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Platão: conhecimento • alma irascível – situada no peito e vinculada às

e bondade paixões;
• alma racional – situada na cabeça e relacionada
no grego antigo, várias palavras traduziam ao conhecimento.
distintos aspectos da felicidade. A principal delas
era eudaimonia, derivada dos termos eu (“bem- A vida feliz de uma pessoa dependeria da devida
-disposto”) e daimon (“poder divino”). Trata-se da subordinação e harmonia entre essas três almas.
felicidade entendida como um bem ou poder con- A alma racional regularia a irascível, e esta contro-
cedido pelos deuses. subentendia-se que, para laria a concupiscente, sempre com a supervisão da
mantê-la, a pessoa deveria conduzir sua vida de parte racional. há, portanto, uma primazia da parte
tal maneira a não se indispor com as divindades, racional sobre as demais.
para o que era preciso sabedoria. mesmo assim, Para apoiar essa tarefa, Platão propunha duas
ainda corria o risco de perder esse bem ou poder práticas:
se os deuses assim o desejassem, por qualquer • ginástica – conjunto de exercícios e cuidados
motivo arbitrário. físicos por meio dos quais a pessoa aprendia
isso significa que a felicidade era tida como uma a disciplina e o domínio sobre as inclinações
espécie de fortuna ou acaso – enfim, um bem ins- negativas do corpo; e
tável que dependia tanto da conduta pessoal, como • dialética – método de dialogar praticado por
da boa vontade divina (cf. LAurioLA, De eudaimonia à sócrates (conforme veremos no capítulo 3), pelo
felicidade..., Revista Espaço Acadêmico, n. 59). qual cada pessoa poderia ascender progressi-
Platão (427-347 a.C.) – considerado por boa vamente do mundo sensível (que Platão consi-
parte dos estudiosos o primeiro grande filósofo derava ilusório) ao mundo inteligível (que ele
ocidental, juntamente com seu mestre, sócrates – considerava verdadeiro).
foi um dos principais pensadores gregos a se lançar
Eudemonista – relativo à felicidade ou que tem a
contra essa instabilidade, em busca de uma felici- felicidade como valor fundamental ou principal objetivo.
dade estável, postura que caracterizará de forma Inteligível – que só pode ser apreendido pelo intelecto,
marcante a ética eudemonista grega. (Veja a bio- por oposição ao sensível, isto é, que só pode ser
grafia de Platão no capítulo 12. Distintos aspectos apreendido pelos sentidos.
Concupiscente – que está relacionado com a
de seu pensamento serão abordados também em
concupiscência, isto é, o desejo de prazeres carnais.
várias outras partes deste livro.) Irascível – que é propenso a experimentar a ira, a raiva.
no entendimento de Platão, o mundo material
– aquele que percebemos pelos cinco sentidos – é
mAssimo lisTRi/CoRbis/FoToARenA

enganoso. nele tudo é instável e por meio dele não


pode haver felicidade. Por isso, para esse filósofo, o
caminho da felicidade é o do abandono das ilusões
dos sentidos em direção ao mundo das ideias, até
alcançar o conhecimento supremo da realidade,
correspondente à ideia do bem.
o que isso significa e como devemos agir para
alcançar essa condição?

Harmonizar as três almas


Para entender a concepção platônica de felici-
dade, precisamos compreender primeiramente
sua doutrina sobre a alma humana, contida na
obra A República. Para Platão, o ser humano é es-
Pintura sobre vaso etrusco fabricado em sèvres (c. 1827-1832)
sencialmente alma, que é imortal e existe previa- – Percier/beranger (Coleção particular). Representa uma
mente ao corpo. A união da alma com o corpo é corrida entre jovens gregos em aula de educação física.
acidental, pois o lugar próprio da alma não é o na grécia antiga, a educação das crianças – ou paideia
(do grego paidos, “criança”) – passou por várias etapas de
mundo sensível, e sim o mundo inteligível. A desenvolvimento. À época de Platão, meninos entre 7 e
alma se dividiria em três partes: 14 anos (meninas não) recebiam aulas de ginástica e música.
Também aprendiam gramática e a recitar de cor poemas
• alma concupiscente – situada no ventre e ligada antigos, que eram fonte importante de conteúdo moral
aos desejos carnais; (cf. JAeger, Paidea – a formação do homem grego).

Capítulo 1 A felicidade 23
Conhecer o bem
Por meio dessas práticas – especialmente da Com esse propósito, em sua obra denominada
dialética – a alma humana penetraria o mundo in- A República, o filósofo idealizou uma sociedade
teligível, também conhecido como mundo das organizada em torno de três atividades básicas:
ideias, e se elevaria sucessivamente, mediante a produção dos bens materiais e de alimentos, de-
contemplação das ideias perfeitas, até atingir a fesa da cidade e administração da pólis (tema que
ideia suprema, que é a ideia do bem. Para Platão, será estudado mais detidamente no capítulo 19).
as ideias perfeitas seriam a realidade verdadeira, Dentro dessa organização, a cada cidadão caberia
e compreendê-las significava, portanto, alcançar uma função social (produtor, guerreiro ou sábio),
o grau máximo de conhecimento. e esta seria definida de acordo com sua própria
Por que a supremacia da ideia do bem? Porque natureza, isto é, a aptidão inata a cada pessoa.
o bem, segundo o filósofo, seria a causa de todas A identificação dessa aptidão natural ou voca-
as coisas justas e belas que existem, incluindo as ção se faria durante o processo educativo. A edu-
outras ideias perfeitas, como justiça, beleza, cora- cação seria igual para todos os jovens. Aqueles
gem. sem o bem não há nenhuma delas, inclusive a que se revelassem os mais sábios seriam desti-
ideia perfeita de felicidade. (Voltaremos a estudar a nados à administração pública. e, como os filóso-
teoria do mundo das ideias no capítulo 12.) fos eram os mais sábios entre os mais sábios (os
em resumo, podemos dizer que, para Platão, a conhecedores do caminho da felicidade), seriam
felicidade é o resultado final de uma vida dedicada eles os governantes da cidade.
a um conhecimento progressivo até se atingir a ideia Dentro dessa organização, conforme conce-
do bem, o que poderia ser sintetizado na seguinte beu Platão, cada um já seria feliz pelo simples
fórmula: conhecimento = bondade = felicidade. fato de cumprir a função para a qual é mais apto
As três coisas, quando ocorrem em sua máxima por natureza (concepção grega à qual voltaremos
expressão, andariam sempre juntas, mas o cami- mais adiante).
nho partiria do conhecimento.
Além disso, para Platão, a ascensão dialética
equivaleria não apenas a uma elevação cognosciti- ConExõEs
va (isto é, do conhecimento), mas também a uma
evolução do ser da pessoa (evolução ontológica, no 3. Praticar ginástica ou alguma atividade física
jargão filosófico). simplificando bastante, podemos disciplinada faz você sentir-se bem? Você
percebe resultados concretos em termos de
dizer que aquele que alcança o conhecimento ver-
bem-estar físico, emocional e mental? Pro-
dadeiro (que culmina com a ideia do bem) torna-se cure relacionar suas observações com a teoria
um ser “melhor” em sua essência e, por isso, pode platônica sobre a felicidade.
viver mais feliz.

Construir o bem de todos aristóteles: vida teórica


Platão, no entanto, tinha como motivação fun- e prática
damental de seu filosofar o âmbito político: para
na história da filosofia, ocorre frequentemente
ele, a política era a mais nobre das atividades e
de todas as ciências, pois tinha como objeto a pó- que um discípulo acabe não sendo um seguidor
lis (cidade-estado grega) e, portanto, a vida do fiel das doutrinas de seu mestre e até se oponha a
conjunto dos cidadãos. Por isso, seu projeto polí- ele em vários aspectos, desenvolvendo um pensa-
tico-filosófico visou à construção de uma socie- mento independente e original.
dade justa, isto é, aquela que promovesse o bem É o caso de Aristóteles (384-322 a.C.), que refu-
de todos (o bem comum): tou a teoria do mundo das ideias, pilar da filosofia
platônica, propondo um pensamento que, embora
[...] ao fundarmos a cidade, não tínhamos em vista tornar
valorizasse a atividade intelectual, teórica e contem-
uma única classe eminentemente feliz, mas, tanto quan-
plativa como fundamental, resgatava o papel dos
to possível, toda a cidade. De fato, pensávamos que só
numa cidade assim encontraríamos a justiça e na cidade bens humanos, terrenos, materiais para alcançar
pior constituída, a injustiça [...]. Agora julgamos modelar uma vida boa (distintos aspectos do pensamento de
a cidade feliz, não pondo à parte um pequeno número Aristóteles serão abordados no capítulo 12 e em
dos seus habitantes para torná-los felizes, mas conside- outras partes deste livro).
rando-a como um todo [...] (A República, p. 115-116). Qual foi, então, o método proposto pelo filósofo?
24 Unidade 1 Filosofar e viver
Exercitar a contemplação

beTTmAnn/CoRbis/FoToARenA
em sua obra dedicada ao tema da ética, Aristó-
teles apresenta a seguinte explicação:
[...] o que é próprio de cada coisa é, por natureza,
o que há de melhor e de aprazível para ela; e, assim,
para o homem a vida conforme a razão é a melhor
e a mais aprazível, já que a razão, mais que qualquer
outra coisa, é o homem. Donde se conclui que essa
vida é também a mais feliz (Ética a Nicômaco, p. 190).
Para que você entenda esse raciocínio, vamos
expor, mesmo que resumidamente, a argumentação
que sustenta a tese do filósofo sobre a felicidade:
• Aristóteles afirmava que um ser só alcança seu
fim quando cumpre a função (ou faculdade) que
lhe é própria e o distingue dos demais seres,
isto é, sua virtude (ou, em grego, aretŽ).
Platão em estado contemplativo, meditando sobre a
• A palavra virtude é entendida aqui como a pro- imortalidade (1874) – autor desconhecido. (Coleção particular.)
priedade mais característica e essencial de um
ser, aquela cujo exercício conduz à excelência
Praticar outras virtudes
ou perfeição desse ser, trazendo-lhe prazer.
Por exemplo: a virtude de uma faca é o seu sem tirar os pés do chão, no entanto, Aristóte-
corte, de uma laranjeira é produzir laranjas, de les dizia também que não se pode abandonar a
um dentista é tratar dos dentes. companhia da família e dos amigos, a riqueza e o
• o ser humano, por sua vez, dispõe de uma poder. Todos esses elementos, e o prazer que de-
grande quantidade de funções ou faculdades les resulta, promoveriam o bem-estar material e
(caminhar, correr, comer, sentir, dormir, dese- a paz social, indispensáveis à vida contemplativa.
jar, obrar, amar etc.), mas outros animais po- o sábio não poderá dedicar-se à contemplação
dem possuí-las também. há, porém, uma úni- se, por exemplo, não houver alimentos, se seus
ca faculdade que ele possui com exclusividade filhos chorarem de fome e se a cidade toda estiver
e que o distingue dos demais seres: o pensar em pé de guerra.
de forma racional. essa seria, portanto, sua Além do mais, o gozo de tais prazeres estaria
virtude essencial. vinculado ao exercício de outras virtudes humanas
• Assim, o ser humano só alcançará seu fim e – como a generosidade, a coragem, a cortesia e a
bem supremo (a felicidade) se atuar conforme justiça – que, em seu conjunto, contribuiriam para
sua virtude, que é a razão. a felicidade completa do ser humano.
Portanto, na ética aristotélica, embora o exercí-
mas preste atenção: para Aristóteles, não
cio contínuo de uma vida teórica seja essencial
basta ter uma virtude (a racionalidade) – é preci-
(condição necessária, no jargão filosófico) para
so exercitá-la. o ser humano precisa esforçar-se
uma pessoa alcançar a vida feliz, isso não basta
para realizar aquilo que lhe é dado pela natureza
(não é condição suficiente). em resumo, a felicida-
como potência (possibilidade de ser). Portanto, o
de seria uma vida dedicada à contemplação teórica,
que o filósofo preconizava era que, para atingir a
aliada à prática das outras virtudes humanas e
felicidade verdadeira, o ser humano deveria de-
sustentada pelo bem-estar material e social.
dicar-se fundamentalmente à vida teórica, no
sentido de uma contemplação intelectual, bus-
cando observar a beleza e a ordem do cosmo, a ConExõEs
autêntica realidade das coisas. e deveria manter
essa prática durante a vida inteira, e não apenas 4. Destaque, entre os elementos propostos por
em um ou outro dia, Aristóteles para uma vida feliz, aqueles que
você considera condição necessária para sua
[...] porquanto uma andorinha não faz verão, nem felicidade. Para você há algum que, além de
um dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um necessário, é condição suficiente para ser
breve espaço de tempo, não faz um homem feliz e feliz? Qual? Justifique sua resposta.
venturoso. (Ética a Nicômaco, p. 16.)

Capítulo 1 A felicidade 25

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