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“Carta de Gargantua a seu filho Pantagruel”, 1532. François Rabelais, Pantagruel, cap. VIII.

in Gargântua e Pantagruel, Belo Horizonte, 1991 [1532-4]. – Unifesp – História Moderna I

[...] Meu falecido pai Grandgousier, de memória abençoada, fez todo esforço para que eu
pudesse alcançar excelência mental e técnica. O fruto dos meus estudos e trabalhos alcançou,
de fato ultrapassou, seu desejo mais querido. Mas tu podes perceber que, para a educação, as
condições não eram favoráveis como são hoje. Nem eu tive professores tão capazes como tu.
Nós ainda estávamos na idade das trevas; ainda caminhávamos na sombra das nuvens escuras
da ignorância, sofríamos as calamitosas consequências da destruição da boa literatura pelos
Godos. Agora, pela graça de Deus, a luz e a dignidade foram restituídas às letras e eu vivi
para vê-lo. De fato, assisti tamanha revolução na educação que eu, não erroneamente reputado
em meu tempo o mais sábio do século, teria dificuldade para freqüentar a primeira classe de
uma escola de gramática.
Hoje, as antigas ciências estão restauradas, o conhecimento está sistematizado, a disciplina
reestabelecida. As línguas estão restituídas: o grego, sem o qual um homem sentiria-se
envergonhado de considerar-se educado; o hebraico, o caldeu e o latim. A imprensa está agora
em uso, uma arte tão apurada e elegante que trai a divina inspiração de sua descoberta, que eu
vivi para testemunhar. [...] entretanto, não fui poupado ao horror de feitos diabólicos como a
pólvora e a artilharia. Hoje, o mundo está repleto de homens sábios, professores brilhantes e
vastas bibliotecas: não acredito que no tempo de Platão, Cícero ou Papinian dispusessem de
tamanhas facilidades para a cultura. Daqui em diante é impensável apresentar-se em público,
ou mover-se em círculos polidos sem ter adorado a Oficina de Minerva. Ora, os ladrões, os
carrascos, os aventureiros e palafreneiros são infinitamente mais bem educados que os
doutores e pregadores do meu tempo. Mais, até mulheres e meninas aspiram à glória, o maná
celeste da educação. [...] Por isso, meu filho, admoesto-te para que empregues tua juventude a
bem aproveitar dos estudos. Estás em Paris, tens teu preceptor Epistemon, que por um lado
por suas instruções e por outro por seus louváveis exemplos, pode ensinar-te. Pretendo e
quero que aprendas perfeitamente as línguas. Antes de tudo a grega, como o quer Quintiliano.
Em segundo lugar a latina. E depois a hebraica para ler as Santas Escrituras, e a caldaica e
arábica, para o mesmo fim. E que adquiras o estilo, na grega como Platão e na latina como
Cícero. Que não haja história que não tenhas presente na memória, no que te ajudará a
Cosmografia dos que sobre isto escreveram. Das artes liberais – geometria, aritmética e
música – dei-te algumas noções quando tinhas ainda cinco ou seis anos. Continua com o resto,
e da Astronomia, saiba todos os cânones, mas deixe de lado a Astrologia divinatória e a arte
de Lúcio como abusos e vaidades. Quero que saibas de cor os melhores textos do direito civil,
comparando-os com a filosofia. E quanto ao conhecimento dos feitos da natureza, quero que
te dediques com cuidado, para que não haja mar, rio ou fonte de que não conheças os peixes,
que saibas quais são todos os pássaros do ar, todas as árvores, arbustos e frutos das florestas,
todas as ervas da terra, todos os metais escondidos no ventre dos abismos, as pedrarias de
todo o oriente e das terras do sul. Que nada disto te seja desconhecido. Em seguida leia os
livros dos médicos Gregos, Árabes e Latinos, sem desprezar os talmudistas e cabalistas, e por
freqüentes anatomias, adquira perfeito conhecimento do outro mundo, que é o homem. E
durante algumas horas do dia visita as Santas Escrituras. Primeiramente o Novo Testamento e
as Epístolas dos Apóstolos em grego, depois o Antigo Testamento em hebraico [...]
Mas lembra disso, como Salomão afirma, a sabedoria não penetra em uma alma maliciosa, e
a ciência, sem consciência, prenuncia apenas a destruição do espírito. Por isso, ama e tema a
Deus, n’Ele deposita todos os teus pensamentos e esperanças pela fé construída pela caridade,
agarra-se a ele tão firmemente que jamais um pecado se interporá [entre tu e Ele]. Tenha os
abusos do mundo sob justa suspeita. Não coloques teu coração sob a vaidade pois esta é
transitória, mas a palavra de Deus permanece para sempre. [...] Quando perceberes que
adquiristes todo o conhecimento que Paris tem a oferecer, volta para que eu possa vê-lo e dar-
te minha benção antes de morrer.
Meu filho, que a paz e a graça de Nosso Senhor estejam contigo. Amém.
Teu pai, Gargantua.
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Albrecht Dürer. Ilustração para o livro Amores de Conrad Celtis (1502).

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