que um bueiro
era mais limpo que o meu canal vaginal.

Nunca ninguém havia despertado sentimentos bons em mim,


nenhum ligado à luxúria, pelo menos. Então não foi perceptível
naquela época que Joshua estava longe ser um alguém que
pudesse me fazer tal coisa.

Não tínhamos uma relação de irmãos. Tão pouco de amantes.

Eu propus que tirasse a minha virgindade porque não pensava


que merecia um homem melhor do que ele.

Um homem cheiroso, bonito, bem dotado e que me levasse à


loucura toda vez que me tocasse.

Quando nós não nos amamos, consequentemente não


sabemos o que realmente merecemos. E acabamos tornando o
oferecido em suficiente.

Por esse motivo desviei dos lábios de Luke quando estavam


prestes a tocar os meus. Me dei conta de que Brandon só
conseguiu me impressionar porque ele parecia ouro reluzindo em
meio ao desleixo de homem que imaginava ser o que eu merecia.
Ele não era isso tudo de verdade.

Seus olhos não faziam um contraste tão bonito assim com os


cabelos e barba escura.

A boca dele nem era tão boa em me satisfazer.

E além do mais, o membro dele possuía um tamanho normal.


Brandon sabia usar muito bem cada centímetro, mas havia
homens mais bem dotados por aí e que poderiam me preencher
ainda melhor.

Era isso.

O meu amor por ele fazia parte de uma ilusão.

Eu só precisaria cuidar da minha autoestima e me convencer


de que merecia um homem melhor do que ele.

— Se arrependeu? — Luke indagou, ao perceber a minha


rejeição.

— Não sou mau caráter como ele. Gostaria de ser, mas não
sou.

Aparentemente aliviado, Luke esclareceu:

— Não que eu ache ruim a ideia de beijar você, não pense


isso, Kimberly. Mas já fui traído, é desconfortável para mim
contribuir para o fim da sua relação dessa forma.

— Me desculpe por pedir isso. — Com as coisas um pouco


mais esclarecidas dentro da cabeça, virei o rosto e voltei a encarar
o cookie e o chocolate quente.

Meus neurônios trabalhavam freneticamente, pensando no que


eu faria para encontrar os documentos e desmascarar Brandon.
Acabando de vez com todo o teatro que fora o nosso casamento e
a vida a dois.
Havia colocado as câmeras em pontos estratégicos da casa
sem ainda ter um plano em mente, apenas convicta de que elas
seriam úteis.

Ao trazer minha atenção para si novamente, Luke terminou de


esclarecer algo que foi fundamental para que meus neurônios
desenrolassem uma jogada perspicaz:

— Se você tiver a pretensão de reatar seu casamento, seja lá


quais mentiras seu marido tenha lhe contado, dizer que o traiu não
vai fazer com que ele se arrependa ou passe a te ver como uma
mulher com quem não se brinca. O maior órgão do homem é o
ego, Kimberly. Quando somos traídos, ele se estilhaça. Não existe
humilhação maior do que sentir que perdemos nossa mulher para
outro. Já vi muitos homens ruírem devido a isso.

Se houvesse algum espelho por perto para que eu pudesse


olhar meu reflexo, teria certeza de que meus olhos estavam
brilhando.

Se havia um homem feito de ego da cabeça aos pés, era o


meu marido.

E se havia alguém que queria vê-lo ruir, esse alguém era eu.

Um xeque-mate perfeito, não?

Mais tarde, deitada na cama de casal do meu antigo quarto na


casa de Sierra, com o notebook em cima da barriga e bebendo
chocolate quente, eu tirava a prova do que meu ex colega do
ensino médio confidenciou a respeito dos homens.

Contrariando todas as minhas expectativas, Brandon parecia


transtornado.

A câmera que escondi no seu escritório registrou o momento


que ele jogou uma taça na parede e a viu se quebrar em vários
pedaços. O rosto contorcido em uma careta de dor, as mãos
passeando pelos cabelos e o peito subindo e descendo depressa.
Seu ego estava estilhaçado.

Meus lábios estavam puxados em um sorriso involuntário que


não durou muito. Logo uma insatisfação me tomou ao lembrar que
passei longe de atingir seu coração.

Esse, provavelmente, era feito de aço.

Duro e Impenetrável.

— INFERNO! — berrou, me assustando do outro lado da tela.


Ele saiu, esbaforido do escritório e eu me vi confusa sobre onde
teria ido, verificando todas as câmeras até encontrá-lo descendo
as escadas do porão.

Não imaginava que Brandon me levaria até o tesouro em tão


pouco tempo. Mas em minutos, levantou um fundo falso do piso e
abriu a passagem para o buraco do qual se jogou lá dentro sem
medo, desaparecendo do meu campo de visão.

Só podia ser ali onde guardava os documentos e os aparelhos.

Esperei, com aflição e expectativa, ele retornar acompanhado


do que eu queria. Até peguei o celular e disquei o número
confidencial de Mark Harrison, aguardando o instante em que
entregaria meu marido de bandeja para a CIA.

Mas ele simplesmente fechou a passagem e deixou o porão de


mãos vazias para beber mais uma taça de vinho e… Pegar no
sono no sofá!
Não me lembro de ter decidido dormir por espontânea vontade.
Fiquei horas observando Brandon se remexer de um lado para o
outro no estofado da sala, pensando que talvez pudesse decidir
acordar e ir embora como pareceu pensar em fazer antes.

Entre um ronco e outro dele, fui à cozinha e fiz o que nunca tive
o hábito de fazer: bebi uma xícara de café. Voltei para o quarto um
pouco menos solícita as tentativas das minhas pálpebras de se
fecharem por completo.

Mas em algum momento da noite a cafeína não foi mais pária


ao meu cansaço e o ruído da respiração aguda de Brandon se
parecia mais uma canção de ninar, que me embalou num sono
profundo.

Fui dormir com o ruído produzido pela respiração dele.

Acordei com o ruído produzido pelo punho dele batendo na


porta do quarto.

— Kim! — chamava, sem deixar de bater por um segundo


sequer.

Não pensei muito, pulei da cama em prontidão para abrir a


porta e atendê-lo.

Dormir sem ele por uma noite foi o suficiente para que eu
ficasse desacostumada com a sua aura sedutora.

Levei um choque carregado de volúpia ao me deparar com os


seus 1,80 metros de pura musculatura bem esculpida, vestindo
blusa de gola e jeans, o olhar de lobo faminto me encarando.

— Podia ter ligado. — Eu disse, saindo do transe.

Brandon ignorou, me olhando de cima a baixo. Desde os pés


descalços até o blusão masculino que usei para dormir.

— De quem é essa camisa?

Suspeitei que a resposta para essa pergunta era a única coisa


que o impedia de avançar porta adentro.

— De Joshua quando era adolescente. Era isso ou um dos


vestidos esquisitos de Sierra.

Foi sútil, mas eu estava tão atenta a cada gesto dele que
percebi o suspiro de alívio que soltou.

— Tire. — A ordem me pegou de surpresa. Não fora feita de


um jeito tênue como costumava ser quando pedia que eu fizesse
algo. Tinha o cuidado de não parecer mandão antes. Entretanto,
Brandon havia adotado uma postura diferente agora. Uma
inquisitiva. — Não quero conversar com você sobre uma traição
enquanto você usa a camisa do cara que tirou a sua virgindade.

Ele não se preocupou em tentar camuflar o misto de fúria e


sentimento de posse que sua expressão séria e ombros rígidos
denunciavam.

Brandon fulminava a minha vestimenta com os olhos.

Um lampejo de rebeldia tentou fazer a minha cabeça para que


eu usasse aquela oportunidade para enfrentá-lo.

Mas então recordei de que o meu afronta seria mais


meticuloso e satisfatório se tudo indicasse que eu ainda era
pacífica e casta.

— Só estou de calcinha por baixo.


— Não é como se eu não soubesse de cabeça cada ponto
onde seu corpo tem curvas.

Fingindo me dar por convencida, me afastei e fui até o


banheiro. Vesti a blusa de manga cor vinho que usara na noite
anterior para não deixar meus seios desnudos.

— Entre. — Pedi. Minhas pernas estavam à mostra e tomaram


a atenção de Brandon quando se colocou dentro do cômodo e
fechou a porta.

Não fez rodeios, joguinhos de mágoa ou acusações impulsivas.


Estava calmo e determinado quando foi direto ao ponto:

— Por que, Kim?

Também não me fiz de indecisa. Estava com um roteiro pronto,


bem calculado desde a noite anterior.

Podia não ser uma cínica nata, mas me esforcei ao máximo


para estar à altura do meu oponente.

— Eu queria saber se o problema estava em mim ou em você.

Pela forma como o peito dele relaxou, soube que meu tom
comedido lhe passou verdade.

— E o que descobriu?

Abaixei os olhos, simulando estar envergonhada do meu ato.

— Que nenhum outro homem nunca me fará sentir como eu


me sinto quando estou em seus braços. Que nenhum outro me
deixa confortável quando me beija como você faz. Que nenhum
outro toque me liberta de tudo de ruim que já senti na vida.

Xeque.

Você destrói o ego de um homem no dia anterior. E depois o


reconstrói com uma declaração meia-boca no dia seguinte!
— Kim — murmurou, rouco e confuso. Acabou com a pequena
distância que havia entre nós, me tomando com seus braços em
volta da minha cintura e dando impulso para que eu pudesse
enlaçar a sua com as pernas. — Ainda estou chateado. Podíamos
ter conversado… — Enfiando o rosto no vão entre meu ombro e
pescoço, aspirou o meu aroma com satisfação. — Preciso ser
sincero nesse momento. Estou com vontade de te trancar dentro
de casa e nunca mais deixá-la sair.

— Isso seria crime de cárcere privado. — Pontuei, também me


deliciando com o cheiro do seu perfume.

— Um mero detalhe — zombou. — Me sinto como se tivesse


regredido e agora fosse um homem das cavernas que precisa
mijar em volta de você para mostrar a todos que é minha.

— Brandon — passei as mãos pelo seu cabelo, pegando o


rosto dele entre elas. — Sinto muito. Não pensei no que estava
fazendo, apenas que precisava me livrar daquela confusão toda
que acontecia sempre que você queria avançar e eu te
decepcionava.

— Essa é a primeira vez que me decepciona, Kimberly.

O modo como seus olhos, cintilantes mesmo em meio à


penumbra, emanaram uma intensidade inédita para os meus,
quase me fez acreditar que estava realmente desapontado.

— Pode me perdoar, Brany? Nunca mais quero te chatear de


novo.

Apesar de não ter me considerado boa em atuação, a


atmosfera do quarto se assemelhava à de um estúdio de
gravações, onde eu e Brandon éramos atores renomados,
mergulhando nas profundidades dos conflitos de um casamento
em declínio.

Tão imersos que nos esquecíamos que aquilo era uma mera
encenação. Porque tudo parecia intenso e maior que qualquer
coisa que já sentimos antes.

Fui consumida por um amor avassalador.

Uma necessidade de que a resposta dele fosse positiva.

Como se eu realmente o amasse e quisesse o seu perdão.

E por mais absurdo que fosse, Brandon transpareceu me amar


e compreender ao responder:

— Se estou aqui agora é porque te perdoo, Kim.

Continuando a confundir quais sentimentos eram reais e quais


eram difusos, eu o puxei para mim e beijei seus lábios com vigor.

— Mas eu ainda quero te trancar dentro de casa e nunca mais


deixar ninguém do sexo masculino ficar perto de você. —
Confidenciou.

— Não seja bobo. Ai! — Fui jogada contra a cama


inesperadamente e tive meus tornozelos feitos de refém por
Brandon.

Ele me deixou em uma posição semelhante a de um frango de


padaria: com as pernas abertas e a intimidade escancarada.

— Vai ficar presa a mim em regime fechado — atrevido, meu


marido afastou minha calcinha para o lado e se ajoelhou em frente
ao colchão. — Mas com as pernas bem abertas e a bocetinha
molhada para me receber.

Tudo deixou de ser relevante no momento em que a respiração


dele soprou na minha virilha.

O nariz fez caminho por meus grandes lábios acima, roçando


os pelos finos e aparados que eu possuía nesta região. A língua
veio um pouco depois, fazendo o trajeto de trás para frente,
lambendo calidamente até se infiltrar entre meus pequenos lábios
e agradar o clitóris da mesma forma que um súdito fazia com o seu
rei: o rodeando e tratando de satisfazer cada uma das suas
vontades.

Brandon sabia exatamente quais eram as minhas, mesmo essa


sendo a segunda vez que recebia a oportunidade de me
abocanhar. Protegia os dentes com os próprios lábios e sugava
meu centro de prazer vagarosamente, puxando-o quase como se
fosse arrancá-lo de mim.

Eu o observei me comer usando a boca, olhando o rosto


enterrado no meio das minhas pernas com determinação. Tentava
não me perder no deleite, não gemer. Queria estar vendo o exato
momento em que ele vacilaria e deixaria transparecer algum sinal
de dissimulação.
— Vai gozar na minha língua hoje, Kim. Não me importa quanto
tempo vou ter que ficar aqui, mas vai. — Avisou, ao dar uma pausa
para puxar meu quadril mais para a beirada do colchão.
As orbes esmeraldas estavam cravadas nas minhas e exalando
uma luxúria nebulosa que tentou me cegar. Determinada, eu
tentava ver por entre as nuvens do prazer que Brandon
proporcionava as novas mentiras que estaria me fazendo acreditar.
Como um dispositivo limpador de parabrisa, eu piscava os olhos
toda vez que sentia vontade de me perder no prazer e não
prosseguir com a investigação árdua dos traços do rosto dele.
Ficamos assim, nos encarando, ele dando o seu melhor lá
embaixo, eu contendo gemidos e o examinando de cima.
Só enxergava desejo.
Puro. Volátil. Avassalador.
Minha pele fervia e meu corpo ondulava sobre o colchão
quando a língua passou a penetrar no canal vaginal. Estava dura e
forçava caminho pela carne enquanto Brandon espremia meu
clitóris com os dedos.
Foi demais para a minha força de vontade.
O orgasmo veio violento, drenando as minhas energias, me
fazendo ondular ainda mais sobre o colchão. Eu gemia
entredentes, me recusando a deixar transparecer que esse fora o
melhor que já me proporcionara até hoje.
— Fique quietinha aqui, quero beber até a última gota do seu
prazer. — Me manteve deitada na cama, com o braço prendendo
meu quadril no colchão e a outra mão esticando mais a minha
perna quando fiz menção de me levantar.
Eu estremecia à medida que Brandon lambia o exterior e
interior da minha vagina, realmente bebendo a minha excitação.
Me encontrava sensível depois de gozar. O clitóris desinchando
aos poucos e o coração batendo depressa dentro do peito. Tinha
palpitações sempre que chegava perto do meu centro de prazer ou
perto da fenda.
A verdade era que eu ainda o desejava.
Mesmo fazendo mal saber que aquilo tudo na verdade não
passava de uma grande mentira, eu o queria.
Almejar Brandon era como beber refrigerante.
Eu sabia que me faria mal a longo prazo, mas o sabor era
gostoso. Isso bastava para esquecer as consequências quando
provava o gosto do que era ser fodida com tanta volúpia
emanando daqueles olhos verdes arrebatadores.
Capítulo 19

Eu não tenho mais medo

Estou parada no olho da tempestade

Pronta para encarar, morrendo para provar esse

doce calor doentio

Eu não tenho mais medo

Eu quero o que você tem planejado

Not Afraid Anymore - Halsey


O dia amanheceu de forma tranquila na manhã seguinte.
Brandon dormia com a cabeça apoiada em meu peito.
Enquanto isso eu não conseguia pegar no sono novamente.
Acordei às cinco da manhã, pensativa e nostálgica.
Ontem ele havia me trazido para casa sob a promessa de que
nós nunca mais nos decepcionaríamos novamente.
Hoje eu acordei tramando como faria para desmascará-lo
efetivamente.
Me lembrei que amanhã seria o aniversário dele.
13 de novembro.
Brandon Lamont iria à ruína no dia em que fingia ter nascido.
Era irônico e satisfatório.
— O que houve, amor? Seu coração está batendo rápido. —
Me pegando de surpresa, ele acordou, levantando a cabeça até os
olhos estarem nivelados com os meus.
— É que… Me lembrei que seu aniversário é amanhã e não
preparei nenhuma surpresa. Só te deixei chateado.
Sorriu, os olhos levemente inchados e os lábios ressecados.
— Meu presente está bem aqui, embalado nessa calcinha
rendada branca. — Escorregou a mão para o meio das minhas
pernas. Estremeci sobre o seu toque.
— Mas ontem…
— Quero de novo. Você me privou de sentir o seu gosto por
dois anos. Vai me recompensar com juros.
Não fui capaz de contra-argumentar. Logo ele se deitou um
pouco abaixo do meu corpo e tomou o que eu tinha entre as
pernas para si. Chupando, mordiscando e lambendo.
Era embaraçoso a forma como o desejo de Brandon por mim
soava genuíno.
Eu o observava, embebida com o deleite e soltando gemidos
contidos como sempre tive o costume de fazer. Me senti estranha
com a vontade de gritar, fazê-lo ensurdecer com o som da sinfonia
composta de desejo e repúdio, mágoa e carinho, tudo o que
transbordava dentro de mim quando gozei desesperadamente em
sua língua.
Brandon depositou um beijo em meu púbis no fim, subindo até
o umbigo e depois dando um selinho na minha boca, levemente
entreaberta para que eu recuperasse o ar.
— Você me olhou nos olhos. — Afirmou, em cima de mim, se
sustentando pelos cotovelos que mantinha um de cada lado do
meu corpo. — Ontem também. Agora gosta de me olhar durante o
sexo? Antes preferia encarar o teto ou fechar os olhos.
— Sempre gostei de te admirar enquanto fazíamos amor, só
não tinha coragem de olhar nos seus olhos. Ficava com uma certa
vergonha, não sei dizer exatamente o porquê. — Fui verdadeira,
me permitindo relaxar na sua presença.
— Que bom que venceu mais um estigma. — Roçou a ponta
do seu nariz no meu. Um gesto brega, mas que eu amava quando
o fazia.

Geralmente, nos aniversários de Brandon, nós fazíamos uma


pequena festa para a minha família e os Foley. Esse ano,
entretanto, meu marido decidiu mudar um pouco as coisas.
Escolheu que comemorássemos no dia 13 de novembro
apenas nós dois em um restaurante e no domingo, dia 12,
fizéssemos uma festinha de última hora.
Ficamos desde cedo cuidando dos preparativos. Inventamos
uma decoração simplória e enquanto eu me encarregava de fazer
alguns salgados de forno, Brandon se encarregou de cuidar das
bebidas.
Estava indo para um depósito que ficava há uns bons
quilômetros da nossa casa e esperava estar de volta a tempo para
receber os convidados.
— Estou indo, amor. — Disse, com a chaves do carro em mãos
e saiu pela porta dos fundos da cozinha.
Assim que ouvi o barulho dos pneus arrastando no asfalto ficar
mais distante, larguei o pano de prato em cima do balcão e desci
para o porão, depois de dar uma olhada nos salgados que deixei
no forno.
Não foi difícil encontrar a abertura que Brandon fez no chão. A
dificuldade estava em levantar a tampa de aço que impedia a
minha passagem para o cômodo secreto.
— Aaaah — berrei, usando toda a força que tinha para erguer o
tampão que parecia tão pesado quanto chumbo.
Quando consegui, depois de muito esforço, enfim abrir a
passagem, me deparei com outro obstáculo: a falta de iluminação.
A luz do porão não fazia a menor diferença no ponto onde a
abertura se encontrava.
Não sabia se era seguro pular na cara e na coragem como ele
fizera, se jogando na escuridão do buraco secreto. Apenas que era
o necessário. E a necessidade de virar o jogo era tamanha que caí
de pé no covil, sem pensar muito nas consequências.
— Cadê você interruptor? — eu tateava as paredes geladas do
cômodo à procura dele. O encontrei após dar alguns passos ao sul
de onde despenquei.
Meus olhos sofreram com a luminosidade repentina, mas não
demoraram a se acostumarem à visão que tive.
Era basicamente um quarto do pânico, com monitores que
vigiavam todos os cômodos da casa e um armário com
suprimentos no outro canto.
Como não tinha tempo a perder, deixei a análise do ambiente
de lado e comecei a vasculhar todos os mínimos cantos. Por ser
pequeno e não possuir muitos móveis, foi relativamente simples
encontrar a caixa debaixo da cama com fundo falso.
Dentro dela encontrei o notebook, um celular e os documentos
verdadeiros do homem que eu pensei ter conhecido.
Sabia que não iria conseguir desbloqueá-lo, mas liguei o
computador e encarei a tela de bloqueio com dizeres em russo.
Era para esse aparelho que ele fazia o backup do que o
dispositivo NAGRA captava.
Se tratava de um cartão de escuta sofisticado que poderia ser
impresso no formato de cartão de crédito ou um crachá, nesse
caso.
O meu crachá de funcionária fora adulterado por Brandon e
usado para armazenar informações de todos os lugares onde eu
passava com ele junto a mim.
— Desgraçado! Você, o governo Americano, a CIA, a Rússia…
São todos desgraçados! — eu gritei, segurando a identidade dele.
Mal podia esperar chegar a noite seguinte. A necessidade de
desmascará-lo voltara a ser latente e uma coragem até então
desconhecida me fez sentir pronta para desapegar de tudo o que
vivi sendo a Senhora Lamont.

Dr. Foley, Joshua, Sierra e eu, estávamos em volta da mesa de


mogno, aguardando meu marido fazer o seu desejo de aniversário
e soprar as velas que o encaravam em cima da torta.
— Faça o seu pedido dentro da sua cabeça, tio Brany.
Ninguém pode saber o que deseja. — Millie, que estava ansiosa
nos braços de Brandon, disse.
Não pude me manter indiferente quando ele lançou um olhar
insinuativo para mim.
Era irritante não conseguir ser imune às declarações de amor
mentirosas.
— O que eu desejo não é segredo para ninguém, Millie. Quero
uma vida inteira ao lado da minha esposa.
Sem fazerem a menor ideia do quão dissimulado meu marido
era, os convidados o aplaudiram e ele, se sentindo esplendoroso,
enfim soprou as malditas velas.
Em um momento, eu o odiava, sentia vontade de vê-lo
apodrecer dentro de uma cela pelo resto da vida. E no outro,
quando palavras bonitas saiam dos seus lábios, sentia esperança.
De que talvez ele pudesse realmente me amar, de que cada “amo
você" não fosse da boca para fora.
Eu já havia me perdido em vários olhares maldosos,
camuflados por orbes castanhas, azuis e até mesmo esverdeadas.
Mas encontrei nos olhos verde esmeralda cada pedaço meu que
se foi junto com as pessoas mal intencionadas que cruzaram
comigo ao longo da vida. Era como se Brandon os tivesse
recolhido pelo caminho e esperado o momento certo para me
devolvê-los.
Ele me fez acreditar que todos estavam errados, transformou
as minhas inseguranças em poeira, preencheu o espaço generoso
que havia dentro do meu coração. Disfarçado de príncipe
encantado, Brandon se mostrou ser o pior tipo de monstro: o que
te despedaça sem que você perceba. Que te cega com o seu olhar
hipnotizante e suga tudo o que lhe interessa.
As histórias de princesas nos ensinaram a nos preocupar com
homens de feições antipáticas e atitudes grosseiras. Porque os
vilões sempre tinham uma aparência ruim. Elas não nos
mostraram o quanto eles podiam se tornar muito mais perigosos
ao se esconderem por trás de sorrisos fáceis e gentilezas
exageradas.
Alexei Vassiliev era um vilão disfarçado de mocinho.
Um homem frio e implacável se escondendo atrás da faceta de
apaixonado e leal.
Eu deveria tê-lo afastado, deixado que saísse da minha vida
enquanto era tempo. Se isso tivesse acontecido, agora a culpa e a
decepção não seriam minhas melhores amigas. O desgosto e a ira
não me perseguiriam em cada momento do meu dia.
Eu continuaria sendo infeliz se não tivesse conhecido Brandon,
mas ao menos ainda teria um coração inteiro e não teria que lidar
com a dor da perda e da ilusão.
— Não vai comer, amor? — ele questionou, me abraçando por
trás enquanto eu observava o jardim da nossa casa pela janela da
sala.
— Agora não, estou sem fome.
— Está ansiosa para voltarmos ao Bistrô Aracosia depois de
dois anos? Vai ser incrível relembrar nosso primeiro encontro.
— Estou, amor. — As palavras arranharam minha garganta
para sair, levando consigo um toque de ironia que felizmente só eu
entenderia. Observando nosso reflexo pelo vidro da janela,
prossegui: — Amanhã será um dia incrível. Prometo que você
nunca mais vai se esquecer da surpresa que te farei.
Brandon franziu a testa, somente agora desconfiando do meu
tom falsamente entusiasmado.
— O que vai aprontar, Kim?
— Vou te mostrar que não é só você que sabe surpreender.
Capítulo 20

Eu nunca sacrificarei meu amor, nem mesmo por você

Você sabe que eu não jogo limpo

Às vezes você tem que quebrar as regras

Podemos chamar isso de amor, ou chamar isso de nada

Mas você tem o que eu quero, então baby, me dê algo

Sacrifice - Black Atlas feat. Jessie Reyez


Segundas-feiras eram, sem sombra de dúvidas, o dia da
semana que eu menos gostava.

Na segunda do dia 13 de novembro, entretanto, eu passei pela


porta, depois de regressar do trabalho, sabendo que essa seria
uma exceção.

Era o aniversário de Brandon Lamont.

Deixei meu casaco e a bolsa pendurados no cabideiro atrás da


porta e segui andando pelo corredor com tranquilidade. Os porta-
retratos que ficavam expostos no aparador da sala me deram
boas-vindas.

Kim se orgulhava de mim e do nosso casamento. Fazia


questão de espalhar fotografias nossas em todas as partes da
casa.

Na sala havia registros da nossa lua de mel no México e de


passeios turísticos que fizemos em Washington um pouco depois
de começarmos a namorar.

Esperando encontrá-la, andei até a cozinha com expectativa,


mas o cômodo estava vazio.

De manhã, quando tomamos café juntos e ela me parabenizou,


prometeu que eu teria uma surpresa antes de sairmos para jantar.
Estranhei, pois Kim nunca fora disso, de tentar surpreender, no
entanto, concordei e prometi que estaria de volta antes das cinco.
Aparentemente foi ela quem não cumpriu com a sua promessa.

Tirei o telefone do bolso e disquei o número dela, evitando ficar


aflito com o seu sumiço. Talvez tivesse saído para buscar a tal
surpresa. Em momentos como esse eu lamentava o fato de ela
não gostar de dirigir. Seria mais fácil rastrear o GPS de um
automóvel do que a localização de um celular.

A aflição se concretizou quando pude ouvir o toque do


smartphone dela soando não muito longe de onde eu estava.

Sem desligar a chamada, me movi na direção do ruído e senti


um baque na ponta do estômago ao constatar que vinha do meu
escritório.

Não podia ser…

O cômodo ficava trancado e somente eu tinha a chave…

Corri para o corredor novamente, abri a bolsa e só então notei


que não a tinha mais.

Aquilo fazia parte da surpresa?

Torci para que sim.

Forcei a maçaneta e descobri que a porta se encontrava


destrancada esse tempo todo.

— Kim? — chamei, ainda sem estar totalmente dentro do


ambiente. Ao escancarar a porta, pude perceber que apenas a luz
do meu abajur estava acesa e era ela quem iluminava a expressão
impassível da minha esposa, sentada na minha cadeira de couro
atrás da mesa.

— Olá, amor. Entre e feche a porta, por gentileza. — Algo no


tom dela parecia mórbido. Sem saber ao certo o que estaria
acontecendo, acendi a luz do escritório e fiz o que pediu. Andei na
sua direção. — Sente aqui. — Acenou para a cadeira de frente
para a mesa, que eu mantinha somente por capricho, já que
nenhuma outra pessoa entrava ali.

— Que tipo de surpresa é essa, amor? — indaguei, sentado


onde pedira e em alerta com o comportamento esquisito dela.

Os ombros de Kimberly não estavam caídos como costumavam


estar. A postura se mantinha ereta, fazendo-a aparentar ter
imponência.

Há dias eu vinha notando uma mudança sutil no


comportamento dela. Cada vez mais distante emocionalmente,
também tinha modificado a forma de falar e agir, ficando mais
mecânica na hora de interagir comigo.

Deixei passar esses sinais, crendo que estava a par de


qualquer possível complicação. Que os verdadeiros problemas
haviam sido resolvidos e daqui para frente voltaríamos a ser o
casal feliz e sólido que um dia fomos.

Bastou Kim colocar sobre a mesa a caixa de madeira para me


dar conta de que certos acontecimentos dividem um
relacionamento em antes e depois.

Os itens que eu escondi ao longo desses dois anos seriam os


divisores de águas do nosso casamento se ela entendesse do que
realmente se tratavam.

— Eu posso…

— Explicar? — me interrompeu, começando a ficar alterada. A


voz subiu dois tons e os olhos ferveram de irritação. — Não vamos
estender o seu show dessa forma. Dois anos não foram o
suficiente? — antes que eu reagisse, Kim levantou o seu celular,
onde o número de um contato chamado Mark Harrison brilhava na
tela. — Respire fora do compasso e eu ligo para o diretor da CIA e
mando ele invadir essa casa agora mesmo!

— Tudo bem, Kim. Vamos conversar. — Propus, na tentativa de


ganhar tempo. Não sabia qual era a dimensão do conhecimento
dela e das medidas que tomara, precisava ser cauteloso se
quisesse conseguir chegar ao local de extração e sair dos Estados
Unidos depressa. — Imagino que esteja se sen…

— Você não faz a menor ideia de como estou me sentindo,


Alexei. A SVR pode ter te ensinado a ler as pessoas, mas o tipo de
coisa que se passa na cabeça de uma mulher que foi enganada é
imprevisível. — Sem desviar os olhos dos meus, ergueu uma
garrafa de vodka do chão e a colocou sobre a mesa. — Quer
beber um pouco? Está sentindo saudades de tomar álcool puro?
Fiquei sabendo que vocês russos gostam de uma vodka!

Não havia vestígios da mulher doce e cativa com quem me


casei. Ela estava transtornada, com um olhar sanguinário e o
comportamento de uma psicopata. Segurava o telefone como se
fosse uma arma, respirava pesadamente e engolia em seco de
segundo em segundo.

Só nesse instante foi que tive a real consciência da dimensão


do que fiz com a vida dela.

Quando se nasce em um meio onde a manipulação e a mentira


são pilares do sucesso, nós nos esquecemos de que eles são
venenosos e letais para uma vida inocente, que cruzou o nosso
caminho por acaso.

— Você disse que eu era a sua rainha — com a voz


embargada, Kim prosseguiu desabafando: — Mas a verdade é que
sou apenas um mero peão no seu ardiloso jogo de poder, não é?

— Sim. — Fui sincero. Se queria o fim dos tempos de mentira,


deveria aguentar o peso da verdade.

O que aconteceu, no entanto, foi que Kimberly esperava


relutância da minha parte. Esperava que eu contornasse a
situação e a manipulasse.

Não faria isso.

Estava quase tão cansado de toda essa merda quanto ela.


Me certifiquei de fazer Kim me amar ao ponto de abandonar
qualquer senso. Fiz com que o seu amor fosse imune a lógica.
Justamente para me certificar de que quando esse dia chegasse
— porque eu tinha a consciência de que podia acontecer — ela
sacrificasse a razão por mim.
Eu falhei.
Os olhos dela eram escuros, mas se tornaram transparentes
para mim. Aprendi a lê-los, a interpretar o que cada olhar dela
significa. E esse olhar… Eu nunca o tinha visto. Não nos olhos da
minha esposa. As orbes cor de chocolate estavam nubladas,
permitindo que eu tivesse apenas um vislumbre do mar profundo
de decepção que Kimberly direcionava a mim.
— Como se sente, sabendo que destruiu as chances de que eu
confie em alguém novamente? Como se sente, sabendo que só
contribuiu para afirmar o que eu já achava antes: que se alguém
me amar e desejar, é porque está mentindo?
Lágrimas começaram a rolar bochechas abaixo de Kimberly.
Senti uma pontada de pena se sobressaindo a razão.
Mas os dois anos que passei ao lado dela, sentindo e sendo
feliz, não eram nada se comparados aos outros trinta e cinco anos,
manipulando e mentindo.
Estava enraizado no meu âmago o hábito de fingir, dissimular.
Não se foge de um costume a menos que se queira muito. E eu
não sabia se queria jogar tudo para o alto por ela.
— Me sinto culpado, não arrependido.
Minha frieza a desestabilizou. Foi como se as palavras que
saíram da minha boca atingissem uma ferida aberta e ela fosse
pega de surpresa.
Aproveitando a oportunidade, peguei impulso no apoio da
cadeira e me joguei sobre a mesa, fazendo a caixa cair no chão, e
com um movimento brusco, tirei o celular da mão de Kimberly, a
pegando desprevenida.
O aparelho também caiu no chão. Um pouco distante da caixa
e perto da porta.
— SOCORRO! — ela gritou quando eu estava prestes a
imobilizá-la. Calei sua boca com uma mão e usando a outra,
contive seus pulsos.
— Calada! — olhei ao redor, querendo encontrar alguma coisa
que me fosse útil para prendê-la na cadeira. Precisei livrar a mão
que a mantinha quieta para abrir a gaveta da mesa e pegar a fita
isolante que eu guardava ali.
— O que vai fazer comigo? — Comecei a enrolar a fita,
amarrando um de seus pulsos na cadeira. Minha perna estava
posicionada no meio das pernas dela. Se Kim quisesse escapar,
teria de lutar contra todo o meu tamanho, literalmente saindo dali
apenas por cima do meu cadáver.
Ela não se rebelou, entretanto. Acredito que por medo, tenha
ficado quieta enquanto eu terminava de amarrá-la.
— Não quero ter que te machucar, Kim. Então colabore. —
Minha esposa não precisava saber, mas eu não tinha a menor
pretensão de tocar nela para ferí-la. Preferia enfiar uma faca no
meu próprio peito à lesioná-la.
— Você poderia ter pensado nisso antes de entrar na minha
vida. — Ignorei a sua fala, terminando de reforçar a amarração dos
braços dela no apoio da cadeira. Inconformada, Kim continuou: —
Como conseguiu? Me beijar, fazer sexo comigo, dormir ao meu
lado? Sua vida era tão merda ao ponto de não ver problema em se
submeter a esse tipo de coisa?
Dessa vez, foi ela quem tocou em uma ferida aberta minha.
Me afastei, ficando de pé, frente a ela, sentada, encolhida, mas
ao mesmo tempo sustentando o meu olhar.
— Não tive nojo de você, se é o que está insinuando. Gostei
verdadeiramente de todas as vezes que estive dentro de você. —
Kimberly arregalou os olhos. Não soube dizer o que me deu,
somente que não poderia deixá-la pensar que não despertara o
meu desejo como eu demonstrei que fizera. Coloquei as mãos no
apoio e me curvei até estar com o rosto nivelado ao dela. — Fiz
com prazer e continuaria fazendo pelo resto da vida, se quer
saber.
— Desgraçado! Eu te odeio! — as lágrimas voltaram a descer
dos seus olhos.
— Troque o disco, Kim. Posso ter te enganado sobre algumas
coisas, mas quase tudo o que vivemos foi real. — Delicadamente,
tirei uma mecha de cabelo da sua testa. — Não se pode forjar uma
química como a nossa. É o tipo de coisa difícil de se encontrar.
Então me diga: você quer viver sem isso?
Meus músculos ficaram tensos.
Essa resposta definiria o rumo de tudo.
— Se pensa que estou disposta a continuar com você em troca
da sua companhia de merda, está enganado ao meu respeito. —
Cuspiu bem no centro do meu rosto com ímpeto. — Prefiro morrer
sozinha do que ter um homem miserável de afeto como você!
Me afastei e limpei a saliva do rosto.
Meu ego já não existia mais depois da suposta traição, nesse
instante Kimberly atingira uma parte de mim que nem eu mesmo
soube identificar de imediato.
Pela primeira vez, senti vergonha de quem eu era.
— E o que pretende fazer? Me entregar para a CIA?
Quebrada e lutando para me encarar sem desmoronar, Kim
revelou:
— Vou te entregar de bandeja para o Diretor de Operações da
CIA. Ele tem planos para você.
Eu sabia bem que tipo de planos seriam aqueles.
Por ser filho de um mandachuva da SVR, eu era uma moeda
de troca muito valiosa. Poderiam negociar três ou quatro espiões
americanos em troca do meu regresso em liberdade à Rússia.
Nunca mais poderia pisar nos Estados Unidos ou poderia ser
visto perto das fronteiras do país.
A ideia de ser obrigado a ficar tão longe dessa casa e da vida
que construí nos últimos anos me desestabilizou.
— E como planeja fazer isso, se está amarrada?
Olhou para o relógio de ponteiro que havia em uma das
paredes do escritório e depois voltou a me olhar com um sorriso
quase escapando dos seus lábios.
— Você vai ver.
— Eles estão vindo? — não quis responder. Se manteve
calada, os olhos fixados na porta atrás de mim. — Diga, Kimberly!
— Espero que seu pai não te ache tão importante e te deixe
mofar na cadeia, como a sua mãe.
Fiquei sem reação, apenas encarei a mulher amarrada à
cadeira, como se ela fosse uma aberração por me desejar algo
assim.
Na verdade eu tinha certeza de que Kimberly não queria
realmente aquilo para mim. Acreditava que me queria longe, mas
não nas piores condições.
Peguei o grampeador de dentro da gaveta e o coloquei com a
parte de cima sobre uma das coxas dela, pressionando o objeto
para que pensasse que eu não estava blefando.
— Me diga exatamente qual o sinal que eles estão esperando.
— Você disse que não ia me machucar! — chorou mais forte,
voltando a ficar amedrontada. Minha consciência pesou, no
entanto, escolhi prosseguir com a falsa ameaça.
Razão e emoção eram como água e eletricidade: nunca
deveriam se misturar.
— Mentirosos também têm o direito de mudar de ideia. Agora
diga, Kimberly.
Uma última olhada para o relógio e outra para o objeto
perfurante pressionando sua carne e ela confessou:
— Você tem dois minutos para dar um jeito de fugir até eles
invadirem.
— Porra! — joguei o grampeador no chão e passei as mãos
pelo cabelo, a cabeça fervilhando.
Tinha pouco tempo, independente do que fosse decidir fazer,
precisava dos meus pertences comigo.
— Você pode tentar fazer um acordo. Se entregue, Alexei. Será
alvejado se tentar reagir. — Enquanto eu pegava a caixa do chão e
transferia os objetos dela para uma bolsa que guardava no armário
do escritório, Kimberly tentou me convencer. Expressava pavor
com a possibilidade de eu perder a vida diante dos seus olhos.
Virei o rosto na direção dela.
Sua face estava inchada de tanto chorar. Os cabelos pretos
ondulados jaziam bagunçados até um pouco abaixo dos ombros. E
a boca fina, mas gostosa, me implorava por um último contato.
Com a bolsa atravessada no corpo, me permiti ficar mais
próximo dela, pegando seu rosto entre as mãos e beijando seus
lábios.
Resvalei a minha boca na dela com vontade, querendo
memorizar a sensação.
Dois minutos não eram suficientes.
Dois anos não foram suficientes.
Eu precisaria de muito mais para me acostumar com o gosto
único e o corpo magnético dela.
— Você não merecia isso, Kim. Não pense que a culpa foi sua
ou que não é merecedora de coisas boas. O problema está em
mim. — Lágrimas e mais lágrimas escorriam sem parar dos olhos
dela, que mesmo em meio a ira, transparecia a dor visceral da
despedida. — De onde eu venho, a piedade é considerada uma
falha. E falhas são consideradas inadmissíveis.
Mais um selinho dado e então eu saí pela porta do escritório.
Os gritos de Kimberly soavam como sussurros de desespero à
medida que eu me distanciava.
A cada passo dado, o aperto no meu peito ameaçava me
sufocar caso eu me mantivesse longe dela.
Capítulo 21

Mas quando você saiu por aquela porta


Um pedaço de mim morreu
Eu disse que queria mais
Mas não era isso que eu tinha em mente
Eu só quero que seja como antes
Nós dois dançando a noite toda
Então, eles levaram você embora
Roubaram você da minha vida
Blue Jeans - Lana Del Rey
Eu gritava, ensandecida, apavorada e quebrada, clamando
para que Brandon voltasse, se rendesse, não resistisse.

Chorava desesperadamente, os braços atados à cadeira. A


cabeça latejando e a garganta doendo.

Quando abriram a porta da casa e ouvi passos se dissipando


pelos primeiros cômodos, pensei que aquele sim seria o fim. Tinha
medo do que poderiam fazer com ele. Homens de terno poderiam
ser muito covardes, principalmente os que trabalhavam para o
governo.

Não deveria ajudá-lo. Se ele estava nessa situação, foi porque


eu o coloquei. Mas agora não parecia certo. A consciência estava
pesada, a dor aguda da solidão retornou a fazer parte do meu
corpo, somada a angústia, tudo doía, ardia, chamava por Brandon.

Ele sempre seria Brandon para mim.

Minha cabeça estava tão confusa, que senti uma necessidade


de ganhar tempo, joguei a garrafa de vodka que tinha em cima da
mesa no chão. O estrondo chamou a atenção dos homens, que
abriram a porta, entrando um a um, armados e vestidos à paisana,
varrendo o cômodo com o olhar e me encontrando.

Eu ainda chorava quando Mark Harrison disse:

— O que eu mandei você fazer, garota? Por que tinha que dar
uma de insolente e foder com tudo?

Não respondi.

Ninguém ali compreenderia a dor que eu sentia. De perda


misturada com remorso. Era intenso demais, irracional e
distorcido. Poderia ser o efeito da manipulação dele, mas a minha
cabeça me recriminava pelo que eu fiz.

— Limpo, senhor. — Um quarto homem disse, se unindo aos


outros três que dividiam a sala comigo e não se davam o trabalho
de me libertar.
Um deles era Jayden Miller.

Sua cabeça estava baixa, o olhar vagava pelo chão, em busca


de algo que fui incapaz de decifrar. Quando enfim olhou para mim,
eu vi o sentimento de pena transbordando das orbes castanhas
escuras.

— Para onde ele foi? — indagou, compenetrado.

— Eu não sei…ele fechou a porta e… Se foi.

O Diretor de Operações da CIA estava com o rosto vermelho,


tamanha a raiva que sentia. Segurava a arma com força, deixando
os nós dos dedos brancos.

— Varram todo o perímetro em volta da casa e achem esse


filho da puta! — Mark mandou, falando no rádio que tirou do bolso.
Se virou para os homens que lhe acompanharam na invasão, e
ordenou: — O’Brien e Newman, chequem os próximos voos
internacionais e procurem por possíveis passaportes falsos de
Alexei.

Quando os agentes se foram, Mark veio até mim e depois de


observar a mesa e o chão a minha volta, questionou:

— Ele levou os documentos e o computador, não foi?

Assenti positivamente.

— Me diga, Kimberly: para que porra você serviu? — bradou,


com as mãos no apoio da cadeira, que tremeu quando a balançou,
me assustando. — Não passa de uma mulherzinha mal-amada
que quis brincar de vingança e o tiro saiu pela culatra!

— Ela já entendeu que errou, Diretor. — Jayden interferiu,


saindo em minha defesa, sensibilizado.

— Será que entendeu mesmo? Quando chegamos estava


chorando por ele, se esquecendo de tudo o que lhe fez. Esse
desgraçado deve ter um pau dos deuses para as mulheres ficarem
tão rendidas dessa forma…

— Chega, Diretor Harrison. Me deixe conversar com ela


enquanto o senhor acompanha as buscas.

— Boa sorte, Miller. Só cuidado para ela não se apaixonar por


você nesse tempo. — Depois de me lançar um olhar de desdém,
Mark deixou a sala a contragosto.

Me sentia mais humilhada do que nunca. Meu corpo parecia


pesar toneladas e a garganta ter tido o seu interior rasgado com
um estilete, tamanha a dificuldade de engolir minha própria saliva.

— Sinto muito, Kimberly, mas o que fez terá consequências. —


Ficando apoiado nos tornozelos, Jayden se abaixou e tornou a
retirar a fita que imobilizava o meu braço esquerdo.

— Um coração dilacerado e uma vida infeliz já não são


consequências suficientes?

— Se Alexei não for encontrado nas próximas setenta e duas


horas, você será acusada de trair o nosso país. Isso vai acabar
com a sua carreira e te dar quinze anos de prisão. — Tomou
cuidado ao descolar o pedaço de fita que estava fixado na minha
pele, segurando meu braço no lugar e puxando devagar para não
arrancar meus pelos. A sua delicadeza me acalentou de certa
forma.

— Eu sou uma mera secretária. Nunca tive uma carreira,


apenas diplomas e certificados.

Se colocando do meu lado direito, ele repetiu o procedimento


que fez no esquerdo. Sempre delicado e sensitivo, dividindo a
atenção entre o meu rosto e braço.

— Você é muito inteligente, teria um futuro brilhante pela frente


se não fosse tão autodepreciativa.
— É isso que está escrito no dossiê que a CIA e a SVR têm de
mim?

Jayden riu de leve, me possibilitando ter um vislumbre dos seus


dentes brancos e perfeitamente enfileirados pela primeira vez.

— Não, é só a opinião de um homem que já conheceu várias


mulheres com menos da metade da sua beleza e conhecimento,
mas que se amavam e se valorizam muito mais do que você.

Teria doído ouvir tal declaração se eu já não estivesse dolorida


demais para sentir qualquer outra coisa.

— Prometo trabalhar a minha autoestima quando for para a


cadeia. — Tornei a debochar, anestesiada e livre da fita isolante.
Mas permaneci sentada. E Jayden permaneceu agachado, os
olhos me encarando com afinco. — O uniforme laranja pode ajudar
a destacar a minha beleza.

Riu fraco de novo, se levantando. Usava um terno de cor bege


e ajeitou a calça ao ficar de pé, sem deixar de fazer contato visual.

— Eu ligo para a sua mãe ou para o seu irmão vir te buscar?


Vamos dar uma olhada pela casa e talvez amanhã você possa
retornar.

— Me dê meu celular. Vou ligar para o meu cunhado.


O quarto de hóspedes da casa de Megan estava escuro e
silencioso.

Eram nove da noite e eu fitava o teto, as mãos juntas em cima


da barriga e os pés colados, quase na mesma posição que a de
um morto dentro do caixão.

Estava de luto.

Por mais que o casamento tenha sido uma farsa, não poderia
esquecer que foram os anos mais felizes da minha vida. Várias
vezes julguei ser a melhor coisa que fiz: dizer sim a Brandon.

Ainda parecia assim. Mesmo em meio às mentiras e


manipulações, as memórias de nós dois juntos eram
tranquilizadoras. Como um remédio tóxico para nossas células,
mas que ameniza os sintomas e nos deixam melhor.

Separar Brandon de Alexei era um erro.

Eu tinha consciência disso.

Eram o mesmo homem. Um camuflado por outro.

Brandon Lamont era quente.

Alexei Vassiliev era frio.

Meu marido era terno e empático.

O espião russo era calculista e implacável.

Ambos cínicos e desgraçados.

Queria saber como ele se sentia naquele momento. Estaria


arrependido? Insatisfeito com a ruína dos seus planos? Com pena
de mim? Com ódio de mim?

As incertezas me maltratavam. Odiava pensar que ainda o


amava, e ao mesmo tempo tentava ter empatia comigo mesma.
Não conseguiria esquecê-lo do dia para a noite.
Dividimos uma vida. Tínhamos um presente bem definido e um
futuro que sonhávamos juntos. O guarda-roupa, a cama, o
banheiro e a minha mente iriam demorar para entender que
Brandon não partilharia mais nada comigo. Que depois de dois
anos, nossa vida seria fragmentada e cada um teria um rumo
diferente.

O lado bom de estar sempre sozinha era que não havia


inconstâncias. Eu acordava e sabia que o risco de perder algo era
ínfimo. Afinal, só perdia quem tinha algo a perder.

Quando nos relacionamos com alguém, por mais sólida e


confiável que seja a relação, o risco de ela se deteriorar sempre
existirá.

Em um dia, seu marido diz que deseja passar o resto da vida


ao seu lado.

E no outro ele pode acordar e decidir que não te ama mais.

É uma consequência de sermos humanos e estarmos em


constante mudança.

Cabe a nós, amá-los e sermos amados enquanto pudermos.


De janeiro a janeiro, de inverno a inverno, e até o último dia da sua
vida, se tiver sorte.

Quando conheci Brandon, achei que o amor fosse questão de


sorte.

Não pensava muito na possibilidade do amor acabar ou de


segredos nos separarem. Foi natural incluí-lo no meu futuro. Por
isso, imaginar uma vida sem ele doía tanto.

Achava que a sorte havia me encontrado e que ela me


perseguiria sem que eu precisasse me preocupar.

Quando um feixe de luz iluminou parcialmente o quarto, não


precisei mover o rosto para saber que Megan entrara e caminhava
a passos lentos até a cama e se deitava ao meu lado.

Ela ainda enfrentava o período pós-cesárea e mesmo em meio


a loucura da sua rotina com um bebê recém-nascido, minha irmã
não se negou a me oferecer apoio e um quarto para dormir quando
liguei na noite anterior dizendo que briguei com Brandon e
precisava sair de casa.

— Calvin trará algo para comermos daqui a pouco.

Apenas assenti e permaneci imóvel no colchão.

Meg percebeu o quanto eu era reservada e não me fez


perguntas sobre a briga. Mas era nítida a vontade dela de saber
mais, ajudar. Enquanto me mantive calada, ela exerceu a função
de irmã mais velha acolhedora da melhor maneira possível e isso
me fez sentir que talvez pudesse me mostrar uma forma de
superar, caso eu lhe contasse superficialmente o que aconteceu.

— Brandon mentiu para mim. — Confessei, sem mais nem


menos, ansiosa para ver a reação dela.

Megan não expressou abalo emocional ou surpresa com a


revelação. Se eu tivesse contado que o Travis Scott e a Kylie
Jenner tinham se separado, talvez a sua reação fosse de espanto.

— Você está pensando se deve perdoá-lo?

— Eu não posso perdoá-lo! — deixei de fora também o fato de


que ele não queria o meu perdão. Aquela altura já devia estar na
Rússia, levando sermão dos seus superiores e decidido a me
odiar.

— Quem te disse isso?

Perplexa, virei a cabeça e observei o rosto dela de perto para


ter certeza de que não estava sendo irônica.

Não estava.
Parecia certa do que diria a seguir:

— Só você pode decidir isso, Kim. Só você sabe o impacto que


a mentira teve na sua vida e no seu casamento.

— Você é uma dessas pessoas que suporta de tudo por que


acredita que não deve se divorciar a qualquer preço?

Olhou-me séria e intensamente como ainda não tinha feito.

— Não, não foi isso que eu quis dizer.

— Calvin já mentiu para você?

Uma risada fraca, sem humor algum, antecedeu a sua


resposta:

— Houve um tempo em que ele mentiu tanto para mim que


pensei que ficaria louca. Não dormia bem, ficava insegura sobre
absolutamente tudo e por causa disso adquiri ansiedade.

Fiquei tão indignada com a revelação, que apoiei o peso do


corpo no cotovelo e observei Megan com assombro.

— E por que diabos você se casou com ele, Megan Christina?

— Isso tudo aconteceu no ensino médio. Começamos a


namorar cedo e Calvin era um garoto problemático. Gostava de
fumar maconha, dirigir bêbado e transar com mais de uma mulher
por vez… E eu? Bom, eu achava que podia salvá-lo, que com
amor e carinho, ele aprenderia a me valorizar e seria um homem
melhor.

— Isso não aconteceu, não é?

— No último ano do colégio, ele conseguiu comprar um carro


novo e me convidou para estreá-lo. Não senti cheiro ou gosto de
álcool vindo da sua boca então pensei: tudo bem, vamos fazer
isso, vai ser divertido! — ela riu novamente, zombando da própria
ingenuidade. — Ele tinha fumado maconha e bateu com o carro
em uma árvore em menos de dez minutos dirigindo. Não foi um
acidente feio, mas foi apavorante o suficiente para me abrir os
olhos sobre como Calvin me fazia mal.

— Vocês romperam depois disso?

— Eu terminei tudo assim que saímos do hospital. Papai


ameaçou atirar em Calvin com a sua espingarda se ele chegasse
perto de mim. Isso o manteve longe por uns bons meses. —
Nostálgica, ela começou a sorrir ao chegar nessa parte da história,
me deixando confusa. — Essa foi a melhor e pior fase da minha
vida ao mesmo tempo, Kim. Foi no limbo da tristeza que eu
aprendi a me olhar com mais carinho, a entender que se eu
quisesse ser feliz, deveria escolher bem o tipo de batalha pela qual
queria lutar. E também que o amor, por si só, não muda ninguém.

— Ainda assim, a mudança não apaga o que ele te fez passar,


Meg.

Ela voltou a encarar meu rosto, menos tensa.

— Não se engane, Kim. Calvin é o amor da minha vida, mas


ele também é a pessoa que mais me decepcionou na vida. Nunca
me esquecerei disso.

— Isso está me deixando confusa. Como ele conseguiu te


convencer dessa forma? E se, na realidade, tudo o que Calvin fez
foi te contar mais uma mentira?

— No fim daquele verão em que ficamos separados, eu ainda o


amava, mas havia aprendido a valorizar mais as atitudes do que
as palavras. Quando me abordou, no estacionamento da
faculdade, se escondendo para que ninguém o visse e contasse
ao meu pai, ele implorou pelo meu perdão, pediu para reatar o
nosso namoro e prometeu que nunca mais mentiria.

Bufei, levemente irritada com o rumo daquilo.

— Foi assim que você aprendeu a arte do perdão? — zombei.


— Não. Eu o desculpei por me magoar, mas não comprei a sua
promessa. Lhe disse que nunca mais levaria nada que saísse da
sua boca em consideração. Ele ficou realmente transtornado e me
perguntou se havia alguma chance de eu voltar a confiar nele…
Então eu disse que precisaria mudar. Por si mesmo, e não por
mim. Não fui a única a sofrer por causa do comportamento de
Calvin, a mãe dele também. Astrid foi mãe solteira e carregou
todos os problemas dele nas costas. Então pedi que se tornasse
um bom filho, para depois pensar em ser meu namorado
novamente.

O mais embaraçoso nessa história para mim era o final. Jamais


imaginaria que o marido e pai dedicado que via Calvin sendo hoje
em dia, nem sempre fora assim.

— Como conseguiu confiar de novo? Não pensar que estava


sendo enganada novamente?

— Fui firme, não dei o braço a torcer. Mostrei para Calvin que
não aceitaria menos do que um homem honesto e responsável.
Ele foi aprendendo a ser um novo alguém. Algo dentro dele levou
um choque de realidade depois do acidente também. Me lembro
dele chorando desesperadamente enquanto os paramédicos me
imobilizavam. Tive uma concussão e perdi a consciência a
caminho do hospital. Por isso não me recordo muito do que houve
depois. Mas ele ficou um ano inteiro sem dirigir e nunca mais usou
nenhum tipo de droga. Aos poucos foi deixando o hábito de usar a
bebida como válvula de escape e atualmente teve um problema no
fígado, e resolveu parar de beber definitivamente.

Megan continuou a falar sobre como ficou paranóica e demorou


para aceitá-lo de volta. Disse que durante os cinco anos de
namoro foi aprendendo a confiar, enquanto Calvin se esforçava
para lhe mostrar que não poderia se tornar um outro homem, mas
uma versão melhor de si mesmo.

Se casaram pouco tempo antes de eu conhecer Brandon,


quando completaram sete anos de relacionamento.
Me senti lendo um romance dramático, onde os personagens
têm uma trajetória de sofrimento e recebem um final feliz que
aqueceu o meu coração.

— Confiar é um ato de fé. Onde há amor, precisa haver


esperança. Não estou dizendo que deve insistir a qualquer custo
em alguém, simplesmente porque a ama. Mas que se houver um
esforço da parte dele, acredite, apoie, tenha fé. O amor não muda
ninguém, mas a dor da saudade faz pessoas moverem montanhas
para se redimirem com o seu amado.

De alguma forma, aquilo tocou em mim e amoleceu a pedra de


rancor que havia disputando espaço com o meu coração.

Pensei em Brandon, em como isso se aplicava com a gente.


Em como eu sentia a sua falta e sentiria mais ainda quando
retornasse para a nossa casa.

Não existia mais CIA nem SVR nem disputa de países na


minha cabeça, somente a vontade de que as coisas fossem
diferentes, que a possibilidade de ele ter me amado fosse maior do
que zero.

Porque se existisse amor da parte dele, haveria esperança da


minha.

— Estão com fome, meninas? — pisquei para conter as


lágrimas quando meu cunhado entrou no quarto com uma bandeja
de sanduíches e sucos.

O amor era mais do que sorte.

Era um privilégio. Nem todos tinham a chance de senti-lo.

Por isso haviam pessoas que davam mais importância ao


dinheiro e ao poder. Invés de batalhar por um grande amor.

— Estou faminta. — Respondi.


Capítulo 22

Eu estou procurando maneiras de expressar o que sinto

Eu simplesmente não posso dizer que não te amo

Porque eu te amo, sim

É difícil para mim comunicar o que eu penso

Mas hoje eu vou fazer com que você saiba

Me deixe dizer a verdade

Amor, me deixe dizer a verdade, sim

Die For You - The Weeknd


A vida é uma grande colheita.

Nós colhemos os frutos de tudo o que plantamos.

Eu tinha mentido para Kimberly, a usado e iludido, e colhia os


frutos disso.

Sozinho no pequeno quarto do pânico subterrâneo, me sentia


desapontado e envergonhado. O mais surpreendente nisso, era
que ser desmascarado pelo governo americano não provocou
metade da decepção que tive ao chegar em casa e ver sua
angústia com tudo aquilo.

Antes, eu não sabia quem era. Agora continuava a não saber,


mas tive um vislumbre de quem não queria ser.

Não queria ser mais uma desilusão na vida de Kimberly.

Gostava mais de ser o seu porto seguro, a pessoa a quem ela


se aninhava toda noite, o abraço pelo qual ela procurava quando
estava triste ou até mesmo quando estava feliz.

Sentia saudade de seu corpo. Era madrugada e faziam


algumas horas desde que os agentes da CIA se foram e levaram
Kim com eles. Eu fiquei deitado na cama, fitando o teto de aço e
me recordando dos traços dela.

Caso um dia eu tivesse direito a opinião própria, faria do corpo


de Kimberly um parâmetro para o meu gosto. As curvas sutis, o
tom castanho da pele, os pelos finos em alguns pontos, as
sobrancelhas escuras, delineadas por um arquear atraente sobre a
têmpora, os olhos sombrios… Tudo nela me agradava. Da mesma
forma que não conseguir mentalizar o quê exatamente você quer
vestir, mas então se deparar com uma roupa e a considerar
perfeita. Foi dessa forma que me senti quando a vi pela primeira
vez.

Porque algo se encaixava entre o que meus olhos viram e o


que a minha mente ansiava materializar e não conseguia.

Porque Kimberly era feita de uma combinação de detalhes


exóticos demais para a minha capacidade de cognição ter
conseguido representar com exatidão.

A ansiedade não me deixava dormir. Pensava a todo momento


onde ela estaria, com quem estaria…

A possibilidade de estar sendo torturada pela CIA para dar


informações sobre o meu paradeiro era a responsável por
desestabilizar as batidas do meu coração.

Havia tantas escolhas que eu poderia fazer, todas colocando


em risco alguma coisa, me deixando contra a parede para decidir o
que era ou não primordial para mim.

Objetivos, segredos e mérito.

Ou...

Amor, carinho e felicidade.

Ainda havia também a raiva que Kim devia estar sentindo da


minha pessoa.

Se eu a escolhesse, ela me aceitaria de volta?

Nosso último momento juntos foi intenso. Os dois não


conseguiram pensar com clareza. Ora ela cuspia na minha cara e
logo depois implorava que eu retornasse. Ora eu dizia para mim
mesmo que não sacrificaria a minha carreira por um sentimento
incerto como o amor, e depois desistia de sair da casa pois me
descobri incapaz de ficar distante de Kimberly.

Foi difícil fechar a porta e deixá-la para trás, mesmo que fosse
ficar a metros de distância. Continuei andando porque desde muito
cedo aprendi que a razão e a emoção eram como água e
eletricidade, nunca deveriam ser misturados. E por mais que
sentimentos intensos quisessem fazer a minha cabeça, resisti e fiz
o que era melhor para nós dois. Ser preso não ajudaria em nada
se eu quisesse levá-la comigo de volta ao meu país.

A cada minuto que se passava, essa ideia ficava mais clara e


sólida nos meus pensamentos. Eu teria o mérito e o amor,
enquanto Kim teria a mim e seria acusada de traição pelo seu
país.

Não parecia justo, mas era a melhor opção se quiséssemos


ficar juntos.

Peguei no sono entre um pensamento e outro e fui acordado


com uma luz excessiva vinda dos monitores que captavam as
imagens das câmeras internas da casa.

Levantei, assustado, pensando que a CIA havia voltado para


fazer outra busca. Não fiquei menos tenso ao ver a silhueta de
Kimberly de costas para a câmera da sala, onde ela abriu a cortina
e observava o jardim através da enorme janela.

Me mantive apenas olhando-a, esperando para ver se outra


pessoa aparecia. Por volta de uns cinco minutos se passaram e
não houve um novo movimento na casa. Nem mesmo de Kim, ela
permaneceu estática, fitando a janela como se o mundo tivesse
parado e ela precisasse de um tempo para deixar de se mover.

Poderia ser uma armadilha. Talvez eles soubessem que eu


ainda estava na casa, talvez ela tivesse lhes contado e estivessem
esperando que eu saísse da toca para me renderem.

Não fez diferença prever essa possibilidade, pois logo me


levantei e calcei os sapatos. Ainda não tinha contatado meu pai ou
outro agente em campo. Queria olhar para Kimberly e ter certeza
de que ela era incapaz de me perdoar. Porque se não fosse, eu a
levaria comigo. E se fosse também, com a vontade que sentia de
tê-la por perto, arriscaria levá-la contra a sua vontade.

Cada vez mais ficava claro que nós não havíamos nascido para
ficarmos separados.

A tampa de aço do quarto do pânico só poderia ser aberta por


dentro depois de fechada. Bastava tirar a trava que ela abria e as
vigas de madeira poderiam ser vistas encobrindo a passagem
secreta.

Com a bolsa atravessada no corpo, agarrei as laterais da


tampa e peguei impulso com os pés na parede. Tive de erguer o
meu próprio peso para chegar até a superfície e levantar o piso
devagar, em função de não fazer alarde.

Foram doze horas trancado naquele quarto e uma súbita


sensação de alívio me atingiu ao estar em um ambiente espaçoso
novamente.

Antes de fechar a passagem usando o piso, deixei a tampa de


aço encostada e a bolsa entre ela para o caso de eu precisar
retornar às pressas. Só então que encobri o cômodo subterrâneo
com o piso falso e subi as escadas, rumo ao primeiro andar da
casa.

A porta que dava acesso ao sótão rangeu de leve quando a


fechei. A passos comedidos, fui avançando corredor a frente,
buscando Kim com os olhos e ao mesmo tempo atento a qualquer
ameaça vinda de outra direção.

As câmeras pelas quais eu tinha uma visão privilegiada do que


acontecia na casa na minha ausência não possuíam som. Por
isso, fui surpreendido com a voz de Lana Del Rey ecoando pelas
paredes da sala quando me encostei em uma delas e observei
minha esposa de costas, tão perdida em pensamentos quanto
antes, ao som da sua cantora favorita.

Reconheci a música. Blue Jeans, uma das poucas que eu


sabia o nome. Não era a preferida de Kim, mas a escolha poderia
ter a ver com o que ela estava sentindo nesse momento.

Mas quando você saiu por aquela porta

Um pedaço de mim morreu

Eu disse que queria mais

Mas não era isso que eu tinha em mente

Eu só quero que seja como antes

Nós dois dançando a noite toda

Então, eles levaram você embora

Roubaram você da minha vida

Você só precisa se lembrar

Eu vou te amar até o fim dos tempos

Eu esperaria um milhão de anos

Prometa que se lembrará de que você é meu

Querido, consegue ver através das lágrimas?


— Kim… — Não aguentava mais somente observá-la,
precisava me aproximar, falar. — Vamos conversar.

Quando se virou, eu esperei o pior. Que corresse para longe,


gritasse, me atacasse, tentasse chegar ao telefone e ligasse para
a CIA.

Eu não a julgaria por nenhuma dessas atitudes.

Mas então o inimaginável aconteceu.

De início, ela vagou o olhar por meu corpo de cima a baixo


várias vezes, querendo ter certeza de que não se tratava de uma
miragem. Quando se deu conta de que talvez não fosse, Kim
correu na minha direção, se jogou com tudo em cima de mim,
enlaçando as pernas na minha cintura e os braços em meu
pescoço.

Eu conhecia bem a sensação que me tomou ao tê-la nos


braços depois de longas horas afastados. Era a mesma que eu
sentia ao retornar do trabalho e ser surpreendido pelo seu
entusiasmo.

Isso me fazia sentir importante todos os dias.

Viajar pelo mundo, ser quem eu quisesse, podia ser bom, mas
foi sendo Brandon Lamont que descobri o quão melhor era
pertencer a alguém, ter um lugar fixo para voltar depois de um dia
longo.

Foi com Kimberly que eu entendi como era incrível ser a casa
do coração de alguém e também fazer morada no de outra
pessoa.

Poderia ter sido difícil pensar em escolher entre o amor ou o


mérito enquanto eu estava a metros abaixo do piso, mas com Kim
nos meus braços parecia ridícula a ideia de querer qualquer outra
coisa que não fosse isso pelo resto da vida.
— Diga alguma coisa. — Eu pedi. Ela estava silenciosa
demais, o rosto enterrado em meu pescoço e o nariz roçando a
minha pele. Suas pernas agarravam minha cintura de um jeito
possessivo.

— Estou me despedindo de Brandon. — Kim fungou, contendo


o choro. — Sei o quanto isso me torna ainda mais tola, mas me
sinto viúva. Não aceito que Brandon Lamont nunca tenha existido.
Eu o amo e preciso aceitar que ele só existiu para mim. Então… —
Fungou de novo. — Eu vou enterrá-lo em um túmulo separado do
seu, Alexei, e de todas as coisas que descobri sobre o que
vivemos. Só fique calado e me deixe me despedir, você me deve
isso.

A culpa me atingiu como um meteoro abatendo um pedaço de


terra.

Rápido e fatal.

Como eu diria para ela que Alexei era o real fantasma e na


realidade, ser Brandon Lamont parecia a melhor coisa que já fiz na
vida?

As palavras não vieram, não encontrei nenhuma que me desse


coragem de expressar meus sentimentos livremente.

Fiquei calado, como pediu, notando que ter minha opinião


repreendida por tanto tempo mostrou suas consequências. Eu não
era capaz de identificar bem o que sentia e muito menos expressar
em palavras.

Já Kimberly, estava sentindo uma porção de coisas, tentando


aguentar firme quando desceu do meu colo e fincou os pés no
chão. Ergueu a cabeça, e contra todos os seus instintos, disse:

— Vá. Pode ir embora. Não irei avisá-los. Volte para o seu país
de merda e comemore o sucesso da sua missão. Segredos de
Estado e medalhas de mérito é tudo o que importa, Alexei. — Um
último olhar de sofrimento na minha direção e Kim se distanciou,
me dando as costas.
Lana Del Rey agora cantava outra canção e minha esposa
havia retornado a observar o jardim. Enquanto isso, eu não me
movi nenhum centímetro. Nem para ir embora. Nem para tomá-la
nos braços. Fiquei ali, irritado com a melancolia que a música dava
ao momento.

Tira essa sombria narcisista das minhas costas

Ela não poderia se importar menos, e eu não poderia me


importar mais

Então, não há nada mais a dizer sobre isso

Exceto que a esperança é uma coisa perigosa para uma


mulher como eu ter

Esperança é uma coisa perigosa para uma mulher com meu


passado ter[4]

— Venha comigo — foi o que saiu da minha boca. Estava mais


do que convicto de que era isso o que queria. — Arrume suas
coisas. Vou contatar meus superiores e eles vão achar uma forma
de nos tirarem dos Estados Unidos em segurança…

Kim se virou, um sorriso falso estampando seus lábios finos.

— Eu ainda mantenho o que disse ontem. Prefiro ficar sozinha


a ter um homem medíocre de afeto como você. Então recuso a
sua oferta de merda. — Me deu as costas novamente.

Passei as mãos pelo cabelo, frustrado.

Entendia a postura dela. Estava na defensiva, pensava que era


utópica a possibilidade de eu ter me apaixonado também.
O frustrante era a minha incapacidade de convencê-la. Ou de
ao menos me expressar. Confuso, mas cansado de resistir,
confessei, sem mais nem menos:

— Eu não sei quem eu sou longe de você, Kimberly. Então eu


preciso te arrastar para o outro lado do mundo comigo, porque só
assim a minha vida voltará a fazer sentido, entende?

Colocar para fora foi semelhante a tirar um peso enorme das


costas, me possibilitando respirar melhor.

Os ombros de Kimberly, por outro lado, pareciam mais tensos


depois da confissão.

— Não dou um passo para ir embora daqui com você, Alexei.


— Respondeu, séria como nunca a vi sendo.

— Você não vive sem mim, Kimberly. Sei que te magoei e…

— Eu posso viver sem você, está enganado se pensa que eu


não posso viver sem as suas mentiras e joguinhos de
manipulação. Será ruim no começo, porque eu me apeguei a você.
Mas vou aprender a lidar com isso, não subestime a minha
capacidade de encontrar alguém melhor!

— Kim…

— Não! — deu um passo à frente. Seus olhos ficaram ainda


mais escuros, raivosos. — Eu vou perder o medo de dirigir, vou me
demitir daquele emprego de secretária e vou me casar de novo.
Vou conhecer um homem que me ame de verdade e nós vamos
ter um filho e sermos felizes!

Suas palavras me deixaram desolado. Quanto mais tentava


consertar as coisas, mais parecia que tudo estava perdido.

Eu já não aparentava em nada com o homem disciplinado e


honroso que era há dois anos. Kim modificou algo dentro de mim,
conseguiu se infiltrar no meu âmago e despertar sensações que
jamais pensei ser possível que alguém como eu pudesse sentir.
Se não fosse ela a quem nasci para amar, não seria nenhuma
outra.

— O que quer de mim? O que eu preciso fazer para que


acredite no que estou sentindo? — não estava com os joelhos no
chão, mas havia tanta redenção no meu tom de voz que não se fez
necessário esse gesto para que ficasse nítido o quanto queria o
seu perdão.

— Você me ama, Alexei?

Me incomodava quando ela me chamava pelo nome


verdadeiro, a forma como empregava irritação na pronúncia
denunciava o rancor que ainda existia.

— Não sei bem o que é o amor, por isso não posso afirmar e
nem negar. Não quero mentir de novo para você, Kim. — Tentei
ser sincero, achar um consenso entre a confusão que se
encontrava na minha mente, diante da novidade de expressar
meus pensamentos livremente, e a verdade de que ainda não
sabia se a cada vez que dizia “amo você"ao longo do tempo, isso
se tornava mais real.

Minha esposa estava tão impassível que me deixou assustado.


Já não exibia raiva nem saudade, muito menos sofrimento. Parecia
estar oca por dentro, tendo esvaziado todo o amor que sentia por
Brandon.

— Vou dar uma volta pela rua e espero não te encontrar por
aqui quando retornar. — Fez menção de sair, mas quando eu
estava prestes a retrucar, falou: — Você é um babaca se pensa
que me levar junto com você é uma forma altruísta de se redimir.

Não impedi a sua saída.

Não disse que a amava para tentar convencê-la.

Não fugi como um covarde.


Fiquei estagnado. Pensando no quanto ela estava certa e no
quanto eu tinha uma noção distorcida sobre redenção.
Capítulo 23

Isto é um estado de graça

Esta é uma briga que vale a pena

O amor é um jogo cruel

A não ser que você o jogue bem e direito

Estas são as mãos do destino

Você é meu calcanhar de Aquiles

State Of Grace - Taylor Swift


De volta ao quarto do pânico, eu inspirei fundo antes de ligar
para o número do Diretor de Operações da CIA que havia pego do
celular de Kimberly.

Era um caminho sem volta, e por mais incrível que parecesse,


tendo plena consciência do desperdício de toda a lealdade que
depositei ao meu país durante toda a vida, eu não hesitei por um
segundo sequer em apertar o botão “ligar”.

— Quem fala? — a voz arrogante soou do outro lado da linha.


Esperei alguns segundos para responder:

— Alexei. — Ouvi quando suspirou pesadamente, prevendo o


desenrolar complexo da nossa conversa e completei: — Vassiliev.

Depois do suspiro, veio o silêncio, para só então o ruído de


uma porta sendo fechada ressoar e ele se pronunciar, com a voz
arrastada dessa vez.

— Ligou para cantar vitória ou tem algo de útil para acrescentar


ao meu dia?

— Vai depender do seu conceito de utilidade.

Outro suspiro. Estava começando a pensar que o gesto era


uma forma de Mark Harrison manter a serenidade enquanto me
ouvia, a contragosto.

— Onde está, seu rato desgraçado? Fugiu através dos


bueiros?
— Me diga você. Encontrou algum endereço na tentativa de
rastrear o meu aparelho celular?

Foi satisfatório ouvir o punho dele batendo sobre a mesa.

O óbvio era sempre ignorado até mesmo por pessoas que se


sentiam no auge da esperteza, como os agentes da inteligência.
Ninguém imaginaria que esse tempo todo estive no lugar onde
eles tentaram me emboscar: a minha própria casa.

Mesmo assim, porque precaução nunca seria demais, me


tranquei no quarto subterrâneo, onde as paredes de aço
bloqueavam o rastreamento da frequência do meu celular.

— Vamos direto ao ponto, Harrison. Eu sou a sua galinha dos


ovos de ouro, mas estou fora do seu alcance nesse momento. O
propósito da minha ligação é justamente resolver este impasse.
Está interessado em negociar com um espião do alto escalão
russo? Digite o número 2.

A minha redenção dependia da habilidade estratégica e da boa


vontade de Mark Harrison.

Não havia plano B.

Era um caminho sem volta ou uma volta sem Kimberly.

Quando o ruído indicou que um número havia sido digitado por


Harrison do outro lado da linha, o canto dos meus lábios se
repuxaram em um meio sorriso.
A casa parecia sem vida quando retornei, aproximadamente
duas horas depois.

Doeu pedir para que ele se fosse. Não somente porque sentiria
a sua falta, mas porque constatei que Brandon nunca iria embora
do meu coração.

Era irracional a forma como eu não conseguia me desfazer das


lembranças, me convencer de que nada daquilo fora real. Ainda
mais enquanto avançava pelo corredor e observava os porta-
retratos com registros de momentos nossos.

Por um lado, parecia impossível que ele não tivesse


demonstrado emoções verdadeiras. Com a fotografia que tiramos
na nossa lua de mel no México em mãos, me recordei do seu
sorriso, dando as caras de minuto em minuto, iluminando os meus
dias e me fazendo pensar que havia feito a escolha certa.

Nessa fotografia, eu segurava a câmera e olhava para a lente


dela, enquanto Brandon fitava meu rosto com um olhar de
veneração e o seu típico sorriso egocêntrico.

Sempre que eu observava essa foto, acreditava ver um reflexo


do sentimento dele por mim refletindo nos seus olhos, verdes
muito claros à luz do dia.

— Eu diria que esse foi o dia mais feliz da minha vida, mas aí
me recordo do nosso casamento, e depois do dia em que disse
que me amava pela primeira vez... — Estanquei no lugar, sem
reação, ouvindo os passos soarem mais próximos das minhas
costas até sentir a mão de Brandon encobrir a minha, que ainda
segurava o porta-retrato. — Qualquer momento que compartilho
com você se torna especial, Kim.

— Eu pedi que fosse embora. Por que não respeita os meus


sentimentos, Alexei? — me afastei do seu toque, ficando de frente
para o seu peito, a centímetros do meu.

— Porque ficar longe de você é um desrespeito aos meus


sentimentos.

Pareceu uma confissão, feita com uma sinceridade camuflada


pela vulnerabilidade.

Aquela altura, eu tentava não analisá-lo, enlouqueceria


tentando diferenciar a verdade da mentira. Estava exausta
mentalmente e só queria dormir pelo resto da semana. Não daria
margem para seja lá o que ele tivesse em mente.

— Tem só mais dois minutos para sair daqui ou eu vou te


delatar. Dessa vez não hesitarei.

Minha ação de dar um passo para longe foi interrompida pelas


mãos de Brandon, uma em cada braço, me mantendo no lugar.

— Eu não sou um babaca, Kim.

— Você me disse há algumas horas que não sabia quem era.

— Não sei quem eu sou, mas sei o que não sou. — Tentei me
desvencilhar do seu aperto, mas ele não aliviou. Me segurava com
afinco, sem machucar, mas de forma determinada, assim como o
seu olhar, compenetrado e intenso. — A minha proposta não foi
justa, muito menos altruísta. E se devo algo a você depois de tudo
o que fiz, é colocar os seus sentimentos em primeiro lugar. A
escolha que fiz é para honrar isso.

— O que fez, Alexei? — dessa vez, ele não resistiu e soltou


meus braços quando me afastei do seu corpo, encostando o
quadril no móvel da sala.
— Uma escolha importante. Escolhi ser Brandon Lamont.

Suspirei, encarando seu rosto com uma certa má vontade.


Apesar de amá-lo e de não querer vê-lo ir embora, era
desgastante prolongar as minhas esperanças. Uma parte de mim
queria apenas que ele fosse embora e não ficasse arrancando o
curativo da minha ferida toda vez que eu pensava que seria o fim.

— Sei que vai precisar de um tempo para que eu recupere a


sua confiança, mas estou disposto a me redimir. Não tem mais
volta para o que fiz e mesmo se houvesse, eu não voltaria. —
Continuou.

— O que isso significa?

— Que vou trair o meu país, afundar os meus dezessete anos


de carreira, envergonhar meu pai, seguir os passos da minha
mãe… Por você. Tudo por você, Kim.

— Do que está falando? — eu tinha uma vaga noção do que


ele dizia, mas não conseguia acreditar que se tratava realmente
disso.

— Agora eu sou um traidor, amor. — Sorriu majestosamente e


por um segundo, meu peito se encheu de esperança, para em
seguida ela se esvair, como um balão quando é estourado por uma
agulha. — Vou repassar informações falsas para a Inteligência
Russa em favor dos Estados Unidos. Fiz um acordo com Mark
Harrison. Darei vantagem ao país de vocês em troca de
permanecer ao seu lado.

Meu olhar vacilou e eu fitei o chão, confusa. Brandon deu um


passo à frente, tomando meu rosto em suas mãos e o erguendo.

— Isso não resolve tudo. Você mentiu para mim durante todos
os dias que estivemos juntos. Nós ficamos juntos por mais de
setecentos dias, Brandon. E toda vez que eu acordo, penso em
quantas mentiras você ainda teria me contado se não tivesse sido
descoberto. — Desabafei, antes que ele tivesse a chance de dizer
algo.
— A mentira não é necessariamente o oposto da verdade, Kim.
Ela pode ser uma versão melhor, mais ludibriosa e menos cruel do
que a verdade. Todas as coisas que eu te disse não foram
mentiras bem contadas, e sim fragmentos de uma verdade
assustadora para mim. Brandon Lamont, nada mais é do que a
verdade que eu queria viver, mas não tinha coragem de assumir,
largar os planos que tive ao entrar na sua vida. Então, Kim, não
tente decifrar quais palavras e atitudes foram sinceras ou não,
porque nem eu mesmo saberia te dizer precisamente.

A respiração dele soprou em minha boca e instintivamente abri


os lábios. Era natural como esperar alguém de volta a casa e abrir
a porta para que entrasse.

— Brandon… — Seu nome saiu como uma súplica. Perdi o


raciocínio.

— Não estou pedindo que acredite de imediato. Só peço que


não me deixe ficar longe de você.

— E o que disse antes, sobre as falhas serem inadmissíveis?

Abaixou o olhar, nivelando-o ao meu.

— Me dei conta de que inadmissível é perder você.

De repente, recordei das palavras da minha irmã. Da lição que


elas me trouxeram e da vontade que senti de ter esperança no
meu casamento caso houvesse amor da parte de Brandon.

" Se houver um esforço da parte dele, acredite, apoie, tenha fé.


O amor não muda ninguém, mas a dor da saudade faz pessoas
moverem montanhas para se redimirem com o seu amado. "

Tão próxima dele, sentindo seu cheiro invadir minhas narinas e


o calor das suas mãos em minhas bochechas, eu constatei que
para o tamanho da saudade que senti do seu beijo, seria capaz de
mover diversas montanhas.
— Venha, se aproxime de mim.

Já estávamos próximos e ele entendeu o recado com o que eu


quis dizer. Reivindicou minha boca e selou a sua escolha colando
seus lábios nos meus.
Capítulo 24

Nós podemos deixar fluir


Jogar um novo jogo
Por muitas horas
Nós podemos fazer isso pelo resto da vida
Dirty Mind - Boy Epic

Fui deitada com as costas contra o tapete felpudo da sala, logo


Brandon estava montando em cima de mim. Ele tirava a camisa
com os olhos fixados nos meus, ardendo de desejo. Depois me
despiu, peça por peça, deixando apenas a minha calcinha.
Se curvando, depositou um beijo na minha boca e quando eu
estava prestes a lamber sua língua, desceu para meu pescoço,
mordendo e chupando a região.
Seria diferente de todas as outras vezes que transamos. Soube
disso pelo modo como ele me tomava, com a boca descendo feroz
por minha barriga, as mãos agarrando minha cintura com os dedos
cravados na pele. Os pontos onde sua língua tocava pareciam
ficar marcados a ferro depois que partia para outro local.
Sem delicadeza ou ternura, Brandon explorava meu corpo com
ânsia, uma paixão voraz que transbordava por seus poros e me
incendiava. Não me senti apenas desejada, mas também
poderosa. A sensação era de estar sendo venerada por um súdito,
rendido por mim, e que ao mesmo tempo era imponente por ser o
alvo da minha cobiça.
— Levante o quadril. — Mais ordenou do que pediu, arrastando
minha calcinha para fora das pernas quando o obedeci. Afastando
meus joelhos, Brandon se posicionou entre eles e disse: — Senti
falta disso.
— Também senti. — Ofegante, confessei.
Estremeci sobre o primeiro contato da sua boca com a minha
intimidade, que explorou a parte externa com cautela, me
inundando de expectativa toda vez que chegava mais perto do
clitóris, inchado e pulsante.
Movi o quadril em direção aos lábios de Brandon. Para o
tamanho da minha excitação, não importava o quanto ele se
aproximasse, ainda parecia estar longe de me satisfazer por
completo.
— Estou delirando ou você está mesmo ansiosa para que eu
chupe essa partezinha aqui? — pressionou meu centro de prazer
com o dedo indicador. Estremeci de novo.
— Sou eu quem vai delirar se você não fizer isso logo. — Com
o fim dos segredos entre nós dois, o pudor foi reduzido a pó e eu
sentia como se estivéssemos muito mais próximos, íntimos como
não éramos antes.
— Eu disse que você iria gostar. Não há nada que eu faça e
que você não goste.
Os dedos de Brandon se infiltraram no meu canal vaginal e o
dilatava conforme fazia movimentos de entra e sai. Os lábios
sugavam meu clitóris, puxando-os, dando a sensação de que iriam
arrancá-lo de mim.
— Não gosto quando mente. — Argumentei.
— Não irei mais mentir.
Eu gemia mais intensamente do que costumava e isso
motivava Brandon a aumentar a pressão da sucção e a rapidez
com que os dois dedos investiam contra a minha fenda.
Me desfiz em um orgasmo feroz, que fez minha cabeça tombar
para trás, o quadril se remexer e os dedos dos pés se contraírem
violentamente. Foram os espasmos mais devastadores que já
havia tido. E ao final, estava mais do que suficientemente dilatada
para que Brandon estocasse todo o seu comprimento de uma vez
só. Indo até a base e voltando para pegar impulso e arremeter de
forma impiedosa.
— Porra, senti muita falta disso também. — Murmurou.
Segurava minhas pernas enquanto se movimentava e mantinha
meu quadril levantado para que pudesse ir mais fundo.
Foi diferente por diversos motivos, sendo o principal deles a
intimidade extrema que parecia ter se estabelecido entre nós. Eu o
sentia em cada parte do meu corpo, notava o seu amor por mim
em cada toque e via implícito nos seus grunhidos de prazer o
quanto ele me pertencia.
Nossos líquidos estavam misturados, banhando nossas
intimidades que se chocavam a cada segundo. As carnes se
friccionavam, provocando um barulho de sexo violento e nos
fazendo suar.
Era um efeito imediato. Brandon estocava, eu gemia. Brandon
tirava, eu respirava. Brandon estocava de novo, eu gemia
novamente.
Esperava que a distância entre o nosso jardim e o da casa
vizinha fosse o suficiente para que não ouvissem essa sinfonia.
Principalmente quando ele pôs minhas pernas em seus ombros e
arremeteu mais rápido.
— Ai, Brandon, aaah…
Sentia a minha fenda esquentar e arder com a pressa da
fricção entre ela e as bolas de Brandon, que a surravam sem
pausa.
— Estou há três dias sem isso, sem sentir essa bocetinha
estreita esquentando meu pau. Só saio de dentro de você quando
estiver saciado. — Revelou, a voz rouca e entrecortada devido ao
frenesi do prazer.
Minha cabeça girava e eu não sabia como, mas permanecia
consciente, mesmo parecendo que havia chegado ao meu limite.
Gozei outra vez, os espasmos um pouco mais fracos do que os
anteriores, no entanto, não menos prazerosos. Minha alma
aparentava ter se esvaído do corpo e deixado apenas o esqueleto,
que balançava conforme Brandon continuava a me surrar com o
seu pau, inchando e alargando o meu canal, quase batendo no
início do meu útero.
Meu marido estava a todo vapor enquanto eu parecia uma
boneca sem vida, os olhos revirando involuntariamente e os
braços largados pelo tapete.
— Fica de quatro. — Mandou, deixando a minha vagina oca
quando saiu de dentro de mim para que eu o obedecesse. Não sei
de onde, mas tirei forças de algum lugar para me amparar com os
joelhos e cotovelos no chão, e inclinar o corpo em um ângulo de
quarenta e cinco graus. — Ótimo. Assim fica ótimo para ver a
minha porra escorrendo da sua boceta pela primeira vez.
Ele atingiu a entrada do meu útero em cheio ao se colocar
dentro de mim novamente, bombeando várias vezes antes de
permitir que um orgasmo lhe dominasse e o líquido quente me
inundasse internamente. Eu senti algumas gotas escorrendo por
minha abertura abaixo e foi só nesse instante que me dei conta da
ausência do preservativo.
— Nunca pensei que a camisinha fizesse tanta diferença. —
Brandon comentou.
Era por causa disso que as pessoas deixavam de usá-la.
Era por isso que as pessoas transmitiam e se infectavam com o
HIV.
Pela impulsividade. Pelo desejo desenfreado.
O clima estava agradável depois do sexo e eu não quis
estragar as coisas com esse assunto. Ambos estávamos
satisfeitos, não só por termos gozado majestosamente, mas
porque, no fim das contas, os dois conseguiram o que queriam.
Brandon conseguiu o sexo sem camisinha e eu havia
conseguido conquistar seu coração.
— Venha aqui. — Me puxou de encontro ao seu peito, largo e
encoberto por uma camada fina de pelos escuros, e me aninhei ali,
ouvindo a sua respiração voltar ao normal e o coração batendo
freneticamente. — Vamos lá, pergunte algo que queira saber sobre
mim.
Havia tantos questionamentos rondando a minha mente a
respeito de Alexei antes, mas depois de gozar duas vezes, meu
cérebro havia decretado alguns minutos sabáticos.
— Essa é realmente a primeira vez que transa sem camisinha?
Os dedos dele ergueram meu queixo para que eu estivesse
olhando em seus olhos quando respondeu:
— Sim, Kimberly. Essa é a primeira vez em trinta e oito anos
que faço sexo sem preservativo. — Não pude deixar de rir. — Não
ria de mim, vou passar os próximos meses intimidado pelos seus
olhos. Parece que estou diante de um detector de mentiras sempre
que me olha.
— Eles existem de verdade? Os detectores de mentiras?
— Sim. Provavelmente a CIA usaria um em mim se eu tivesse
sido capturado.
— Interessante. — Concluí, bocejando. O cansaço amoleceu
meu corpo.
— Não quer saber se eu sou realmente médico ou um babaca
que dá diagnósticos baseados no que o Wikipedia diz?
Bem pensado. Não tinha me dado conta de questionar esse
detalhe.
— Babaca você é, mas… Pela forma como está me induzindo
a fazer esse questionamento… — Voltei a encostar a cabeça em
seu peito. — Presumo que a resposta engrandeça o seu ego.
Então acredito que fez medicina sim.
— Boa garota. Acontece que seu marido é formado em
medicina, mas não pela Stanford, e sim por uma universidade
russa.
— Você sabia sobre a operação chamada “Romeos”?
Ele franziu as sobrancelhas, desviando o olhar como quem
precisava encontrar algo na memória.
— A operação de Markus Wolf? — indagou, por fim. Assenti,
balançando a cabeça positivamente. — Conheço vagamente a
história.
— Vocês se inspiraram nessa operação?
— Não. Wolf foi o primeiro a explorar os recursos da
sexespionagem, mas depois dele vieram muitos outros. A
inteligência americana não costuma se infiltrar dessa forma na
Rússia, no entanto, o MI6[5] faz uso dessa estratégia.
Brandon passou as mãos por minhas costas, nuas e com os
pelos da nuca arrepiados.
— Você beijou mesmo outro homem?
Ponderei dizer que sim, sustentar a mentira. Ele agora me
olhava como se finalmente estivéssemos jogando de igual para
igual.
Eu não queria sustentar a minha ardilosidade com uma
mentira, não seria verdadeiro. E só porque não o traí, isso não
dizia que era menos valente.
— Não, mas foi por um fio. Nunca mais brinque comigo,
Brandon.
Ele respirou, aliviado.
— Preciso lhe contar uma coisa.
Ergui a cabeça abruptamente do seu peito, fazendo meu
pescoço estalar.
— Brandon…
— Digamos apenas que Joshua esconde um segredo e eu o
chantageei com essa informação para saber mais sobre você.
Ponto final.
Meus pensamentos não ficaram menos embaraçosos depois
da revelação. Não fazia a menor ideia do que Joshua poderia
esconder. Ele era do tipo que não se importava com a opinião de
ninguém.
— Que tipo de segredo?
— Do tipo que você irá querer vomitar se souber.
— É algo ilegal?
— Teoricamente sim.
— Deus! — me levantei, sentando no tapete. — Eu preciso
saber, Brandon!
— Por favor, Kim. Deixe isso comigo, tá legal? Confie em mim,
está tudo sob controle. Ele tem vinte e nove anos, não é como se
fosse se deixar intimidar pela irmã mais nova.
Semicerrei os olhos.
De qualquer forma, procuraria saber depois. Nem que fosse
direto à fonte, mas descobriria o que Joshua escondia.
Não iria aceitar que mais ninguém escondesse sua verdadeira
face de mim.
— Eu aprendi a ser intimidante nos últimos dias, Brandon. Não
sei se esqueceu.
— Sim, amor, mas você me intimida porque eu tenho muito a
perder caso se volte contra mim. Se perco você, perco tudo o que
realmente importa na minha vida. Já Joshua… Ele pensa que não
tem nada de relevante pelo qual deve preservar. Confie em mim,
eu estou de olho nele.
O conselho de Megan sobre dar um voto de confiança a
alguém mediante a prova de que houve alguma mudança fazia
sentido, mas na prática era menos simplório do que nas palavras.
Na prática eu teria de confiar não-confiando.
Meu radar havia sido forjado a ferro e fogo desde o dia em que
descobri a verdadeira faceta do homem que dividia a cama comigo
todos os dias.
Minha confiança não existia mais.
A dor da ilusão a dissipou.
Me restou apenas assentir com um sorriso forçado se abrindo
em meus lábios, e o olhar programado para ficar atento ao mínimo
sinal de dissimulação.
Ele poderia ser bom em fingir, mas nada passava batido pelos
olhos da mulher que levou uma rasteira da vida e decidira nunca
mais querer passar por algo semelhante.
Ele ainda era um vilão. Mas o que houve serviu de lição para
mim.
O importante era que eu não era mais uma princesa indefesa.
Eu não esperava mais que Brandon segurasse a minha mão para
enfrentar os obstáculos.
Eu aprendi a jogar.
Deixei de ser um peão e me tornei a rainha do jogo que era o
meu casamento com um espião russo em solo americano.
Ainda haveria segredos neste casamento.
A diferença se dava no fato de que agora eles eram nossos.
— Tudo bem, amor. Confio em você.
Três anos depois…
Epílogo

Me encontrava em uma sessão de terapia quando a minha


bolsa estourou. Uma água morna escorreu pelas minhas pernas
sem que eu percebesse e uma nova contração aconteceu.
Estava com quarenta e uma semanas e vinha tendo contrações
espaçadas nos últimos dois dias. Poderia acontecer a qualquer
momento e eu não fazia a menor ideia de que seria hoje, às onze
da manhã, mas uma dor lacerante me acometeu e me contorci no
sofá do consultório da minha terapeuta.
Tentei manter a calma enquanto Sarah Fischer ligava para o
setor de obstetrícia e os chamava até o nosso andar. Fechei os
olhos, espremendo-os como se com o gesto pudesse amenizar a
dor que comprometia o meu quadril e pelve.
Não se igualava a uma cólica, era muito mais intenso e
lacerante.
— Vai ficar tudo bem, apenas respire fundo e mantenha a
calma. — Sarah, minha terapeuta, disse. Ela ficou ao meu lado
durante o tempo em que a obstetra responsável pelo meu pré-
natal examinava a minha vagina e sentia o quão profunda era a
dilatação.
— Ela está com quase dez centímetros. Precisamos subir
rápido ou não dará tempo.
— Peça para chamarem Brandon. A sala dele é no segundo
andar. — Eu pedi, seguindo a orientação da Doutora Fischer e
respirando fundo durante uma contração violenta que fez pressão
na minha virilha e fazia eu sentir vontade de me encolher na
cadeira.
A equipe me levou para o elevador na cadeira de rodas
enquanto a Doutora Fiona Callahan prestava atenção a qualquer
sinal vindo do meio das minhas pernas.
Sarah assentiu e soltou a minha mão quando as portas do
elevador se abriram. Estava pronta para atender ao pedido no
instante em que meu marido apareceu diante da caixa metálica e
tentou não transparecer a aflição por eu estar prestes a dar a luz.
Foram dois anos me preparando para esse momento. Me
tratando com terapia e seguindo o tratamento do HIV à risca,
estudando sobre a maternidade para uma soropositiva…
Estava decidida a não deixar os riscos se tornarem
complicações.
A vontade de ser mãe sempre esteve em mim, mas o medo a
anulava, a colocava para escanteio. Até tomar a decisão de que se
eu não enfrentasse o temor, nunca sairia do lugar. Se eu não
forjasse a minha coragem, perderia a oportunidade de vivenciar
coisas incríveis.
— Quantos centímetros de dilatação? — Brandon indagou para
a minha obstetra. Ela se agachou no chão do elevador e me tocou
novamente no meio das pernas.
— Dez! — anunciou.
— Dói muito! — berrei, sentindo o ar me esvair e uma pressão
absurda na pelve. Tive de levantar da cadeira, quase tropeçando
no apoio dos pés, e fiz com que as enfermeiras dessem espaço
para que eu me abaixasse.
Fiquei apoiada nos tornozelos, segurando a barra de ferro que
havia colada ao espelho e fiz força. Era instintivo, a dor que vinha
dessa vez me fazia querer expulsar o que estava precisando sair
do meu útero.
De olhos fechados, pude ouvir o barulho da cadeira de rodas
sendo retirada do elevador e do murmúrio da obstetra, pedindo
silêncio.
— Kimberly, se aguentar mais um pouquinho, podemos chegar
até a sala…
Doía muito e ficar nessa posição parecia aliviar.
Brandon se colocou atrás de mim, também ficando apoiado nos
tornozelos, e pôs uma porção do meu cabelo para o outro lado,
soprando meu ombro. Estava suada e meu rosto devia estar
inchado de tanto que eu o contraía.
Não me preocupava com a minha aparência naquele momento.
Romeo era o que importava e eu faria o possível e o impossível
para ser capaz de trazê-lo ao mundo sem interferências.
— Não, doutora. Quero ficar aq… — Uma pressão mais forte
impulsionou a minha abertura e instintivamente, eu fiz força,
sentindo-a se alargar. — Meu Deus!
Se dando por vencida, a obstetra deixou que uma das
enfermeiras tomasse o seu posto de segurar a porta do elevador e
se juntou a mim e Brandon. Ele agora massageava a minha
lombar com movimentos suaves e ao mesmo tempo fazendo
pressão na região.
Meu marido também procurou se aperfeiçoar para receber o
nosso bebê. Leu diversos livros sobre como proporcionar um
crescimento saudável a uma criança e não se cansou de ler
artigos científicos referentes ao desenvolvimento infantil.
Estava quase tão contente quanto eu com essa gestação e
também foi lapidando as suas inseguranças a respeito da
paternidade ao longo desses nove meses para que
desfrutássemos deste marco nas nossas vidas.
— Sinta o seu corpo, Kimberly. Deixe que ele te diga quando
fazer força. — A obstetra instruiu.
— Estou fazendo, mas não parece suficiente…
Ela tocou algo no meio das minhas pernas que não fui capaz
de sentir.
— A superfície da cabeça dele está saindo, continue.
Tornei a empurrar, urrando e gemendo de dor e agonia.
— Continue, Kim. Nosso Romeo quer ver o quão forte você é.
— Brandon sussurrou no meu ouvido.
Eu não tinha preferência sobre o sexo do bebe, mas confesso
que senti uma euforia desenfreada quando recebemos a notícia de
que era um menino, há seis meses.
O nome veio logo à minha cabeça.
Romeo.
Me sentia forte depois de ter passado por tantas decepções,
desprezo e abandono. Comecei a valorizar as pedras que a vida
colocara no meu caminho, e driblei elas com satisfação. Olhei para
trás e lamentei pela morte de Beatrice, mas valorizei o esforço de
Sierra. Me encarei no espelho e não vi as sombras de
degeneração. Usei toda a minha força para fazer um último
esforço e vi o corpo de Romeo ser amparado por Brandon.
— Nasceu! — a obstetra gritou e as enfermeiras aplaudiram.
Me ajoelhei no chão, esgotada, mas ansiosa para ver o
rostinho dele, pegá-lo nos braços.
Se ajoelhando também, Brandon passou nosso filho com
cuidado para os meus braços:
— Veja, Romeo, como a sua mãe é linda e forte.
Nós dois chorávamos, eu e Romeo.
Ele banhado com o líquido amniótico.
Eu molhada de suor.
— Como você é lindo, filho. — O rostinho dele estava inchado
e vermelho, não foi possível ver ainda seus verdadeiros traços,
mas Romeo já era perfeito para mim.
Me lembro de quando eu ansiava o dia em que seria uma
mulher corajosa. O dia em que eu me vestiria de coragem e
enfrentaria qualquer coisa.
As coisas que passei me ajudaram a construir a minha
armadura, mas foi somente no dia de hoje que me tornei capaz de
enfrentar o mundo se fosse preciso.
— Como se sente, Kimberly? — com um sorriso de alívio no
rosto, minha terapeuta perguntou.
— Me sinto… Incrível. Foi exatamente nesse elevador onde eu
conheci meus dois grandes amores. Tinha que ser aqui. — Com
Romeo nos braços, senti uma felicidade me preencher como
nunca e o medo de não conseguir pareceu bobo depois de tê-lo
comigo.
Por ele eu me tornaria capaz de tudo.

Eu não queria largá-lo.


Havia sido tirado do meu consultório com o aviso de que minha
esposa estava descendo o elevador para dar a luz na sala de
parto.
Meu coração estava tão disparado quando encontrei Kim no
elevador.
Horas depois, no quarto da enfermaria do hospital, ele ainda
não tinha se estabilizado, mesmo após as coisas terem dado certo.
O órgão que antes só servia para bombear sangue, agora batia
acelerado, preocupado, enquanto eu segurava o corpinho
minúsculo e frágil nos braços.
Quando pensei que já tinha vivido e sentido de tudo, a vida me
trouxe Romeo para mostrar que ainda havia muito mais o que
desvendar.
A paternidade já estava me mudando no pouco tempo que
passara com meu filho até o momento. Mal podia esperar para
acompanhar o seu crescimento e vê-lo se tornar um homem.
— A enfermeira disse que já posso amamentá-lo. — Depois de
retornar ao quarto, Megan disse, em uma voz baixa para não
acordar sua irmã, que cochilava na cama.
Sierra, Joshua e seus dois irmãos viriam mais tarde conhecer
nosso filho e Kim queria estar descansada para recebê-los.
Eu segurava Romeo e balançava sutilmente o corpo para niná-
lo sobre a penumbra que o abajur proporcionava ao quarto. A luz
forte impedia que seus olhos se abrissem por completo e que
víssemos a tonalidade das suas orbes.
Desconfiava que fossem verdes, como as minhas, e passei as
últimas horas encarando seu rosto para descobrir.
Ficaria ali por outras mais se ele não precisasse se alimentar
agora. Foi de forma relutante que lhe entreguei aos braços da
minha cunhada. Ela se sentara na cadeira de amamentação e dera
ao sobrinho o primeiro alimento depois de nascido.
Além de Noah, que agora tinha três anos, Megan deu à luz a
Mia, um ano atrás. A pequena ainda consumia o leite materno e
isso possibilitou que minha cunhada pudesse amamentar Romeo
no lugar de Kimberly.
Ela veio se preparando para lidar com o fato de que não
poderia amamentá-lo há um tempo e antes de adormecer,
agradeceu a irmã pelo gesto. Ficava receosa em entregar a saúde
do nosso filho nas mãos de uma desconhecida, se sentiu mais
segura sendo Megan quem faria esse favor.
O recém-nascido, por sua vez, adormeceu após a refeição e eu
o peguei de volta dos braços da minha cunhada, ocupando seu
lugar na cadeira.
Como um pai conseguia ficar tanto tempo longe do seu filho?
Esperava nunca ser capaz de entender.
A cada segundo que passava, me sentia tentado a colocá-lo
em um potinho e ficar admirando-o, protegendo-o de tudo e
sempre por perto.
A mãozinha minúscula jazia encostada no meu peito e eu
precisei registrar esse momento, eternizá-lo de alguma forma além
da minha cabeça, que nunca se esqueceria de que agora eu tinha
um coração batendo fora do meu peito.
Ergui o celular um pouco acima para que registrasse por inteiro
o corpo de Romeo embalado por um de meus braços e tirei a
fotografia.
De alguma forma, ela soube captar a beleza desse momento.
Pensei, por um fio de segundo, em enviá-la para o meu pai.
Mantínhamos um canal de comunicação criptografado que não
seria interceptado caso eu fizesse.
Foi preciso menos de três segundos para desistir.
Não era como se Anton Vassiliev fosse capaz de entender a
importância do que eu estava vivendo. Para ele, Romeo era
apenas mais um degrau rumo ao grande objetivo.
Se Anton sorriu quando Branka me deu a luz, não foi de
felicidade ou de emoção.
Foi de expectativa.
Se me admirou em seus braços não foi porque me achava a
coisa mais importante da sua vida.
Mas porque eu poderia ser a coisa mais fascinante que ele já
fizera.
Anton possivelmente vislumbrou o seu soldado mais brilhante
no rosto de um bebê recém-nascido e por isso, talvez tenha
sorrido.
Ri da possibilidade, pensando nos anos que perdi por estar
aprisionado a ele e ao que queria de mim.
Ainda buscava entender quem eu realmente era, mas quando
Kim me deu a notícia de que eu seria pai, independentemente de
qualquer coisa, tive a maior certeza da minha vida:
Romeo seria livre para ser quem ele quisesse.

FIM
Recado da autora

Primeiramente, gostaria de te agradecer por chegar até aqui.


Espero que a história de Kim e Brandon tenha te tocado de alguma
forma. Obrigada!
Em segundo lugar, preciso avisar que, apesar do HIV ser uma
pauta recorrente ao longo da trama, eu não quis que a história
girasse em torno disso.
Se trata de uma personagem que se sente da forma descrita e
que está em processo de desconstrução. O foco é realmente a
espionagem e o casamento deles, mas ambos os personagens
têm seus dilemas, passados e traumas. Sendo estes, elementos
colocados para compor o enredo e não reger necessariamente a
história.
Espero que tenham entendido, e caso queiram saber mais
sobre a trajetória de uma mulher soropositiva desde a infância,
recomendo que assistam a esse vídeo:

https://youtu.be/zhuGOXmigJs

Com amor e gratidão, Alessandra Ferrer.


[1] O “Xeque” é quando uma peça está posicionada a um lance de dar um Xeque-mate. Se
o oponente não reverter a situação, a próxima jogada será um Xeque-mate.
[2] Significa "mãe" em húngaro.
[3] Infecção Sexualmente Transmissível.
[4] O nome da música é “hope is a dangerous thing for a woman like me to have — but i
have”
[5] Inteligência Britânica.

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