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MÓDULO III

MITOLOGIA E
PRÉ-SOCRÁTICOS

Curso Online

Filosofia 360°
Prof. Dr. Mateus Salvadori
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MITOLOGIA E PRÉ-SOCRÁTICOS

1. DA MITOLOGIA À FILOSOFIA

1.1 O mito era uma narra�va verdadeira, sagrada e de conteúdo exemplar


(Mito e realidade, de Mircea Eliade)

. Tipos de mitos:
- Basicamente, existem dois �pos de mitos: 1) as narra�vas que procuram
explicar a origem do mundo são as COSMOGONIAS (cosmos = mundo ordena-
do + gonia = gerar); 2) já as histórias que narram a origem dos deuses são as
TEOGONIAS (theos = seres divinos + gonia = gerar).
- Os mitos se sustentam apenas na autoridade de quem os conta. O poeta-rap-
sodo tem autoridade inques�onável, seja porque recebeu a narra�va de uma
tradição oral respeitada, seja porque é considerado alguém escolhido pelos
deuses para receber uma revelação e passá-la aos outros. Esses devem rece-
ber a informação como verdade inques�onável.
- Desse modo, os mitos não dão espaço para ques�onamentos nem reflexão,
admitem incoerências, contradições e são muito limitados deixando vários
ques�onamentos em aberto, perpetuando a forma de ver e entender tanto o
mundo natural quanto o social.

. A vontade dos seres sobrenaturais:


- O mito narra como a par�r da vontade dos seres sobrenaturais (deuses) uma
realidade passou a exis�r, seja uma realidade total, o Universo, ou apenas um
fragmento, uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma
ins�tuição.
- Outra função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todas as
a�vidades humanas significa�vas: alimentação, casamento, trabalho, educa-
ção, arte, como cozer certo cereal ou caçar um animal com auxílio do cajado
etc. Todas as culturas (povos, civilizações) têm os seus próprios mitos.
- Muitos mitos criaram rituais. Através da repe�ção dos rituais, nasceram as
religiões. Mito e religião (politeístas e monoteístas), portanto, estão in�ma-
mente relacionados.

. Para as sociedades arcaicas (...)


- mito era uma narra�va VERDADEIRA: Zeus criou o cosmos e para provar isso
era só olhar para o cosmo; do caos surge o cosmo;
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- SAGRADA: narra�vas que ocorrem no tempo da criação e são transmi�das


pelos próprios entes sobrenaturais; para a tradição judaico-cristã, há a Bíblia e
os 10 Mandamentos recebidos por Moisés diretamente do Verbo; outro exem-
plo é a Teogonia, de Hesíodo: toda a história, do surgimento do mundo e do
homem, é relatada não por ele, mas pelas deusas musas;
- e de CONTEÚDO EXEMPLAR: ouvindo o relato, o canto do aedo – compõe os
próprios poemas e os canta, acompanhado de um instrumento e o rapsodo é
o contador de histórias que ia de cidade a cidade recitar epopeias –, do poeta,
os homens ao atualizarem o mito, estão repe�ndo não como conteúdo simbó-
lico, mas como uma experiência vivencial.

. Palavra: mythós e logos


- O mito atribui significado e valor à existência, sendo modelo para as ativida-
des humanas (ele sempre tem uma função prá�ca e ú�l à vida).
- Até podemos expressar o mito, como na tradição grega, por meio de um
vaso, uma estátua, mas o seu suporte é a palavra (mythós, do grego, é pala-
vra); mas há também o termo logos (que também significa “palavra” e é nesse
sen�do que entendemos hoje).
- Mito é concreto; logos é abstrato. O discurso da filosofia e da ciência, que
operam por conceitos e ideias, se aproximam do logos; já a literatura, que é
uma forma de conhecimento simbólica, se aproxima do mito.
- A experiência do mito se perdeu na civilização ocidental e o logos se tornou
a experiência universal da palavra, do discurso humano.
- Depois da desmis�ficação dos gregos, há, no séc. XIX, a antropologia posi�-
vista que vai seguir a mesma linha deles: entender o mito como ficção, fanta-
sia, lenda, história inventada e isso persiste na nossa experiência co�diana.
- Mas os estudiosos do mito, no séc. XX, como o historiador da religião Eliade
e o antropólogo Levi-Strauss, rejeitaram a ideia de que o mito não é verdade e
procuraram entender o mito no seu contexto (tem sen�do e função na cultura
que o gerou).
- Logos e mythós não se excluem. O mito é uma história verdadeira para quem
vive o mito vivo. Mas esta fama que o mito tem de história falsa é tão forte que
a tradição judaico-cristã, por exemplo, se recusa de chamar de mito o Gênesis
(na Torá) e a Paixão de Cristo (no Evangelho), pois para eles esses são eventos
verídicos.
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1.2 Funções explica�va, organiza�va e compensatória (Antropologia Estrutu-


ral, de Lévi-Strauss)

. Os chamados selvagens não são atrasados:


- Lévi-Strauss comparou etnografias realizadas em todos os con�nentes. A sua
grande contribuição foi a de que os chamados selvagens não são atrasados,
menos evoluídos e primi�vos, apenas operam com o pensamento mí�co
(magia).
- O mito e o rito não são simples lendas fabulosas, mas uma organização da
realidade a par�r da experiência sensível enquanto tal.

. O mito tem três funções principais:


- FUNÇÃO EXPLICATIVA, o presente é explicado por alguma ação que aconte-
ceu no passado, cujos efeitos não foram apagados pelo tempo, como, por
exemplo, uma constelação existe porque, há muitos anos, crianças fugi�vas e
famintas morreram na floresta, mas uma deusa levou-as para o céu e transfor-
mou-as em estrelas.
- FUNÇÃO ORGANIZATIVA, o mito organiza as relações sociais (de parentesco,
de alianças, de trocas, de sexo, de iden�dade, de poder etc.) de modo a legi�-
mar e garan�r a permanência de um sistema complexo de proibições e permis-
sões. Ex.: o mito de Édipo existe em várias sociedades e tem a função de garan-
�r a proibição do incesto. O cas�go des�nado a quem não obedecer às regras
funciona como in�midação.
- FUNÇÃO COMPENSATÓRIA, o mito narra uma situação passada, que é a ne-
gação do presente e que serve tanto para compensar os humanos de alguma
perda como para garan�r-lhes que um erro passado foi corrigido no presente,
de modo a oferecer uma visão estabilizada e regularizada da natureza e da
vida comunitária.

. O “pensamento selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos “pri-


mi�vos”:
- Segundo Lévi-Strauss, o “pensamento selvagem” não é o pensamento dos
“selvagens” ou dos “primi�vos” (em oposição ao “pensamento ocidental”),
mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento humano em seu
livre exercício, um exercício ainda não-domes�cado em vista da obtenção de
um rendimento.
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- O pensamento selvagem não se opõe ao pensamento cien�fico como duas


formas ou duas lógicas mutuamente exclusivas. Sua relação é, antes, uma rela-
ção entre gênero (o pensamento selvagem) e espécie (o pensamento cien�fi-
co).
- O pensamento “selvagem” não é menos lógico do que o pensamento do “ci-
vilizado”. O mito é frequentemente considerado como o espaço da fantasia e
da arbitrariedade. Esse pensamento está equivocado, pois o mito ordena, clas-
sifica e dá sen�do aos fenômenos.
- Os mitos de diversas sociedades, geralmente binários e oposi�vos (herói e
ví�ma, amigo e inimigo, pai e mãe, cru e cozido...), são aparentemente diver-
sos e sem vinculações, mas podem sim ser agrupados e ordenados. Existe,
portanto, uma lógica nos mitos.

. Epopéias e tragédias gregas:


- Homero foi o poeta-rapsodo a quem costumeiramente se atribui a autoria de
dois poemas épicos (epopeias): Ilíada, que trata da guerra de Tróia e Odisseia,
que relata o retorno de Ulisses a Ítaca, após a guerra de Tróia. Por vários mo�-
vos, inclusive pelo es�lo diferente dos dois poemas, alguns intérpretes acham
que são obras de diversos autores.
- Uma das caracterís�cas da consciência mí�ca é a aceitação do des�no: os
costumes dos ancestrais têm raízes no sobrenatural; as ações humanas são de-
terminadas pelos deuses; em consequência, não se pode falar propriamente
em comportamento ético, uma vez que falta a dimensão de subjetividade que
caracteriza o ato livre e autônomo.
- Ao analisarmos a passagem do mito à razão há um período intermediário
caracterizado pela consciência trágica que representa o momento em que o
mito não foi totalmente superado e ainda não se firmou a consciência filosófi-
ca. A tragédia grega floresceu por curto período, e os autores mais famosos
foram:
-- Sófocles: Ájax, Antígona, As Traquínias, Édipo Rei, Electra, Filoctetes, Édipo
em Colono...
-- Ésquilo: Prometeu acorrentado, Os Persas, Sete contra Tebas, As Suplicantes,
Oresteia (Agamêmnon, As Coéforas e As Eumênides)...
-- Eurípedes: Medeia, Alceste, Os Heráclidas, Hipólito, Andrômaca, Hécuba, As
Suplicantes, Héracles, As Troianas, Ifigênia em Táuris, Íon, Helena, As Fenícias,
Orestes, As Bacantes...
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- O conteúdo das peças é re�rado dos mitos, mas há algo de novo no trata-
mento que os autores – sobretudo Sófocles – dão ao relato das façanhas dos
heróis. A tenta�va de reflexão retrata o logos nascente. Daí em diante a filoso-
fia representará o esforço da razão em compreender o mundo e orientar a
ação.

1.3 A gênese da filosofia entre os gregos (A Filosofia Antiga, de Emanuele Se-


verino; História da Filosofia, vol. 1, de Reale e An�seri; História da Filosofia,
vol. 1, de Châtelet)

. A filosofia grega e a civilização ocidental:


- O nascimento da filosofia na Grécia, no século VI a.C é um dos acontecimen-
tos mais decisivos da história. Pode-se mesmo afirmar que foi o mais decisivo
se nos dermos conta de que o modo como a filosofia se apresentou desde o
seu início se encontra na base de todo o desenvolvimento da civilização oci-
dental e de que as formas desta civilização imperam hoje em boa parte do pla-
neta e determinam até mesmo os aspectos mais ín�mos da nossa existência
individual.
- Todos os grandes saberes se desenvolveram a par�r da filosofia. A FILOSOFIA
NASCE GRANDE. Ela abandona o mito e começa a buscar o conhecimento via
alethéia (verdade), logos (razão), sofia (sabedoria) e episteme (conhecimen-
to). Os gregos foram os primeiros a evocar a busca pela verdade e isso significa
a busca da compreensão do TODO.
- Para os an�gos, a verdade �nha três conotações: ela era tanto a revelação
grega (alethéia) de uma lembrança esquecida quanto a precisão la�na do
testemunho (veritas) e ainda a confiança judaico-cristã da promessa (emu-
nah). Por isso, a verdade tem três opostos diferentes: a ilusão, a falsidade e a
men�ra.
- A civilização ocidental apresenta-se hoje como civilização da técnica; da téc-
nica, os povos recebem tudo aquilo de que necessitam para viver, mas dela
podem também gerar a aniquilação da raça humana.
- Todos os partos são dolorosos. Por vezes, a parturiente morre ao dar à luz a
sua própria criatura. O nascimento da ciência moderna é comummente inter-
pretado como um corte traumá�co, uma separação violenta da ciência à filo-
sofia. E é certamente di�cil contestá-lo. Mas o defeito desta interpretação está
em apenas ter olhos para as dores do parto e para a morte da parturiente,
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assim fazendo esquecer que, acima de tudo, aquilo que está em causa é um
parto, no qual a parturiente, ainda que sofra e morra, transmite a sua própria
essência ao novo ser pelo qual morreu, mas no qual ela sobrevive.

. Dimensão teórica e prá�ca:


- A filosofia foi criação do gênio helênico; do Oriente vieram alguns conheci-
mentos cien�ficos, astronômicos e matemá�co-geométricos, que os gregos
souberam repensar e recriar em DIMENSÃO TEÓRICA (vocação teorética dos
gregos), enquanto os orientais os concebiam em sentido prevalentemente
PRÁTICO.
- Assim, se os egípcios desenvolveram e transmi�ram a arte do cálculo, os
gregos, par�cularmente a par�r dos pitagóricos, elaboraram uma teoria siste-
má�ca do número; se os babilônios fizeram uso de observações astronômicas
par�culares para traçar as rotas para os navios, os gregos as transformaram
em teoria astronômica.

. As fontes das quais derivou a filosofia helênica:


- A filosofia surgiu na Grécia porque justamente na Grécia formou-se uma tem-
peratura espiritual par�cular e um clima cultural e polí�co favoráveis. As
fontes das quais derivou a filosofia helênica foram: 1) a poesia; 2) a religião; 3)
as condições sociopolí�cas adequadas.
-- 1) A POESIA antecipou o gosto pela harmonia, pela proporção e pela justa
medida (Homero; os Líricos como Alceu, Safo...) e um modo do nascimento
par�cular de fornecer explicações remontando às causas, mesmo que em
nível fantás�co-poé�co (em par�cular com a Teogonia de Hesíodo). A grande
arte, de modo mí�co e fantás�co, ou seja, mediante a intuição e a imaginação,
tende a alcançar obje�vos que também são próprios da filosofia;
-- 2) A RELIGIÃO grega se dis�nguiu em religião pública (inspirada em Homero
e Hesíodo) e em religião dos mistérios, em par�cular a órfica. Analogamente
à poesia, por meio da fé, a religião tende a alcançar certos obje�vos que a filo-
sofia procura a�ngir com os conceitos e com a razão. A religião pública consi-
dera os deuses como forças naturais ampliadas na dimensão do divino, ou
como aspectos caracterís�cos do homem sublimados. A religião órfica consi-
dera o homem de modo dualista: como alma imortal, concebida como demô-
nio, que por uma culpa originária foi condenada a viver em um corpo, entendi-
do como tumba e prisão. Do Orfismo deriva a moral que põe limites precisos a
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algumas tendências irracionais do homem. O que agrupa essas duas formas de


religião é a ausência de dogmas fixos e vinculantes em sentido absoluto, de
textos sagrados revelados e de intérpretes e guardiões desta revelação (ou
seja, sacerdotes preparados para essas tarefas precisas);
-- 3) Também as CONDIÇÕES SOCIOECONÔMICAS favoreceram o nascimento
da filosofia na Grécia. Os gregos alcançaram certo bem-estar e notável liberda-
de polí�ca, a começar das colônias do Oriente e do Ocidente. Além disso, de-
senvolveu-se forte senso de pertença à Cidade, até o ponto de iden�ficar o
“indivíduo” com o “cidadão” e de ligar estreitamente a é�ca com a polí�ca.

. A filosofia fala grego:


- A filosofia fala grego e isso foi acertado repeti-lo depois de Heidegger. E ainda
falta saber que língua grega, pois a língua de Heráclito não é a mesma do que
a dos pensadores da época alexandrina, assim como o la�m dos romanos não
é o mesmo que o dos cristãos.
- A concepção grega do homem e do mundo foi progressivamente se seculari-
zando e o universo dos deuses foi se re�rando. Nos séculos que se convencio-
nou chamar homéricos (entre os séculos XII a.C. e VIII a.C.,), a narra�va se
organiza à volta das personagens divinas; na época clássica (V a.C.), o homem,
como cidadão guerreiro, que fala e que luta, aparece como parte integrante do
seu des�no.
- A filosofia é grega; ela é filha da cidade, da cidade democrá�ca.

2. OS PRÉ-SOCRÁTICOS: OS MONISTAS (História da Filosofia, vol. 1, de Reale e


An�seri; A Filosofia Antiga, de Emanuele Severino)

- A Filosofia como uma ciência (episteme) que estuda as inquietações huma-


nas e visa explicá-las de maneira racional, surgiu na Grécia an�ga, no século VI
a.C., época em que basicamente tudo era explicado e �nha suas origens na mi-
tologia.
- Fenômenos como um raio, por exemplo, eram �dos como uma manifestação
da ira de Zeus, o comandante de todos os outros deuses. Essa explanação “di-
vino-mitológica” para a realidade se chamou cosmogonia.
- Porém, os pensadores inquietos da época quiseram responder e explicar
fenômenos e perguntas como essas de maneira racional e lógica, o que foi
iden�ficada como cosmologia.
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- Os precursores da Filosofia foram os pré-socrá�cos (nome pejora�vo), filó-


sofos que buscavam a origem natural do universo e das coisas através de expli-
cações lógicas e fundamentadas na observação e estudo da realidade. Os pré-
-socrá�cos, como o próprio nome alude, antecederam a Sócrates. Eles eram os
NATURALISTAS, os FILÓSOFOS DA PHYSIS e buscavam a essência e o princípio
das coisas (obje�vismo), o que chamavam de ARCHÉ / PRINCÍPIO. Há, aqui, a
busca pelo saber absoluto, pelo indubitável (sofia, logos, aleteia e episteme),
pela verdade e pela totalidade das coisas; portanto, para eles, o mito é não-
-verdade.

2.1 Escola de Mileto

. Tales (água):
- Tales de Mileto (640-546 a.C.) talvez tenha sido o primeiro filósofo. Sua im-
portância é pelo interesse que ele tem pelo todo, pela totalidade e sua busca
racional da arché.
- Talvez Tales considerou a ÁGUA como elemento unificador e como princípio
por mo�vos que podem ter sido de caráter biológico ou químico (ex.: o ele-
mento líquido está presente em todo lugar em que há vida) ou por derivar de
reminiscências mí�cas (como foi para Homero, que disse: “o autor de toda ge-
ração é o Oceano”).
- A “água” que Tales fala não é a água sensível em que nos banhamos e que se
bebe: a água sensível é apenas uma das muitas e diferentes coisas do universo
e, na medida em que é apenas uma entre muitas, não pode ser aquilo que
existe de idên�co em cada uma delas e, portanto, muito menos pode ser o
princípio unitário (a arché) de que todas derivam. A “água” apresenta-se,
assim, como metáfora que não consegue suportar o peso daquilo que ela
pretende exprimir.

. Anaximandro (ápeiron: indeterminado, infinito, imenso e ilimitado):


- Anaximandro de Mileto (610-547 a.C.) foi provavelmente discípulo de Tales e
con�nuou a pesquisa sobre o princípio.
- Cri�cou a solução do problema proposta pelo mestre, salientando sua incom-
pletude pela falta de explicações das razões e do modo pelo qual do princípio
derivam todas as coisas. Se o princípio deve poder tornar-se todas as coisas
que são diversas tanto por quan�dade quanto por qualidade, deve em si ser
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privado de indeterminações qualita�vas e quan�ta�vas, deve ser infinito


espacialmente e indefinido qualita�vamente: o ÁPEIRON (indeterminado).
- A physis não pode ser construída por algo de limitado. Anaximandro vai além
de Tales também devido a presença, nos primeiros pensadores, do axioma de
que “do nada nada se gera”. Assim, a água não pode ser a dimensão em que se
encontram todas as coisas. Essa dimensão não pode ser algo de finito e de
limitado.
- A criação do universo é criação dos contrários: da noite e do dia, do calor e
do frio, da guerra e da paz, da vida e da morte. O ápeiron contém, portanto,
em si, toda a contrariedade e toda a oposição: ele é a unidade originária dos
opostos.
- Há duas dimensões: a dimensão eterna (unidade dos opostos) e a dimensão
do devir (quando há um oposto, o outro não existe, como “dia e noite”); o
mundo deriva por separação dos contrários – daí a injus�ça.
- Do princípio ápeiron, as coisas derivam por uma espécie de injus�ça originá-
ria (o nascimento das coisas está ligado com o nascimento dos contrários, que
tendem a subjugar um no outro) e a ele retornam por uma espécie de expia-
ção (a morte leva à dissolução e, portanto, à resolução dos contrários um no
outro). O nascimento de cada coisa é uma prevaricação sobre outras e, portan-
to, uma injus�ça. O nascimento do universo é um processo de separação rela-
�vamente à unidade originária de todas as coisas; mas esta separação é, no
entanto, sempre governada por essa unidade, ou seja, pelo ápeiron de onde
todas as coisas surgem e regressam.
- O todo, o “governo do ápeiron”, contém e unifica a própria separação do uni-
verso. O princípio criador, o ápeiron, não poderia ser conhecido pelos sen�-
dos, mas somente pelo intelecto.

. Anaxímenes (o ar é o sujeito do predicado ápeiron):


- Anaxímenes (588-524 a.C.), discípulo de Anaximandro, con�nua a discussão
sobre o princípio, mas cri�ca a solução proposta pelo mestre: a arché é o AR
INFINITO, difuso por toda a parte, perene em movimento.
- O ar sustenta e governa o universo, e gera todas as coisas, transformando-se
mediante a condensação em água e terra e mediante a rarefação em fogo. O
fogo, água e terra dão por sua vez origem a todas as coisas isoladas. Tentando
entender o que é o ápeiron, ele disse que o ar é o sujeito do predicado ápei-
ron e o mundo deriva por condensação e rarefação.
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- Também aqui – como foi em Tales com a água – o “ar” não é um elemento
sensível par�cular (contrapondo-se, pois, à água, à terra e às outras coisas). O
“ar” é qualquer coisa de “incorpóreo” (= invisível). Cada corpo é finito, por-
tanto, o ápeiron deve ser esse incorpóreo que é o “ar”.
- Ao relacionar o sen�do do “ar” com a “alma que nos governa”, Anaxímenes
torna explícito aquilo que de implícito exis�a na afirmação de Anaximandro de
que o ápeiron governa todas as coisas. Tal governo exige que ápeiron não seja
algo de cego e de insensível, mas sim um princípio conhecido e vivo. Assim
como a nossa alma gera a vida do nosso corpo, o ápeiron ou o ar é que gera a
vida da totalidade.
- O princípio de todas as coisas, para Tales, Anaximandro e Anaxímenes são a
água, o ápeiron e o ar. Para Anaximandro, as coisas do mundo derivam por
uma separação dos contrários e aí há a injus�ça; para Anaxímenes, elas deri-
vam por condensação ou rarefação. Anaxímenes, querendo a�ngir uma pers-
pec�va universal, ao tratar do princípio e falar do ar infinito, ele con�nua
numa perspec�va par�cular (como Tales). E a filosofia de Heráclito e Parmêni-
des deu uma boa resposta a essa pergunta: “o que é o ápeiron?” Veremos!

2.2 Escola de Éfeso

. Heráclito (devir e fogo):


- Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.), um dos filósofos mais importantes desse
período, dizia que o universo está em constante mudança, tudo flui, tudo está
em transformação constante. Ele é o autor da famosa frase que caracteriza
bem o seu pensamento: “Um homem não pode se banhar duas vezes no
mesmo rio, porque na segunda vez o rio e o homem não serão os mesmos”.
- Para ele, o DEVIR é uma caracterís�ca estrutural de toda a realidade. E isso é
assim porque todas as coisas possuem os opostos em constante guerra. O real
é a mudança e a permanência é ilusória. Não se trata de um devir caótico, mas
de passagem dinâmica ordenada de um contrário ao outro, é uma guerra de
opostos que no conjunto se compõe em harmonia de contrários. O mundo é,
portanto, guerra nos par�culares, mas paz e harmonia no conjunto.
- Nesse contexto, o princípio para Heráclito é o FOGO, que é a perfeita expres-
são do movimento perene e a dinâmica da guerra dos contrários. O fogo está
estreitamente ligado ao conceito de racionalidade (logos), razão de ser da har-
monia do cosmo. Portanto, não há ser está�co e o dinamismo pode bem ser
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representado pela metáfora do fogo, forma visível da instabilidade, símbolo da


eterna agitação do devir, “o fogo eterno e vivo, que ora se acende e ora se
apaga”.
- Para Heráclito, o ser é o múl�plo. Não no sen�do apenas de que existe a mul-
�plicidade das coisas, mas de que o ser é múl�plo por estar cons�tuído de
contrários, pois “a guerra é pai de todos, rei de todos”. E é da luta que nasce a
harmonia, como síntese dos contrários. Pode-se dizer que Heráclito teve a
intuição da lógica dialé�ca.
- Até podemos considerar que Tales, Anaximandro e Anaxímenes se aproxima-
ram da “iden�dade dos opostos”, mas explicitamente foi Heráclito que tratou
disso. A unidade dos contrários diz: “Tudo é um”. Isto não quer dizer que a
essência das coisas forma uma unidade ideal, mas que tudo, a mul�plicidade,
faz um, porque os contrários conciliam: o dia só tem sen�do com a noite, o
calor em relação ao frio. Mas o que os nossos sen�dos nos dizem todos os
dias, nossa inteligência tem tendência a ocultar, ela que, por meio da lingua-
gem, das palavras, fraciona, opõe, divide. O que escapa aos sábios é ainda
mais oculto ao comum dos mortais, que percebe o mundo com seu olhar par�-
cular.
- O mundo é um eterno devir. A natureza está em devir cíclico. Ela não respon-
de a nenhum plano, não foi criada. E é a razão do mundo que faz sua unidade:
ela não é está�ca, imóvel, imutável, homogênea, mas é fogo, combate, Deus
(os deuses não são exteriores ao real); ela é o ciclo que reúne os contrários. O
que faz que sejamos surdos à unidade do mundo é que não compreendemos
o tempo: o mundo está em devir, mas um devir cíclico (ciclo das estações, das
gerações...). Tudo se transforma em tudo, mas isto não condena a uma mul�-
plicidade informe, caó�ca, porque se “tudo flui”, tudo retorna. Os seres huma-
nos procuram impor um sen�do com um começo e um fim, um sen�do que
progride: mas este progresso os leva a recusar um aspecto da realidade (a
morte, a guerra...), a não conceber a felicidade senão no acúmulo de muitos
bens.
- Anaxímenes pergunta: o que é o ápeiron? Heráclito responde: “é o não ser o
outro de si”, ou seja, é a oposição de cada coisa a todas as outras. Anaximan-
dro entende a injus�ça como prevaricação de uma coisa sobre as outras; Herá-
clito mostra como cada coisa apenas pode ser aquilo que é quando se encon-
tra ligada às outras pela relação de oposição. Assim, para ele, a jus�ça é o pró-
prio desacordo. No devir, cada coisa se torna o seu contrário e nisso está a
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expressão dessa “harmonia escondida” em que o Deus consiste enquanto uni-


dade originária dos opostos.

2.3 Escola pitagórica

. Pitágoras (elementos dos número):


- Pitágoras de Samos (570-490 a.C.) e os pitagóricos deslocam a problemá�ca
do princípio a um novo e mais elevado plano. Pitágoras leva até o interior da
filosofia o mundo do número, ou seja, das relações quan�ta�vas existentes
entre as coisas.
- O princípio da realidade é para os pitagóricos não um elemento �sico, mas o
NÚMERO. Segundo eles, todos os fenômenos mais significativos acontecem
segundo regularidade mensurável e exprimível com números. O número, por-
tanto, é a causa de cada coisa e determina a sua essência e a recíproca rela-
ção com as outras.
- Para os pitagóricos, não são os números enquanto tais o fundamento úl�mo
da realidade, mas os elementos do número, ou seja, o “limite” (princípio de-
terminado e determinante) e o “ilimitado” (princípio indeterminado). Se tudo
é número, tudo é “ordem” e o universo inteiro aparece como um kósmos
(termo que significa justamente “ordem”) que deriva dos números, e enquan-
to tal é perfeitamente cognoscível também nas suas partes. Os elementos dos
números são o par e o ímpar, que geram todos os números e os números
geram todas as coisas do universo.
- A relação entre o ápeiron e o cosmos presta-se a ser interpretada como uma
relação fundamentalmente numérica onde o um (ou mônada), enquanto prin-
cípio de todas as coisas, é antes de mais princípio do dois (ou Díade), ou seja,
a oposição originária entre par e ímpar, na qual radicam todas as outras opo-
sições do universo. Portanto, todas as coisas são número e o número, enquan-
to mônada divina originária, contém antecipadamente a pluralidade que dele
se gera. Enquanto elemento originário, o um é aquilo que existe de idên�co
em todas as coisas. Cada coisa é, portanto, uma unidade, um um.
- Tal como o “ar” de Anaxímenes (e a “água” de Tales) não é um simples ele-
mento �sico-sensível, assim também o “número” dos pitagóricos – enquanto
“elemento” de todas as coisas – não é o simples número matemá�co. Na
an�ga matemá�ca pitagórica, os números são encarnados não como concei-
tos abstratos, mas sim como objetos próprios reais.
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- Os pitagóricos derivam do orfismo o conceito de vida como expiação/purifi-


cação (metempsicose: transmissão da alma em mais corpos) para poder retor-
nar junto aos deuses, mas atribuem a virtude catár�ca não a ritos e prá�cas,
como queriam os órficos, mas ao conhecimento e à ciência, isto é, à “vida con-
templa�va” em grau supremo, chamada “vida pitagórica”, a qual eleva o
homem e o leva à contemplação da verdade. Creditava aos números a origem
de tudo, mas desde que entendidos como harmonia e proporção. Ou seja,
tudo na natureza é proporcional e harmônico.

3. OS PRÉ-SOCRÁTICOS: DOS MONISTAS AOS PLURALISTAS (História da Filoso-


fia, vol. 1, de Reale e An�seri; A Filosofia Antiga, de Emanuele Severino)

3.1 Escola Eleata e monismo: da cosmologia à ontologia

. Parmênides (o ser é, o não-ser não é):


- Parmênides de Eléia (510-470 a.C.) rompe com os filósofos que o precederam
na maneira de pensar o mundo. Não se pode encontrar o princípio (arché)
imutável do universo na sua própria mudança, ainda mais quando a inves�ga-
ção é conduzida pelos sen�dos. Para ele, a mudança seria apenas uma ilusão
dos sen�dos, e o que é essencial nas coisas só pode ser captado pelo pensa-
mento. Por esse mo�vo, é que havia tantas opiniões contrárias sobre o ser das
coisas, porque os filósofos estavam trilhando um caminho errado que só os
levava à ilusão.
- Parmênides, no seu poema Sobre a natureza, descreve três vias de pesquisa:
1) da verdade absoluta; 2) das opiniões falazes; 3) da opinião plausível:
-- A primeira via (da verdade absoluta) afirma que “o SER existe e não pode
não exis�r” (esfera eterna, imóvel, homogênea, perfeita, una, não-gerada,
incorrup�vel), e que “o não-ser não existe”, e disso �ra toda uma série de con-
sequências: primeiramente, fora do ser não existe nada e, portanto, também o
pensamento é ser (não é possível para Parmênides pensar o nada); em segun-
do lugar, o ser é não gerado (porque de outro modo deveria derivar do não-
-ser, mas o não-ser não existe); em terceiro lugar, é incorrup�vel (porque de
outro modo deveria terminar no não-ser). Além disso, não tem passado nem
futuro (de outro modo, uma vez passado, não exis�ria mais, ou na espera de
ser no futuro, ainda não exis�ria), e, portanto, existe em um eterno presente,
é imóvel, é homogêneo (todo igual a si, porque não pode exis�r mais ou
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MITOLOGIA E PRÉ-SOCRÁTICOS

menos ser), é perfeito e uno. Portanto, aquilo que os sen�dos atestam (devir
e múl�plo) e que testemunham, é falso;
-- A segunda via (das opiniões falazes) é a do erro, a qual, confiando nos sen�-
dos, admite que exis�a o devir, e cai, por conseguinte, no erro de admi�r a
existência do não-ser;
-- A terceira via (da opinião plausível) procura certa medição entre as duas pri-
meiras, reconhecendo que também os opostos, como a “luz” e a “escuridão”,
devam iden�ficar-se no ser (a luz “é”, a noite “é”, e, portanto, ambas são, ou
seja coincidem no ser). Os testemunhos dos sen�dos devem ser repensados
em nível de razão. Assim, aquilo que vemos e sen�mos, as aparências, os fenô-
menos, ou seja, os opostos estão incluídos na unidade superior do ser; ambos
os opostos são ser. Assim, tudo é idên�co, sem diferenciação qualita�va e
quan�ta�va. Em suma, Parmênides salva o ser e não salva os fenômenos.
- Os argumentos da Escola Eleata eram rigorosos:
-- admitamos que o Ser não seja uno, mas múl�plo: nesse caso, cada ser é ele
mesmo e não é os outros seres; portanto, cada ser é e não é ao mesmo tempo,
o que é impensável ou absurdo. O Ser é uno e não pode ser múl�plo;
-- admitamos que o Ser não seja eterno, mas teve um começo e terá um fim:
antes dele, o que havia? Outro Ser? Não, pois o Ser é uno. O Não-Ser? Não,
pois o Não-Ser é o nada. Portanto, o Ser não pode ter �do um começo. Terá um
fim? Se �ver, o que virá depois dele? Outro Ser? Não, pois o Ser é uno. O Não-
-Ser? Não, pois o Não-Ser é o nada. Portanto, o Ser não pode acabar. Sem
começo e sem fim, o Ser é eterno;
-- admitamos que o Ser não seja imutável, mas mutável: no que o Ser muda-
ria? Noutro Ser? Não, pois o Ser é uno. No Não-Ser? Não, pois o Não-Ser é o
nada. Portanto, se o Ser mudasse, tornar-se-ia Não-Ser e desapareceria. O Ser
é imutável e o devir é uma ilusão de nossos sen�dos.
- O que Parmênides afirmava era a diferença entre pensar e perceber. Percebe-
mos a natureza na multiplicidade e na mutabilidade das coisas que se transfor-
mam umas nas outras. Mas pensamos o Ser, isto é, a identidade, a unidade, a
imutabilidade e a eternidade daquilo que é em si mesmo. Perceber é ver apa-
rências. Pensar é contemplar a realidade como idên�ca a si mesma. Pensar é
contemplar o Ser. Mul�plicidade, mudança, nascimento e perecimento são
aparências, ilusões dos sen�dos. Ao abandoná-las, a filosofia passou da cos-
mologia à ontologia.
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MITOLOGIA E PRÉ-SOCRÁTICOS

. Zenão de Eleia (não há movimento):


- Zenão de Eléia (sécs. VI-V a.C.), discípulo de Parmênides, defendeu a teoria
do mestre, e em par�cular a tese da não existência do movimento e da mul�-
plicidade, mostrando a inconsistência e a contraditoriedade das posições dos
adversários (ou seja, daqueles que admi�am a pluralidade e o movimento das
coisas).
- Criou o método da “refutação dialé�ca”, da tese oposta à tese que se quer
sustentar, aquilo que depois se chamará de “demonstração pelo absurdo”.
Muitos argumentos seus ficaram famosos, como o do “Aquiles e a tartaruga”.

. Melisso (o ser é infinito espacialmente e cronologicamente):


- Melisso de Samos (sécs. VI-V a.C.) desenvolve e completa o pensamento de
Parmênides.
- Sustenta que o ser é infinito tanto espacialmente, enquanto não existe nada
que o possa delimitar, como numericamente, enquanto é uno e tudo, e crono-
logicamente, enquanto “sempre era e sempre será”. Por estes mo�vos é defi-
nido também “incorpóreo”, acentuando o fato de que ele é privado das formas
e dos limites que determinam os corpos (é privado, isto é, das conotações que
caracterizam os corpos enquanto tais).

3.2 Os pluralistas

- Nos pensadores anteriores de Parmênides, a verdade é o surgir da physis en-


tendida como UNIDADE DAS COISAS MÚLTIPLAS.
- Parmênides fundamenta o significado originário de physis: a physis é o ser
que se manifesta na sua essencial oposição ao nada. A verdade é o surgir desta
oposição. Mas esta oposição exige a negação da existência do devir e do múl�-
plo.
- Depois de Parmênides, a filosofia apercebe-se explicitamente de que a mani-
festação do universo múl�plo e em devir é também algo de inegável e irrefutá-
vel, que não pode ser desmen�do. Ocorrem, assim, tenta�vas para solucionar
a an�tese entre razão (logos) e experiência. Logos: negação de que o ser seja
nada e isso exige a imutabilidade e não a mul�plicidade do ser; experiência:
manifestação do mundo e revelação do devir e da mul�plicidade do ser.

. Empédocles (4 elementos que possuem as caracterís�cas do ser dos eleá�-


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MITOLOGIA E PRÉ-SOCRÁTICOS

cos: incorrup�vel, homogêneo, eterno, inalterável):


- Empédocles (490-430 a.C.), o primeiro dos pluralistas, herda de Parmênides
o conceito da impossibilidade do nascer como um derivar do ser a par�r do
não-ser e do perecer como passagem do ser ao não-ser. Todavia procura supe-
rar a paradoxalidade desta tese, que vai contra aquilo que a experiência atesta,
recorrendo a uma pluralidade de princípios, cada um dos quais mantém as
características do ser de Parmênides.
- “Nascer” e “perecer”, como desejava Parmênides, não consistem do “vir do”
ou em “ir no” não-ser, e sim no “agregar-se” e “compor-se” e no “desagregar-
-se” e “decompor-se” dos quatro elementos originários (raízes de todas as
coisas), que são AR, ÁGUA, TERRA E FOGO. Cada um desses elementos é
incorrup�vel, homogêneo, eterno, inalterável, ou seja, tem as caracterís�cas
fundamentais do ser de Parmênides.
- Com a recíproca agregação e desagregação, esses elementos dão lugar a um
mundo múl�plo e em devir. Água, terra, ar e fogo são movidos e governados
por duas forças cósmicas, o Amor e o Ódio: uma agrega, a outra desagrega.
Quando prevalece o Amor temos perfeita unidade (o Esfero); quando prevale-
ce o ódio em sen�do extremo, temos ao invés o máximo de desagregação (o
Caos). Nas fases de rela�vo predomínio do Ódio, gera-se o cosmo. Em suma: o
amor agrega e ódio desagrega; não há nascer e perecer.
- Empédocles procurou explicar também o conhecimento, sustentando que
das coisas se desprendem eflúvios que atingem os sentidos. Como nossos sen-
�dos são feitos dos mesmos elementos de que é composto o mundo, o fogo
que está em nós reconhece o fogo que está nas coisas, a terra reconhece a
terra, e assim por diante. Consequentemente, é válido o princípio geral que o
semelhante conhece o semelhante.

. Anaxágoras (homeomerias/sementes):
- Anaxágoras (499-428 a.C.), que foi mestre de Péricles, defendia que o princí-
pio gerador de todas as coisas não é único, que a physis era formada de várias
par�culas (SEMENTES – espermatas; HOMEOMERIAS).
- Ele também herda dos eleá�cos a convicção de que nascimento e morte não
implicam passagem do não-ser ao ser e do ser ao não-ser, mas derivam do
agregar-se e do desagregar-se das homeomerias/sementes: tudo está em
tudo, que são produzidas por uma Inteligência cósmica/universal. Com agre-
gar-se das sementes, nascem todas as coisas que existem. E em cada uma das
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coisas que assim se produzem estão presentes, em diversas proporções, todas


as sementes, sendo que as que prevalecem determinam as diferenças específi-
cas. Isso acontece de tal forma que em todas as coisas estão presentes todas
as qualidades (“tudo está em tudo”), e deste modo se explica a razão pela qual
as coisas podem se transformar uma na outra.
- Se os “fenômenos” cons�tuem o devir cósmico, as “coisas ocultas” formam a
unidade originária da qual tudo deriva e onde todas as partes se encontram
juntas e misturadas. O devir exige então uma a�vidade discriminante e eluci-
da�va que, tendo conhecimento de tudo e domínio sobre tudo, tem o poder
de reunir e de dispersar as homeomerias. Este poder é chamado por Anaxágo-
nas de “Mente” (Nous). Ele é o único ente em que não existe mistura e, preci-
samente graças a esta sua pureza, tudo pode conhecer e dominar. Tal como o
“amor” e o “ódio” de Empédocles, a “Mente” introduzida por Anaxágoras para
explicar o devir, assegurando a eternidade do ser.

. Leucipo e Demócrito (átomo e vazio/atomismo/materialismo/mecanicismo):


- Demócrito (460-370 a.C.) e Leucipo (séc. V a.C) eram contemporâneos de Só-
crates, mas como o objeto de suas inves�gações ainda era a physis, eles são
considerados pré-socrá�cos. São os fundadores da Escola atomista e procu-
ram dar também uma saída para o impasse de Parmênides sobre a realidade,
o Ser.
- Segundo eles, o ser que não nasce, não morre e não entra em devir e não se
adapta à realidade sensível, isto é, aos ÁTOMOS (partes indivisíveis da physis).
O átomo é uma realidade captável apenas com o intelecto, não tem qualidade,
mas apenas forma geométrica, e é naturalmente dotado de movimento. As
coisas sensíveis nascem, morrem e sofrem mutação, apenas em virtude da
agregação e desagregação dos átomos e, portanto, toda a realidade pode ser
explicada em sen�do mecanicista a par�r dos átomos e do vazio.
- Os atomistas explicaram o conhecimento recorrendo à teoria dos eflúvios,
isto é, admi�ndo a existência de fluxos de átomos que, destacando-se das
coisas, se imprimem sobre os sen�dos. Nesse contato, os átomos semelhantes
que estão fora de nós impressionam os átomos semelhantes que estão em
nós, fundando – de modo não diferente de Empédocles – o conhecimento.
- Para Parmênides, afirmar a existência do múl�plo significa afirmar a existên-
cia do não-ser. E visto que apenas o ser é, o universo das coisas múl�plas é,
portanto, ilusório. Já o atomismo afirma que também o não-ser é (existe): a
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MITOLOGIA E PRÉ-SOCRÁTICOS

existência do não-ser é a condição da existência do mundo múl�plo. Os


átomos são o ser e, por isso, cada átomo possui as propriedades do ser: unida-
de indivisível, que não pode ser gerada, incorrup�vel, eterna, não perecível
pelos sen�dos, mas sim pela razão. A existência do não-ser, entendido como
sendo o vazio, torna possível a afirmação da existência do devir.

. Do atomismo à sofis�ca:
- O atomismo apresenta as caracterís�cas da maior radicalidade. É inevitável
que, ao reconhecer explicitamente a verdade da experiência, o pensamento
filosófico se veja conquistado pelas determinações materiais e sensíveis da
experiência (que cons�tuem o seu aspecto mais visível) e seja levado a enten-
der o ser como matéria. Nesta perspec�va (já implícita em Empédocles e Ana-
xágoras), a solução atomista é a mais radical e coerente.
- Até porque começa a avançar um conceito que ganhará toda a sua importân-
cia no pensamento do grande Platão: que também o não-ser é (se se pretende
que o múl�plo seja). Mas, entretanto, afirmar que o não-ser existe não signifi-
ca o abandono de um traço essencial da razão, precisamente quando se tenta
conciliar a razão com a experiência? Não significa dar uma confirmação poste-
rior a esse outro modo de encarar a an�tese entre experiência e razão, a qual
considera insuperável a an�tese e a vê mesmo propor-se de novo no próprio
seio da razão e da experiência?
- É exatamente nessa maneira diferente de encarar tal an�tese que consiste a
so�s�ca.

INDICAÇÕES DE LEITURAS

1. O livro da mitologia, de Thomas Bulfinch


2. Os mitos gregos, de Robert Graves
3. Mitos, Sonhos e Mistérios, de Mircea Eliade
4. Mito e realidade, de Mircea Eliade
5. Antropologia Estrutural, de Lévi-Strauss
6. Mitologia grega, de Junito de Souza Brandão
7. Introdução à Mitologia (Filosofia em questão), de José Benedito de Almeida
Junior
8. Pré-socráticos (coleção Os pensadores)
9. Filósofos Pré-socráticos, de Jonathan Barnes
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10. Os pré-socráticos, de Giovanni Casertano


11. Os Pré-Socráticos, de Jean Brun
12. Manual de História da Filosofia: os Pré-Socráticos, de Ulliana e Cescon
13. Os Filósofos Pré-Socráticos: história Crítica com Seleção de Textos, de G.S.
Kirk e J.E. Raven
14. Introdução à Filosofia Pré-socrática, de André Laks
15. A Filosofia Antes de Sócrates: uma Introdução com Textos e Comentários,
de Richard D. McKirahan
16. Os pensadores originários, de Anaximandro, Parmênides e outros
17. Fundamentos de filosofia: Os Pré Socráticos, de José Carlos Orosco Roman
18. Filosofia pré-socrática, de Catherine Osborne
19. Os Filósofos Pré-Socráticos, de Gerd A. Bornheim

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