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A dúvida
Vamos concentrar agora nossa atenção sobre uma atitude importante no
processo de filosofar: a dúvida. Ela sintetiza os dois primeiros passos da ex-
periência filosófica – o estranhamento seguido do questionamento.
Veremos adiante que o ato de duvidar nos abre, com frequência, a possi-
bilidade de desenvolver uma percepção mais profunda, clara e abrangente
sobre diversos elementos que compõem nossa existência.
Capítulo 2 A dœvida 37
SITUAÇÃO FILOSÓFICA
O soldado e o filósofo
Em uma manhã ensolarada da antiga atenas, a população desenvolvia tranquilamente seus afazeres.
De repente, um homem cruza a praça correndo, e logo se ouvem gritos desesperados:
– Pega ladrão! Pega ladrão!
um soldado imediatamente se lança em disparada atrás do sujeito. Sócrates, por sua vez, pergunta:
– o que é um ladrão?
EStÚDio mil
Capítulo 2 A dúvida 39
IndAgAção
O pensamento busca novos horizontes
JEan-JulES-antoinE lEComtE Du nouy/ ColEção PartiCular
A importância de perguntar
nossa análise da historieta anterior nos deu mesmo sem estar consciente disso, que ter dúvidas
uma pequena ideia de que ter dúvidas, mesmo que e perguntar é expor uma fragilidade, um sinal de
provisoriamente, é algo desejável para alcançar dificuldade intelectual ou de falta de “conheci-
um conhecimento maior. Por que será, então, que mentos”. Como nossa cultura valoriza muito a
as pessoas tendem a expressar poucas dúvidas, a inteligência e a informação (ou, pelo menos, o pa-
fazer tão poucas perguntas umas às outras em recer inteligente e bem-informado sobre tudo),
seu dia a dia? poucos se arriscam a ser interpretados como to-
isso pode ser observado, por exemplo, na sala los, ignorantes ou confusos ao fazer uma simples
de aula. Quando uma professora ou um professor pergunta (foi essa a impressão inicial que passou
pergunta à classe se alguém tem alguma dúvida Sócrates na anedota, não foi?).
sobre o que acabou de expor, qual é a reação mais assim, a conversação entre as pessoas costu-
comum? Silêncio ou algumas perguntas tímidas. ma ser, com frequência, uma sucessão de monólo-
a maioria tem alguma dúvida – ou muitas dúvidas –, gos ou de enfrentamentos, em que cada um dos
mas não ousa expressá-la. Essa postura ocorre interlocutores está mais preocupado em dar o con-
também em universidades, empresas, encontros tra ou exibir seus “conhecimentos”, suas certezas,
culturais, almoços e jantares, mesas de bar etc. do que em entender o outro ou aprender com ele
Por que isso é tão frequente? – ou junto com ele. Em resumo, o que está em jogo
uma explicação pode estar na dificuldade de é mais o amor-próprio, a vaidade pessoal do que a
expressão, isto é, na dificuldade de encontrar as aprendizagem. E, quando não entram nessa dispu-
palavras certas para expressar a dúvida que se tem, ta, as pessoas “optam” pelo silêncio. o silêncio de
o que é muito comum. outra razão possível seria quem não apenas não fala, mas também não ouve.
que grande parte das pessoas não ousa expressar isso tudo nos parece um grande equívoco. não
sua dúvida por medo de falar em público. Esse te- há nada mais inteligente do que perguntar. Per-
mor também é bastante comum. o desenvolvimen- guntas são, no mínimo, a expressão do desejo de
to de maiores habilidades de expressão linguística e avançar continuamente no conhecimento sobre o
de comunicação oral poderia mudar esse cenário. mundo e as pessoas, até o final de nossas vidas.
Pode haver, porém, outro motivo que nos parece Quanto mais se vive, mais se aprende, desde que
ainda mais fundamental: muita gente acredita, haja abertura para isso.
40 Unidade 1 Filosofar e viver
ColEção PartiCular
Fazer perguntas pode revelar também um inte-
resse por nossos semelhantes – pelo que o outro
pensa, sente e é. assim, o gosto pela indagação
costuma vir aliado ao gosto pela escuta, pois ape-
nas quando nos dispomos a escutar, dando a devi-
da atenção ao que o outro questiona ou propõe, é
que nos abrimos verdadeiramente para uma troca
de percepções e reflexões e para o aprendizado.
Daí a importância do diálogo (que será nosso tema
no próximo capítulo).
nesse processo, podemos descobrir que a
outra pessoa – que observa o mundo a partir de
uma perspectiva diferente da nossa – percebeu
coisas que não tínhamos percebido ainda, notou
problemas nos quais não havíamos pensado até
então e vice-versa. isso amplia nossa maneira
de ver as coisas e a nós mesmos – nossos hori-
zontes –, alargando também nossas possibili-
dades de escolha para a construção – individual
e coletiva – de uma vida mais justa, sábia, gene-
rosa e feliz.
Conexões
1. Você se considera uma pessoa questionado- A condição humana (1935) – rené magritte. nessa pintura,
ra, isto é, que costuma levantar problemas ou vê-se um quadro que, colocado contra a janela, “esconde”
dúvidas sobre as coisas (explicações, normas, exatamente a parte da paisagem que ele busca retratar.
crenças etc.)? Como reagem as pessoas (na Como podemos interpretar essa metáfora sobre a
percepção humana da realidade construída pelo artista?
escola, em casa, entre amigos) quando você
expressa suas incertezas?
na infância, principalmente nos primeiros
anos, essa atitude é bastante comum ou natu-
ral. a maioria das crianças vive mergulhada no
Atitude filosófica encantamento da surpresa, da novidade, da
Como você já deve ter percebido, a filosofia é descoberta, que se desdobra em interrogações
uma atividade profundamente vinculada à dúvida intermináveis: “o que é isso?”, “o que é aquilo?”,
e às perguntas. Portanto, para aprender a filoso- “por que isso é assim?”, “como você sabe?” e as-
far, é fundamental adotar uma atitude indagado- sim por diante. Desse modo, junto com outras
ra. Como afirmou o pensador alemão karl Jas- experiências, elas vão formando imagens, ideias,
pers (1883-1969), “as perguntas em filosofia são conceitos dos diversos elementos que compõem
mais essenciais que as respostas e cada resposta a realidade. Por exemplo:
transforma-se numa nova pergunta” (Introdução – mãe, o que é tulipa?
ao pensamento filosófico, p. 140). – É uma flor, filha.
isso ocorre justamente porque a filosofia bus- – uma flor como?
ca essa ampliação da paisagem e seus horizon- – uma flor muito delicada e bonita, com a forma
tes: cada resposta (cada paisagem e horizonte de um sino, só que invertido, com a boca para cima.
conquistados) gera um novo terreno para dúvidas – Que cor tem?
e perguntas (uma nova paisagem, com mais um – tem tulipa de tudo quanto é cor: vermelha,
horizonte a ser explorado). amarela, branca, lilás.
assim, mesmo que você não tenha nenhuma – E por que a gente não tem tulipa no nosso
intenção de se tornar um filósofo ou uma filósofa, jardim?
desenvolver uma atitude indagadora e “escutado- – Porque é preciso saber cultivar essa planta,
ra”, isto é, filosófica, pode ser de grande utilidade ela vem de regiões de clima frio, como a holanda...
em muitos momentos de sua existência. – holanda? onde fica a holanda?
Capítulo 2 A dœvida 41
E assim por diante. Às vezes, as crianças dão e não é possível apagar toda essa vivência. Você já
uma reviravolta nas questões que abordam, fa- tem um “repertório” de conceitos, imagens e sen-
zendo perguntas insistentes e até geniais, verda- timentos sobre tudo o que foi fundamental para
deiras torturas para os adultos, que se veem sua existência até este instante, mesmo sem ter
obrigados a parar e pensar sobre as coisas. Com consciência disso. Então, é normal que você se
o passar dos anos, porém, a vida vai deixando de mova pela vida orientado ou orientada por esse
ser novidade: elas mergulham no cotidiano das “mapa”, sem precisar fazer tantas perguntas
respostas prontas e “acabadas” e, de modo geral, quanto uma criança, que ainda não montou seu
esquecem aquelas questões para as quais nunca próprio “repertório”.
conseguiram explicação. há momentos, porém, em que o “repertório”
a atitude filosófica constitui, portanto, uma es- que uma pessoa tem não serve para enfrentar
pécie de retorno a essa primeira infância, a essa determinada situação: não é completamente
maneira de ver, escutar e sentir as coisas. É como satisfatório, amplo, renovador ou “criativo”. É
começar de novo na compreensão do mundo por então que surge a quebra, o estranhamento
meio da dúvida e de sucessivas indagações. (que mencionamos anteriormente) em relação
É claro que esse “começar de novo” não é possí- ao fluxo normal do cotidiano. trata-se de uma
vel no sentido literal da expressão, porque você já oportunidade para começar a pensar na vida de
conhece, sente e imagina muitas coisas a respeito uma maneira filosófica, isto é, para começar a
do mundo, das pessoas e de si mesmo ou si mesma, indagar e duvidar.
Conexões
2. Tudo se submeterá ao exame da criança e nada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito. [...]
Apresentem-se-lhe todos [os princípios] em sua diversidade e que ela escolha se puder. E se não o puder que
fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta em sua opinião. (MontaiGne, Ensaios, p. 77-78.)
reflita sobre a proposta educativa contida nesse parágrafo da obra do filósofo francês montaigne
(1533-1592). trata-se de uma proposta autoritária ou liberal? há espaço para a dúvida? o autor valoriza
a certeza absoluta? a educação pode ser determinante na forma de pensar das pessoas? Exponha
suas interpretações.