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dúvIdA metódIcA

O exercício da dúvida por Descartes

morEt E DESFontainES/groSVEnor PrintS, lonDrES


Para que você entenda de maneira mais
concreta o que acabamos de estudar, vamos
analisar agora um exemplo de reflexão filosó-
fica que enfatiza ao extremo o ato de duvidar: a
chamada dúvida metódica, do filósofo francês
rené Descartes (1596-1650). (Voltaremos a estu-
dar distintos aspectos do pensamento cartesiano
nos capítulos 6, 10 e 14.)

Aprendendo a duvidar
a dúvida metódica tornou-se uma referência
importantíssima e um clássico da filosofia moder-
na. trata-se de um exercício da dúvida em relação
a tudo o que ele, Descartes, conhecia ou pensava
até então ser verdadeiro. tal exercício foi conduzido
pelo filósofo de duas maneiras:
Descartes em sua mesa de trabalho. o filósofo buscou
• metódica, porque a dúvida vai se ampliando o isolamento fora de Paris e, depois, na holanda, para
passo a passo, de modo ordenado e lógico; e dedicar-se totalmente aos estudos. Conta-se que ficava dias
• radical, porque a dúvida vai atingindo tudo e em seu quarto, imerso em suas reflexões e na elaboração de
suas obras.
chega a um ponto extremo em que não é pos-
sível ter certeza de nada, nem mesmo de que Para cumprir tal propósito, no entanto, percebeu
o mundo existe. Como em um jogo ou uma que era necessário destruir primeiro todas as suas
brincadeira, Descartes tentou duvidar até da antigas ideias que fossem duvidosas.
própria existência. Por isso, a dúvida metódica isso quer dizer que ele já tinha experimentado
costuma ser chamada também de dúvida hi- diversos estranhamentos em sua vida, como
perbólica, isto é, maior do que o normal ou o qualquer pessoa. a diferença é que ele decidiu,
esperado, exagerada. note que é um exercício então, viver esse processo de estranhar e duvidar
bastante difícil, pois não é nada natural duvidar de maneira voluntária e planejada, aplicando-o a
de tanta coisa. Experimente. todas as suas antigas opiniões. Você também
antes de tudo, vejamos por que esse filósofo de- pode fazê-lo, e é isso que queremos lhe mostrar.
cidiu empreender tal esforço. o que o teria motiva- observe o caminho seguido por Descartes e pro-
do? a explicação está no início de suas Meditações: cure pensar, sentir e vivenciar com ele cada passo
de suas meditações.
Há já algum tempo que eu me apercebi de que, desde
meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões
As primeiras determinações
como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu
fundei em princípios tão mal assegurados não podia [...] não é necessário que examine cada uma [opi-
ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me nião] em particular, o que seria um trabalho infinito;
era necessário tentar seriamente, uma vez em minha mas, visto que a ruína dos alicerces carrega neces-
vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então sariamente consigo todo o resto do edifício, dedi-
dera crédito, e começar tudo novamente desde os car-me-ei inicialmente aos princípios sobre os quais
fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme todas as minhas opiniões antigas estavam apoiadas.
e de constante nas ciências (p. 17). (Descartes, Meditações, p. 17.)
Em outras palavras, Descartes estava desiludido Essa foi a primeira determinação de Descartes
com o que aprendera até então nos estudos e na na construção da dúvida metódica. Em outras pala-
vida, depois de perceber que havia muito engano. aí vras, para tornar sua tarefa mais fácil, o filósofo
se tornou uma pessoa meio desconfiada, mas que decidiu analisar as ideias ou crenças básicas que
não ficou só nisso: ele resolveu construir algo dife- fundamentavam suas opiniões. Se esses princípios
rente, uma nova ciência que garantisse um conheci- ou fundamentos eram duvidosos, as outras ideias
mento sólido e verdadeiro. Essa era sua ambição. que deles dependiam também eram duvidosas.
Capítulo 2 A dœvida 45
Esse é um procedimento básico tanto em filo- ginado das percepções sensoriais não é confiá-
sofia como nas ciências em geral: uma ideia falsa vel, pois muitas vezes elas nos enganam. É o ar-
ou incerta não pode ser o fundamento de uma boa gumento do erro dos sentidos.
explicação, assim como alicerces de gelo ou de

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gesso não podem sustentar uma boa construção.
neste ponto você pode estar se perguntando:
“mas como Descartes distinguia entre o certo e o
duvidoso? Que critério ele utilizava?”. a resposta
pode ser encontrada na obra Discurso do método,
na qual o filósofo explicita a seguinte norma de
conduta para si mesmo:
[...] jamais acolher alguma coisa como verdadeira
que eu não conhecesse evidentemente como tal;
isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a
prevenção, e de nada incluir em meus juízos que
não se apresentasse tão clara e tão distintamente
a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião
de pô-lo em dúvida (p. 37; destaques nossos).
trata-se do critério da evidência: uma ideia é
evidente quando se apresenta com tamanho
grau de clareza e distinção ao intelecto – como
define Descartes – que não suscita qualquer a subjetividade das percepções sensoriais, bem como
dúvida. Duvidosa, portanto, é toda ideia que não seus enganos, é um tema recorrente na história da
pode ser demonstrada com essa mesma clareza, filosofia. as coisas são realmente como os nossos
sentidos as percebem? na imagem acima, por exemplo,
que não passa totalmente pelo crivo da razão. qual é a percepção imediata trazida por seu sentido da
Descartes decidiu que não acolheria como ver- visão a respeito dessas pessoas? observando melhor,
dadeira nenhuma ideia como essa. o que deve estar ocorrendo realmente? o que fez você
chegar a essa conclusão: sua visão ou seu pensamento?
Critério – princípio(s) ou norma(s) que se
estabelece(m) para orientar alguma tarefa,
conduzir algum tipo de estudo ou estabelecer Quantas vezes você viu ou ouviu uma coisa e
certas diferenciações de natureza mais abstrata depois se deu conta de que havia se enganado?
(por exemplo: lógicas, éticas etc.) Por exemplo, assistindo a uma competição espor-
Distinção – maneira com que uma ideia ou percepção tiva, no estádio ou pela televisão, com frequência
se distingue e se diferencia de outra; diferenciação.
as pessoas enxergam coisas distintas em um
mesmo lance e acreditam terem tido a visão mais
A dúvida sobre as ideias que nascem real e certeira possível. o mesmo ocorre com os
dos sentidos outros sentidos: seja na audição, no olfato, no
retornemos à meditação inicial. Descartes paladar ou no tato, há muita discordância nas
começa seu exercício da dúvida questionando os percepções individuais e é difícil o consenso.
sentidos como fonte segura de conhecimento. Portanto, voltando a Descartes, ele acredita-
va que não seria possível fundar uma ciência
Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais universal, aplicável a tudo o que existe – que era
verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sua pretensão –, baseando-se nas percepções
sentidos; ora, experimentei algumas vezes que esses
sensoriais. Só que ignorá-las não é algo assim
sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se
fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
tão fácil, como ele mesmo reconhece:
(Meditações, p. 17-18.) Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes no
que se refere às coisas pouco sensíveis e pouco distan-
Vemos que aqui ele vai contra o senso co-
tes,encontramos talvez muitas outras das quais não se
mum, pois a maioria das pessoas quase sempre pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêsse-
confia naquilo que vê, ouve e sente, pois os cinco mos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja
sentidos (visão, audição, tato, paladar e olfato) aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre,
seriam a primeira e fundamental fonte de infor- tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta
mação sobre o mundo que nos cerca. Descartes natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e
argumenta, no entanto, que o conhecimento ori- este corpo sejam meus? (Meditações, p. 18.)

46 Unidade 1 Filosofar e viver


aqui Descartes confessa sua dificuldade em
Conexões
continuar duvidando dos sentidos quando se trata
de algo muito próximo, de toda a circunstância 4. Pare e observe o mundo e a si mesmo/mesma
que está vivenciando. Você provavelmente concor- por um instante. o que você vê, sente, toca e
dará com ele, pois é bastante difícil duvidar de que ouve neste exato momento? Experimente du-
você tem este livro em suas mãos neste momento vidar de cada uma das sensações que está ten-
e que está lendo estas palavras, não é? isso pare- do e que parecem trazer o mundo externo para
ce evidente e verdadeiro. o que poderia abalar dentro de você. imagine que as cores, os sons,
essa impressão tão natural? as formas não são realmente assim como você
o sonho. De repente, Descartes considera a hi- as percebe, que é tudo um grande engano, um
sonho, um delírio. Descreva essa experiência e
pótese de que poderia estar sonhando:
suas suposições, relacionando-as com a dúvi-
Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, da cartesiana das ideias sensoriais.
que estava neste lugar, que estava vestido, que esta-
va junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu
dentro de meu leito? [...] pensando cuidadosamente
nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, A dúvida sobre as ideias que nascem
quando dormia, por semelhantes ilusões. (Meditações, da razão
p. 18; destaque nosso.)
Descartes decide então deixar de lado sua inves-
grEtE StErn
tigação sobre as ideias que nascem dos sentidos
para dirigir seu foco sobre aquelas que vêm de outra
fonte: a razão. É o caso das ideias matemáticas:
[...] a Aritmética, a Geometria [...], que não tratam
senão de coisas muito simples e muito gerais, sem
cuidarem muito em se elas existem ou não na natu-
reza, contêm alguma coisa de certo e indubitável. Pois
quer eu esteja acordado, quer eu esteja dormindo,
dois mais três formarão sempre o número cinco e
o quadrado nunca terá mais do que quatro lados; e
não parece possível que verdades tão patentes pos-
sam ser suspeitas de alguma falsidade ou incerteza.
(Meditações, p. 19.)
Parece, enfim, que Descartes encontra um
tipo de ideia que não lhe desperta dúvidas, pois o
conhecimento matemático não dependeria de
objetos externos, apenas da razão, e preencheria
o critério de verdade por ele estabelecido: a evi-
dência, o conhecimento claro e distinto. Quem
pode contestar o resultado considerado correto
de uma soma ou equação matemática, ou a clareza
dos postulados geométricos?
aparentemente, ninguém. o filósofo sabia disso.
no entanto, tendo meditado muito sobre o assunto,
ele queria preparar-se para enfrentar qualquer
Sonho nº 32: Sem título (1949) – grete Stern, fotomontagem objeção. E estava certo de que elas viriam. assim,
(Coleção particular). Você já sentiu alguma vez que caía de
grande altura para, de repente, despertar assustado em Descartes avança mais um passo e eleva o grau
sua cama? de exigência, buscando admitir outra dúvida ainda
mais radical:
Em outras palavras, com o argumento do so- Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa
nho o filósofo volta à estaca zero em sua busca de opinião de que há um Deus que tudo pode e por
certeza, pois não encontra nada que lhe possa ga- quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem
rantir que o que percebe ao seu redor não seja me poderá assegurar que esse Deus não tenha fei-
uma ilusão onírica. Às vezes, os sonhos também to com que não haja nenhuma terra, nenhum céu,
parecem muito reais, não é mesmo? nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma

Cap’tulo 2 A dœvida 47

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