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In: Hospitalidade e Dádiva. A alma dos lugares e a cultura do acolhimento, org.


Leandro Benedini Brusadin, Curitiba, Prismas, 2017, 281-296. ISBN
9788555075407

A espiritualidade na hospitalidade: uma viagem da Antiguidade às Minas Gerais

Pedro Paulo A. Funari

Isabela Frederico

Introdução

Marcel Mauss, o grande etnólogo francês, em certo sentido um dos fundadores


da disciplina, forjou-a a partir do seu clássico Ensaio sobre a dádiva (Essai sur le don,
1923/4; Cosac Naif 2003). Já naquela obra seminal, logo traduzida para muitos idiomas,
Mauss ligava o dom a um contrato espiritual entre as partes: présenter quelque chose à
quelqu'un, c'est présenter quelque chose de soi (presentear algo a alguém, é presentear
algo de si). Notemos que présenter significa tanto presentear, como apresentar, pois, de
fato, ambos os conceitos estão relacionados. Talvez se possa dizer que o ser humano
possa ser caracterizado pela dádiva e pelo acolhimento, à diferença de outros animais,
ainda que, em certas circunstâncias tais comportamentos possam ser observados
também em outros seres vivos. Mauss não hesitaria, contudo, em colocar toda a carga
emocional desses gestos no âmago da experiência humana. Neste capítulo, trataremos,
de início, desses conceitos centrais, para, em seguida, mostrarmos, de forma breve, os
contextos antigos, medievais e modernos, com um aceno ao Brasil, para introduzirmos o
leitor ao estudo de caso, o Santuário do Caraça, em Minas Gerais.

Hospitalidade e outros temas do espírito humano

Para tratarmos de qualquer tema, convém voltar-se, antes, para os conceitos.


Esta é uma premissa filológica básica: só podemos pensar o mundo por meio de
conceitos e o mundo só é-nos perceptível por esses mesmos instrumentos de percepção
(Funari 2003). Daí que se possa dizer que sem o conhecimento da taxonomia de um
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povo, nada se pode saber, de primeira mão e em profundidade, sobre como organiza, em
sua mente, as ideias e o próprio mundo material (Heidegger 1993). Isto é tanto mais
válido para os termos centrais de nosso tema, para além do que já dissemos sobre a
dádiva. De fato, o dom constitui um elemento essencial do comportamento humano em
todas as sociedades conhecidas no presente e no passado, como parte essencial do
processo de constituição de relações amistosas. Não por acaso, a própria palavra dádiva
deriva do verbo dar e constitui o gesto básico de relacionamento amistoso. Trata-se de
um desarmamento de espírito, tendo em vista que as relações entre os humanos sempre
está e esteve a um passo do conflito, como advertia o pensador grego antigo Heráclito
(Fr. 53)μ “o conflito é pai de todas as coisas” (Πό ε ο Πατή πά τω ). A dádiva é o
antídoto da guerra.

Desse campo de apaziguamento consta o conceito de hospitalidade, derivado de


hospes, palavra latina que significava, ao mesmo tempo, “aquele que hospeda alguém”,
“hóspede” ou “visitante” e mesmo “estrangeiro”, daí que hospitalitas seja tanto
“hospitalidade”, como “ser um convidado, estar hospedado”. Importa ressaltar, aqui,
que os usos latinos traem a própria origem do étimo que une o conceito de estrangeiro,
fora do lugar, e uma acolhida generosa. Isto não é de subestimar, pois o estrangeiro
(hostis, “inimigo”) traz consigo o perigo e, portanto, entre o estranho perigoso e hostil
(hostis) e o amigo (hospes) há pouca distância. A passagem de um para outro envolve
uma troca simbólica ou espiritual, como definiria Mauss, um pacto (foedus, para os
latinos, um acordo que envolve a boa-fé, fides). Com isso, chegamos ao acolhimento,
esse ato em aparência de desprendimento, que envolve a junção (lego) com (cum)
daquele que vem até (ad) nós (ad+cum+lego). Aparente, pois a recepção de alguém
nunca é sem desconfiança e nem dispensa dádivas que estabeleçam os laços de
confiança (fides, boa-fé) entre as partes.

Não se pode pensar em dádiva e hospitalidade sem um elo espiritual. Por um


lado, o dom pode ser material, assim como o aposento reservado ao hóspede é um lugar
concreto, mas isso não basta para que a ligação de confiança seja estabelecida. Isso
dependerá de um elemento imaterial, um elo espiritual, ou religioso, como se queira ou
defina. De fato, o termo espírito liga-se ao sopro, ao vento, tanto na origem direta latina
(spiritus, vento, derivado de spiro, respiro) como hebraica (‫ַ ּח‬, ruah, sopro divino) e
grega (π εῦ α, pneuma, ar) e associa, de forma indelével, a respiração humana e os
ares, como se houvesse uma comunhão mística entre a respiração humana e os ares da
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natureza, acomunados pela divindade. A hospitalidade, o acolhimento do visitante em


nossa morada, passa por um compartilhamento de ares, seja de respirar em comum,
como da abertura da janela para os ares externos. Assim, esse elo espiritual possui uma
materialidade, na forma do ar humano e natural, que mistura hospedeiro e hospedado,
acolhedor e acolhido. Essa associação é material, mas é também um vínculo que
transcende a matéria. O conceito moderno mais usado, religiosidade, retoma uma das
possíveis origens do termo: re-ligar, colocar em contato - portanto bem no âmbito da
hospitalidade - uma ligação de pessoas e coisas visíveis e invisíveis. Os gregos, que não
tinham palavra para religião ou religiosidade, termo moderno, usavam ta theia, as coisas
divinas, para descrever o que estava para além do visível e material. Em qualquer caso,
é interessante observar que essas coisas para além do visível ou material estavam
sempre no horizonte dos lugares ermos, como será o caso, no mundo moderno, das
florestas e paisagens rurais. A acolhida em meio ao campo ou ao bosque, esse os lugares
mais propícios à interação espiritual, como veremos no estudo de caso, o Caraça.

Hospitalidades antigas e modernas

A partir dos conceitos, entremos nas particularidades históricas. A hospitalidade


antiga era valorizada como a acolhida generosa e incondicional do visitante, como
atesta Cícero: recte etiam a Theophrasto est laudata hospitalitas (Cic. Off. 2, 18, 64),
“de maneira correta, é louvada a hospitalidade por Teofrasto”. Sinal, pois, de
comportamento humano que transformava o visitante, possível inimigo (hostis) em
hóspede (hospes). A literatura antiga apresenta inúmeros casos de acolhimento
generoso, tanto em ambiente urbano como rural, sem que faltem casos de decepção,
tanto por parte do acolhedor, como do acolhido. Lembremo-nos que a palavra decepção
significa “levar ao engano”, derivada do sentido de “pegar”, como na expressão
portuguesa “pegadinha”, já presente no latim (induxit, decepit, omni fraude et perfídia
fefellit, Cic. Rosc. Am., 40, 117, “induziu, levou ao engano, com todo tido de fraude e
perfídia enganou”). Pausânias (115-810 d.C.) publicaria o primeiro guia turístico, a sua
Descrição da Grécia, a mostrar como a hospitalidade esteve no centro da experiência
antiga da viagem (Lomine 2005; Pretzler 2007), algo que esteve no fundamento da
cultura antiga, desde a Odisseia de Homero e repetidas vezes ao longo da História.
Heródoto, pai da História, segundo Cícero (Leis, 1, 5), viria a ser pai da Geografia e da
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Etnografia, sempre como viajante recebido como hóspede num mundo ainda sem hotéis
ou estrutura turística.

O Cristianismo irá introduzir outros elementos, ainda que calcados, em alguns


casos, no mundo politeísta greco-romano. Em tempos de guerras medievais perenes, a
hospitalidade nas igrejas e monastérios será tanto um resquício da sacralidade dos
templos pagãos, como um sinal de distinção, em particular nos mosteiros em meio ao
campo, protegidos também pela sacralidade do deserto ou do bosque. A hospitalidade
dos mosteiros, mesmo quando ultrajada com certa frequência, fornecia um quadro de
contraposição entre um mundo em guerra permanente e uma acolhida sancionada pela
proteção divina (Beltramo 2015).

A modernidade viria a acrescentar novas conotações à viagem e à hospitalidade,


em particular a partir do século XVII tardio, com o chamado Grand Tour e as viagens
pelo Mediterrâneo. Numa modernidade ainda sem hotéis, esses viajantes dependiam da
hospitalidade, do acolhimento amistoso em terra estranha. Dessa experiência, surgiu a
paixão de Goethe pela Itália, assim como tantas outras, a mostrar como havia um
sentimento íntimo de conexão com as terras, paisagens e pessoas visitadas:

Kennst du das Land, wo die Zitronen blühn,

Im dunklen Laub die Goldorangen glühn,

Ein sanfter Wind vom blauen Himmel weht,

Die Myrte still und hoch der Lorbeer steht,

Kennst du es wohl?

Dahin! Dahin

Möcht ich mit dir, o mein Geliebter, ziehn!

http://ingeb.org/Lieder/kennstdd.html

Conheces a terra, onde florescem os limoeiros,


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Seus frutos dourados à laranja brilham em meio ao breu

Esta terra de vento suave que sopra do céu azul

A murta silencia e o louro alteia

Conheces esta terra?

Para lá, para lá!

Possa eu ir contigo, meu amado.

(tradução nossa)

No Novo Mundo, essas viagens, um pouco mais tardias, já no início do século


XIX, representavam um novo impulso, agora para além do Mediterrâneo, para o
conhecimento ilustrado do mundo natural e humano. No caso do Brasil, a vinda da
família real portuguesa para os trópicos e o translado da capital de um império para a
colônia (1808), primeira e única vez na História, abrirá as portas para os viajantes
estrangeiros que irão descobrir um país ainda desconhecido (Leitão 2007). Essas
viagens, muito antes do turismo, serão uma verdadeira aventura, tanto pelas dificuldades
materiais e pelas distâncias, como pela interação inédita e inesperada entre habitantes de
um mundo distante e ensimesmado e viagens a corrente de um mundo cada vez mais
conectado, racional e iluminista dos viajantes. É neste contexto que se pode entender
esse encontro no Caraça, tema que desenvolvemos a seguir.

Espiritualidade, história e natureza: a hospitalidade do Santuário do Caraça

Na fulgência das montanhas mineiras, incrustado na Serra do Espinhaço, tem-se


o desabrochar do chamado Santuário do Caraça. Resguardado por sete grandes picos,
entre eles o esplendoroso Pico do Sol (2072 metros de altitude), observamos uma
geografia valorizada pelo seu precursor, o ermitão de origem portuguesa, conhecido
como Irmão Lourenço.

A Serra que dá origem ao nome do Santuário, tem seus primeiros registros em


documentos históricos datados de 1708 (Afonso 2012). No entanto, apenas em 1711,
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observa-se a existência de uma primeira menção oficial ao território do Caraça, durante


o registro de uma sesmaria, na qual aparecem detalhes importantes de sua paisagem
como as cachoeiras, os caminhos e as encruzilhadas que se observavam no território
Caracense, durante as Minas Setecentistas (Zico 1979).

Já nos primórdios de sua ocupação, encontramos detalhes importantes de sua


localização geográfica, como a presença de recursos minerais, valorizados desde o
período colonial, como o ouro. E é a busca por este elemento, que arraiga os primeiros
povoados na região da Serra do Caraça, característicos dos bandeirantes paulistas que
empreendiam viagens de exploração e busca por este metal. Ao longo do caminho,
estabeleciam-se, plantavam mantimentos, como forma de resguardo do sustento no
retorno das expedições (Guimarães e Reis 2007).

No entrelaçamento da cultura do ouro com a natureza êrma do lugar, que a Serra


do Caraça dá seus primeiros passos para uma ocupação mais efetiva, pautada pela
espiritualidade e pelo acolhimento centrado em uma religiosidade católica que se
encontra com o misticismo do ambiente natural circundante. Para além de uma recepção
linear e fechada, a cultura material e imaterial do local foi se construindo a medida que
o outro se estabelecia e se encontrava com a tradição existente. Ao estilo das antigas
navegações de cabotagem, ora se estabelecia olhar com as raízes de sua história, ora
com a novidade daquele que vinha em busca de acolhimento e do silêncio.

As interpretações que compõem a história do Caraça, em especial de seu grande


personagem Padre Tobias Zico (1982), abordam um marco temporal baseado em quatro
grandes momentos. São eles a chegada e fundação da ermida do Irmão Lourenço em
1770; a construção do célebre Colégio do Caraça com a gestão de padres vicentinos
portugueses em 1820; a gestão do educandário por padres também vicentino, porém
franceses em 1854; a direção do colégio por padres brasileiros, iniciada em 1903 e a
fase mais contemporânea, também gerida por estes, mas voltada para uma atividade
turística cujo histórico remonta para a década de 1970.

No entanto, nosso objetivo neste capítulo, tem sido a discussão da hospitalidade


e da espiritualidade. Por esta razão, centraremos nossos esforços na apresentação desta
relação em dois principais momentos da história do Santuário. São elas, a fase do Irmão
Lourenço, a qual se caracterizou pelas peregrinações religiosas e pela chegada de
grandes naturalistas que percorriam o território brasileiro, em especial a província de
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Minas Gerais. E a fase mais contemporânea, desenhada por uma atividade turística
respaldada pelo patrimônio cultural material e imaterial e pela área protegida que
compõem o espaço Caracense na atualidade.

Em ambos os recortes, poderemos observar significados importantes abordados


na primeira parte deste capítulo, entre eles os elementos conceituais do que caracteriza a
hospitalidade e a espiritualidade, como também as características que compuseram a
arte da acolhida ao longo do percurso histórico abordado. Guardadas as devidas
precauções com o espaço tempo relatado, poderemos observar no Caraça, elementos
que compuseram a hospitalidade ao longo de sua história e que na atualidade, são
renovadas e ressignificadas durante o turismo neste Santuário.

A acolhida na ermida do Irmão Lourenço

Visitando aquela alcantilada solidão, murada de


montanhas em toda a sua circunferência, onde a
magestade da natureza entoava um hino perene de
louvor a uma punjança ainda maior, a força
creadôra, concluiu que nenhum outro local se
prestaria tão bem ao fim que tinham em vista e que o
levara a procurar aquêle lugar tão deserto.

“Bem no centro do Estado de Minas Gerais, no contraforte da Serra do


Espinhaço, a mais de 1.400 m. de altitude e a 120 Km. De Belo Horizonte”,
encontramos a ermida do Irmão Lourenço (Zico 1982:9). Um cenário lapidado pela
solidão e pelo silêncio. Elevadas altitudes que pareciam proteger a capela e todos
àqueles que ali chegavam. Mas quem eram essas pessoas? O que elas buscavam? Qual
era a acolhida ofertada em um local tão isolado e de difícil condições de acesso? Essas
questões são inevitáveis a todos aqueles que hoje se aproximam ao Caraça e refletem
sobre o seu processo de formação histórico-cultural.

Compreender a hospitalidade Caracense que permeava o século XVIII, implica


necessariamente no entendimento da figura do seu precursor, o Irmão Lourenço.
Esmiuçar sua história, por outro lado, remete também à lembrança de elementos
importantes das Minas Setecentistas, como exemplo, a busca por ouro e diamantes que
desenhava não apenas a economia do território, mas também a sociedade e cultura deste
importante período.
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São poucas as documentações diretas sobre a vida de Lourenço 1. São várias as


versões sobre as origens do precursor do santuário. Em seu testamento, lê-se que é
português, natural de Nagozelo, filho de Antônio Pereira e de sua mulher Ana de
Figueiredo. Contudo, a história convencionalmente aceita em Minas é a de que o Irmão
pertenceria a família Távora e seria, mais precisamente, Carlos Mendonça Távora. Esta
família teria sido perseguida por Marquês de Pombal, após o atentado sofrido por D.
João I, em 1758. Carlos Távora, teria então vindo então ao Brasil fugindo (Leite Jr
1948; Zico, 1982) e chego em Minas, mais precisamente em Diamantina, e tomado o
hábito da Ordem Terceira de São Francisco (Zico, 1979). Teria trabalhado a serviço de
João Fernandes de Oliveira, no contrato de diamantes, até 1770, quando desaparece e
ressurge em 1774, nas entranhas do Espinhaço, fundando a sua ermida dedicada à Nossa
Senhora Mãe dos Homens e São Francisco de Chagas.

Lima Jr. (1948:76) relata de forma literária:

Contemplando-se as construções que ali deixou o Irmão


Lourenço, compreende-se bem a acertada escolha daquele local
terrível por quem desejava fugir às maldades humanas e atingir
pela perfeição do espírito as bem-aventuranças. E quem, sem ser
visto à distância, poderia chegar até as proximidades do
cenóbio? Desde longe a vista alcança os trilhos de desfiladeiros,
e por detrás da Casa, sobre a montanha com seus atalhos e
verêdas.

A paisagem relatada reflete o isolamento característico do Caraça. Nas palavras


de Cruz (1λ20μ8) “tranpoz os alcantis destas serras e veio buscar, no êrmo, a paz que
não encontrava mais entre os homens”. Assim, acompanhado dos traços religiosos
inerentes à ermida, encontramos as pistas sobre os primeiros viajantes que chegavam ao
local: os peregrinos e eremitas. Eram organizadas romarias em frente ao pequeno
santuário e feitas cantorias no eco das montanhas da serra. Lembremo-nos que as
romarias e as procissões constituem hábitos culturais adotados na antiguidade clássica,

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São duas as principais obras que resgatam a sua origem. A primeira delas é de 1948, de autoria de
Augusto de Lima Junior, intitulada “O fundador do Caraça”. Em segundo lugar, com uma abordagem
mais geral, destaca-se o livro “O centenário do Caraça”, escrita em 1920, pelo Padre da Missão Vicentina,
Antônio Cruz. De forma indireta, podemos mencionar também, os relatos do naturalista francês Saint
Hilaire, durante sua passagem pela Serra do Caraça. Sobre a inserção do Caraça no contexto mineiro
setecentistas, destaca-se, de forma bastante contundente, o clássico “As Minas Gerais e os Primórdios do
Caraça”, de autoria de José Ferreira Carrato, em 1λ63.
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anterior até mesmo ao Cristianismo. Posteriormente foram adotadas pela Igreja e


difundidas na Idade Média, constituindo um bom exemplo de espiritualidade popular.

E no contexto mineiro, do ciclo do ouro, as ermidas também tiveram papel


crucial para a acolhida das camadas populares. As cerimônias religiosas realizadas por
essas organizações ditavam o convívio social naquele período e, por esta razão,
“religiosidade, sociabilidades e irmandades se (com) fundem e se interpenetram”,
afirma Boschi (2007:59). As irmandades mineiras inspiradas nas existentes em território
português, destacavam-se pelo convívio social e pela realização de festas e de encontros
de peregrinação. No entanto, diferenciam-se em alguns detalhes de sua função no
convívio. Enquanto as portuguesas, de caráter medieval, centravam-se nos ofícios de
natureza militar/assistencial, as mineiras ocupavam-se principalmente nos aspectos
devocionais associados principalmente à situação social de seus membros (Fonseca
2007).

Tem-se registro que a irmandade de Nossa Senhora Mãe dos Homens reuniu
23.226 pessoas por toda a província de Minas Gerais (Palú 2012). A hospedaria era
bastante simples e oferecia o básico para a recepção dos peregrinos: dormida e comida.
Mas os elementos que caracterizava a dinâmica da hospitalidade do local, eram os
valores imateriais presentes na acolhida religiosa, vivenciados pelas romarias e a
espiritualidade presente no isolamento do ambiente natural circundante. Além dos
peregrinos, Lourenço recebia na sua ermida a visita de grandes naturalistas europeus
que percorriam o território brasileiro em busca do conhecimento letrado de sua fauna e
flora. Esses viajantes trazem relatos que não se limitam a descrição biológica das
paisagens encontradas, mas resgatam também a própria dimensão da hospitalidade
existentes nos espaços visitados.

Ao lado do francês Saint Hilaire, o Caraça recebe também no século XIX a visita
do alemão Carl Friedrich Philipp Von Martius. Em seus escritos detalhados sobre a
chegada ao santuário, notadamente está presente o elo espiritual associado à
hospitalidade, em ambientes naturais:

Depois de termos ouvido missa solene na bonita capela da casa do bravo


sebastianista, em companhia dos vizinhos ali reunidos, deu-nos ele como guia
um mulato, conhecedor do caminho para o Hospício da Mãe dos Homens,
situado na parte mais alta da montanha, e despedimo-nos com votos cordiais
de mútua felicidade. O caminho passava sobre ervosa encosta, cortada por
muitos fossos, indo para o cume do morro pelo ocidental. Pouco a pouco, a
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região tornava-se mais rala e íngreme e pedregoso; outeiros, cobertos de


arvoredo escuro e profundos sulcos, alternavam-se com rosinhas encostas de
pastos ou com píncaros de rocha de um branco deslumbrante e com fontes
ruidosas, que se despenhavam entre cerradas e motas de fetos, orquídeas e
aráceas, convidando ao repouso. Finalmente, chega-se por uma vereda, por
entre mato baixo cerrado, a um vale alto, fechado em forma de anfiteatro, no
qual se destaca o aprazível edifício do Hospício. Toda a natureza aqui
respira contentamento, e uma indizível sensação de doce tranquilidade e
bem-estar enche a alma do viajante. Por uma escada larga de pedra, sobe-
se ao convento, que, já de longe parece anunciar, com a coroa de topos de
palmeiras inclinações e preocupações mundanas do que esta habitação
solitária de piedosa contemplação. Às agradáveis impressões que a região
desperta no espírito do viajante, este se entrega com tanto mais gosto,
quanto mais raras são num país, ainda pouco habitado e pobre em obras de
arte. (grifo nosso)

Os primeiros viajantes que chegam ao Caraça, peregrinos e naturalistas,


evidenciam a relação indissociável da hospitalidade com os valores imateriais da
acolhida. A paisagem cultural lapidada pela religiosidade popular e pela natureza
existente inspira a ligação de confiança e bem-estar percebida por àquele que chega ao
santuário. Von Martius, por exemplo, evidencia que embora a motivação de suas
aventuras por Minas serem o conhecimento letrado e racional da botânica existente,
encontra também uma relação inspiradora e espiritual da natureza encontrada. De forma
clara, a associação com o bem receber advindos do viés espiritual da natureza, narrados
pelo naturalista.

A simplicidade e o meio ambiente na recepção dos turistas

“Minha vontade sempre foi e é de que esta Casa seja residência de Missionários
... e seminários para meninos”. Inspirado nesse desejo do Irmão Lourenço, que o rei D.
João VI envia ao Caraça em 1820, dois padres vicentinos para a fundação do chamado
Colégio do Caraça. A célebre instituição mineira recebeu mais de 15 mil alunos, entre
eles importantes personagens nacionais, como os presidentes Afonso Pena e Arthur
Bernardes. Foram feitas alterações na humilde capela barroca e sua ampliação resultou
em uma imponente catedral neogótica, nas entranhas das montanhas do Espinhaço.

O colégio funcionou até 1968 quando foi acometido por incêndio e obrigado a
interromper suas atividades educativas e missionárias. Nesse período de bastante
incertezas, o espírito acolhedor de viajantes ressurge novamente em um caráter mais
contemporâneo, chamado de turismo. A princípio formado por curiosos da região e
familiares dos ex alunos, a atividade, sem planejamento prévio, acarreta uma série de
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impactos ao patrimônio religioso e natural do local. Mas esses efeitos são logo
percebidos e trabalhados pela gestão que funda o seu projeto turístico em três grandes
pilares, baseados em sua tradição religiosa e histórica. Os usos do Caraça estariam
fundamentados então pela cultura, peregrinação e turismo. A década de 1970, que
abriga essas reflexões, destaca-se também pelo cenário global de preocupação ambiental
e a natureza ali presente ganha preocupações conservacionistas, respaldadas pelos
valores espirituais e pela influência de pesquisadores que visitavam e interagiam com o
local.

Os valores vicentinos de simplicidade desenharam os aposentos e as práticas de


alimentação e usos do santuário. O turista que ao longo das décadas chegavam,
encontravam-se com a tradição e ressignificavam a espiritualidade do local, com os
olhares voltados não apenas à religiosidade, mas em especial à natureza majestosa
existente no local. Durante pesquisas com turistas, Frederico (2013) identificou a
emergência de dimensões vinculadas ao afeto, à sensibilidade e à imaginação na
experiência dos turistas no santuário. O acolhimento desenhado pelos elementos
religiosos e paisagísticos do Caraça resgatavam a vivência de uma espiritualidade
renovada, alimentada pelo encantamento de uma natureza preservada e mística.

Bruhns (2009:17) explica que a natureza, enquanto território de experiência


(vinculada à restituição do natural) resgata elementos como o “sensível, a imagem, o
corpo, o doméstico, a comunicação, o emocional”, que juntos operam em uma estética
ética – que possibilita uma “religação social, traduzida em uma religiosidade
contemporânea”, relacionada a um presente a ser vivido de maneira empática com os
demais, e já não mais em um “futuro a fazer”.

O relato dos turistas possibilita uma caracterização dos elementos que


conformam a espiritualidade na hospitalidade do Caraça. Eles estão vinculados à
conservação ambiental, à percepção de um tempo desacelerado, à contemplação, à
relação de comunhão entre a natureza e a cultura e à abertura para outras religiões
daqueles que chegam até o santuário (Frederico 2013). Semelhante à ideia dos
mosteiros na Idade Média, o santuário do Caraça resguarda para os seus turistas
contemporâneos, um ambiente protegido, no qual estarão amparados dos vícios
modernos atrelados ao consumismo e à exploração desenfreada dos recursos naturais. O
relato de um turista, apresentado por Frederico (2013:134) ilustra nossa reflexão:
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“Isso que torna o lugar especial, é uma comunhão. Como falam aqui, é um
santuário. É um lugar reservado, sem grandes interferências. Tem a missa todo dia. A
relação que se estabelece com as pessoas hoje em dia é muito consumidora, né. As
pessoas hoje têm a tendência de ir para algum lugar consumir e ir embora e aqui tem
uma coisa que vai além disso, dessa relação só de consumo com o cliente. Aqui tem a
relação da comunhão, da natureza com a religião, com o que a religião tem de melhor.
Hoje em dia a religião deixou um pouco de lado essa coisa do poder, ela voltou mais à
sua origem com as coisas virtuosas.”

Embora exista a presença da religião católica na gestão do espaço Caracense,


existe na atmosfera natural elementos incisivos e determinantes na experiência de quem
vivencia o local. Existe a percepção de uma divindade que se expressa no ambiente e no
silêncio do local. Respaldados pela vivência de uma ética baseada no respeito pelas
outras formas de vida existentes, os turistas atestam vivenciar uma hospitalidade que se
expressa nos valores imateriais existentes. Estes, resguardam relações diretas de bem-
estar e acolhimento subjetivo dos que visitam e se hospedam no Caraça. Alguns relatos
de diferentes turistas exemplificam, de maneira clara, o elo indissociável dessa relação
(Frederico 2013:136 e 137):

“Volto pela beleza do lugar, pelo ambiente especial, pela esperança de vida
animal, pela fauna, flora e por ser um lugar que tem mais amabilidade”

“Essa relação com a Congregação né, não é só turismo, tem a parte da religião.
As pessoas se encontram para conversar. Aqui é mais do que as trilhas, tem essa
herança do Irmão Lourenço. Isso torna especial, é uma comunhão religião com a
natureza”

Os viajantes do Caraça do século XVIII e os turistas do tempo atual, permitiram-


nos ilustrar o viés espiritual das experiências de hospedagem no Caraça.
Ressignificados ao longo do tempo, podemos visualizar a importância dos valores
imateriais nas narrativas daqueles que chegam, independentemente de suas razões
específicas e particulares.
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Considerações Finais

O geógrafo chinês Yi Fu Tuan (1983), foi um dos precursores do conceito de


topofilia. Para ele, o termo reflete o sentimento instituído com o lugar. Esse vínculo se
estabelece em uma relação de compreensão/interpretação, mediada por entendimentos e
simbologias que, de forma processual, conferem significados e valores às paisagens
vivenciadas. São elementos importantes nessa relação, os órgãos sensoriais e a
experiência durante a vivência.

Como pudemos observar ao longo deste capítulo, a hospitalidade é mediada não


apenas pelos elementos físicos do bem receber. Ao longo da história, observamos que a
relação entre hospedeiro e hóspede percorre os caminhos da confiança mútua, quando
balizados por valores imateriais da acolhida. No cerne dessa relação, a espiritualidade
emerge iluminando a história dos viajantes ao longo dos anos. O bem estar e o afeto
com o lugar visitado e com a cultura inerente percorrem o caminho da subjetividade
abrilhantada pelas vivências intimas com os significados dos espaços visitados.

O caso particular do Santuário do Caraça, demonstra de maneira empírica, que


embora a viagem tenha ganho outras conotações ao longo do período contemporâneo,
ela ainda carrega em seu âmago, a experiência espiritual como elo entre visitante e local
visitado. Se por um lado, o turismo em tempos atuais é visto como uma atividade
econômica, por outro, não podemos desmerecer os seus significados antropológicos e
subjetivos. Para além das relações de mercado dadas como certas, existem
subjetividades que resguardam possibilidades infinitas de afeto e respeito com o outro.
Aos olhos dos estudiosos mais esperançosos com os benefícios do turismo e da
hospitalidade, essas reflexões abrem caminhos, no mínimo, interessantes e que merecem
nossa atenção e nossos estudos.

Agradecimentos

Agradecemos a Haroldo Leitão. Mencionamos o apoio institucional da Unicamp, da


FAPESP, CAPES e do CNPq. A responsabilidade pelas ideias restringe-se aos autores.
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Bibliografia

AFONSO, J. Santuário do Caraça. Revista Sagarana. Belo Horizonte, 2012. Disponível


em: < http://www.revistasagarana.com.br/?P=293>. Acesso em: 17/10/2012.
BELTRAMO, S. "Medieval Architectures for Religious Tourism and Hospitality along
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and Pilgrimage: Vol. 3: Iss. 1, Article 10, 2015. Available at:
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