Você está na página 1de 6

Capítulo

2 DiE BilDErgalEriE im Park SanSSouCi,


PotSDam, alEmanha

Você já ouviu o ditado


“Ver para crer”? Sabe
sua origem? O que
ocorre intimamente
quando se tem
uma dúvida?
A incredulidade de São Tomé (1601-1602) — Caravaggio, óleo sobre tela.

A dúvida
Vamos concentrar agora nossa atenção sobre uma atitude importante no
processo de filosofar: a dúvida. Ela sintetiza os dois primeiros passos da ex-
periência filosófica – o estranhamento seguido do questionamento.
Veremos adiante que o ato de duvidar nos abre, com frequência, a possi-
bilidade de desenvolver uma percepção mais profunda, clara e abrangente
sobre diversos elementos que compõem nossa existência.

Qual a importância de perguntar? Conceitos-chave


As coisas são exatamente como
Questões ação, reflexão, atitude filosófica, dúvida filosófica,
as percebemos e entendemos? dúvida metódica, dúvida hiperbólica, método, razão,
filosóficas Podem os sentidos e a razão nos critério de verdade, evidência
enganar?

Capítulo 2 A dœvida 37
SITUAÇÃO FILOSÓFICA

O soldado e o filósofo
Em uma manhã ensolarada da antiga atenas, a população desenvolvia tranquilamente seus afazeres.
De repente, um homem cruza a praça correndo, e logo se ouvem gritos desesperados:
– Pega ladrão! Pega ladrão!
um soldado imediatamente se lança em disparada atrás do sujeito. Sócrates, por sua vez, pergunta:
– o que é um ladrão?

EStÚDio mil

38 Unidade 1 Filosofar e viver


ANALISANDO A SITUAÇÃO

Onde e quando ocorre o episódio relatado? Quais são seus personagens?


ocorre em atenas, cidade-Estado da antiguidade grega, em algum momento da
vida de Sócrates (c. 469-399 a.C.), filósofo que é um dos personagens dessa cena.
os outros dois personagens são um soldado e um ladrão.

A historieta pode ser dividida em dois momentos. Quais são eles?


Veja que há um antes e um depois na narrativa. Primeiramente, temos a vida nesse
local de atenas seguindo seu fluxo normal, cotidiano, automático e transparente.
Então entra em cena o ladrão e se produz uma quebra, que dá origem às reações do
soldado e de Sócrates.

Como reage o soldado? E Sócrates?


o soldado tem uma atitude totalmente distinta da de Sócrates. Ele não coloca em
dúvida o sentido do que vê e ouve, nem a conduta que deve ter. Sua atitude é a de
partir imediatamente para a ação. o mesmo não ocorre com Sócrates: a quebra
gera nele a dúvida. E, com a pergunta “o que é um ladrão?”, ele entra em reflexão.

O que essa historieta pretende ilustrar?


Podemos dizer que a historieta ilustra, de maneira caricatural, as funções sociais
do soldado e do filósofo. o soldado deve manter a ordem e proteger a cidade e sua
população. assim, ele reagiu conforme seu dever e sua função (ou “natureza”, como
entendiam os gregos). o filósofo, por sua vez, é aquele que busca a sabedoria e, para
tanto, não pode simplesmente seguir o que pensa e diz a maioria das pessoas (no
caso, criticar e repudiar irrefletidamente o ladrão) e o que faz o soldado (persegui-lo e
prendê-lo). Por isso, a reação de Sócrates é cautelosa, ponderada, e ilustra a maneira
de proceder do filósofo: questionando, procura “des-cobrir” algo que seja importante
para maior compreensão das coisas.

Que objeções podemos fazer às atitudes de cada um?


talvez possamos dizer que o filósofo não pode duvidar o tempo todo: ele precisa al-
cançar algumas certezas que lhe permitam também agir ou propor ações. De modo
semelhante, o soldado não pode somente obedecer ordens, comandos: ele também
precisa refletir antes de agir, senão é capaz de realizar ações injustas. assim, podemos
concluir que ação e reflexão se complementam. Praticadas no momento oportuno e de
forma equilibrada, contribuem para o bem-estar do indivíduo e da sociedade.
Atitude – maneira de se comportar que reflete uma disposição ou tendência interior.
Reflexão – estado da consciência em que a pessoa se volta para seu interior, concentrando
seu espírito na busca de uma compreensão das ideias e dos sentimentos que tem sobre si
própria ou sobre as coisas e os assuntos do mundo exterior.
Objeção – argumentação ou raciocínio que se opõe a algo (como uma opinião, tese ou ação).

Capítulo 2 A dúvida 39
IndAgAção
O pensamento busca novos horizontes
JEan-JulES-antoinE lEComtE Du nouy/ ColEção PartiCular

Demóstenes pratica a arte da oratória


(1870) – Jean-Jules-antoine lecomte
du nouÿ. Se você se sente inibido para
fazer uma pergunta, saiba que toda
dificuldade pode ser superada com
trabalho e persistência. Exemplo disso
encontramos no político ateniense
Demóstenes (384-322 a.C.). Ele era
gago e sentia dificuldades para falar
em público. Decidido a superar suas
limitações, passou a exercitar-se no uso
da palavra. Conta-se que falava contra o
vento e com pequenas pedras na boca.
assim venceu a gagueira e tornou-se
um dos maiores oradores gregos.

A importância de perguntar
nossa análise da historieta anterior nos deu mesmo sem estar consciente disso, que ter dúvidas
uma pequena ideia de que ter dúvidas, mesmo que e perguntar é expor uma fragilidade, um sinal de
provisoriamente, é algo desejável para alcançar dificuldade intelectual ou de falta de “conheci-
um conhecimento maior. Por que será, então, que mentos”. Como nossa cultura valoriza muito a
as pessoas tendem a expressar poucas dúvidas, a inteligência e a informação (ou, pelo menos, o pa-
fazer tão poucas perguntas umas às outras em recer inteligente e bem-informado sobre tudo),
seu dia a dia? poucos se arriscam a ser interpretados como to-
isso pode ser observado, por exemplo, na sala los, ignorantes ou confusos ao fazer uma simples
de aula. Quando uma professora ou um professor pergunta (foi essa a impressão inicial que passou
pergunta à classe se alguém tem alguma dúvida Sócrates na anedota, não foi?).
sobre o que acabou de expor, qual é a reação mais assim, a conversação entre as pessoas costu-
comum? Silêncio ou algumas perguntas tímidas. ma ser, com frequência, uma sucessão de monólo-
a maioria tem alguma dúvida – ou muitas dúvidas –, gos ou de enfrentamentos, em que cada um dos
mas não ousa expressá-la. Essa postura ocorre interlocutores está mais preocupado em dar o con-
também em universidades, empresas, encontros tra ou exibir seus “conhecimentos”, suas certezas,
culturais, almoços e jantares, mesas de bar etc. do que em entender o outro ou aprender com ele
Por que isso é tão frequente? – ou junto com ele. Em resumo, o que está em jogo
uma explicação pode estar na dificuldade de é mais o amor-próprio, a vaidade pessoal do que a
expressão, isto é, na dificuldade de encontrar as aprendizagem. E, quando não entram nessa dispu-
palavras certas para expressar a dúvida que se tem, ta, as pessoas “optam” pelo silêncio. o silêncio de
o que é muito comum. outra razão possível seria quem não apenas não fala, mas também não ouve.
que grande parte das pessoas não ousa expressar isso tudo nos parece um grande equívoco. não
sua dúvida por medo de falar em público. Esse te- há nada mais inteligente do que perguntar. Per-
mor também é bastante comum. o desenvolvimen- guntas são, no mínimo, a expressão do desejo de
to de maiores habilidades de expressão linguística e avançar continuamente no conhecimento sobre o
de comunicação oral poderia mudar esse cenário. mundo e as pessoas, até o final de nossas vidas.
Pode haver, porém, outro motivo que nos parece Quanto mais se vive, mais se aprende, desde que
ainda mais fundamental: muita gente acredita, haja abertura para isso.
40 Unidade 1 Filosofar e viver
ColEção PartiCular
Fazer perguntas pode revelar também um inte-
resse por nossos semelhantes – pelo que o outro
pensa, sente e é. assim, o gosto pela indagação
costuma vir aliado ao gosto pela escuta, pois ape-
nas quando nos dispomos a escutar, dando a devi-
da atenção ao que o outro questiona ou propõe, é
que nos abrimos verdadeiramente para uma troca
de percepções e reflexões e para o aprendizado.
Daí a importância do diálogo (que será nosso tema
no próximo capítulo).
nesse processo, podemos descobrir que a
outra pessoa – que observa o mundo a partir de
uma perspectiva diferente da nossa – percebeu
coisas que não tínhamos percebido ainda, notou
problemas nos quais não havíamos pensado até
então e vice-versa. isso amplia nossa maneira
de ver as coisas e a nós mesmos – nossos hori-
zontes –, alargando também nossas possibili-
dades de escolha para a construção – individual
e coletiva – de uma vida mais justa, sábia, gene-
rosa e feliz.

Conexões

1. Você se considera uma pessoa questionado- A condição humana (1935) – rené magritte. nessa pintura,
ra, isto é, que costuma levantar problemas ou vê-se um quadro que, colocado contra a janela, “esconde”
dúvidas sobre as coisas (explicações, normas, exatamente a parte da paisagem que ele busca retratar.
crenças etc.)? Como reagem as pessoas (na Como podemos interpretar essa metáfora sobre a
percepção humana da realidade construída pelo artista?
escola, em casa, entre amigos) quando você
expressa suas incertezas?
na infância, principalmente nos primeiros
anos, essa atitude é bastante comum ou natu-
ral. a maioria das crianças vive mergulhada no
Atitude filosófica encantamento da surpresa, da novidade, da
Como você já deve ter percebido, a filosofia é descoberta, que se desdobra em interrogações
uma atividade profundamente vinculada à dúvida intermináveis: “o que é isso?”, “o que é aquilo?”,
e às perguntas. Portanto, para aprender a filoso- “por que isso é assim?”, “como você sabe?” e as-
far, é fundamental adotar uma atitude indagado- sim por diante. Desse modo, junto com outras
ra. Como afirmou o pensador alemão karl Jas- experiências, elas vão formando imagens, ideias,
pers (1883-1969), “as perguntas em filosofia são conceitos dos diversos elementos que compõem
mais essenciais que as respostas e cada resposta a realidade. Por exemplo:
transforma-se numa nova pergunta” (Introdução – mãe, o que é tulipa?
ao pensamento filosófico, p. 140). – É uma flor, filha.
isso ocorre justamente porque a filosofia bus- – uma flor como?
ca essa ampliação da paisagem e seus horizon- – uma flor muito delicada e bonita, com a forma
tes: cada resposta (cada paisagem e horizonte de um sino, só que invertido, com a boca para cima.
conquistados) gera um novo terreno para dúvidas – Que cor tem?
e perguntas (uma nova paisagem, com mais um – tem tulipa de tudo quanto é cor: vermelha,
horizonte a ser explorado). amarela, branca, lilás.
assim, mesmo que você não tenha nenhuma – E por que a gente não tem tulipa no nosso
intenção de se tornar um filósofo ou uma filósofa, jardim?
desenvolver uma atitude indagadora e “escutado- – Porque é preciso saber cultivar essa planta,
ra”, isto é, filosófica, pode ser de grande utilidade ela vem de regiões de clima frio, como a holanda...
em muitos momentos de sua existência. – holanda? onde fica a holanda?
Capítulo 2 A dœvida 41
E assim por diante. Às vezes, as crianças dão e não é possível apagar toda essa vivência. Você já
uma reviravolta nas questões que abordam, fa- tem um “repertório” de conceitos, imagens e sen-
zendo perguntas insistentes e até geniais, verda- timentos sobre tudo o que foi fundamental para
deiras torturas para os adultos, que se veem sua existência até este instante, mesmo sem ter
obrigados a parar e pensar sobre as coisas. Com consciência disso. Então, é normal que você se
o passar dos anos, porém, a vida vai deixando de mova pela vida orientado ou orientada por esse
ser novidade: elas mergulham no cotidiano das “mapa”, sem precisar fazer tantas perguntas
respostas prontas e “acabadas” e, de modo geral, quanto uma criança, que ainda não montou seu
esquecem aquelas questões para as quais nunca próprio “repertório”.
conseguiram explicação. há momentos, porém, em que o “repertório”
a atitude filosófica constitui, portanto, uma es- que uma pessoa tem não serve para enfrentar
pécie de retorno a essa primeira infância, a essa determinada situação: não é completamente
maneira de ver, escutar e sentir as coisas. É como satisfatório, amplo, renovador ou “criativo”. É
começar de novo na compreensão do mundo por então que surge a quebra, o estranhamento
meio da dúvida e de sucessivas indagações. (que mencionamos anteriormente) em relação
É claro que esse “começar de novo” não é possí- ao fluxo normal do cotidiano. trata-se de uma
vel no sentido literal da expressão, porque você já oportunidade para começar a pensar na vida de
conhece, sente e imagina muitas coisas a respeito uma maneira filosófica, isto é, para começar a
do mundo, das pessoas e de si mesmo ou si mesma, indagar e duvidar.

Abrir-se ao mundo como uma criança

gEo imagES / alamy/FotoarEna


Para abordar a filosofia, para entrar no território da filosofia,
é absolutamente indispensável uma primeira disposição
de ânimo. É absolutamente indispensável que o aspirante
a filósofo sinta a necessidade de levar a seu estudo uma
disposição infantil.
Em que sentido faço esta paradoxal afirmação de que
convém que o filósofo se puerilize? Faço-a no sentido de que
a disposição de ânimo para filosofar deve consistir essen-
cialmente em perceber e sentir por toda a parte [...] problemas,
mistérios; admirar-se de tudo, sentir profundamente o arca-
no [enigmático] e misterioso de tudo isso; colocar-se ante
o universo e o próprio ser humano com um sentimento de
admiração, de curiosidade infantil como a criança que não
entende nada e para quem tudo é problema. Voltar a ver o mundo como uma criança exige a
Aquele para quem tudo resulta muito natural,para quem tudo humildade de admitir que o que você vê ou pensa
resulta muito fácil de entender, para quem tudo resulta muito pode ser apenas uma construção subjetiva ou
óbvio, nunca poderá ser filósofo. cultural, até mesmo um engano ou ilusão. Como
nas ilusões de ótica. Discuta com seus colegas o
García Morente, Fundamentos de filosofia, p. 33-34. que se vê na imagem acima.

Conexões

2. Tudo se submeterá ao exame da criança e nada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito. [...]
Apresentem-se-lhe todos [os princípios] em sua diversidade e que ela escolha se puder. E se não o puder que
fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta em sua opinião. (MontaiGne, Ensaios, p. 77-78.)
reflita sobre a proposta educativa contida nesse parágrafo da obra do filósofo francês montaigne
(1533-1592). trata-se de uma proposta autoritária ou liberal? há espaço para a dúvida? o autor valoriza
a certeza absoluta? a educação pode ser determinante na forma de pensar das pessoas? Exponha
suas interpretações.

42 Unidade 1 Filosofar e viver

Você também pode gostar