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“E havia livros na caixa de Pandora...”


A literatura como enfrentamento da adversidade
ROSA MARIA NORONHA DIAS*

Resumo: No mito de Pandora, quando a caixa é aberta, males são espalhados pelo mundo
e somente a esperança permanece. De que esperança o mito nos fala? Pode a Literatura ser
considerada um recurso de enfrentamento diante dos males que nos acometem? Pode a
Literatura em algumas situações ser a porta-voz da esperança? Este artigo apresentará a
definição de mito, suas características e qual seu valor na história da Humanidade.
Também apresentará o mito de Pandora e as variações encontradas, além de trazer
algumas representações artísticas sobre Pandora e o quanto cada uma delas fala da visão
histórica de mulher. Abordará as semelhanças e diferenças entre o mito grego e o mito
judaico da criação de Eva, a primeira mulher. O artigo pretende assinalar como o conceito
de esperança é variável, dependendo do momento histórico e dos sujeitos sociais e
explorar o conceito de resiliência, originário da Física e da Engenharia e tomado
emprestado pela Psicologia para estudar os processos de resistência e sobrevivência aos
infortúnios e à adversidade. Também discutirá a possibilidade da Literatura servir como
instrumento de reconstrução do sujeito, apresentando o trabalho da antropóloga Michèle
Petit com grupos em risco social através da leitura compartilhada.
Palavras-chave: mito; resiliência; leitura; leitura compartilhada; esperança.
Abstract: In Pandora’s myth, when the box is opened, evils are spread around the world
and only hope remains. Which hope does the mith tell us? Can Literature be considered a
coping resource on the evils that beset us? Can Literature, in some situations, be the
spokesman of hope? This article will present the myth definition, its characteristics and
what its value in human history. It will present the myth of Pandora and the its variations,
besides bringing some artistic representations about Pandora and how much each one of
them talks about the historical vision of women. It will address the similarities and
differences between the Greek myth and the Jewish myth of the creation of Eve, the first
woman. The article aims to point out how the concept of hope is variable, depending on
the historical moment and social subjects and to explore the concept of resilience,
originating in Physics and Engineering and borrowed by psychology to study the
processes of resistance and survival to misfortunes and adversity. It will also discuss the
possibility of Literature acting as the tool of reconstruction of the subject, presenting the
work of anthropologist Michèle Petit on social groups at risk through shared reading.
Key words: myth; resilience; reading; shared reading; hope.

*
ROSA MARIA NORONHA DIAS é Pós Graduada em Psicologia Clínica-Institucional;
professora regente de Sala de Leitura da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro; atriz e
contadora de histórias.
Discussão teórica e análise do tempo, críticas ao pensamento mítico
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foram crescendo e tomando corpo,
A sociedade ocidental recebeu grandes
abrindo campo para o nascimento da
contribuições da cultura grega, no que
Filosofia. Não seriam mais os deuses, tão
tange à filosofia, às artes e às demais
antropomorfizados – e esta era a maior
áreas do conhecimento. Uma das formas
crítica que os pré-socráticos faziam a
através da qual este rico material foi
eles, segundo Brandão (1986) – que
perpetuado é sua mitologia que, apesar
dariam suporte e sentido à existência
de remontar a épocas bem antigas,
humana.
continua viva e presente entre nós,
através de seus heróis, deuses e mitos. No entanto, se hoje os mitos estão
esvaziados de seu componente de
O que são os mitos? Etimologicamente,
sacralidade, ainda assim sobrevivem e
mythos, palavra de origem grega,
mantêm seu frescor, nos dando pistas de
significa narrativa. Segundo Coelho
como pensavam os antigos e falando de
(2012, p.139), “são narrativas
forma simbólica sobre questões ainda
primordiais que, sob forma alegórica,
atuais. Ou ainda, segundo Gusdorf
explicam de maneira intuitiva, religiosa,
(1953, p.8) apud Brandão (1986, p.34):
poética ou mágica os fenômenos da vida
"A consciência mítica, embora
humana em face da natureza, da
reprimida, não está morta. Afirma-se
divindade e do próprio homem. Cada
mesmo entre os filósofos e sua
povo da antiguidade (ou os povos
persistência secreta encoraja-lhes talvez
primitivos que ainda sobrevivem em
os empreendimentos no que estes têm de
nossos tempos) tem seus mitos
melhor. Não se trata, por conseguinte,
intimamente ligados à religião ancestral,
de uma simples arqueologia da razão. O
ao começo do mundo e dos seres e
interesse pelo passado constitui-se aqui
também à alma do universo.”
na preocupação com o atual".
Campbell (1990, p.32), apud Bussato
Chegamos, enfim, ao mito de Pandora,
(2003, p.34) aponta para quatro funções
ou na grafia grega, Πανδώρα. No
do mito: “a primeira seria a mística, os
significado de seu nome já começam as
mitos nos abrindo a trilha para a
divergências: pode ser "a que possui
“dimensão do mistério”, para a
todos os dons", "porque todos os deuses
“consciência do mistério que subjaz a
lhe deram um presente" ou ainda "a que
todas as formas”. A segunda função, a
presenteia tudo" (PELLIZER et all,
“dimensão cosmológica”, aquela que
2013).
mostra qual é a forma do universo.
Como terceira função, ele aponta o Sua história é contada por Hesíodo,
caráter sociológico do mito, aquilo que poeta grego que viveu nos fins do século
dá suporte a uma sociedade e, por fim, a VIII a.C.. A Grécia de seu tempo estava
quarta função, que ele chama de função saindo de um longo período de governos
pedagógica, ou seja, “como viver uma monárquicos e vendo nascer uma
vida humana sob quaisquer sociedade aristocrática e oligárquica. Sob
circunstâncias”. estas movimentações sociais, Hesíodo
escreveu, entre outras obras, Teogonia e
Os mitos explicavam as grandes questões
Trabalhos e dias. No primeiro, além de
sobre a vida e o mundo, questões para as
listar a árvore genealógica dos deuses e
quais os povos da antiguidade – no caso,
os gregos – não encontravam explicação daqueles a eles relacionados – a primeira
no seu cotidiano. No entanto, ao longo citação à Pandora – trata também da
origem do mundo. Em sua segunda obra,
retorna à Pandora quando trata do branca do mesmo. Zeus escolheria
uma delas e a outra seria ofertada 127
trabalho como um castigo imposto por
Zeus aos mortais. Segundo Brandão aos homens. O deus escolheu a
(1986, p.153), Hesíodo era bem um segunda e, vendo-se enganado, "a
homem de seu tempo. Vemos “através cólera encheu sua alma, enquanto o
ódio lhe subia ao coração". O
de seus dois poemas, o antídoto religioso
terrível castigo de Zeus não se fez
que ele nos apresenta para os males de esperar: privou o homem do fogo,
seu século, bem como seus sonhos e quer dizer, simbolicamente dos nûs,
conselhos para os séculos futuros. (...) da inteligência. (...)Novamente o
Quem procurou, na Teogonia, partir do filho de Jápeto entrou em ação:
Caos para a justiça, cifrada em Zeus, e roubou urna centelha do fogo
nos Trabalhos e Dias conjugar o celeste, privilégio de Zeus, ocultou-a
trabalho com a justiça está inteiro em na haste de uma férula e a trouxe à
seu século e nos séculos vindouros!” terra, "reanimando" os homens. O
Olímpico resolveu punir
No entanto, antes de apresentar a história exemplarmente os homens e a seu
de Pandora, gostaria de assinalar outra benfeitor. Contra os primeiros
divergência: ao estudar sobre cerâmica imaginou perdê-los para sempre por
grega, Harrinson (1903) encontrou uma meio de uma mulher, a irresistível
ânfora datada do século V a.C., anterior Pandora e contra o segundo a
à obra de Hesíodo, que parecia fazer uma punição foi terrível. Prometeu foi
referência à Pandora. Nesta ânfora, se vê acorrentado com grilhões
inextricáveis no meio de uma
Pandora saindo da terra na presença de
coluna. Uma águia enviada por
Hefesto, Hermes e Zeus, como uma Zeus lhe devorava durante o dia o
representação de uma deusa da terra. fígado, que voltava a crescer à noite.
Para Harrinson, Pandora na mitologia
patriarcal de Hesíodo, tem sua imagem Para perder o homem, Zeus ordenou
transformada e diminuída. a seu filho Hefesto que modelasse
uma mulher ideal, fascinante,
Apresentarei a versão de Brandão e texto semelhante às deusas imortais.
original de Hesíodo, para em seguida Pandora é, no mito hesiódico, a
estabelecer relações entre estas e outras primeira mulher modelada em
fontes. argila e animada por Hefesto, que,
para torná-la irresistível, teve a
“Prometeu passa por haver criado cooperação preciosa de todos os
os homens do limo da terra, mas imortais. Atená ensinou-lhe a arte
semelhante versão não é atestada da tecelagem, adornou-a com a mais
em Hesíodo. O filho de Jápeto, bem bela indumentária e ofereceu-lhe seu
antes da vitória final de Zeus, já era próprio cinto; Afrodite deu-lhe a
um benfeitor da humanidade. Essa beleza e insuflou-lhe o desejo
filantropia, aliás, lhe custou muito indomável que atormenta os
caro. Foi pelos homens que membros e os sentidos; Hermes, o
Prometeu enganou a seu primo Zeus Mensageiro, encheu-lhe o coração
por duas vezes. Numa primeira (...) de artimanhas, imprudência,
Prometeu, desejando enganar a astúcia, ardis, fingimento e cinismo;
Zeus em benefício dos mortais, as Graças divinas e a augusta
dividiu um boi enorme em duas Persuasão embelezaram-na com
porções: a primeira continha as lindíssimos colares de ouro e as
carnes e as entranhas, cobertas pelo Horas coroaram-na de flores
couro do animal; a segunda, apenas primaveris... Por fim, o Mensageiro
os ossos, cobertos com a gordura dos deuses concedeu-lhe o dom da
palavra e chamou-a Pandora, significam tristeza para os homens.
porque são todos os habitantes do Apenas a Esperança foi deixada no 128
Olimpo que, com este presente, jarro inquebrável,
"presenteiam" os homens com a Grudada embaixo da tampa, e não
desgraça! Satisfeito com a cilada pôde voar.
que armara contra os mortais, o pai A mulher fechou a tampa do jarro,
dos deuses enviou Hermes com o E pelo plano do dono de tudo, o que
"presente" a Epimeteu. Este se pastoreia nuvens, Zeus,
esquecera da recomendação de Já naquele momento milhares ou
Prometeu de jamais receber um mais de outros horrores se
presente de Zeus, se desejasse livrar espalhavam entre os homens,
os homens de uma desgraça. A terra está cheia de coisas más, e o
Epimeteu, porém, aceitou-a, e, mesmo acontece com o mar”
quando o infortúnio o atingiu, foi (HESÍODO, Trabalhos e Dias, 90-
que ele compreendeu... (Trab. 60- 101 apud LAURIOLA, 2005)
89). A raça humana vivia tranquila,
ao abrigo do mal, da fadiga e das
doenças, mas quando Pandora, por
Segundo Panofisk, D. e E. (2009), o mito
curiosidade feminina, abriu a jarra de Pandora ficou relativamente ignorado
de larga tampa, que trouxera do pelos romanos, desapareceu na Idade
Olimpo, como presente de núpcias a Média e ressurgiu apenas na Renascença,
Epimeteu, dela evolaram todas as não na Itália, mas na França. Além disso,
calamidades e desgraças que até afirmam que muitas incongruências são
hoje atormentam os homens. Só a percebidas ao longo do tempo e das
esperança permaneceu presa junto inúmeras versões, dificultando e
às bordas da jarra, porque Pandora conflituando as possíveis interpretações
recolocara rapidamente a tampa, do mito. Por exemplo: em algumas
por desígnio de Zeus, detentor da
versões mais recentes e populares,
égide, que amontoa as nuvens. É
assim, que, silenciosamente, porque
Pandora veio do Olimpo com uma caixa,
Zeus lhes negou o dom da palavra, mas, no entanto, outros estudiosos –
as calamidades, dia e noite, visitam inclusive é o que está escrito no texto
os mortais...” (1986, p.166-168) original – defendem que era um jarro ou
um vaso; não há em Hesíodo uma
Este é o reconto de Brandão, fiel à afirmação clara de que Pandora trouxe o
“espinha dorsal” do mito e escrito a jarro (ou vaso) com ela; e há ainda uma
partir de sua compreensão deste. Segue o versão atribuída a Bábrio, poeta e
trecho do texto de Hesíodo, onde se fabulista romano que, tendo vivido entre
encontra o momento crucial do os séculos II e III a.C., teria escrito sobre
nascimento da primeira mulher, da um mortal que abriu uma caixa e delas
disseminação do mal entre os mortais e apenas coisas boas saíram. Enfim,
do fim da Idade de Ouro, tempo de estamos diante de um quebra-cabeça
pureza, prosperidade e felicidade: histórico, do qual buscamos encontrar
“... Antes [da chegada de Pandora] a todas as peças, sem a certeza de que um
raça humana dia as encontraremos.
Tinha vivido da terra sem problema,
sem trabalho Redescoberta na Renascença, Pandora
Sem doença e sem dor... foi retratada por alguns pintores, como
Mas a mulher tirou a tampa da jarra afirmam Panofisk, D. e E. (2009).
com suas próprias mãos Seguem algumas gravuras que
E espalhou todas as misérias que apresentam a mítica personagem.
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Ilustração 1 – Joseph Lefebvre, 1882

Ilustração 2 – John William Waterhouse, 1896


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Ilustração 3 – Dante Gabriel Rossetti, 1871

O elemento em comum nas três Lulu (Pandora). Peter planeja se casar


representações, todas pertencentes ao com a filha do ministro do interior, no
século 19, é a caixa nas mãos de entanto Lulu força uma situação que faz
Pandora, objeto que foi erroneamente com que Peter se case com ela. O
incluído no mito, retirando de cena o casamento dura apenas um dia, pois ele
jarro que constava da narração primeira. ficou com ciúme de seu próprio filho.
Esta confusão filológica que perdura até Este ciúme acaba provocando uma briga
os nossos dias é atribuída ao humanista entre Lulu e Peter. Ao brigarem pela
Erasmo de Rotterdam, no século XVI. posse da arma dele, o revólver dispara e
Peter morre. Ela é condenada a 5 anos de
Pandora também foi tema de peça teatral
prisão, mas seus amigos dão um falso
no século XVII, pelas mãos do
alarme de incêndio, provocando um
dramaturgo espanhol Calderón e mais
tumulto, e assim ajudam Lulu a fugir do
recentemente, no ano de 1926,
tribunal. A partir daí, Lulu passa por mil
protagonizou um filme alemão,
desventuras, entre fugas, chantagens e
adaptação do mito grego, onde Peter,
tráfico internacional de mulheres.
editor-chefe de um importante jornal em
um caso com a atraente jovem, a coquete
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Ilustração 4 – Lulu-Pandora

Ilustração 5 – Cartaz do filme

Da escrita original de Hesíodo às época, por aceitar ser amante de um


posteriores versões e representações homem compromissado. Pandora circula
artísticas do mito, Pandora permanece entre a pureza e o pecado.
como uma criatura ambígua em vários
Ainda que ela não tivesse consciência da
sentidos. Ao mesmo tempo que ela foi
extensão de seus atos e tivesse agido de
criada a partir dos talentos oferecidos
maneira ingênua, foi considerada a
pelos deuses, vemos que estes mesmos
responsável pela disseminação do mal
talentos podem ser utilizados para
sobre a Terra, mesmo tendo sido um
prejuízo alheio. Sua beleza pode ser
instrumento fadado a isto, mais cedo ou
usada para seduzir e ocultar seus
mais tarde, por determinação de Zeus.
verdadeiros propósitos. Sua boa
Não havia escolha. Para Lauriola, no
argumentação permite que iluda,
entanto, “a razão última da entrada do
dissimule a verdade e convença quem a
mal no mundo é Zeus. De fato, Pandora
escuta. Sua curiosidade pode ser fatal.
é um instrumento nas mãos de Zeus. É
Vê-se nas pinturas, as várias faces de
ele quem decide introduzi-la como a
Pandora: virginal em Lefebvre,
fonte de todos os problemas. É Zeus
sensualizada em Waterhouse e
quem cria, através de Pandora, um tipo
assustadora em Dante. Quem é esta
específico de mal, o mal do engano, que
mulher que escapa à compreensão? E no
é atraente e bonito por fora, que parece
filme de quase cem anos, Lulu-Pandora é
ser algo bom (uma mocinha casta e
uma coquete, alguém que não mede
tímida), mas que esconde coisas ruins
esforços para seduzir com a aparência e
dentro” (2005). Mas, além de trazer os
de moral flexível para os padrões da
males para os mortais, Pandora também
representa um marco histórico: o sofrimento e trabalho. Esta
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encerramento da Idade de Ouro, onde “coincidência” não causa espanto, na
não havia necessidade de trabalho entre medida que sempre houve um forte
os homens, atividade considerada intercâmbio e mútua influência entre os
inferior. E como a mulher não podia diferentes povos e culturas, desde as
trabalhar, cabia ao homem a tarefa de mais remotas eras. Porém, Lauriola
trabalhar por dois. A mulher era um também vê diferenças entre as duas
peso, um estômago a mais para histórias, pois Eva foi ofertada a Adão
alimentar, no dizer de Hesíodo: para ser sua companheira e não com
As abelhas trabalham todo dia até o alguma intenção maléfica por parte de
pôr do sol, Deus. Além disso, Deus advertiu Eva de
Ocupadas o dia inteiro fazendo que não comesse a maçã. Zeus, ao
pálidos favos, contrário, não só não orientou Pandora
Enquanto os zangões ficam dentro quanto à abertura do jarro como sabia
[da colmeia] nos favos vazios, que, mais cedo ou mais tarde, ela iria
Enchendo o estômago com o fazê-lo.
trabalho dos outros.
Foi assim como Zeus, o alto senhor Mas a mulher tirou a tampa da jarra
do trovão, com suas próprias mãos
Fez as mulheres como uma E espalhou todas as misérias que
maldição para os homens mortais, significam tristeza para os homens.
Conspiradoras do mal. E ele juntou Apenas a Esperança foi deixada no
outro mal jarro inquebrável,
Para contrabalançar o bem. Grudada embaixo da tampa, e não
Qualquer um que escape ao pôde voar.
casamento
E à maldade das mulheres, chega à Chegamos à esperança que ficou presa
velhice na tampa da jarra. Várias interpretações
Sem um filho que o mantenha. podem ser dadas a este fato: enquanto o
(HESÍODO, Teogonia apud
mal está solto, vivem os humanos sem
LAURIOLA, 2005)
esperança; não estamos abandonados aos
infortúnios, pois sempre teremos a
Ou seja, a mulher era um mal porque esperança de dias melhores; um bem
obrigava o homem a trabalhar por ela. sempre se faz acompanhar de uma
No entanto, sem a mulher a procriação desgraça; a esperança, real ou ilusória,
ficava inviabilizada e o homem não tinha nos mantêm diante das dores... Lauriola
filhos a quem recorrer e pedir auxílio na afirma que a esperança contida numa
velhice. Ou seja, a mulher era um mal jarra junto aos males pode significar a
necessário na sociedade patriarcal própria ambivalência de Pandora e da
grega... mulher, boa e má ao mesmo tempo e do
Observa-se também que o mito de que Zeus decide ser o destino humano:
Pandora guarda semelhanças com a uma mistura de coisas boas e ruins.
história de Adão e Eva, da Gênese do Mas, será que Hesíodo e seus
Velho Testamento judaico: Deus e Zeus contemporâneos entendiam a esperança
se aborrecem quando o conhecimento – da mesma forma que entendemos hoje?
através do fogo ou da maçã – é dado aos Burke (2012) afirma que não. Segundo
homens, a mulher é vista como sedutora ele, a esperança não pode ser entendida
e perigosa, o conhecimento é passaporte como um conceito único, universal e sim
de um mundo idílico para outro de como um constructo social, cultural,
político e econômico. Ao longo da mais recentes apontam para resistência
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História, a esperança correspondeu às ao estresse como sendo relativa,
aspirações das mais variadas: de condicionada a questões constitucionais
“grandes esperanças” – como define e ambientais. Resiliência e
Burke – que vão de expectativas invulnerabilidade não são termos
relacionadas à vida após à morte até a equivalentes, afirmam Zimmerman e
vinda de símbolos messiânicos que Arunkumar (1994) apud Yunes (2003).
salvem uma coletividade, um grupo Segundo estes autores, resiliência refere-
social, uma nação; e também de se a uma “habilidade de superar
“pequenas esperanças”, que adversidades, o que não significa que o
correspondem às utopias (o céu na indivíduo saia da crise ileso, como
Terra), aos desejos de igualdade e justiça implica o termo invulnerabilidade”
social, de realização pessoal e familiar. (YUNES, 2003, p. 77). Isto é, existem
“Se o ato de ter esperança, que o filósofo pessoas que conseguem resistir a severas
marxista Ernst Bloch (1954-1959) dificuldades e manter sua integridade
chama de Das Prinzip Hoffnung, é emocional, depois de passada a
atemporal, os objetos da esperança, ao tempestade. Ainda que não saiam ilesos.
contrário, geralmente são delimitados Mas suas cicatrizes não os incapacitam.
pelo tempo” (BURKE, 2012, p. 207). Estudiosos, como foi mencionado acima,
atribuem esta capacidade a fatores
Burke afirma também que, dependendo
constitutivos e ambientais. Sobre os
do lugar, do momento e das alternativas,
primeiros, talvez tenhamos pouco
as pessoas podem se mostrar mais ou
controle. Mas sobre os últimos, os
menos esperançosas. E quando tudo em
ambientais, é possível uma ação mais
volta aponta para a dor e para o
objetiva e concreta. Quais circunstâncias
sofrimento, de onde algumas pessoas
externas podem facilitar ou dificultar a
tiram a crença em dias melhores e
passagem por um período de estresse?
conseguem sobreviver física
Como auxiliar aqueles que precisam de
emocionalmente às intempéries? Ainda
esperança para sobreviver e, mais ainda,
que não seja a intenção deste artigo
viver com alguma qualidade de vida?
aprofundar-se numa perspectiva
Seria a Literatura um instrumento
psicológica, gostaria de apresentar o
positivo neste sentido?
conceito de resiliência, tomado da Física
e da Engenharia pela Psicologia na Petit (2009), uma antropóloga francesa,
década de 70. A noção de resiliência teve apresenta sua pesquisa realizada em
como um dos seus precursores o cientista países como Argentina, Colômbia e
inglês Thomas Young, em 1807. Ela Brasil. Ela acompanhou experiências de
refere-se “à capacidade de um material leitura compartilhada mediadas por
absorver energia sem sofrer deformação professores, bibliotecários, psicólogos,
plástica ou permanente” (YUNES, artistas, escritores, editores, livreiros,
2003, p. 75). Na dimensão psicológica, o trabalhadores sociais ou voluntários com
estudo da resiliência surgiu a partir da crianças ou adultos expostos a um
observação de crianças que, depois de isolamento social mais ou menos
serem submetidas a profundo estresse acentuado, somado a adversidades
psicológico, mantinham sua saúde múltiplas. A leitura era levada a pessoas
emocional. Os pioneiros do estudo da e grupos que não tinham normalmente
resiliência, associaram-na à ideia de acesso a livros, em geral pouco
invulnerabilidade absoluta, como se escolarizados, vindos de ambientes
fôssemos inabaláveis. Mas, as pesquisas pobres, marginalizados.
O poder da leitura já é conhecido por essencial da leitura era, ao que parecia,
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muitos leitores ávidos, poder de lhes esse trabalho de pensar, de devaneio.
retirar por breves momentos de uma Esses momentos em que se levantam os
realidade cruel ou de auxiliá-los a olhos do livro e onde se esboça uma
enfrentar a realidade, mais conscientes poética discreta, onde surgem
de sua capacidade interior. “Marc associações inesperadas” (PETIT, 2009,
Soriano contou um dia como Pinóquio o p.12).
ajudara, quando criança, a sobreviver à Não se tratou, portanto, de fórmula
morte de seu pai e à grave anorexia que mágica, nem da apresentação de livros
em seguida ameaçou sua vida. Ele teria de “autoajuda”. Não foi o caso de
"devorado, mastigado, ingerido, oferecer conselhos ou fazer preleções. O
regurgitado Pinóquio", no qual teria que se ofereceu foi o livre acesso a
encontrado "ao mesmo tempo o seu lendas, contos, mitos, provérbios, cantos
crime e a salutar revolta que lhe deu e tudo o mais que pudesse permitir
força para lutar contra o massacrante simbolizar conflitos e sentimentos,
sentimento de culpa que a morte colocar em palavras o que muitas vezes
bastante real de seu pai ameaçava pareceu indizível, humanizar a vida.
tornar irreversível e fatal". Avaliamos aí
o quanto uma obra, às vezes, nutre Conclusão
literalmente a vida. Em troca, Soriano Na parte inicial deste artigo, mostrei o
dedicou a sua a estudar contos.” valor que o mito tinha na sua sociedade
(PETIT, 2009, p. 9) de origem, valor agregador, explicativo,
E para aqueles que não tinham regulador, sagrado. Apesar de não serem
intimidade com a leitura, o trabalho mais compreendidos da mesma forma na
persistente e singular dos mediadores foi atualidade, eles continuam suscitando
promover este encontro, permitir àquelas reflexão e identificação, por tratarem de
pessoas tão usurpadas em suas vidas de vivências que ainda dizem respeito à
tantos direitos, o pleno direito (e não o ordem do humano, tão humanos eram os
convencimento) de fazer uso de uma deuses...
riqueza cultural que também lhes Tratando mais especificamente da
pertence. “Nossos interlocutores se mitologia grega, apresentei o mito de
referiam a alguma coisa mais Pandora, através o qual entramos em
abrangente do que as acepções contato com a sociedade patriarcal grega,
acadêmicas da palavra "leitura": que via a mulher como o instrumento dos
aludiam a textos que tinham descoberto deuses para trazer aos homens toda a
em meio a um tête à tête solitário e espécie de malefícios, entre eles a
silencioso, mas também, algumas vezes, obrigação de manter sua existência
a leituras em voz alta e compartilhadas; através do trabalho, atividade
a livros relidos obstinadamente, e a desvalorizada pelos gregos. E ainda tinha
outros que haviam somente folheado, que trabalhar dobrado, por ele e pela
apropriando-se de uma frase ou de um mulher tomada em casamento. Pandora,
fragmento; aos momentos de devaneio a primeira mulher, era e continuou sendo
que se seguiram à relação de convívio ao longo dos séculos porvindouros, a
com a escrita; às lembranças representação do mal escamoteado,
heterogêneas que ali encontravam, às fingido, oculto por uma aparência bela e
transformações pelas quais passavam. sedutora.
Mais do que a decodificação dos textos,
mais do que a exegese erudita, o
E se foi a porta-voz de desgraças para os Referências
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mortais, também trouxe aos homens a BRANDÃO, J. de S. Mitologia Grega. Volume
esperança. Pois antes de sua vinda à 1. Petrópolis: Vozes, 1986.
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não se sentia falta da esperança. Afinal, Tradução: Carlos Malferrari. 2012. Disponível
não havia o que se ansiar de benfazejo em:
para o futuro, já que o presente sorria http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/3949
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para todos sem distinção.
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gregos aspiravam, sonhavam, não era,
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flexibilidade diante das mudanças, Acadêmico, nº 52, setembro de 2005. Disponível
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Por fim, demonstrei através do trabalho Tradução: Vera Maria Pereira. Rio de Janeiro:
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seus mediadores culturais e seus http://demgol.units.it/pdf/demgol_pt.pdf Acesso
frequentadores, que a Literatura pode ser em: 30/07/2015.
a esperança deixada na tampa da jarra PETIT, M. A arte de ler ou como resistir à
para que caminhemos nesta vida entre adversidade. Tradução Arthur Bueno e Camila
dores, mas sem que por isso sejamos Boldrini. São Paulo: Editora 34, 2009.
paralisados por elas. Encerro recorrendo ROSA, G. Grande Sertão: Veredas. 3a ed. Rio
à genialidade de Guimarães Rosa, em de Janeiro: José Olympio, 1993.
Grande Sertão: Veredas, comprovando YUNES, M. A. M. Psicologia positiva e
que, quando nos faltam palavras resiliência: o foco no indivíduo e na família.
próprias, sempre teremos a Literatura. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, p. 75-84,
2003. Disponível em:
“O correr da vida embrulha tudo. A http://www.scielo.br/pdf/pe/v8nspe/v8nesa10
vida é assim: esquenta e esfria, Acesso em :30/07/2015.
aperta e daí afrouxa, sossega e
depois desinquieta. O que ela quer
da gente é coragem. O que Deus Recebido em 2015-09-23
quer é ver a gente aprendendo a ser Publicado em 2016-03-13
capaz de ficar alegre a mais, no
meio da alegria, e inda mais alegre
ainda no meio da tristeza”.

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