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soberano ser; e então seremos os pri- não sabeis ainda que sois uma coisa
meiros a nos render a vosso raciocínio, pensante, porquanto, segundo vós, tal
e dar-nos-emos todos as mãos. Ora, conhecimento depende do conheci-
que tal ideia procede dessas noções mento claro de um Deus existente, que
antecipadas, patenteia-se, parece, ainda não demonstrastes, nos lugares
assaz claramente do fato de os cana- onde concluís que conheceis clara-
denses, os hurões e os outros homens mente o que sois. Adicionai a isso que
selvagens não possuírem neles tal um ateu conhece clara e distintamente
ideia, a qual podeis até formar do que os três ângulos de um triângulo
conhecimento que tendes das coisas são iguais a dois retos, embora esteja
corporais; de sorte que vossa ideia muito longe de crer na existência de
nada mais representa senão esse Deus, posto que a negou completa-
mundo corporal, que abrange todas as mente: porque, diz ele, se Deus existis-
perfeições que poderíeis imaginar; de se, haveria um soberano ser e um sobe-
sorte que não podeis concluir outra rano bem, isto é, um infinito; ora, o
coisa, exceto que há um ente corpóreo que é infinito, em todo género de
muito perfeito; a não ser que junteis perfeição, exclui toda outra coisa que
algo mais, que eleve vosso espírito ao seja não somente toda espécie de ser e
conhecimento das coisas espirituais ou de bem mas, outrossim, toda espécie de
incorpóreas. Ainda aqui é possível não-ser e de mal; no entanto, há mui-
afirmar que a ideia de um anjo pode tos seres e muitos bens, assim como
existir em vós, tanto quanto a de um muitos não-seres e muitos males; obje-
ser mais perfeito, sem que haja necessi- ção à qual julgamos ser oportuno que
dade, para tanto, de que seja formada vós respondais, de modo que aos ím-
em vós por um anjo realmente existen- pios nada mais reste a objetar, e que
te, embora o anjo seja mais perfeito do possa servir de pretexto à sua impieda-
que vós. Mas não tendes a ideia de de.
Deus, assim como a de um número ou
a de uma linha infinita; e, ainda que Em quarto lugar, negais que Deus
pudésseis tê-la, este número é inteira- possa mentir ou enganar; conquanto se
mente impossível. Adicionai a isto que encontrem escolásticos que sustentam
a ideia de unidade e simplicidade de o contrário, como Gabriel, Arimi-
uma única perfeição que envolva e nensis e alguns outros, os quais pen-
contenha todas as outras constitui-se sam que Deus mente, falando absolu-
unicamente pela operação do entendi- tamente, isto é, que ele significa algo
mento que raciocina, assim como se aos homens contra sua intenção, e con-
constituem as unidades universais, que tra o que decretou e resolveu, como
não estão nas coisas, mas somente no quando, sem acrescentar condição, diz
entendimento, como é visível pela uni- aos ninivitas por seu profeta: Ainda
dade genérica, transcendental, etc. quarenta dias, e Nínive será subver-
tida, e ao dizer muitas outras coisas
Em terceiro lugar, como ainda não que não aconteceram, porque não pre-
estais certo da existência de Deus e tendeu que tais palavras correspon-
dizeis, no entanto, que não podeis estar dessem à sua intenção ou a seu decre-
seguro de coisa alguma, ou conhecer to. Por que se empederniu e cegou o
coisa alguma clara e distintamente, se Faraó, e, se pôs nos profetas um espí-
primeiro não conheceis certa e clara- rito de mentira, como podeis afirmar
mente que Deus existe, segue-se que que não podemos ser enganados por
158 DESCARTES
ele? Não pode Deus comportar-se com espirito que a governa e, se, ao contrá-
os homens como um médico com seus rio, expõe-se ao perigo, quando perse-
doentes, e um pai com seus filhos, que gue e abrange os conhecimentos obs-
tanto um como outro enganam tão curos e confusos do entendimento.
amiúde, mas sempre com prudência e notai que daí parece possível inferir
utilidade? Pois se Deus nos mostrasse que os turcos e os outros infiéis não só
a verdade inteira e nua, que olho ou, não pecam quando não abraçam a reli-
antes, que espírito possuiria bastante gião cristã e católica mas até mesmo
força para suportá-la8? pecam quando a abraçam, pois não
Ainda que, a bem dizer, não seja conhecem sua verdade nem clara nem
necessário supor um Deus enganador, distintamente. Ainda mais, se for ver-
para que sejais decepcionados nas coi- dadeira essa regra que estabeleceis.
sas que pensais conhecer clara e distin- não será dado à vontade abranger
tamente, visto que a causa dessa senão pouquíssimas coisas, visto que
decepção pode estar em vós, embora não conhecemos quase nada com a
nem sequer o sonheis. Pois como sa- clareza e distinção que exigis, para
beis que vossa natureza não é tal que constituir uma certeza que não esteja
ela se engana sempre, ou ao menos sujeita a nenhuma dúvida. Tomai.
com muita frequência? E onde vos pois, cuidado, se vos apraz, para que.
informaram que, no tocante às coisas pretendendo firmar o partido da verda-
que pensais conhecer clara e distinta- de, não proveis mais do que o necessá-
mente, é certo que nunca estivestes rio, e para que, em vez de apoiá-lo, não
enganado, e que não o podeis estar? 0 derrubeis.
Pois quantas vezes verificamos que as Em sexto lugar, nas vossas respostas
pessoas se enganam em coisas que às objeções precedentes, parece que
pensavam ver mais claramente do que deixastes de tirar a devida conclusão
o sol! Portanto, esse princípio do do seguinte argumento: O que entende-
conhecimento claro e distinto deve ser mos pertencer clara e distintamente à
explicado tão clara e distintamente natureza, ou à essência, ou à forma
que, doravante, ninguém dotado de imutável e verdadeira de qualquer
espírito razoável possa ficar decepcio- coisa, pode ser dito ou afirmado com
nado nas coisas que julgar conhecer verdade desta coisa; mas (depois de
clara e distintamente9; de outro modo, observar assaz cuidadosamente o que é
ainda não vemos nada que possamos Deus) entendemos clara e distinta-
responder com certeza sobre a verdade mente que pertence à sua verdadeira e
de qualquer coisa. imutável natureza, que ele existe'*0.
Em quinto lugar, se a vontade nunca 1
pode falhar, ou não peca de maneira ° O silogismo das Primeiras Respostas ao qual se
alude é o seguinte: o que concebemos clara e distin-
alguma, quando segue e se deixa con- tamente pertencer à natureza de uma coisa, pode-
duzir pelas luzes claras e distintas do mos afirmar com verdade desta coisa; ora, concebe-
mos clara e distintamente que pertence à natureza
de Deus existir; logo, Deus existe. As Primeiras
8 Respostas concedem que "a dificuldade da menor
Oposição — embaraçosa para o autor — do
Deus cartesiano ao Deus antropomórfico das não é pequena": 1.° devido à distinção que fazemos
Escrituras. entre essência e existência "em todas as outras coi-
9
O princípio de clareza e distinção é ele mesmo sas"; 2." devido ao fato de que a ideia de Deus pre-
claro e distinto? Ou então não designa ele senão cisa corresponder a uma "natureza verdadeira e
uma certeza psicológica e subjetiva, não passando, imutável" e de que eu devo poder verificar que ela
por conseguinte, como dirá Leibniz, de "uma marca não foi forjada pelo meu entendimento. Descartes
de certeza obscura e sujeita ao capricho dos responde a essas duas dificuldades prejudiciais ao
homens"? fim das Primeiras Respostas.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 159
nhecer tanto melhor uma coisa quanto mais útil para alcançar um firme e se-
mais particularidades dela conhece- guro conhecimento das coisas do que
mos; assim, temos mais conhecimento acostumar-se, antes de estabelecer
daqueles com quem conversamos algo, a duvidar de tudo e principal-
todos os dias do que daqueles de que mente das coisas corporais, embora
só conhecemos o nome ou o rosto; e houvesse visto há longo tempo muitos
todavia não julgamos que esses nos livros escritos pelos céticos e acadé-
sejam inteiramente desconhecidos; micos sobre a matéria e não fosse sem
nesse sentido penso ter suficientemente certo fastio que ruminava um alimento
demonstrado que o espírito, conside- tão comum, não pude todavia dispen-
rado sem as coisas que se costumam sar-me de lhe conceder uma Meditação
atribuir ao corpo, é mais conhecido inteira; e gostaria que os leitores
que o corpo considerado sem o espíri- empregassem não apenas o pouco
to. E é tudo o que pretendia provar
tempo necessário para lê-la, mas al-
nessa Meditação Segunda.
guns meses, ou ao menos algumas
Mas bem vejo o que pretendeis semanas, em considerar as coisas de
dizer, a saber, que, havendo eu escrito que ela trata, antes de passar além;
apenas seis Meditações sobre a Filoso- pois assim não duvido que aufiram
fia primeira, os leitores se espantarão lucro bem melhor da leitura do restan-
de que, nas duas primeiras, não con- te.
clua nada mais senão o que acabo de Ademais, por não termos tido até
declarar nesse instante, e pôr isso hão agora quaisquer ideias das coisas per-
de achá-las demasiado estéreis e indig- tencentes ao espírito que não fossem
nas de terem sido trazidas à luz1 6 . A muito confusas e misturadas às ideias
isso respondo somente não temer que das coisas sensíveis, e por ter sido esta
aqueles que houverem lido com discer- a primeira e principal razão pela qual
nimento o restante do que escrevi te- não se pôde entender assaz claramente
nham ocasião de suspeitar que eu haja nenhuma das coisas que se diziam de
malogrado no trato da matéria; mas Deus e da alma, pensei que não faria
que me pareceu muito razoável que as pouco se mostrasse como é preciso dis-
coisas que exigem particular atenção, e tinguir as propriedades ou qualidades
devem ser consideradas separadamente do espírito das propriedades ou quali-
das outras, fossem postas em Medita- dades do corpo, e como é preciso
ções separadas1 7 . reconhecê-las; pois, embora muitos já
Eis por que, não conhecendo nada tenham dito que, para bem entender as
coisas imateriais ou metafísicas, é
16
"Isto poderia ser dito em quatro palavras e esta- necessário distanciar o nosso espírito
ríamos todos de acordo. Se eu devesse gastar tantas dos sentidos, não obstante ninguém,
palavras e tempo para aprender uma coisa de tão
pouca importância, teria dificuldade de me resignar que eu saiba, mostrou ainda por que
a isso", é o que Descartes faz dizer a seu adversário meio é possível realizá-lo. Ora, o
no diálogo La Recherche de la Vérité. Kant terá de verdadeiro, e a meu juízo, o único meio
defender-se da mesma censura e fará muitas vezes
observar que é preciso distinguir entre o tema da para isso está contido na minha Medi-
finitude de nosso conhecimento, lugar-comum da tação Segunda 18 ; mas é de tal ordem
Metafísica, e a demonstração e determinação preci-
sa
17
dos limites de nosso conhecimento.
18
Cf. Cartas, a Mersenne, de 24 de dezembro de Este "único meio" é "o método de segregação"
1640, sobre a diferença essencial entre a ordem das (Guéroult, t. I, 69): não posso me conceber clara e
matérias e a ordem das razões: "Não intento abso- distintamente senão excluindo tudo de mim salvo o
lutamente dizer em um mesmo lugar tudo quanto pensamento (distinção real), não posso conceber as
pertence a uma matéria, porque me seria impossível faculdades não intelectuais de meu espírito sem
prová-lo efetivamente..." incluir nelas o pensamento (distinção modal).
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 163
que não basta tê-lo encarado uma vez, dar algum. Pois, o que direis vós? Que
cumpre examiná-lo amiúde e conside- essas coisas são realmente distintas,
rá-lo durante muito tempo, a fim de podendo cada qual existir sem a outra?
que o hábito de confundir as coisas Mas eu tornaria a perguntar-vos de
intelectuais com as corporais, que se onde sabeis que uma coisa pode existir
enraizou em nós no curso de toda a sem a outra. Pois, para que isso consti-
nossa vida, possa ser expungido por tua um signo de distinção, é necessário
um hábito contrário, o de distingui-las, que seja conhecido.
adquirido pelo exercício de alguns Alegareis talvez que os sentidos vo-
dias. E isso me pareceu uma causa lo fazem conhecer, por que vedes uma
bastante justa para que não versasse coisa na ausência de outra, ou porque
outra matéria na Meditação Segunda. a tocais, etc. Mas a fé dos sentidos é
Perguntais aqui como demonstro mais incerta que a do entendimento; e
que o corpo não pode pensar; mas per- pode acontecer de muitas maneiras que
doai-me se respondo que ainda não dei uma só e mesma coisa se apresente a
lugar a tal questão, tendo apenas nossos sentidos sob diversas formas,
começado a tratá-la na Meditação ou em diversos lugares e maneiras,
Sexta, pelas seguintes palavras: É sufi- sendo assim tomada por duas. E enfim,
ciente que eu possa clara e distinta- se vos recordais do que foi dito da cera
mente conceber uma coisa sem outra, ao termo da Meditação Segunda, sa-
para ser certo que uma é distinta ou beis que os corpos mesmos não são
diferente da outra, etc. E pouco depois: propriamente conhecidos pelos senti-
Ainda que eu tenha um corpo que me dos, mas só pelo entendimento; de tal
seja mui estreitamente ligado, no en- modo que sentir uma coisa sem uma
tanto, porque, de um lado, possuo uma outra nada é senão ter a ideia de uma
ideia clara e distinta de mim próprio, coisa, e entender que essa ideia não é a
na medida em que sou apenas uma mesma que a ideia de uma outra: ora,
coisa que pensa, e não extensa, e que, isso só é cognoscível pelo fato de que
de outro, possuo uma ideia clara e dis- uma coisa é concebida sem a outra; o
tinta do corpo, na medida em que é que não pode ser certamente conheci-
apenas uma coisa extensa, e que não do, se não se tem a ideia clara e dis-
pensa, é certo que eu, isto é, meu espí- tinta dessas duas coisas: e assim esse
rito, ou minha alma, pela qual sou o signo de real distinção deve reduzir-se
que sou, é inteira e verdadeiramente ao meu para tornar-se certo.
distinta de meu corpo, e que pode ser Porque, se há os que negam haver
ou existir sem ele. Ao que é fácil adi- ideias distintas do espírito e do corpo,
cionar: Tudo o que pode pensar é espí- nada posso fazer, exceto pedir-lhes que
rito, ou se chama espírito. Mas como o considerem assaz atentamente as coi-
corpo e o espírito são realmente distin- sas contidas nessa Meditação Segunda,
tos, nenhum corpo é espírito. Logo, ne- e notem que a opinião, por eles adota-
nhum corpo pode pensar. E certamente da, de que as partes do cérebro concor-
nada vejo nisso que possais negar; pois rem com o espírito para formar nossos
negareis vós que basta concebermos pensamentos não se baseia em nenhu-
claramente uma coisa sem outra, para ma razão positiva, mas apenas em que
sabermos que são realmente distintas? jamais experimentaram ter existido
Dai-nos, portanto, algum signo mais sem corpo, e que com muita frequência
certo da distinção real, se é que se pode foram impedidos por ele em suas
164 DESCARTES
se livre a si mesmo dos prejuízos que lhes prestar grande atenção. Ora, de
lhe ofuscam talvez a luz natural, e se tudo isso, conclui-se mui manifesta-
acostume a dar crédito às primeiras mente que Deus existe 21 . E todavia,
noções, cujos conhecimentos são tão em favor daqueles cuja luz natural é
verdadeiros e tão evidentes, como nada tão fraca, que não vêem que constitui
mais pode sê-lo, de preferência às opi- uma primeira noção que toda a perfei-
niões obscuras e falsas, mas que um ção que está objetivamente numa ideia
longo uso gravou profundamente em deve estar realmente em alguma de
nossos espíritos. suas causas, ainda a demonstrei de
Pois que nada exista em um efeito maneira fácil de conceber, mostrando
que não tenha existido de forma seme- que o espírito que tem esta ideia não
pode existir por si próprio; e, portanto,
lhante ou mais excelente na causa é
não vejo o que podeis desejar mais
uma primeira noção, e tão evidente,
para me dardes as mãos, como haveis
que não há nada mais claro; e esta
prometido.
outra noção comum, que de nada nada
se faz, a compreende em si, porque, se Não vejo tampouco que tenhais pro-
se concorda que exista algo no efeito vado algo contra mim, dizendo que tal-
que não existiu na sua causa, cumpre vez eu tenha recebido a ideia que me
concordar também que isso procede do representa Deus dos pensamentos que
nada; e se é evidente que o nada não concebi anteriormente, dos ensina-
pode ser a causa de algo, é somente mentos dos livros, dos discursos de
porque, nesta causa, não haveria a meus amigos, etc., e não somente de
mesma coisa do que no efeito. meu espírito. Pois meu argumento terá
sempre a mesma força, se, dirigindo-
Constitui também uma primeira me àqueles de quem se diz que eu a
noção que toda a realidade, ou toda a recebi, eu lhes perguntar se a têm por
perfeição, que só está objetivamente si mesmos, ou por outrem, em vez de
nas ideias, deve estar formal ou emi- perguntá-lo a mim próprio; e eu con-
nentemente nas suas causas; e toda cluirei sempre que este outro é Deus,
opinião que jamais nutrimos sobre a de quem ela é primeiramente derivada.
existência das coisas fora de nós
Quanto ao que acrescentais neste
apóia-se tão-somente nela. Pois de
ponto, de que ela pode ser formada da
onde nos poderia advir a suspeita de
consideração das coisas corporais, não
que existissem, se não do simples fato
me parece mais verossímil do que se
de suas ideias virem pelos sentidos disserdes que não dispomos de qual-
ferir nosso espírito? quer faculdade auditiva, mas que, pela
Ora, que há em nós alguma ideia de simples visão das cores, chegamos ao
um ente soberanamente poderoso e conhecimento dos sons. Pois pode-se
perfeito, e também que a realidade afirmar que há mais analogia ou rela-
objetiva desta ideia não se encontra em ção entre as cores e os sons do que
nós, nem formal, nem eminentemente, entre as coisas corporais e Deus. E
isto tornar-se-á manifesto aos que pen- quando pedis que eu adicione alguma
sarem seriamente no assunto, e quise-
rem dar-se ao trabalho de meditá-lo 21
Toda essa página é menos uma resposta do que
comigo; mas não poderia enfiá-lo à uma retomada da primeira prova pelos efeitos cujas
força no espírito dos que lerem as mi- articulações Descartes se limita a pôr em evidência
nhas Meditações apenas como um (localização do problema, axiomas, raciocínio por
exclusão). O que mais responder aos que não soube-
romance, para se desenfadar, e sem ram situar-se no plano da "luz natural"?
166 DESCARTES
les que misturam a esta algumas outras pode ser concebida pelo exclusivo
ideias compõem por tal meio um Deus entendimento e que, de fato, não é
quimérico em cuja natureza existem outra coisa senão aquilo que ele nos
coisas que se contrariam; e, após tê-lo faz conhecer, seja pela primeira, seja
assim composto, não é de espantar que pela segunda, seja pela terceira de suas
neguem que tal Deus, que lhes é repre- operações. E pretendo manter que, do
sentado por uma falsa ideia, existe. simples fato de alguma perfeição, que
Assim, quando vós falais aqui de um está acima de mim, tornar-se o objeto
ser corporal mui perfeito, se tomais a de meu entendimento, de qualquer
denominação mui perfeito de modo forma que se lhe apresente — por
absoluto, de maneira que entendais que exemplo, do simples fato de eu perce-
o corpo é um ser onde se encontram ber que nunca posso, enumerando,
todas as perfeições, dizeis coisas que se chegar ao maior de todos os números,
contrariam2 4 , posto que a natureza do e daí eu conhecer que existe algo, em
corpo encerra muitas imperfeições, por matéria de números, que ultrapassa
exemplo, a que o corpo seja divisível minhas forças —, posso concluir ne-
em partes, que cada uma de suas par- cessariamente não que existe na verda-
tes não seja a outra, e outras semelhan- de um número infinito, nem tampouco
tes; pois é algo evidente por si que que sua existência implica contradi-
constitui maior perfeição não poder ser ção, como dizeis, mas que este poder
dividido do que poder sê-lo. Pois se que tenho de compreender que há sem-
entendeis apenas o que é mui perfeito pre alguma coisa a mais a conceber no
no género do corpo, isto não é de maior dos números, que eu jamais
modo algum o verdadeiro Deus. posso conceber, não provém de mim
O que acrescentais da ideia de um mesmo, e que eu o recebi de algum
anjo, o qual é mais perfeito do que nós, outro ser que é mais perfeito do que
a saber, que não é necessário que tenha sou.
sido posta em nós por um anjo, estou E importa muito pouco que se dê o
facilmente de acordo; pois eu próprio nome de ideia a esse conceito de um
declarei, na Meditação Terceira, que número indefinido, ou que não lho
ela pode compor-se das ideias que dêem. Mas, para entender qual é esse
temos de Deus e do homem. E isso não ente mais perfeito do que eu e saber se
me é de forma alguma, contrário. não é esse mesmo número, cujo fim
Quanto aos que negam possuir em si não posso encontrar, que é realmente
a ideia de Deus e em seu lugar forjam existente e infinito, ou se é outra coisa
algum ídolo, etc., esses, digo eu, negam qualquer, cumpre considerar todas as
o nome e concedem a coisa. Pois certa- outras perfeições, as quais, além do
mente não penso que tal ideia seja da poder de me dar esta ideia, podem exis-
mesma natureza que as imagens das tir na mesma coisa em que existe este
coisas materiais pintadas na fantasia; poder; e assim verificamos que esta
mas, ao contrário, creio que ela só coisa é Deus.
Enfim, quando Deus é dito inconce-
24
"O ser corporal mui perfeito" é uma expressão bível, por isso se entende uma plena e
contraditória se referirmos "corporal" à sua defini- inteira concepção, que compreende e
ção cartesiana (extensão divisível); mas não, se
compreendermos apenas por corporal uma "subs- abrange perfeitamente tudo quanto há
tância sensível", como procedera os teólogos. As nele, e não essa concepção medíocre e
próprias palavras não têm o mesmo sentido. "Não
se define bem o corpo como uma substância sensí- imperfeita que há em nós, a qual no
vel." (A Morus, 5 de fevereiro de 1649.) entanto basta para conhecer que ele
168 DESCARTES
existe. E nada provais contra mim, ensinada por ele sentir em si próprio
dizendo que a ideia da unidade de que não pode se dar que ele pense, caso
todas as perfeições que há em Deus é não exista. Pois é próprio de nosso
formada da mesma maneira que a uni- espírito formar as proposições gerais
dade genérica e a dos outros univer- pelo conhecimento das particulares.
sais. Mas, não obstante, ela é muito Ora, que um ateu possa conhecer
diferente; pois denota uma particular e claramente que os três ângulos de um
positiva perfeição em Deus, ao passo triângulo são iguais a dois retos, não o
que a unidade genérica nada acres- nego2 6 ; mas sustento apenas que não
centa de real à natureza de cada conhece isso por uma ciência verda-
indivíduo. deira e certa, porque todo conheci-
Em terceiro lugar, onde afirmei que mento que se pode tornar duvidoso
nada podemos saber de certo, se não não deve ser denominado ciência, e
conhecermos primeiramente que Deus uma vez que se supõe tratar-se de um
existe, afirmei, em termos expressos, ateu, não pode ele ter certeza de não
que falava apenas da ciência dessas ser enganado nas coisas que lhe pare-
conclusões, cuja lembrança nos pode cem muito evidentes, como já foi mos-
retornar ao espírito, quando não mais trado mais acima; e, embora essa dúvi-
pensamos nas razões de onde as tira- da talvez não lhe ocorra ao
mos2 5 . Pois o conhecimento dos pri- pensamento, pode no entanto ocorrer -
meiros princípios ou axiomas não cos- lhe, se a examinar, ou se lhe for pro-
tuma ser chamado ciência pelos
dialéticos. Mas, quando percebemos posta por outrem; e nunca estará fora
que somos coisas pensantes, trata-se de do perigo de concebê-la, caso não
uma primeira noção que não é extraída reconheça primeiramente um Deus.
de nenhum silogismo; e quando al- E não importa que talvez julgue
guém diz: Penso, logo sou, ou existo, haver demonstrações para provar que
ele não conclui sua existência de seu Deus não existe; pois, como essas pre-
pensamento como pela força de algum tensas demonstrações são falsas, é
silogismo, mas como uma coisa conhe- sempre possível dar-lhe a conhecer a
cida por si; ele a vê por simples inspe- sua falsidade; e levá-lo, então, a mudar
ção do espírito. Como se evidencia do de opinião. O que na verdade não será
fato de que, se a deduzisse por meio do difícil, se por todas as razões ele apre-
silogismo, deveria antes conhecer esta sentar somente a que acrescentais aqui,
premissa maior: Tudo o que pensa é ou a saber, que o infinito em todo género
existe. Mas, ao contrário, esta lhe é de perfeição exclui toda outra espécie
de ser, etc.
2 5
A Meditação Quinta fala da ciência das verda- Pois, primeiramente, se se lhe per-
des mediatas. Esta é que é garantida por Deus, de
sorte que não devo efetuar de novo a demonstração gunta de onde ficou sabendo que esta
para obter novamente a certeza. A questão dessa exclusão de todos os outros seres per-
garantia não se coloca, portanto, para os per se nota tence à natureza do infinito, nada terá
conhecidos intuitivamente. Por isso poderá Descar-
tes escrever, nas Quartas Respostas, referindo-se a para responder pertinentemente, posto
esta passagem: "Fiz ver bastante claramente... que, .pelo nome infinito, não se costu-
que não incidi na falta que se chama circulo", asse-
gurando através de Deus as coisas conhecidas
2
clara e distintivamente e a existência de Deus atra- * Não se trata agora das garantias de minha ciên-
vés do pensamento claro e distinto. Pois distingui cia, mas das próprias verdades.. Descartes não
"as coisas que concebemos de fato mui claramente negou que um ateu pudesse ser matemático, mas
das que nos recordamos haver outrora concebido que pudesse manter a certeza de que as verdades
mui claramente". evidentes são verdadeiras.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 169
ma entender aquilo que exclui a exis- parece que lhe são atribuídas algumas
tência das coisas finitas, e que ele nada paixões humanas.
pode saber da natureza de uma coisa Pois todos conhecem suficiente-
que ele pensa não ser absolutamente mente a distinção que há entre essas
nada, e por conseguinte não ter nenhu- maneiras de falar de Deus, de que a
ma natureza, exceto a que está contida Escritura se serve comumente, que se
na simples e ordinária significação do acomodam à capacidade do vulgo e
nome dessa coisa2 7. contêm de fato alguma verdade, mas
Ademais, para que serviria o infinito apenas na medida em que esta se rela-
poder desse infinito imaginário, se não ciona aos homens, e as que expressam
pudesse jamais criar algo? E enfim, uma verdade mais simples e mais pura
por experimentarmos haver em nós e que não muda de natureza, embora
mesmos certo poder de pensar, conce- não se lhes relacione de modo
bemos facilmente que tal poder possa algum29; destas é que cada qual deve
existir em alguém mais, e até maior do usar ao filosofar e foi delas que preci-
que em nós; mas, ainda que pensemos sei utilizar-me principalmente nas mi-
que aquele cresce ao infinito, não nhas Meditações, visto que mesmo aí
tememos por isso que o nosso se torne eu não supunha ainda que algum
menor. O mesmo sucede com todos os homem me fosse conhecido, e não me
outros atributos de Deus, inclusive o considerava tampouco composto de
do poder de produzir alguns efeitos corpo e espírito, mas um espírito
fora de si, desde que suponhamos que somente.
nada há em nós sem que esteja subme-
tido à vontade de Deus; portanto, é De onde se torna evidente que não
possível entendê-lo como totalmente falei nesse ponto da mentira que se
infinito sem qualquer exclusão das coi- exprime por palavras, mas apenas da
sas criadas28. malícia interna e formal contida no
Em quarto lugar, quando digo que engano: se bem que, no entanto, essas
Deus não pode mentir, nem ser enga- palavras que citais do profeta: Ainda
nador, penso convir com todos os teó- quarenta dias, e Nínive será subver-
logos que alguma vez existiram e hão tida, não constituam mesmo uma men-
de existir no futuro. E tudo quanto ale- tira verbal, porém uma simples amea-
gais em contrário não possui mais ça, cuja ocorrência dependia de uma
força do que se, tendo negado que condição; e quando é dito que Deus
Deus se encoleriza, ou que esteja sujei- empederniu o coração do Faraó, ou
to às outras paixões da alma, me obje- algo semelhante, não cumpre pensar
tardes as passagens da Escritura onde que o tenha feito positivamente, mas
apenas negativamente, a saber, não
2 7
Passamos agora à prova da não existência de
dando ao Faraó uma graça eficaz para
Deus alegada pelos teólogos. Em primeiro lugar, a que se convertesse.
definição do infinito é fabricada sob medida e tanto
mais arbitrariamente quanto o ateu se limita a tor- Não desejaria, apesar de tudo, con-
nar explícito um nome, porquanto recusa a colocar denar aqueles que afirmam que Deus
uma essência. pode proferir por seus profetas alguma
28
Em segundo lugar, não se pode dizer que o infi-
nito seja exclusivo da pluralidade das coisas cria- mentira verbal, tais como o são aque-
das. Notar-se-á o caràter spinozista do raciocínio las de que se servem os médicos quan-
do ateu. A pluralidade existe, diz ele, logo o infinito
não existe. O infinito existe, logo é preciso que a
2
pluralidade seja ilusória, dirá Spinoza. As conclu- * Distinção, que será retomada por Spinoza, entre
sões são inversas, mas a incompatibilidade é a a linguagem antropomórfica das Escrituras e a ver-
mesma. dade filosófica que ela reveste.
170 DESCARTES
possa tê-la das coisas obscuras e con- a tomaram dos sentidos ou de algum
fusas, por pouca obscuridade ou con- falso preconceito. De nada vale, ou-
fusão que nelas observemos; pois tal trossim, que alguém suponha que tais
obscuridade, qualquer que seja, é coisas parecem falsas a Deus ou aos
causa assaz suficiente para nos fazer anjos, porque a evidência de nossa per-
duvidar dessas coisas. Tampouco po- cepção não permitirá que ouçamos a
demos tê-la das coisas percebidas ape- quem o tenha suposto e nos queira
nas pelos sentidos, não importa a cla- persuadir 32 .
reza que ocorra em sua percepção, Há outras coisas que nosso entendi-
porque muitas vezes já notamos que no mento também concebe muito clara-
sentido pode haver erro, como quando mente, quando observamos de perto as
um hidrópico sente sede, ou a neve pa- razões de que depende seu conheci-
rece amarela a quem sofre de icterícia; mento; e, por isso, não podemos,
pois este último não a vê menos clara e então, duvidar dele. Mas, dado que
distintamente desta forma do que nós a podemos esquecer as razões, e no
quem ela parece branca. Resta, portan- entanto recordar as conclusões daí
to, que, se podemos tê-la, é somente extraídas, pergunta-se se é possível ter
das coisas que o espírito concebe clara uma firme e imutável persuasão sobre
e distintamente. essas conclusões, ao passo que nos
lembramos de que foram deduzidas de
Ora, entre tais coisas, algumas há princípios mui evidentes; pois esta
tão claras e ao mesmo tempo tão sim- lembrança deve pressupor-se para que
ples que nos é impossível pensar nelas possam chamar-se conclusões. E eu
sem que as julguemos verdadeiras: por respondo que só podem tê-la os que
exemplo, que existo quando penso, que conhecem de tal modo Deus a ponto
as coisas que foram alguma vez feitas de saberem que não pode acontecer
não podem não ter sido feitas e outras que a faculdade de entender, que lhes
semelhantes, das quais é manifesto que foi dada por ele, tenha por objeto outra
possuímos perfeita certeza. coisa se não a verdade; mas que os ou-
Pois não podemos duvidar dessas tros não a têm. E isso foi tão clara-
coisas sem pensar nelas; mas não mente explicado ao fim da Meditação
podemos jamais pensá-las sem acredi- Quinta que não penso dever aqui
tar que sejam verdadeiras, como acabo acrescentar-lhe algo.
de dizer; logo, não podemos duvidar Em quinto lugar, surpreendo-me de
delas sem as crermos verdadeiras, isto que negueis que a vontade corre o peri-
é, nunca podemos duvidar delas 31 . go de falhar, quando persegue e envol-
E de nada serve alegar que verifi- ve os conhecimentos obscuros e confu-
camos muitas vezes que pessoas se sos do entendimento. Pois, o que é que
enganavam em coisas que pensavam pode torná-la certa, se o que ela segue
ver mais claramente que o sol. Pois não é claramente conhecido? E qual
nunca vimos, nós nem ninguém, que foi o filósofo, ou o teólogo, ou o sim-
isso tenha acontecido aos que tiraram ples homem no uso da razão, que não
tão-só do entendimento toda a clareza haja alguma vez confessado que o peri-
de suas percepções, mas antes aos que
32
Os teólogos interpretaram a certeza como um
3
' Uma vez que atingi a certeza, sabendo que satis- estado psicológico entre outros. Para Descartes, o
fiz a suas condições, não mais posso duvidar diante termo é mais determinado: pensamento de um obje-
da evidência: a dúvida já não seria senão um artifí- to tal que, devido ao próprio fato de eu pensá-lo,
cio sem qualquer sentido. não posso duvidar de sua verdade.
172 DESCARTES
go de falhar a que nos expomos é tanto interior, pela qual, tendo Deus nos
menor quanto mais clara a coisa que aclarado sobrenaturalmente, possuí-
concebemos antes de lhe dar nosso mos confiança certa de que as coisas
consenso? E que pecam os que, sem propostas à nossa crença foram por ele
conhecimento de causa, pronunciam reveladas, e de que é inteiramente
algum julgamento? Ora, nenhuma con- impossível que ele seja mentiroso e nos
cepção é dita obscura ou confusa, ex- engane: e isso é mais seguro do que
ceto porque nela está contido algo que qualquer outra luz natural, e amiúde
não é conhecido. até mais evidente, por cauda da luz da
Portanto, aquilo que objetais no graça 3 3 .
tocante àfé que se deve abraçar, não E por certo os turcos e os outros
tem maior força contra mim do que infiéis, quando não abraçam a religião
contra todos os que alguma vez culti- cristã, não pecam por não quererem
varam a razão humana; e, a bem dizer, dar fé às coisas obscuras, como sendo
não tem força alguma contra ninguém. obscuras; mas pecam, ou porque resis-
Pois, embora se diga que a fé tem por tem à graça divina que os adverte
objeto coisas obscuras, não obstante interiormente, ou porque, pecando em
aquilo pelo qual cremos nela não é outras coisas, tornam-se indignos
obscuro; é mais claro do que qualquer dessa graça. E direi atrevidamente que
luz natural. Tanto mais quanto cumpre um infiel que, destituído de toda graça
distinguir entre a matéria, ou a coisa à sobrenatural e totalmente ignorante de
qual concedemos nossa crença, e a que as coisas que nós outros cristãos
razão formal que move nossa vontade acreditamos foram reveladas por
a concedê-la. Pois só nessa razão for- Deus, e, não obstante, atraído por al-
mal é que queremos que haja clareza e guns falsos raciocínios, se entregasse à
evidência. crença dessas mesmas coisas que lhe
Quanto à matéria, ninguém jamais fossem obscuras, não seria por isso
negou que pode ser obscura, e até fiel, mas antes pecaria porque não se
mesmo a própria obscuridade; pois, serviria como se deve de sua razão.
quando julgo que a obscuridade deve E penso que jamais qualquer teó-
ser subtraída de nossos pensamentos logo ortodoxo alimentou outros senti-
para poder dar-lhes nosso consenti- mentos a esse respeito; e também aque-
mento sem nenhum perigo de falhar, é les que lerem minhas Meditações não
a obscuridade mesma que me serve de terão motivo de crer que eu não haja
matéria para formar um juízo claro e conhecido esta luz sobrenatural, por-
distinto. quanto, na Quarta, em que busquei
Além disso, cabe notar que a clareza cuidadosamente a causa do erro ou fal-
ou a evidência pela qual nossa vontade sidade, declarei, em palavras expres-
pode ser incitada a crer é de duas espé- sas, que ela dispõe o interior de nosso
cies: uma que parte da luz natural, e pensamento a querer, e que, no entan-
outra que provém da graça divina. to, não diminui de modo algum a
Ora, conquanto se afirme comu- liberdade.
mente que a fé pertence às coisas obs-
curas, todavia isso se refere apenas à 33
A graça mesma é uma luz (sobrenatural e não
sua matéria e não à razão formal pela mais natural) que ilumina nossa vontade. Esta pas-
sagem mostra quanto importa distinguir entre a
qual cremos; pois, ao contrário, esta concepção clara e distinta das coisas e a redução
razão formal consiste em certa luz real a coisas claras e distintas.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 173
De resto, peço-vos aqui que lembreis que pretendeis, a premissa maior devia
de que, no tocante às coisas que a von- ser assim: Aquilo que concebemos
tade pode abranger, sempre estabeleci clara e distintamente pertencer à natu-
grande distinção entre a prática da reza de alguma coisa pode ser dito ou
vida e a contemplação da verdade. afirmado com verdade pertencer à
Pois, no que concerne à prática da natureza dessa coisa. E assim não con-
vida, tanto faz que eu'pense ser preciso teria senão uma inútil e supérflua repe-
seguir apenas as coisas que conhece- tição. Mas a premissa maior do meu
mos mui claramente, como, ao contrá- argumento foi a seguinte: Aquilo que
rio, que eu sustente que nem sempre se concebemos clara e distintamente per-
deve contar com o mais verossímil, tencer à natureza de alguma coisa
sendo preciso algumas vezes, entre pode ser dito ou afirmado com verdade
muitas coisas completamente desco- dessa coisa. Isto é, se ser animal per-
nhecidas e incertas, escolher uma e se tence à essência ou à natureza do
lhe apegar, e em seguida crer nela não homem, pode-se assegurar que o
menos firmemente, enquanto não vir- homem é animal; se ter os três ângulos
mos razões em contrário, do que se a iguais a dois retos pertence à natureza
tivéssemos escolhido por razões certas do triângulo retilíneo, pode-se assegu-
e mui evidentes, como já expliquei no rar que o triângulo retilíneo tem seus
Discurso do Método3 *. Mas, onde se três ângulos iguais a dois retos; se exis-
trata tão-somente da contemplação da tir pertence à natureza de Deus, pode-
verdade, quem jamais negou que é pre- se assegurar que Deus existe, etc. E a
ciso suspender o julgamento em rela- premissa menor foi a seguinte: Ora, é
ção às coisas obscuras e que não sejam certo que pertence à natureza de Deus
assaz distintamente conhecidas? Ora, existir. Daí é evidente que se deva con-
que em minhas Meditações só se veri- cluir como eu o fiz, a saber: Logo,
fica essa contemplação da verdade, pode-se com verdade assegurar, quan-
além de se reconhecer este fato bas- to a Deus, que ele existe; e não como
tante claramente por elas próprias, eu desejais: Logo, podemos assegurar
o declarei em palavras expressas no com verdade que pertence à natureza
fim da Primeira, ao dizer que nunca de Deus o existir.
seria demais duvidar, nem haveria Portanto, para usar da exceção que
demasiada desconfiança naquele apresentais em seguida, deveríeis negar
ponto, tanto mais que não me aplicava a premissa maior e dizer que aquilo
então às coisas concernentes à prática que concebemos clara e distintamente
da vida, mas apenas à busca da pertencer à natureza de alguma coisa
verdade. não pode por isso ser dito ou afirmado
Em sexto lugar, onde censurais a dessa coisa, a não ser que sua natureza
conclusão de um silogismo por mim seja possível, ou não repugne de modo
formulado, parece-me que vós próprios algum. Mas notai, peço-vos, a fraqueza
pecais na forma; pois, para concluir o dessa exceção. Pois, ou pelo termo
possível entendeis, como se faz ordina-
3
* Daí por que, contrariamente à Física e à Metafí- riamente, tudo o que não repugna ao
sica, a Moral deverá recorrer à noção do provável e pensamento humano, acepção em que
à experiência. "Reencontramos entre a Ciência e a
Sabedoria. . . esta separação à qual Descartes pare- é manifesto que a natureza de Deus, da
cia pôr fim e. . . que era uma das características forma como a descrevi, é possível, por-
dos moralistas da Renascença." (Guéroult, op. cit.,
II, 237.) que nada supus nela, exceto o que con-
174 DESCARTES
quer coisa que esteja fora do entendi- corpo humano, na medida em que dife-
mento, porque, pelo próprio fato de re dos outros corpos, compõe-se so-
uma coisa estar fora do entendimento, mente de certa configuração de mem-
se torna manifesto que ela não implica bros, e outros acidentes semelhan-
de modo algum, mas que é possível. tes 3 8 ; e, enfim, que a morte do cor-
Ora, a impossibilidade com que nos po depende somente de alguma divi-
deparamos em nossos pensamentos são ou mudança de figura. Ora,
provém apenas de serem eles confusos não temos nenhum argumento, ou
e obscuros, e não pode haver nenhuma qualquer exemplo, que nos persuada de
impossibilidade nos que são claros e que a morte ou o aniquilamento de
distintos; por conseguinte, a fim de uma substância tal como é o espírito
podermos estar seguros de que conhe- deva decorrer de uma causa tão ligeira
cemos bastante a natureza de Deus como o é uma mudança de figura, que
para sabermos que não há qualquer não é senão um modo, e ainda um
repugnância em que ela exista, é sufi- modo, não do espírito, mas do corpo,
ciente que entendamos clara e distinta- que é realmente distinto do espírito. E
mente todas as coisas que percebemos não dispomos mesmo de qualquer
haver nela, embora tais coisas sejam argumento nem exemplo que nos possa
apenas em pequeno número em relação convencer de que há substâncias sujei-
às que não percebemos, posto que tas ao aniquilamento. O que basta para
estas também estejam nela; e que com concluir que o espírito, ou a alma do
isso notemos que a existência neces- homem, na medida em que isso pode
sária é uma das coisas que percebe- ser conhecido pela Filosofia natural, é
mos, assim, existir em Deus. imortal.
Em sétimo lugar, já dei a razão, no Mas caso se pergunte se Deus, por
resumo de minhas Meditações, pela seu absoluto poder, não determinou
qual nada disse aqui sobre a imortali- talvez que as almas humanas cessem
dade da alma3 7 ; já mostrei também de existir, ao mesmo tempo que são
mais acima como provara suficiente- destruídos os corpos a que estão uni-
mente a distinção que há entre o espí- das, só a Deus compete respondê-lo. E
rito e toda espécie de corpo. como agora ele nos revelou que isso
Quanto ao que acrescentais, que da nunca ocorrerá, não deve subsistir a
distinção da alma com o corpo não se respeito nenhuma dúvida.
segue que ela seja imortal, porque, ape- De resto, devo agradecer-vos muito
sar disso, se pode dizer que Deus afez por vos terdes dignado tão obsequiosa-
de tal natureza que sua duração finda mente, e com tanta franqueza, adver-
com a da vida do corpo, confesso que tir-me não só das coisas que vos pare-
nada tenho a responder; pois não ali- ceram dignas de explicação mas
mento tanta presunção a ponto de ten- também das dificuldades que me po-
tar determinar, pela força do racio- diam ser opostas pelos ateus, ou por
cínio humano, algo que depende alguns aborrecedores e maldizentes.
apenas da pura vontade de Deus. Pois, ainda que não veja nada, entre
O conhecimento natural nos ensina as coisas que me propusestes, que não
que o espírito é diferente do corpo, e houvesse de antemão rejeitado ou
que é uma substância; e também que o 38
A substância extensa é indestrutível, mas não as
substâncias corporais particulares; os corpos não
37
No resumo, nota Descartes que as Meditações são verdadeiras substâncias, como os espíritos, mas
permitem estabelecei que a morte da alma não apenas especificações da extensão. E isso é tão ver-
decorre da corrupção do corpo; mas uma demons- dade no tocante ao corpo humano (enformado por
tração da imortalidade da alma exigiria "a explica- uma alma) como em relação à máquina (do animal),
ção de toda a Física". apesar da diferença existente entre ambos.
176 DESCARTES
fim de impugnar a verdade, ele se torna conselho, procurarei aqui imitar a sín-
menos capaz de compreendê-la, por- tese dos geómetras e efetuarei um resu-
quanto desvia o espírito da considera- mo das principais razões que usei para
ção das razões que o persuadem dela demonstrar a existência de Deus e a
para aplicá-lo à busca das que a distinção que há entre o espírito e o
destroem. corpo humano: o que não servirá
Mas, não obstante, para testemu- pouco, talvez, para aliviar a atenção
nhar o quanto condescendo com vosso dos leitores.
RAZÕES
Definições
I. Pelo nome de pensamento, com- enformam o próprio espírito, que se
preendo tudo quanto está de tal modo aplica a esta parte do cérebro.
em nós que somos imediatamente seus III. Pela realidade objetiva de uma
conhecedores. Assim, todas as opera- ideia, entendo a entidade ou o ser da
ções da vontade, do entendimento, da coisa representada pela ideia, na medi-
imaginação e dos sentidos são pensa- da em que tal entidade está na ideia; e,
mentos. Mas acrescentei imediata- da mesma maneira, pode-se dizer uma
mente, para excluir as coisas que se- perfeição objetiva, ou um artifício
guem e dependem de nossos objetivo, etc. Pois, tudo quanto conce-
pensamentos: por exemplo, o movi- bemos como estando nos objetos das
mento voluntário tem, verdadeira- ideias, tudo isso está objetivamente, ou
mente, a vontade como princípio, mas por representações, nas próprias
ele próprio, no entanto, não é um ideias 4 4 .
pensamento. IV. As mesmas coisas são ditas
II. Pelo nome de ideia, entendo esta estarem formalmente nos objetos das
forma de cada um de nossos pensa- ideias, quando estão neles tais como as
mentos por cuja percepção imediata concebemos; e são ditas estarem neles
eminentemente, quando, na verdade,
temos conhecimento desses mesmos não estão aí, como tais, mas são tão
pensamentos. De tal modo que nada grandes, que podem suprir essa carên-
posso exprimir por palavras, ao com- cia com a excelência delas 4 5 .
preender o que digo, sem que daí
mesmo seja certo que possuo em mim 44
A realidade objetiva de uma ideia é seu con-
a ideia da coisa que é significada por teúdo na medida em que é dotado de valor represen-
minhas palavras. E assim não dou o tativo. Cumpre não confundi-la, pois, com seu valor
objetivo, ao qual ela não permite, por si só,
nome de ideia às simples imagens que prejulgar.
4 5
são pintadas na fantasia; ao contrário, Se considerarmos que a ideia de Deus, enquanto
ideia, é forçosamente inferior àquele de quem ela é
não lhes dou aqui esse nome, na medi- cópia, Deus será denominado causa eminente desta
da em que se encontram na fantasia ideia. Se considerarmos que não pode haver na rea-
corporal, isto é, na medida em que são lidade objetiva da ideia do perfeito, enquanto ideia
do perfeito, nada que seja menos perfeito do que o
pintadas em algumas partes do cére- próprio ser perfeito, Deus pode então ser denomi-
bro, mas somente na medida em que nado causa formal de sua ideia.
180 DESCARTES
semelhantes; e que assim exercitem sível está contida, mas além disso a
essa clareza do entendimento que lhes necessária. Pois, daí só, e sem qualquer
foi dada pela natureza, mas que as raciocínio, conhecerão que Deus exis-
percepções dos sentidos acostumaram te; e não lhes será menos claro e evi-
a perturbar e obscurecer, que a exerci- dente, sem outra prova, que lhes é
tem, digo eu, totalmente pura e liberta manifesto que dois é um número par, e
de seus prejuízos; pois, por este meio, a três um número ímpar, e coisas seme-
verdade dos axiomas seguintes lhes lhantes 48 . Pois há coisas que são
será fortemente evidente. assim conhecidas sem provas por
Em quarto lugar, que examinem as alguns, enquanto outros só as enten-
ideias dessas naturezas que contêm em dem por um longo discurso e raciocí-
si um conjunto de muitos atributos, nio.
como a natureza do triângulo, a do Em sexto lugar, que, considerando
quadrado ou de qualquer outra figura; com cuidado todos os exemplos de que
bem como a natureza do espírito, a falei nas minhas Meditações, de uma
natureza do corpo e, acima de todas, a clara e distinta percepção, e todos cuja
natureza de Deus ou de um ser sobera- percepção é obscura e confusa, habi-
namente perfeito. E que tomem nota de tuem-se a distinguir as coisas clara-
que se pode assegurar, com verdade, mente conhecidas das obscuras; pois
que existem em si próprias todas essas isso se aprende melhor por exemplos
coisas que concebemos claramente do que por regras, e penso que disso
estarem aí contidas 4 7 . Por exemplo, não se pode dar um exemplo, sem que
porque na natureza do triângulo retilí- eu já não o haja aflorado um pouco.
neo está contido que seus três ângulos Em sétimo lugar, postulo que os lei-
são iguais a dois retos, e porque na tores, levando em conta que nunca
natureza do corpo ou de uma coisa reconheceram qualquer falsidade nas
extensa a divisibilidade acha-se com- coisas que conceberam claramente e
preendida (pois não concebemos a que, ao contrário, nunca encontraram,
coisa extensa tão pequena que não pos- senão por acaso, qualquer verdade nas
samos dividi-la ao menos pelo pensa- coisas que conceberam apenas com
mento), é certo dizer que os três ângu- obscuridade, considerem que seria algo
los de todo triângulo retilíneo são inteiramente desarrazoado se, por al-
iguais a dois retos, e que todo corpo é guns prejuízos dos sentidos, ou por
divisível. algumas suposições feitas à vontade, e
Em quinto lugar, postulo que se fundadas em algo obscuro e desconhe-
detenham longamente em contemplar a cido, pusessem em dúvida as coisas
natureza do ser soberanamente perfei- que o entendimento concebe clara e
to; e, entre outras coisas, que conside- distintamente. Mediante isso, admiti-
rem que, nas ideias de todas as outras rão facilmente os seguintes axiomas
naturezas, a existência possível encon-
48
tra-se de fato contida, mas que, na O conhecimento da necessidade da existência de
ideia de Deus, não só a existência pos- Deus é, portanto, comparável ao das verdades mate-
máticas conhecidas sem prova. "O pensamento últi-
mo de Descartes é, pois, não cabe dúvidas, que o
* ' É a premissa maior da prova a priori que é aqui argumento ontológico não comporta prova e que ele
postulada. Nas Meditações, ela era demonstrada reside inteiramente na percepção direta de uma rela-
pela primeira prova: "Aquilo mesmo que tomei há ção necessária inclusa em uma essência imediata-
pouco por uma regra, a saber, que as coisas que mente apreendida pela intuição; mas que nem por
concebemos mui clara e mui distintamente são isso deixa de permanecer totalmente comparável às
todas verdadeiras, só fica assegurado porque Deus é verdades matemáticas, pelo menos àquelas que são
ou existe e porque é um ser perfeito..." indemonstráveis." (Guéroult, op. cit.. I, pág. 352.)
182 DESCARTES
I. Nâo há coisa existente da qual que o vemos? Mas essa visão não afeta
não se possa perguntar qual a causa de modo algum o espírito, a não ser na
pela qual ela existe. Pois isso se pode medida em que é uma ideia: uma ideia,
perguntar até mesmo de Deus: não que digo, inerente ao próprio espírito, e
tenha necessidade de alguma causa não uma imagem pintada na fantasia;
para existir, mas porque a própria e, por ocasião dessa ideia, não pode-
imensidade de sua natureza é a causa mos julgar que o céu existe, a não ser
ou a razão pela qual não precisa de que suponhamos que toda ideia deve
qualquer causa para existir. ter uma causa de sua realidade obje-
tiva que seja realmente existente; causa
II. O tempo presente não depende que julgamos ser o céu mesmo; e assim
daquele que imediatamente o prece- por diante 5 0 .
deu; eis por que não é necessário uma
menor causa para conservar uma VI. Há diversos graus de realidade
coisa, do que para produzi-la pela pri- ou de entidade: pois a substância tem
mais realidade do que o acidente ou o
meira vez. modo, e a substância infinita mais do
III. Nenhuma coisa, ou perfeição que a finita. Eis por que também há
alguma dessa coisa atualmente existen- mais realidade objetiva na ideia de
te, não pode ter o Nada, ou uma coisa substância do que na de acidente, e
não existente, como a causa de sua mais na ideia de substância infinita do
existência. que na de substância finita s 1 .
IV. Toda a realidade ou perfeição VII. A vontade se dirige voluntária
que existe numa coisa encontra-se for- e livremente (pois isto é de sua essên-
mal, ou eminentemente, na sua causa cia), mas no entanto de modo infalível,
primeira e total. ao bem que lhe é claramente conheci-
V. Daí se segue também que a reali- do. Daí por que, se ela chega a conhe-
dade objetiva de nossas ideias requer cer quaisquer perfeições que não pos-
uma causa, em que esta mesma reali- sua, entregar-se-lhes-á imediatamente,
dade seja contida, não só objetiva, mas caso estejam ao seu alcance; pois reco-
também formal, ou eminentemente 49 . 50
Notar-se-á aqui, com Guéroult, o caráter funda-
E cumpre notar que este axioma deve mental do princípio da correspondência entre a
ser tão necessariamente admitido, que ideia e o ideado. O fato de certos pensamentos se
só dele depende o conhecimento de apresentarem certa ou erradamente como "produzi-
dos-por-seu-objeto" é "uma propriedade original
todas as coisas, tanto sensíveis como que não se pode adquirir pela experiência; é uma
insensíveis. Pois, como sabemos, por condição primeira de meu conhecimento, e mesmo
exemplo, que o céu existe? Será por de minha percepção sensível". (Guéroult, op. cit., I,
199.)
51
Dizer que as ideias das substâncias têm mais
49
Do axioma IV, segue-se que a causa da reali- realidade objetiva que as dos acidentes, significa
dade objetiva da ideia há de ser uma realidade for- que "participam por representação em mais graus
mal. Dai a necessidade de uma causa atualmente de ser ou de perfeição do que as que me representam
existente para o efeito atualmente conservado. Esta somente modos ou acidentes". Ê um princípio evi-
dependência entre os axiomas explica a reserva dente por luz natural que os acidentes são menos
acima: "Confesso que muitos dentre eles. . . deve- que a substância. Daí por que será preciso alguma
riam ser propostos mais como teoremas do que coisa a mais para criar a substância do que para
como axiomas, se eu quisesse ser mais exato". criar os acidentes.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 183
nhecerá que lhe é um maior bem ceito de uma coisa limitada, a exis-
possuí-las do que não as possuir 5 2 . tência possível ou contingente acha-se
VIII. O que pode fazer o mais, ou o apenas contida, e no conceito de um
mais difícil, também pode fazer o ser soberanamente perfeito está com-
preendida a perfeita e necessária exis-
menos, ou o mais fácil. tência 53 .
IX. É algo maior e mais difícil criar 52
Esta definição da vontade como apetência
ou conservar uma substância do que necessária do bem é de origem escolástica. Mas Gil-
criar ou conservar seus atributos ou son (Commentaire du Discours, pág. 333) observa
propriedades; mas não é algo maior ou que os escolásticos não poderiam utilizar essa
noção a fim de provar a existência de Deus. Com
mais difícil criar uma coisa do que efeito, é mister que o homem seja dotado de uma
conservá-la, como já foi dito. vontade infinita para que se torne "um ser que, de
direito, queira para si todas as perfeições que Deus,
X. Na ideia ou no conceito de cada causa sui, quer para si e se dá".
coisa, a existência está contida, porque 53
A finitude da realidade objetiva nas ideias das
nada podemos conceber sem que seja coisas finitas é que exclui delas a existência necessá-
ria. Por meio dessas, posso conhecer com certeza a
sob a forma de uma coisa existente; possibilidade de seu objeto, mas nunca a existência
mas com a diferença de que no con- deste.
PROPOSIÇÃO PRIMEIRA
A EXISTÊNCIA DE DEUS É CONHECIDA PELA SIMPLES CONSIDERAÇÃO
DE SUA NATUREZA
Demonstração
PROPOSIÇÃO SEGUNDA
A EXISTÊNCIA DE DEUS Ê DEMONSTRADA POR SEUS EFEITOS, PELO
SIMPLES FATO DE SUA IDEIA ESTAR EM NÓS
Demonstração
A realidade objetiva de cada uma de qual esta mesma realidade esteja conti-
nossas ideias requer uma causa na da, não objetiva, mas formal ou emi-
184 DESCARTES
eminentemente (pelo quinto axioma). sexto axioma), e que ela não pode estar
Ora, é certo que temos em nós a contida em ninguém mais exceto em
Deus mesmo (pela oitava definição).
ideia de Deus (pela segunda e oitava Logo, a ideia de Deus, que há em
definições), e que a realidade objetiva nós, exige Deus como causa: por
dessa ideia não está contida em nós, conseguinte, Deus existe (pelo terceiro
nem formal, nem eminentemente (pelo axioma).
PROPOSIÇÃO TERCEIRA
Demonstração
COROLÁRIO
DEUS CRIOU O CÉU E A TERRA, E TUDO O QUE NELES ESTÁ CONTIDO.
E, ALÉM DISSO, PODE FAZER TODAS AS COISAS QUE CONCEBEMOS
CLARAMENTE, DA MANEIRA COMO NÓS AS CONCEBEMOS
Demonstração
Todas essas coisas seguem-se clara- por aquele em quem ela se encontra,
mente da proposição precedente. Pois não só o céu e a terra, etc., devem ter
provamos aí a existência de Deus, por sido criados, mas também todas as ou-
ser necessário que haja um ser existen- tras coisas que conhecemos como
te, no qual todas as perfeições, de que
possíveis.
há em nós alguma ideia, estejam conti-
das formal ou eminentemente. Logo, provando a existência de
Ora, é certo que temos em nós a Deus, provamos também a seu respeito
ideia de um poder tão grande, que, só todas essas coisas.
PROPOSIÇÃO QUARTA
O ESPÍRITO E O CORPO SAO REALMENTE DISTINTOS
Demonstração
Tudo o que concebemos claramente 7) que podem existir uma sem a outra
pode ser feito por Deus da maneira (como acabo de provar) 5 5 .
como nós o concebemos (pelo corolá- Logo, o espírito e o corpo ião real-
rio precedente). mente distintos.
E é preciso observar que me servi
Mas concebemos claramente o espí- aqui da onipotência de Deus para tirar
rito, isto é, uma substância que pensa, dela a minha prova 5 6 ; não que seja
sem o corpo, isto é, sem uma subs- necessário qualquer poder extraordi-
tância extensa (pelo postulado 2); e, de nário para separar o espírito do corpo,
outra parte, concebemos também cla- mas porque, não tendo tratado senão
ramente o corpo sem o espírito (como de Deus nas proposições anteriores,
cada um concorda facilmente). não podia tirá-la de outro lugar exceto
dele. E não importa de modo algum
Logo, ao menos pela onipotência de por qual poder duas coisas sejam sepa-
Deus, o espírito pode existir sem o radas, para sabermos que são real-
corpo, e o corpo sem o espírito. mente distintas.
Pois bem, as substâncias que podem 55
A fim de que as substâncias estejam realmente
existir uma sem a outra são realmente separadas, basta provar que são substâncias e não
distintas (pela definição 10). substâncias existentes.
66
A prova através da onipotência de Deus, aqui
Ora, é certo que o espírito e o corpo imposta pela ordem sintética, ameaça dissimular
são substâncias (pelas definições 5, 6 e que o conceito essencial é o da "distinção real".
RESPOSTAS DO AUTOR
ÀS QUINTAS OBJEÇÕES
FORMULADAS PELO SENHOR GASSENDI
Do Senhor Descartes ao Senhor Gassendi
Senhor,
bém, os filósofos em muitas ocasiões; e zelo da verdade, bem mostra que ele
aquele que chama isto recorrer a uma próprio não quer servir-se desta candu-
máquina, forjar ilusões, procurar des- ra filosófica, nem pôr em uso as
vios e novidades e que diz que isto é razões, mas atribuir somente às coisas
indigno da candura de um filósofo e do os ouropéis e as cores da retórica.
sentimento e ao andar, refiro-os tam- qual desejais ser chamado, tendes tão
bém, na maior parte, ao corpo e nada pouco comércio com o espírito que
atribuo à alma do que lhes diz respeito, não pudestes notar a passagem em que
exceto, apenas, que é um pensamento. corrigi esta imaginação do vulgo pela
504. Ademais, que razão tendes de qual fingimos que a coisa que pensa é
dizer que não havia necessidade de tão semelhante ao vento ou a algum outro
grande aparelhamento para provar corpo dessa espécie 60 ? Pois corrigi-o,
minha existencial Certamente penso sem dúvida, quando mostrei que se
ter muita razão em inferir de vossas pode supor que não há vento, nem
próprias palavras que o aparelhamento fogo, nem qualquer outro corpo no
do qual me servi não foi ainda suficien- mundo, e que, entretanto, sem mudar
temente grande, posto que não pude essa suposição, todas as coisas pelas
fazer ainda com que compreendêsseis quais conheço que sou uma coisa que
bem a questão; pois, quando dizeis que pensa não deixam de permanecer em
poderia concluir a mesma coisa de sua totalidade 61 . E, portanto, todas as
cada uma de minhas ações indiferente- perguntas que me fazeis em seguida,
mente, vós vos enganais bastante, já por exemplo: Por que não poderia eu,
pois, ser um vento? Por que não pode-
que não há nenhuma entre elas de que
ria preencher um espaço? Por que não
eu esteja inteiramente certo — refiro-
poderia ser movido de várias manei-
me àquela certeza metafísica, única ras? e outras semelhantes, são tão vãs
certeza de que aqui se trata — exceto o e tão inúteis que não necessitam de
pensamento. Pois, por exemplo, não resposta.
seria boa a seguinte consequência: eu
passeio, logo existo, senão na medida 506. III. O que em seguida acres-
em que o conhecimento interior que centais não é mais sólido, a saber: se
tenho disto é um pensamento, do qual eu sou um corpo sutil e ténue, por que
somente esta conclusão é certa, não do não poderia ser alimentado?; e o resto.
movimento do corpo, o qual às vezes Pois nego absolutamente que eu seja
pode ser falso, como nos nossos um corpo 6 2 . E, para acabar de uma
sonhos, embora nos pareça então que vez por todas com essas dificuldades,
passeamos; de maneira que, do fato de porque me objetais quase sempre a
que eu penso passear, posso muito bem mesma coisa, e não combateis minhas
inferir a existência de meu espírito, que 60
Texto de Gassendi: "Dizei-me, eu vos peço, ó
tem este pensamento, mas não a do alma, ou o que quer que sejais, corrigistes até aqui
meu corpo que passeia. O mesmo este pensamento pelo qual vos imaginais ser algo
acontece com todos os outros. semelhante ao vento ou a qualquer outro corpo
desta natureza, espalhado em todas as partes de
vosso corpo? Certamente não o fizestes". Em ou-
505. II. Começais, em seguida, por tros termos: quem vos autoriza a sustentar que só o
uma figura de retórica bastante agra- pensamento pode ser separado de mim? Por que
não seria este pensamento um corpo?
dável que se chama prosopopéia, a me 6
' Em suma, Gassendi não compreendeu o método
interrogar, não mais como um homem de redução, implicado pela dúvida hiperbólica. Ele
inteiro, mas como uma alma separada se coloca ao nível de uma investigação física e fisio-
lógica, quando se trata de uma separação de essên-
do corpo; no que parece que tenhais cias no plano metafísico.
querido advertir-me de que essas obje- 62
Resta-vos provar, dizia Gassendi, que o corpo
ções não partem do espírito do sutil não é capaz de pensamento, "que esse corpo gros-
seiro e pesado em nada contribui para o vosso
filósofo, mas de um homem preso aos pensamento, conquanto jamais tenhais estado sem
sentidos e à carne. Dizei-me, portanto, ele e nunca tenhais pensado algo estando separado
suplico-vos, ó carne, ou quem quer que dele..." Para Descartes, essas constatações de fato
não poderiam valer contra a certeza metafísica de
sejais, e qualquer que seja o nome pelo direito.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 191
um conceito claro e distinto dessa dade por causa do equívoco que reside
substância, no qual nada está contido na palavra alma6 7 , mas eu a esclareci
que pertença ao da substância corpo- nitidamente tantas vezes que me enver-
ral, isso me basta plenamente para gonho de repeti-lo aqui; e é por isso
assegurar que, enquanto eu me conhe- que direi apenas que os nomes foram
ço, nada sou senão uma coisa que ordinariamente impostos por pessoas
pensa; e isso é tudo o que assegurei na ignorantes, o que faz com que não con-
Meditação Segunda, da qual se trata venham sempre propriamente às coisas
nesse momento; e não deveria admitir que significam; no entanto, desde que
que esta substância pensante fosse um foram aceitos, não temos liberdade de
corpo sutil, puro, ténue, etc., na medi- mudá-los, mas podemos apenas corri-
da em que não tive nenhuma razão que gir suas significações quando vemos
disso me persuadisse; se tendes algu- que não são bem compreendidas.
ma, a vós cabe no-la ensinar e não exi- Assim, visto que os primeiros autores
gir de mim que prove que algo é falso dos nomes talvez não distinguiram em
quando não tive outra razão para não nós aquele princípio pelo qual somos
admiti-lo senão o fato de me ser desco- alimentados, crescemos e realizamos,
nhecida essa razão. Pois fazeis o sem o pensamento, todas as outras fun-
mesmo que se, dizendo que estou ções que partilhamos com os animais,
atualmente na Holanda, dissésseis que daquele outro pelo qual nós pensamos,
não devo ser acreditado se não provar eles denominaram ambos os princípios
ao mesmo tempo que não estou na com o mesmo nome de alma; e, vendo
pouco depois que o pensamento era
China ou em qualquer outra parte do diferente da nutrição, deram o nome de
mundo; visto que talvez possa ocorrer espírito a esta coisa que em nós tem a
que um mesmo corpo, pela onipotência faculdade de pensar e acreditaram que
de Deus, esteja em muitos lugares. E era a parte principal da alma. Mas eu,
quando acrescentais que devo também tendo cuidado que o princípio pelo
provar que as almas dos animais não qual somos alimentados é inteiramente
são corpóreas e que o corpo em nada diferente daquele pelo qual pensamos,
contribui para o pensamento, fazeis disse que o nome alma, quando se refe-
ver não somente que ignorais a quem re ao mesmo tempo a um e a outro, é
pertence a obrigação de provar uma equívoco, e que, para tomá-lo precisa-
coisa mas também que não sabeis o mente como esse primeiro ato ou essa
que cada um deve provar; pois, quanto forma principal do homem, ele deve
a mim, não creio nem que as almas dos ser somente entendido como aquele
animais não sejam corpóreas nem que princípio pelo qual pensamos; dessa
o corpo em nada contribua para o maneira, chamei-o o mais das vezes
pensamento; mas somente digo que pelo nome de espírito, para evitar esse
não é este o lugar de examinar essas
coisas 6 6 . 67
Gassendi: "Eu pensava falar a uma alma huma-
na ou então a esse princípio interno pelo qual o
508. IV. Buscais aqui a obscuri- homem vive, sente, se move e entende, e no entanto
falava apenas a um puro espírito; pois vejo que sois
66 despojado não unicamente do corpo, mas também
O fim do parágrafo fornece bom exemplo da
"dialética" de Descartes: por que deveria eu provar de uma parte da alma". Ele acredita, portanto, que
como falsas ideias que se apresentam apartadas Descartes rechaça da alma as faculdades não inte-
tão-somente pela evidência fenomenológica? Dialé- lectuais ao mesmo título que o corpo. Isto significa
tica sempre útil contra as falsas ciências, que ape- confundir a distinção real entre alma e corpo e a
nas exigem a prova da falsidade por não poder dar distinção modal entre o entendimento e as demais
a da verdade. faculdades.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 193
equívoco e essa ambiguidade. Pois não contrário, posto que não sabia então se
considero o espírito como uma parte o corpo era uma e mesma coisa que o
da alma, mas como toda a alma espírito ou se não o era, eu nada queria
pensante. adiantar, mas somente considerei o
509. Mas, dizeis, sentis dificuldade espírito até que, enfim, na Meditação
em saber se eu não considero, portan- Sexta, não somente adiantei mas de-
to, que a alma pensa sempre. Mas por monstrei mui claramente que ele era
que não pensaria ela sempre, uma vez realmente distinto do corpo. Mas vos
que é uma substância pensante? E que enganais nisto a vós mesmo, e muito,
maravilha há em que não nos lembre- pois, não tendo a menor razão para
mos dos pensamentos que ela teve no mostrar que o espírito não é distinto do
ventre de nossas mães, ou durante a corpo, não deixais de afirmá-lo sem
letargia, já que não nos lembramos, prova alguma 69 .
mesmo, de muitos pensamentos que 511. V. O que eu disse da imagina-
sabemos muito bem que tivemos quan- ção é bastante claro, desde que se quei-
do adultos, sãos e despertos, pela ra examiná-lo cuidadosamente, mas
razão de, para nos lembrarmos de não é estranho se parecer obscuro
pensamentos que o espírito concebeu àqueles que jamais meditam e que não
uma vez, enquanto conjugado ao fazem reflexão alguma sobre o que
corpo, ser necessário que restem deles pensam. Mas devo adverti-los de que
alguns vestígios impressos no cérebro, as coisas que asseverei não perten-
para os quais o espírito se volta e apli- cerem ao conhecimento que tenho de
ca-lhes seu pensamento, a fim de mim mesmo não são, de modo algum,
lembrar-se; ora, que há de maravilhoso incompatíveis com aquelas que ante-
se o cérebro de uma criança ou de um riormente disse não saber se perten-
letárgico não é próprio para receber ciam à minha essência, na medida em
tais impressões 6 8 ? que pertencer à minha essência e per-
tencer ao conhecimento que tenho de
510. Enfim, onde eu disse que tal- mim mesmo são duas coisas inteira-
vez possa ocorrer que aquilo que eu mente diferentes 70 .
não conheço ainda (a saber, meu
corpo) não seja diferente de mim que 512. VI. Tudo o que aqui alegais, ó
conheço (a saber, de meu espírito), que boníssima carne, não me parece tanto
nada sei disso, que não o discuto, 69
A objeção de Gassendi se relacionava com a
etc. . ., vós me objetais: Se vós não o Meditação Segunda, § 7. Como podeis afirmar que
sabeis, se não o discutis, por que dizeis nada sois exceto uma coisa que pensa e, ao mesmo
que não sois nada disso? Ora, não é tempo, admitir que "essas coisas que suponho nada
serem talvez sejam algo real que não difere absolu-
verdade que eu tenha adiantado algo tamente de mim que conheço"? Ele ignora, assim,
que não soubesse; pois, exatamente ao que nesta passagem a certeza de que nada sou além
de uma coisa pensante não adquiriu ainda validade
objetiva.
68 70
Cabe perguntar em que medida esse parágrafo Cf. Segunda Meditação, § 8. Não sei, objeta
concorda com o princípio segundo o qual nada há Gassendi, se as coisas que caem sob a imaginação
em nós de que não tenhamos consciência. Mas a não pertencem à minha essência. É sempre o mesmo
doutrina, neste ponto, é mais complexa do que pare- mal-entendido. Descartes verificou simplesmente:
ce. Por exemplo, Descartes pôde escrever: "Temos reconheci que existia sem recorrer às imagens das
realmente um conhecimento atual dos atos ou das coisas corporais e mesmo reputando essas coisas
operações de nosso espírito, mas nem sempre de como falsas. Gassendi, por sua vez, transpõe, em
suas faculdades, a não ser em potência". (Quartas afirmação ontológica, esta análise do simples
Respostas a Arnauld.) De modo que, quando o espí- conhecimento. Ora, neste ponto, assiste-me o direito
rito deixa de lembrar-se, conserva em potência cer- de excluir o corpo do conhecimento de minha natu-
tas faculdades ou propriedades da res cogitans. reza, mas não de minha natureza.
194 DESCARTES
za, visto que um não se demonstra sem tem a virtude de conhecer-lhe a dureza,
outro 7 2 . E não vejo o que podeis dese- outro que pode conhecer a modifica-
jar de mais, no que se refere a isto, a ção dessa dureza ou a liquefação, etc.,
não ser que se vos diga qual é o odor e pois alguém pode conhecer a dureza
qual é o sabor do espírito humano, ou sem por isso conhecer a brancura,
de que sal, enxofre e mercúrio é ele como é o caso de um cego de nascença
composto; pois quereis que, como por e assim por diante. Donde se vê clara-
uma espécie de operação química, a mente que não há coisa alguma de que
exemplo do vinho, nós o passemos se conheçam tantos atributos quanto
pelo alambique, a fim de saber o que os de nosso espírito, pois, na medida
entra na composição de sua essên- em que os conhecemos nas outras coi-
cia 7 3 . O que certamente é digno de sas, podemos contar tantos outros no
vós, ó carne, e de todos aqueles que, espírito, pelo fato de que ele os conhe-
nada concebendo senão mui confusa- ce; e, portanto, sua natureza é mais
mente, não sabem o que se deve pes- conhecida do que a de qualquer outra
quisar de cada coisa. Mas, quanto a coisa 7 4 .
mim, jamais pensei que, para tornar 515. Enfim, vós me argúis aqui de
uma substância manifesta, fosse neces- passagem pelo fato de que, nada tendo
sária outra coisa além de descobrir-lhe admitido em mim a não ser o espírito,
os diversos atributos; de sorte que, eu fale todavia da cerca que vejo e que
quanto mais atributos conhecemos de toco, o que no entanto não se pode
alguma substância, mais perfeitamente fazer sem olhos ou sem mãos; mas de-
também conhecemos-lhe a natureza; e, veis haver notado que adverti expressa-
do mesmo modo, podemos distinguir mente que não se tratava aqui da visão
mui diversos atributos na cera: um que ou do tato, que se fazem por inter-
ela é branca, outro que é dura, outro médio dos órgãos corpóreos, mas
que, de dura, torna-se líquida, etc.; do somente do pensamento de ver e de
mesmo modo, há tantos atributos no tocar, que não necessita desses órgãos,
espírito: um que ele tem a virtude de como experimentamos todas as noites
conhecer a brancura da cera, outro que em nossos sonhos 7 5 ; e certamente vós
o notastes muito bem, mas quisestes
apenas mostrar quantos absurdos e
72
Cf. Meditação Segunda, § 16. Gassendi: "Não injustas cavilações são capazes de
vejo de onde podeis inferir que se possa conhecer inventar aqueles que não se empenham
claramente algo de vosso espírito, exceto que ele
existe..." tanto em bem conceber uma coisa
73
Para Gassendi, a expressão "uma coisa pensan- quanto em impugná-la e contradizê-la.
te" não me faz conhecer nada do todo. "Se alguém
vos pedisse que lhe désseis um conhecimento do 74
vinho mais exato e mais pronunciado, pensaríeis tê- Doutrina antiescolástica e antiempirista do pri-
lo satisfeito ao dizer que o vinho é uma coisa lí- mado do conhecimento espiritual sobre o corporal.
quida que se espreme da uva, que é ora branca, ora Cf. Regras, VII: "Nada pode ser conhecido antes da
rosada, etc., mas não tentaríeis descobrir e manifes- inteligência, pois é pela inteligência que as coisas
tar o interior de sua substância, mostrando como são cognoscíveis e não inversamente".
75
essa substância é composta de aguardentes... e de Mais uma vez Gassendi desconhece que se trata
muitas partes misturadas numa justa proporção?" do pensamento enquanto ato universal que se desen-
O conhecimento do eu estaria, portanto, na medida rola necessariamente através de qualquer conheci-
de uma análise química; ora, trata-se do conheci- mento, seja ou não este conhecimento garantido
mento certo de mim mesmo enquanto pensante. objetivamente.
196 DESCARTES
substância não tem realidade alguma como também talvez de qualquer outra
que não haja tomado das ideias dos coisa que exista no mundo, por peque-
acidentes segundo os quais ou à manei- na que seja; e não é verdade que conce-
ra dos quais ela é concebida, mostrais bemos o infinito pela negação do fini-
claramente que não tendes ideia algu- to, visto que, ao contrário, toda
ma da substância que seja distinta, limitação contém em si a negação do
pois esta não pode jamais ser conce- infinito 82 .
bida à maneira dos acidentes, nem 552. Não é verdade também que a
tomar-lhes de empréstimo sua realida- ideia que nos representa todas as
de; mas, ao contrário, os acidentes são perfeições que atribuímos a Deus não
comumente concebidos pelos filósofos tem mais realidade objetiva do que têm
como substâncias, a saber, quando eles as coisas finitas. Pois confessais, vós
os concebem como reais; pois não se mesmo, que todas essas perfeições são
pode atribuir aos acidentes realidade ampliadas por nosso espírito, a fim de
alguma (isto é, entidade alguma mais que possam ser atribuídas a Deus; pen-
do que modal) que não seja tomada à sais, portanto, que as coisas assim
ideia da substância 81 . ampliadas não são maiores do que as
Enfim, onde dizeis que não forma- que não o foram; e de onde nos pode
mos a ideia de Deus senão sobre aqui- vir essa faculdade de ampliar todas as
lo que aprendemos e ouvimos dos perfeições criadas, isto é, de conceber
outros, atribuindo-lhe, a exemplo algo de maior e de mais perfeito do que
deles, as mesmas perfeições que vimos elas são, se não do simples fato de que
os outros atribuírem-lhe, eu desejaria temos em nós a ideia de uma coisa
que tivésseis também acrescentado de maior, a saber, do próprio Deus? E,
onde é, pois, que esses primeiros enfim, não é verdade também que
homens, de quem aprendemos e ouvi- Deus seria pouca coisa se não fosse
mos essas coisas, obtiveram essa maior do que o concebemos; pois con-
mesma ideia de Deus. Pois, se a obtive- cebemos que ele é infinito e nada pode
ram de si mesmos, por que não pode- haver de maior do que o infinito. Mas
ríamos nós obtê-la de nós mesmos? confundis intelecção com imaginação
Porque, se Deus lhas revelou, Deus e supondes que imaginamos Deus
existe consequentemente. como algum grande e poderoso gigan-
E, quando acrescentais que aquele te, como o faria aquele que, jamais
que chama uma coisa infinita dá a uma tendo visto um elefante, o imaginasse
coisa que não compreende um nome semelhante a um oução de altura e de
que tampouco entende, não fazeis a largura desmesuradas, o que concordo
distinção entre a intelecção conforme convosco ser muito impertinente 83 .
ao alcance de nosso espírito, tal como
cada um reconhece suficientemente em 82
Sobre a Meditação Terceira, § 15. Gassendi
si mesmo ter do infinito, e a concepção nega a positividade da ideia de infinito. Ora, para
inteira e perfeita das coisas, isto é, que Descartes, "esta ideia é evidentemente positiva,
visto ser ideia do infinito apenas porque encerra a
compreende tudo o què há de inteli- realidade (objetiva) do infinito; pretender extraí-la
gível nelas, que é de tal ordem que nin- do finito surge então como imediatamente absurdo,
guém a teve jamais não só do infinito pois seria querer tirar a realidade objetiva infinita
de uma realidade finita". (Guéroult, op. cit., 1,190.)
83
81 Como no caso dos dois sóis, tudo se baseia na
Acerca da definição da substância, cf. Princí- recusa de Gassendi de distinguir intelecção e imagi-
pios, I, 51. Acerca da necessidade de distinguir sem- nação. Por conseguinte, não pode ele ter ideia posi-
pre os modos na substância e a própria substância, tiva do infinito. A posição de Gassendi é neste
cf. Princípios, 1,64. ponto bastante próxima da de Kant.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 199
V. Dizeis aqui muitas coisas para vosso costume usar argumentos e pro-
fazer de conta que me contradizeis e var o que dizeis. Provais isto com o
entretanto nada dizeis contra mim, exemplo do dedo que não pode bater
posto que concluís a mesma coisa que em si mesmo e do olho que não pode
eu8 4 . Mas, todavia, mesclais aqui e ver-se a si mesmo a não ser num espe-
acolá várias coisas com as quais não lho: ao que é fácil responder que não é
estou de acordo; por exemplo, que este o olho que se vê a si mesmo, nem o
axioma, nada há num efeito que não espelho, mas antes o espírito, o qual
tenha estado primeiramente em sua somente conhece não só o espelho
causa, se deve entender mais da causa como o olho e a si mesmo. Podemos
material do que da eficiente; pois é mesmo, também, dar outros exemplos,
impossível conceber que a perfeição da entre as coisas corpóreas, da ação que
forma preexista na causa material, mas uma coisa exerce sobre si, como quan-
tão-somente na causa eficiente, e tam- do um tamanco se vira sobre si
bém que a realidade formal de uma mesmo; esta conversão não será uma
ideia seja uma substância, e muitas ou- ação que ele exerce sobre si 8 6 ?
tras coisas semelhantes. 525. Enfim, é mister observar que
523. VI. Se tivésseis algumas ra- eu não afirmei que as ideias das coisas
zões para provar a existência das coi- materiais derivavam do espírito, como
sas materiais, sem dúvida tê-las-íeis quereis aqui fazer crer; pois demons-
aqui relatado 8 s . Mas, uma vez que trei expressamente depois que elas pro-
perguntais somente se é, então, verda- cediam muitas vezes dos corpos, e que
deiro que eu não esteja certo de que é com isso que se prova a existência
haja alguma coisa diferente de mim das coisas corpóreas; mas somente
que exista no mundo, e que supondes apontei nessa passagem que não há
que não há necessidade de procurar as nelas tanta realidade que, por causa da
razões de uma coisa tão evidente, e seguinte máxima: Nada há num efeito
assim vos referis somente aos vossos que não tenha estado em sua causa,
antigos prejuízos, mostrais bem mais formal ou eminentemente, se deva con-
claramente que não tendes mais qual- cluir que elas não puderam derivar do
quer razão para provar o que afirmais tão-só espírito; o que não impugnais de
do que se não houvésseis dito coisa maneira nenhuma8 7 .
alguma. No que dizeis a respeito das 526. VII. Não dizeis nada aqui que
ideias, isto não tem necessidade de res- não tenhais dito anteriormente e que eu
posta, porque retringis o nome de ideia não haja refutado inteiramente. Adver-
apenas às imagens pintadas na fanta- tir-vos-ei aqui apenas, no tocante à
sia; e eu estendo-o a tudo o que conce- ideia do infinito (a qual dizeis não
bemos com o pensamento.
poder ser verdadeira a não ser que
524. Mas, pergunto-vos, de passa-
gem, por que argumento provais que 86
A objeção de Gassendi supunha que a cons-
nada age sobre si mesmo. Pois não é ciência de si podia ser apenas um desdobramento, a
contemplação exterior do eu como a de uma coisa.
Ora, para Descartes não existe diferença de natu-
8
* Trata-se do princípio: "Há pelo menos tanta reza
87
entre pensar e pensar que se pensa.
realidade formal na causa da ideia quanta realidade Repreendendo Descartes por não ter provado
objetiva na própria ideia". Gassendi prefere reser- que eu pudesse produzir, por mim só, as ideias cor-
var a aplicação deste principio à causalidade mate- porais, Gassendi mostra que não compreendeu o
rial (o sémen com respeito ao filho, o material com sentido da passagem: somente no caso da ideia de
respeito à casa) do que à causa eficiente (o pai ou o Deus é que posso estar certo de se tratar de uma
arquiteto). ideia que não poderia ser produzida por mim
85
Cf. Meditação Terceira, §§ 20,21. mesmo.
200 DESCARTES
compreenda o infinito, e que o que dele erro quando negais que possamos ter
conheço é, quando muito, apenas uma uma verdadeira ideia de Deus: pois,
parte do infinito e mesmo uma parte ainda que não conheçamos todas as
minúscula, que não representa melhor coisas que existem em Deus, todavia,
o infinito que o retrato de um simples tudo o que conhecemos existir nele é
cabelo representa um homem inteiro), inteiramente verdadeiro. Quanto ao
advertir-vos-ei, digo, que repugna que que dizeis, que o pão não é mais per-
eu compreenda alguma coisa e que o feito do que aquele que o deseja, e que,
que eu compreendo seja infinito; pois, do fato de eu conceber que algo está
para ter uma ideia verdadeira do infini- atualmente contido numa ideia, não se
to, ele não deve ser de maneira alguma segue que ela esteja atualmente na
compreendido, tanto mais que a in- coisa da qual é ideia, e também que
compreensibilidade mesma está conti- formulo juízo sobre aquilo que ignoro,
da na razão formal do infinito 88 ; e e outras coisas semelhantes, tudo isso,
entretanto é coisa manifesta que a digo, nos demonstra apenas que pre-
ideia que temos do infinito não repre- tendeis temerariamente impugnar vá-
senta somente uma de suas partes mas rias coisas das quais não compreendeis
o infinito em sua totalidade, conforme o sentido; pois, do fato de alguém dese-
deve ser representado por uma ideia jar pão, não se infere que o pão seja
humana; embora seja certo que Deus mais perfeito do que ele, mas somente
ou alguma outra natureza inteligente que aquele que necessita de pão é
dele possa ter outra ideia muito mais menos perfeito do que quando não
perfeita, isto é, muito mais exata e necessita dele. E, do fato de alguma
mais distinta do que aquela que os ho- coisa estar contida numa ideia, não
mens têm, da mesma maneira que dize- concluo que essa coisa exista atual-
mos que aquele que não é versado na mente, a não ser quando não se pode
Geometria não deixa de possuir a ideia designar nenhuma outra causa para
de todo o triângulo, quando o concebe essa ideia exceto a própria coisa que
como uma figura composta de três ela representa como existente atual-
linhas, embora os geómetras possam mente; o que demonstrei que não se
conhecer várias outras propriedades pode dizer de muitos mundos, nem de
do triângulo e notar muitas coisas em qualquer outra coisa que seja, exceto
89
sua ideia que o não versado na Geome- de Deus, apenas . E não julgo tam-
tria não observa. Pois, como é sufi- pouco do que ignoro, pois apresentei
ciente conceber uma figura composta as razões do juízo que formulava,
de três linhas para ter a ideia de todo o razões que são tais que não pudestes
triângulo, assim é suficiente conceber até agora refutar nem a mais frágil.
uma coisa que não está encerrada em
limites alguns para ter uma verdadeira 528. IX. Quando negais que tenha-
e inteira ideia de todo o infinito. mos necessidade do concurso e da
influência contínua da causa primeira
90
527. VIII. Incorreis aqui no mesmo para sermos conservados , negais
88 89
Se não posso compreender Deus, já que está Podemos ter a ideia de muitas coisas que não
além do finito, posso ao menos entender que é existem atualmente, objetava Gassendi. Resposta: a
incompreensível. "Longe portanto de me tornar ideia de Deus em mim é a única de que estou certo
Deus incognoscível, a incompreensibilidade, embo- que só poderia ser gerada por aquilo mesmo que ela
ra envolva certa limitação necessária de meu conhe- representa como existente. A objeção pressupõe,
cimento (eu jamais poderia esgotar o infinito, pos- pois, què Gassendi interpretou falsamente a aplica-
suir dele um conhecimento 'adequado', isto é, ção que é feita do princípio de clareza e distinção e
completo), é ao mesmo tempo... o que me permite que não atentou para o caráter eminentemente origi-
conhecer o infinito como tal." (Guéroult, op. cit., t. nal da ideia de Deus.
90
I, 206.) Cf. Meditação Terceira, § 33.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 201
Ih anca de Deus, dizeis que Deus tem, obra, como parece quando um pintor
pois, a forma de um homem e em faz um quadro que se lhe assemelha.
seguida relacionais todas as coisas nas 534. Mas, com quão pouca fideli-
quais a natureza humana é diferente da dade apresentais minhas palavras
divina, sois nisto mais sutil do que se, quando fingis que eu disse que não
para negar que quaisquer quadros de concebo essa semelhança que tenho
Apeles tenham sido feitos à seme- com Deus na medida em que conheço
lhança de Alexandre, dissésseis que ser uma coisa incompleta e depen-
Alexandre se assemelha, portanto, a dente, visto que, ao contrário, só disse
um quadro e, todavia, que os quadros isso para mostrar a diferença existente
são compostos de madeira e de cores e entre Deus e nós, de medo que se acre-
ditasse que eu queria igualar os ho-
não de carne como Alexandre? Pois
mens a Deus e as criaturas ao criador!
não é da essência de uma imagem ser Pois, nesse mesmo lugar, disse que não
em tudo semelhante à coisa de que ela concebia somente que eu era nisso
é imagem, mas basta que se lhe asse- muito inferior a Deus, e que aspirava,
melhe em alguma coisa. E é mui evi- no entanto, a essas maiores coisas que
dente que essa virtude admirável e mui eu não possuía, mas também que essas
perfeita de pensar que concebemos coisas maiores a que eu aspirava
existir em Deus é representada por encontravam-se em Deus atualmente e
aquela que existe em nós, ainda que de maneira infinita, às quais no entan-
muito menos perfeita. E, quando prefe- to encontrava em mim alguma coisa de
ris comparar a criação de Deus com a semelhante, já que ousava de algum
operação de um arquiteto a fazê-lo modo aspirar a elas.
com a geração de um pai, vós o fazeis Enfim, quando dizeis que há motivo
sem nenhuma razão; pois, embora de espantar porque todo o resto dos
essas três maneiras de agir sejam total- homens não tem os mesmos pensa-
mente diferentes, a distância não é tão mentos de Deus que eu tenho, já que
grande entre a produção natural e a di- ele imprimiu neles sua ideia do mesmo
vina quanto entre a artificial e a modo que em mim, é como se vos
mesma produção divina. Mas não pen- espantásseis do fato de que, tendo todo
seis nem que digo que há a mesma mundo a noção do triângulo, cada um,
relação entre Deus e nós que a que entretanto, não notasse a mesma quan-
existe entre o pai e seus filhos; nem que tidade de propriedades, e que haja tal-
é verdadeiro também que jamais haja vez mesmo alguns que lhe atribuam
qualquer relação entre o operário e sua falsamente muitas coisas.
liberdade, pois não só a sinto em mim portanto, voltar-se para coisas às quais
mesmo como também vejo que, tendo o entendimento não a dirige, e no
0 desígnio de combatê-la, em lugar de entanto era isto o que negáveis há
opor-lhe boas e sólidas razões, vós vos pouco e no que consiste presentemente
contentais simplesmente em negá-la. E o tema de nossa discussão; se ela é
talvez eu encontrasse mais crédito no determinada pelo entendimento, não é
espírito dos outros afirmando o que ela, portanto, que se mantém sob sua
experimentei, e que cada um pode tam- guarda; mas somente ocorre que, como
bém experimentar em si mesmo, do
ela se voltava anteriormente em dire-
que vós, que negais uma coisa pelo
simples fato de que jamais talvez a ha- ção ao falso que lhe era por ele propos-
veis experimentado10 5 . E, no entanto, to, da mesma maneira por acaso ela se
é fácil julgar por vossas próprias pala- volta agora para o verdadeiro, porque
vras que algumas vezes a experimen- o entendimento lho propõe. Mas, além
tastes: pois, quando negais que possa- disso, eu desejaria saber qual é a natu-
mos impedir-nos de cair em erro, reza do falso que concebeis e como
porque não quereis que a vontade se pensais que pode ser objeto do entendi-
dirija a coisa alguma sem que a tanto mento. Pois, para mim, que não enten-
seja determinada pelo entendimento, do pelo falso nada que não seja a pri-
vós estais de acordo que podemos pro- vação do verdadeiro, julgo haver uma
ceder de maneira a não perseverarmos inteira repugnância que o entendi-
nisto, o que não se pode fazer de modo mento apreenda o falso sob a forma ou
algum sem a liberdade que tem a von- a aparência do verdadeiro, o que seria
tade de se dirigir a isto ou aquilo sem todavia necessário se ele jamais deter-
esperar a determinação do entendi- minasse a vontade a abraçar a falsida-
mento; liberdade que, todavia, não
de.
quereis reconhecer. Pois, se o entendi-
mento determinou uma vez a vontade a 539. IV. No que concerne ao fruto
fazer um falso juízo, eu vos pergunto, destas Meditações, parece-me ter ad-
quando ela começa pela primeira vez a vertido suficientemente no prefácio, o
querer cuidar de não perseverar no que penso que lestes, que ele não será
erro, o que é que a determina a grande para aqueles que, não se dando
tanto 1 0 6 ? Se for ela própria, poderá, ao trabalho de compreender a ordem e
o nexo de minhas razões, cuidarem
1 5
° Até agora a dialética parece mais brilhante do apenas de procurar em todas as oca-
que convincente: por que deveria Gassendi apresen- siões motivos de disputas. E quanto ao
tar razões onde Descartes se contenta em invocar o
testemunho do "que se pode sentir e experimentar método pelo qual poderíamos discernir
em si mesmo"? Qual a sua culpa, se se recusa a as coisas que concebemos de fato cla-
admitir o que não experimentou? Mas Descartes irá ramente das coisas de que apenas nos
justamente demonstrar (pelo absurdo) que seu
adversário não podia deixar de efetuar essa expe persuadimos conceber clara e distinta-
riência do livre arbítrio. mente, embora eu pense tê-lo ensinado
106
O dilema é o seguinte: Gassendi admite que
podemos nos coibir de perseverar no erro; mas de maneira bastante exata, como já o
como é determinada a vontade para isso? disse, não ousaria prometer que seria
A) ou por si própria — e a tese de Gassendi se
esboroa; facilmente compreensível aos que tra-
B) ou pelo entendimento — solução que engen balham tão pouco em se despojar de
dra um absurdo, pois cumpriria admitir que o enten- seus prejuízos, a ponto de se queixar de
dimento mesmo nos pode induzir a perceber o falso
sob a forma do verdadeiro. Vemos por aí no que a que fui demasiado longo e exato no
tese do livre arbítrio e da vontade responsável pelo mostrar o meio de se desfazer de tais
erro é inseparável do princípio da clareza e da
distinção. prejuízos.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 207
é em relação a elas senão uma denomi- a tenhamos concebido ela própria, mas
nação exterior, que não lhes causa antes o verdadeiro triângulo. Da
nenhuma transformação; e, todavia, mesma maneira que, quando lançamos
não se pode duvidar que elas sejam o olhar sobre um papel onde há alguns
conformes a esta verdadeira natureza traços dispostos e arranjados de tal
das coisas que foi feita e construída modo que representam o rosto de um
pelo verdadeiro Deus: não que haja no homem, a visão não excita tanto em
mundo substâncias que tenham com- nós a ideia dos próprios traços quanto
primento sem largura, ou largura sem a ideia de um homem: o que não ocor-
profundidade; mas porque as figuras reria, se o rosto de um homem não nos
geométricas não são consideradas fosse conhecido de outro lugar, e se
como substâncias, mas somente como não estivéssemos mais acostumados a
os limites nos quais a substância está pensar nele do que em seus traços, os
contida. No entanto, não concordo quais mui amiúde não poderíamos dis-
com que as ideias dessas figuras nos tinguir uns dos outros se estivéssemos
tenham jamais caído sob os sentidos, um pouco distanciados. Assim, certa-
como cada um se persuade ordinaria- mente, não poderíamos jamais conhe-
mente; pois, ainda que não haja dúvida cer o triângulo geométrico através
que possam existir no mundo, tal como daquele que vemos traçado sobre o
os geómetras as consideram, nego, no papel, se nosso espírito não 108
recebesse a
entanto, que existam quaisquer em sua ideia de outra parte .
torno de nós, a não ser que sejam tão 544. II. Não vejo aqui a que género
pequenas que não nos impressionem os de coisas quereis que a existência per-
sentidos: pois são ordinariamente com- tença, nem por que ela não pode ser
postas de linhas retas, e não penso que denominada uma propriedade 109 ,
jamais tenha tocado nossos sentidos como a onipotência, tomando o nome
parte alguma de uma linha que fosse de propriedade para toda espécie de
verdadeiramente reta. Por isso, quando atributo ou para tudo o que pode ser
chegamos a olhar através de uma lune-
ta aquelas que nos haviam parecido as 1 0 8 Para refutar a doutrina cartesiana das essên-
mais retas, vemo-las inteiramente irre- cias como verdades eternas, Gassendi expunha que
as essências são generalidades constituídas empiri-
gulares e curvadas em todas as partes, camente, que só tiram sua verdade das coisas singu-
como ondas. E, portanto, quando per- lares de que são abstraídas. Responde Descartes:
cebemos pela primeira vez em nossa Como poderíamos extrair as ideias geométricas do
sensível, visto que elas jamais aí se encontram?
infância uma figura triangular traçada 1 0 9 A recusa de Gassendi em considerar a exis-
sobre o papel, tal figura não nos pôde tência como uma propriedade ou uma perfeição
anuncia a crítica kantiana da prova ontológica.
ensinar como era necessário conceber Gassendi escreve, por exemplo: "O que existe e que,
o triângulo geométrico, posto que não além da existência, tem muitas perfeições, não tem a
representava melhor do que um mau existência como perfeição singular. . . mas como
forma ou ato pelo qual a coisa mesma e suas perfei-
desenho representa uma imagem per- ções são existentes, e sem a qual nem a coisa nem
feita. Mas, na medida em que a ideia suas perfeições existiriam de modo a l g u m . . . Se
uma coisa carece de existência, não se diz que está
verdadeira do triângulo já estava em privada de alguma perfeição, mas que é nula ou que
nós, e que nosso espírito podia conce- ela não é absolutamente". Em Gassendi, como em
bê-la mais facilmente do que a figura Kant, esta recusa provém da impossibilidade de
menos simples ou mais composta de considerar a existência de outro modo, a não ser
como existência sensível, tal como notará Hegel
um triângulo pintado, daí decorre que, (Enciclopédia, Introdução § 51). Quanto à crítica de
Marx à posição kantiana, cf. a Dissertação sobre
tendo visto essa figura composta, não Demócrito e Epicuro, in fine.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 209
atribuído a uma coisa, como efetiva- ter sido tão fácil de resolver. No que
mente deve ser aqui entendido. Mas, concerne ao que acrescentais em segui-
antes, a existência necessária é verda- da, já respondi suficientemente; e enga-
deiramente em Deus uma propriedade nai-vos grandemente quando dizeis
tomada no sentido menos amplo, por- que não se demonstra a existência de
que apenas a ele convém, e porque só Deus como se demonstra que todo
nele faz parte de sua essência. Eis por triângulo retilíneo tem seus três ângu-
que também a existência do triângulo los iguais a dois retos; pois a razão é
não deve ser comparada com a exis- semelhante nos dois casos, exceto que
tência de Deus, porque ela tem em a demonstração que prova a existência
Deus lima relação manifestamente di- de Deus é muito mais simples e evi-
ferente com a essência, que não tem no dente do que a outra. E enfim, silencio
triângulo 110 ; e não cometo mais aqui sobre o restante do que prosseguis,
o erro que os lógicos chamam de peti- porque, quando dizeis que não explico
ção de princípio, quando coloco a exis- bastante as coisas e que minhas provas
tência entre as coisas que pertencem à não são convincentes, penso que a me-
existência de Deus, do que quando, lhor título poder-se-ia dizer o mesmo
entre as propriedades do triângulo, co- de vós e das vossas.
loco a igualdade da grandeza de seus 545. III. Contra tudo o que apre-
três ângulos com dois retos. Não é ver- sentais aqui de Diágoras, de Teodoro,
dade também que a essência e a exis- de Pitágoras e de vários outros, opo-
tência em Deus, tanto quanto no triân- nho-vos os céticos, que colocavam em
gulo, podem ser concebidas uma sem a dúvida as próprias demonstrações de
outra, porque Deus é seu próprio ser e Geometria, e sustento que eles não o
o triângulo não. E, todavia, não nego teriam feito se tivessem tido o conheci-
que a existência possível seja uma per- mento certo da verdade de um
feição na ideia do triângulo, como a Deus 1 1 1 ; e mesmo se uma coisa pare-
existência necessária é uma perfeição cer verdadeira a mais pessoas, isto não
na ideia de Deus, pois isso a torna provará que essa coisa seja mais notó-
mais perfeita do que o são as ideias de ria e mais manifesta do que outra;
todas essas quimeras que supomos não prová-lo-á antes o fato de que aqueles
poderem ser produzidas. E, portanto, que têm um conhecimento suficiente de
não diminuístes em nada a força de uma e de outra reconhecem que uma é
meu argumento e permaneceis sempre primeiramente conhecida, mais evi-
enganado por este sofisma que dizeis dente e mais segura do que a outra.
110
Gassendi considera sofisma a assimilação da ' ' n Gassendi invoca o exemplo dos geómetras
existência em Deus a uma propriedade necessária antigos para mostrar que o conhecimento da neces-
no triângulo: a existência de Deus e a existência do sidade das verdades geométricas independe do
triângulo é que deveriam ser postas no mesmo conhecimento da existência de Deus. De resto, pros-
plano. Ora, para Descartes, neste caso, não se leva segue ele, "essas demonstrações são de tal evidência
mais em conta a distinção essencial entre a exis- e certeza que, sem esperar nossa deliberação, elas
tência necessária, inclusa na essência de Deus, e a nos arrancam, por si mesmas, o nosso consentimen-
existência somente possível, inclusa na do triângulo. to", ao mesmo título que o Cogito.
210 DESCARTES
va da verdade das coisas que existem algum vapor, algum ar, ou qualquer
fora de nós, no que não vejo que corpo que seja, por sutil e ténue que
tenhais dito coisa alguma de verda- possa ser 11 4 ; mas, quanto a saber se
deiro. efetivamente era diferente do corpo,
548. III. Não me detenho aqui em disse nessa ocasião que não era o
coisas que tantas vezes repisastes e que momento de discuti-lo. Tendo-o reser-
ainda nesta passagem repetis tão vã- vado para esta Meditação Sexta, foi
mente; por exemplo, que há muitas nela que tratei amplamente de tal tema
coisas que adiantei sem prova, as quais e onde decidi esta questão por uma
afirmo, não obstante, ter demonstrado demonstração mui forte e verdadeira.
mui evidentemente; como também que Mas vós, ao contrário, confundindo a
somente quis falar do corpo grosseiro e questão que concerne a como pode o
palpável quando excluí o corpo de espírito ser concebido com aquela que
minha essência; ainda que, todavia, se refere ao que ele é efetivamente, não
meu desígnio tenha sido excluir de dais a entender outra coisa senão que
minha essência toda espécie de corpo, nada compreendestes distintamente de
por pequeno e sutil que possa ser 113 , e todas estas coisas.
outras coisas semelhantes; pois, que se 549. IV. Perguntais aqui como
poderá aqui responder a tantas pala- considero que a espécie ou a ideia do
vras ditas e adiantadas, sem qualquer corpo, que é extenso, pode ser recebida
fundamento razoável, se não negá-las em mim que sou uma coisa inexten-
mui simplesmente? Contudo, direi de sa 11 5 . Respondo que nenhuma espécie
passagem que gostaria de saber sobre corporal é recebida no espírito, mas
o que vos fundamentais para dizer que que a concepção ou intelecção pura
falei mais do corpo maciço e grosseiro das coisas, corpóreas ou espirituais, é
do que do corpo sutil e ténue. É, decla- feita sem qualquer imagem ou espécie
rais, porque eu disse que tenho um corpórea; e quanto à imaginação, que
corpo ao qual estou conjugado e tam- não pode ser senão das coisas corpó-
bém que é certo que eu, isto é, minha reas, é verdade que para elaborar uma
alma, é distinta de meu corpo, onde é necessário uma espécie que seja um
confesso que não vejo por que tais verdadeiro corpo e à qual o espírito se
palavras não poderiam também ser aplique, mas não que seja recebida no
relacionadas ao corpo sutil e impercep- espírito. O que dizeis da ideia do sol,
tível, assim como àquele que é mais que um cego de nascença forma pelo
grosseiro e palpável; e não creio que simples conhecimento que tem de seu
tal pensamento possa ocorrer ao espí- calor, é facilmente refutável11 6 ; pois
rito de outrem além de vós. De resto, esse cego pode perfeitamente ter uma
mostrei claramente, na Meditação Se-
gunda, que o espírito poderia ser con- ' ' 4 Gassendi lembra que a Meditação Segunda
não prova absolutamente que eu não seja "um
cebido como uma substância existente, vento, um fogo, um vapor, um ar", o que Descartes
antes mesmo que soubéssemos se há recusa em nome da ordem das razões.
11 5
no mundo algum vento, algum fogo, Como poderia a ideia do corpo, pergunta Gas-
sendi, representá-lo, se ela não fosse, por sua vez,
extensa? E se nosso espírito não fosse uma coisa
,13
Sobre a Meditação Quarta, § 17. A dificul- extensa, como poderia ela residir nele?
1 6
dade, julga Gassendi, não está em saber se meu ' Gassendi: se um cego de nascença dissesse que
espírito difere do "corpo maciço e grosseiro" — o sol é uma "coisa que esquenta", não teria disso
isso é certo —, mas em saber se o espírito não é uma ideia clara e distinta. Quem vos garante que
"um corpo sutil e fino difuso neste corpo espesso e tendes uma ideia clara e distinta de vós mesmo
maciço". quando vos definis como uma "coisa que pensa"?
212 DESCARTES
ideia clara e distinta do sol como de houvesse alguém que quisesse dizer
uma coisa que aquece, embora não a que Bucefalo é uma música, não seria
tenha como a ideia de uma coisa que em vão e sem razão que tal coisa seria
aclara e ilumina. E é sem razão que me negada por outrem. E certamente em
comparais a esse cego; primeiramente todo o resto que acrescentais aqui para
porque o conhecimento de uma coisa provar que o espírito tem extensão 119 ,
que pensa se estende muito mais longe na medida, dizeis vós, em que ele se
do que aquele de uma coisa que aque- serve do corpo que é extenso, não me
ce, e mesmo é muito mais amplo do parece que raciocinais melhor do que
que qualquer conhecimento que tenha- se, pelo fato de Bucefalo relinchar e
mos de qualquer outra coisa que seja, assim emitir sons que podem ser rela-
como mostrei no devido lugar, è tam- cionados com a música, tirásseis a
bém porque não há ninguém que possa consequência de que Bucefalo é, por-
mostrar que essa ideia do sol que o tanto, uma música. Pois, ainda que o
cego elabora não contenha tudo o que espírito seja unido a todo o corpo, não
se possa conhecer dele, exceto aquele se segue daí que ele seja extenso por
que, sendo dotado do sentido da vista, todo o corpo, pois não é próprio do
conhece, além disso, sua figura e sua espírito ser extenso, mas somente pen-
luz; mas, quanto a vós, não só não sar. E ele não concebe a extensão por
conheceis mais do que eu no tocante uma espécie extensa que exista nele,
ao espírito como também não perce- embora imagine voltando-se e aplican-
.beis aí tudo o que vejo11 7 , de sorte que do-se a uma espécie corpórea que é
nisto seja antes vós que pareceis um extensa, como o disse anteriormente.
cego, e posso no máximo, do vosso E, enfim, não é necessário que o espí-
ponto de vista, ser chamado de vesgo rito seja da ordem e da natureza do
ou pouco clarividente, com todos os corpo, conquanto tenha a força ou a
demais homens. virtude de movê-lo.
550. De resto, não acrescentei que o 551. V. O que dizeis nessa passa-
espírito não era extenso para explicar gem, no que se refere à união entre o
como ele é e dar a conhecer sua nature- espírito e o corpo, é semelhante às difi-
za, mas somente para advertir que se culdades precedentes. Nada objetais
enganam aqueles que pensam que ele é contra minhas razões, mas colocais
extenso1 n 8 . Da mesma maneira que, se somente dúvidas que vos parecem deri-
1 7
var de minhas conclusões, embora
' Por "pensamento", Gassendi e Descartes não efetivamente não vos ocorram ao espí-
entendem a mesma coisa: Gassendi recusa-se a ver
o atributo principal da res cogitans no pensamento- rito senão porque desejais submeter ao
entendimento. Poder-se-á consultar, acerca dessa exame da imaginação coisas que de
questão, o debate que opôs Alquié e Guéroult no
Congresso Descartes de Royaumont (Descartes, sua própria natureza não estão sujeitas
Ed. Minuit, págs. 33-71). Alquié sustentava que a a tal jurisdição. Assim, quando quereis
res cogitans é algo mais do que o pensamento comparar aqui a mistura que se faz
enquanto entendimento, sendo este apenas um
modo de substância pensante ao mesmo título que a entre o corpo e o espírito com a de dois
vontade. "Não sei absolutamente", replicava Gué- corpos misturados, basta-me responder
roult, "de textos em que Descartes oponha um
suporte, uma qualidade oculta, um ser que não que não se deve fazer entre essas coisas
pudesse ser atingido pelo pensamento visto que não comparação alguma, pois que são de
seria
1 8
o pensamento..." (pág. 39). dois géneros totalmente diferentes, e
' Gassendi: "Dizeis que não sois uma coisa
extensa; certamente, fico sabendo por aí o que não 119
sois, mas não o que sois. . . Ter-se-ia uma ideia Gassendi pergunta nesta passagem como pode
bastante clara e distinta do Bucefalo se se conhe- a alma ser unida ao corpo todo ou a parte do corpo,
cesse pelo menos que ele não é uma música?" se ela não é extensa.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 213
Senhor,
de toda espécie de prejuízo, nada mais existo, o autor das Instâncias quer que
é preciso do que se resolver a nada eu suponha esta premissa maior: aque-
afirmar ou negar de tudo o que ante- le que pensa é; e, assim, que tenha já
riormente se afirmou ou negou, senão esposado um prejuízo. No que ele se
após havê-lo novamente examinado, engana novamente quanto ao uso da
ainda que não se deixe de reter todas palavra prejuízo: pois, embora se
as mesmas noções na memória. Disse, possa dar esse nome a tal proposição
todavia, que seria difícil expulsar quando a proferimos sem atenção, e
assim de nossa crença tudo o que aí quando somente acreditamos que ela é
anteriormente se havia colocado, em verdadeira porque recordamos já tê-la
parte porque é necessário ter alguma assim julgado anteriormente, não se
razão de duvidar antes de se determi- pode dizer, todavia, que ela seja um
nar a tanto (e foi por isso que propus prejuízo quando a examinamos, por-
as principais dessas razões em minha que parece tão evidente ao entendi-
Primeira Meditação), e em parte tam- mento que este não poderia impedir-se
bém porque, qualquer que seja a reso- de crer nela, ainda que seja a primeira
lução que tomemos de nada afirmar ou vez em sua vida que nela pense e que
negar, esquecemo-nos facilmente dela por conseguinte não tenha quanto a
em seguida se não a imprimirmos for- isso qualquer prejuízo 122 . Mas o erro
temente na memória; eis por que dese- que é aqui mais considerável é que esse
jei que se pensasse nisso cuidadosa- autor supõe que o conhecimento das
mente. proposições particulares deve sempre
ser deduzido das universais, segundo a
555. A segunda objeção é apenas ordem dos silogismos da dialética 123 ,
uma suposição manifestamente falsa; no que mostra saber bem pouco de que
pois, embora eu houvesse dito ser maneira se deve procurar a verdade;
mesmo necessário esforçar-se por pois é certo que para encontrá-la cum-
negar as coisas que anteriormente pre sempre começar pelas noções par-
eram tidas por demasiado asseguradas, ticulares, para em seguida chegar às
limitei expressamente que isto só se gerais, embora seja possível também,
deveria fazer durante o tempo em que reciprocamente, tendo-se encontrado
se dirigisse toda a atenção à procura as gerais, deduzir delas outras particu-
de algo mais certo do que tudo quanto lares. Assim, quando se ensina a uma
assim se poderia negar, tempo em cujo criança os elementos da Geometria,
transcurso é evidente que não se pode- não a faremos entender em geral que,
ria deixar de se revestir de algum pre- quando, de duas quantidades iguais,
juízo que fosse danoso. tiramos partes iguais, os restos perma-
necem iguais, ou que o todo é maior do
556. A terceira também nada con- que suas partes, se não lhes mostrar-
tém senão uma cavilação; pois, embo- mos exemplos em casos particulares. E
ra seja verdadeiro que a dúvida apenas foi por não ter cuidado disso que nosso
não basta para estabelecer qualquer autor enganou-se em tantos falsos
verdade, ela não deixa de ser útil para raciocínios, com os quais engrossou
preparar o espírito a estabelecê-la seu livro; pois ele nada fez senão com-
após, e é somente nisto que eu a por falsas premissas maiores à sua fan-
empreguei.
122
557. Contra a Meditação Segunda, O Cogito só se toma um prejuízo (ante a prova
da existência de Deus) quando não é reativado
vossos amigos notam seis coisas. A atualmente.
123
primeira é que dizendo: penso, logo Cf.Princípios,1,49.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 217
tasia, como se eu tivesse delas dedu- substância pensante haver julgado que
zido as verdades que expliquei. é intelectual, porque notou em si todas
558. A segunda objeção que ano- as propriedades das substâncias inte-
tam aqui vossos amigos é que, para lectuais, e não pôde advertir aí nenhu-
saber que se pensa, é preciso saber o ma das pertencentes ao corpo, pergun-
que é o pensamento; o que não sei de ta-se-lhe ainda como sabe se não é um
modo algum, dizem eles, porque tudo corpo mais do que uma substância
neguei. Mas eu apenas neguei os pre- imaterial.
juízos e nunca as noções, como estas, 561. A quinta objeção é seme-
que se conhecem sem qualquer afirma- lhante: Embora eu não encontre exten-
ção ou negação. são em meu pensamento, não se segue
559. A terceira é que o pensamento que ele não seja extenso, já que meu
não pode existir sem objeto; por exem- pensamento não é a regra da verdade
plo, sem o corpo. Onde é preciso evitar das coisas. E também a sexta: Pode
o equívoco da palavra pensamento, acontecer que a distinção que descubro
que se pode tomar como a coisa pen- por meu pensamento entre o pensa-
sante e também como a ação dessa mento e o corpo seja falsa. Mas cum-
coisa 12 4 ; ora, nego que a coisa pen- pre notar aqui particularmente o equí-
sante tenha necessidade de outro obje- voco que existe nestas palavras: meu
to além de si mesma para exercer sua pensamento não é a regra da verdade
ação, embora ela possa também esten- das coisas; pois se quer dizer que meu
dê-la às coisas materiais quando as pensamento não deve ser a regra dos
examina. outros para obrigá-los a crer em uma
560. A quarta é que, embora eu coisa que penso verdadeira, estou de
tenha um pensamento de mim mesmo, pleno acordo; mas isto não vem aqui a
não sei se este pensamento é mais uma propósito, pois não quis obrigar nin-
ação corporal ou um átomo que se guém a seguir minha autoridade; ao
move do que uma substância imaterial; contrário, adverti em diversos lugares
no que o equívoco do nome pensa- que não nos devemos deixar persuadir
mento é repetido, e não vejo aqui nada apenas pela evidência das razões. Ade-
afora uma questão sem fundamento e mais, se tomamos indiferentemente a
que é semelhante à seguinte: julgais palavra pensamento por todas as espé-
que sois um homem porque percebeis cies de operações da alma, é certo que
em vós todas as coisas na ocorrência podemos ter muitos pensamentos dos
das quais chamais de homens aqueles quais nada se pode inferir no referente
em que elas se encontram; mas, como às coisas existentes fora de nós; mas
sabeis se não sois um elefante e não isso também não vem a propósito
um homem, por algumas outras razões nesse lugar, quando se trata apenas de
que não podeis perceber? Pois, após a pensamentos que são percepções cla-
ras e distintas e de juízos que cada um
124
A respeito dessa distinção, cf. Princípios, I, deve fazer consigo em seguida a essas
63-64. E nomeadamente: "Quando os consideramos percepções12 5 . Eis por que, no sentido
(o pensamento e a extensão) como as propriedades
das substâncias de que dependem, distinguimo-los 125
facilmente dessas substâncias e os tomamos tais Distinção entre: a) meu pensamento indivi-
como são verdadeiramente; ao passo que, se quiser- dual; b) o pensamento na medida em que recobre
mos considerá-los sem substância, isso poderá não importa qual cogitatio; c) o pensamento claro e
levar-nos a tomá-los por coisas que subsistem por si distinto que, só ele, constitui autoridade. Para Des-
mesmas". Todavia, esta distinção de razão entre a cartes, o pensamento (ou razão) não é uma facul-
cogitatio e a res cogitans não significa que o ser dade psicológica que a gente declararia arbitraria-
pensante enquanto tal seja outra coisa senão o mente infalível, mas um domínio engendrado pela-
pensamento. evidência intelectual.
218 DESCARTES
em que essas palavras devem ser enten- persuadiram delas; 4.° e que, do fato
didas aqui, digo que o pensamento de de que me reconheço imperfeito, não se
cada um, isto é, a percepção ou conhe- segue que Deus exista. Mas, se se toma
cimento que tem de uma coisa, deve a palavra ideia da maneira pela qual eu
ser para ele a regra da verdade dessa disse expressamente que a tomava, sem
coisa, isto é, que todos os juízos que se escusar pelo equívoco daqueles que
sobre ela tiver feito devem ser confor- a restringem às imagens das coisas
mes a essa percepção para serem bons; materiais que se formam na imagina-
mesmo no tocante às verdades da fé, ç ã o 1 2 7 , não se poderia negar que
devemos perceber alguma razão que temos alguma ideia de Deus, a não ser
nos persuada de que elas foram revela- que não se entenda o que significam
das por Deus, antes de nos determi- estas palavras: a coisa mais perfeita
narmos a crer nelas 12 6 ; e, ainda que os que possamos conceber; pois é isto que
ignorantes façam bem em seguir o todos os homens chamam de Deus. E é
juízo dos mais capazes quanto às coi- chegar a estranhos extremos, para que-
sas de difícil conhecimento, é preciso rer levantar objeções, dizer que não se
todavia que seja a sua percepção que entende o que significam as palavras
lhes ensine que são ignorantes e que que são mais comuns na boca dos
aqueles cujos juízos querem seguir não homens 1 2 8 ; além do que, a confissão
o são tanto, talvez; de outra maneira, mais ímpia que alguém possa fazer é
fariam mal em segui-los e agiriam mais dizer de si mesmo, no sentido em que
como autómatos ou como animais do tomei a palavra ideia, que não tem
que como homens. Assim, é o erro nenhuma ideia de Deus: pois não con-
mais absurdo e mais exorbitante que siste somente em dizer que não o
um filósofo possa admitir o querer conhece pela razão natural, mas tam-
fazer juízos que não se relacionem às bém que, nem pela fé ou qualquer
percepções que ele tem das coisas; e outro meio, poderia saber coisa algu-
todavia, não vejo como nosso autor ma dele, porque se não se possui qual-
poderia escusar-se de ter caído nesse quer ideia dele, isto é, qualquer percep-
erro na maioria de suas objeções; pois ção que corresponda à significação
ele não quer que cada um se detenha dessa palavra Deus, em vão se dirá
em sua própria percepção, mas pre- crer que Deus é, pois equivale a afir-
tende que se deva crer nas opiniões ou mar que se crê que nada é e assim se
nas fantasias que lhe apraz propor-nos, permanece no abismo da impiedade e
embora não as perceba de modo no extremo da ignorância.
algum. 563. O que acrescentam, dizendo
que, se eu tivesse essa ideia, eu a
562. Contra a Meditação Terceira, compreenderia, é afirmado sem qual-
vossos amigos notaram: 1.° que todo quer fundamento: pois, já que a pala-
mundo não experimenta em si a ideia vra compreender significa alguma limi-
de Deus; 2." que, se eu tivesse essa tação, um espírito finito não poderia
ideia, eu a compreenderia; 3.° que mui- compreender Deus, que é infinito; mas
tos leram minhas razões e não se isto não impede que ele o perceba,
assim como se pode tocar uma monta-
12 6
"Ainda que se diga que a fé tem por objeto nha, ainda que não se possa abraçá-
coisas obscuras, não obstante a razão pela qual
acreditamos nelas não é obscura, mas é mais clara
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do que qualquer luz natural." (Segundas respostas.) Cf. as definições 2 e 3 da exposição geométrica
Mesmo no domínio da fé, a decisão permanece das Segundas Respostas.
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racional e a vontade não pode dispensar as razões. Cf. Cartas, a Mersenne, julho de 1641.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 219
la 1 2 9 . Aquilo que dizem também de tas noções que existem em nós, dizen-
minhas razões, afirmando que muitos do em seguida que não se pode estar
as leram sem por elas serem persuadi- certo de coisa alguma sem saber antes
dos, pode facilmente ser refutado, pois que Deus existe; 2.° e que o conheci-
há alguns outros que as compreen- mento de Deus de nada serve para
deram e ficaram com elas satisfeitos; adquirir o das verdades matemáticas;
pois deve-se crer mais em um só que 3." e que ele pode ser enganador. Vede
diz, sem intenção de mentir, que viu ou a respeito minha resposta às Segundas
que compreendeu alguma coisa, do que Objeções e o fim da segunda parte da
em mil outros que a negam pelo sim- Resposta às Quartas.
ples fato de que não puderam vê-la ou 566. Mas eles acrescentam no fim
compreendê-la: assim como na desco- um pensamento que não sei se nosso
berta dos antípodas acreditou-se muito autor escreveu em seu livro de Instân-
mais no relato feito por alguns mari- cias, embora seja um pensamento bas-
nheiros que fizeram a volta da terra do tante semelhante aos seus: Muitos
que em milhares de filósofos que não excelsos espíritos, dizem eles, acredi-
acreditaram que ela fosse redonda. E tam ver claramente que a extensão
já que alegam aqui os Elementos de matemática, a qual estabeleço como
Euclides, como se fossem fáceis para princípio de minha Física, não é outra
todo mundo, peço a eles que conside- coisa senão meu pensamento, e que ela
rem que entre aqueles que se estima não tem nem pode ter nenhuma subsis-
serem os mais sábios na Filosofia da tência fora de meu espírito, sendo ape-
Escola não há um entre cem que os nas uma abstração que faço do corpo
compreenda e que não há um em dez físico; e portanto que toda a minha Fí-
mil que entenda todas as demonstra- sica só pode ser imaginária e fictícia,
ções de Apolônio ou de Arquimedes, como o são todas as Matemáticas
embora elas sejam tão evidentes e tão puras; e que, na Física real das coisas
certas quanto as de Euclides. que Deus criou, é preciso uma matéria
564. Enfim, quando afirmam que real sólida e não imaginária. Eis a
do fato de que reconheço em mim al- objeção das objeções, e a suma de toda
guma imperfeição não se segue que a doutrina dos excelsos espíritos, que
Deus exista, com isso nada provam; aqui são alegados. Todas as coisas que
pois eu não a deduzi imediatamente podemos entender e conceber não são
disso sem acrescentar-lhe algo mais; e para eles senão imaginações e ficções
apenas me fazem recordar o artificio de nosso espírito e que não podem ter
desse autor que costuma truncar mi- qualquer subsistência: donde se segue
nhas razões e não apresentar delas que nada há, exceto o que não se pode
senão algumas partes para fazê-las de modo algum entender, conceber ou
parecer imperfeitas. imaginar, que se deva admitir como
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565. Nada vejo em tudo o que nota- verdadeiro : isto é, que é preciso fe-
ram a respeito das três outras Medita- char inteiramente a porta à razão e
ções a que não tenha já amplamente 130
A objeção — de espírito ao mesmo tempo
respondido alhures, como àquilo que empirista e aristotélico — pretende que "a extensão
objetam: 1." que cometi um círculo dos geómetras" não passa de uma ficção forjada
provando a existência de Deus por cer- por nosso espírito. Descartes traduz: é uma ficção
porque podemos concebê-la clara e distintamente, e
não poupa trabalho em denunciar, por conseguinte,
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O conhecimento da natureza de Deus pode ser um absurdo no antimatematicismo de seus adversá-
fiel sem ser total. rios.
220 DESCARTES