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1. QUE É A FILOSOFIA?

uico se tem discurido o que seja • filosofia e qual o


M seu valor. Uns esperam dela extraordinárias revela-
ções, outros rejeiram-na como pensamento sem objecco.
por mquanro, ainda é cedo para comprovar o efeiw que pode. Uns respeitam-na enquanto valioso esforço de pessoas
rito produzir na consciênd11 h11m11na. Não constituem o tema invulgares, outros desprezam-na considcl'1l ndo-a s upérRua
dme peq11mo livro. lucubração de sonhadores. Uns opinam que é algo que a
codos interessa e, porranto, deverá no fundo ser simples e
comprec1u!vcl, outros julgam-na cão diflcil que não vale a
Basileia, Janeiro de 1960.
pena abordá-lo. De f.tcco, o que corre sob o nome de filo-
KARL JASPERS sofia oferece-nos exemplos que permitem juízos descarte
contradicórios.
Para quem acredira na ciencia, o que a filosofia cem de
pior é não atingir conclusões geralmente v:llidas, que se pos-
sam aprender e porcanco possuir. Enquanto as ciências
alcançaram nos seus domínios resultados necessariamente
~rros e gc.1'1llmence reconhecidos como cal, a filosofia não
logrou a mesma evidência após milenários esforços. Não se
pode negar que na filosofia não h:i unanimidade relariva-
meme a conhecimentos definitivos. Aquilo que, por moti-
vos irrecus:lvcis, é para codos v:ilido tornou-se conhcci-
memo cicndfico, deixou de ser filosofia para se referir ao
dom(nio particular do que é susccpt!vel de conhecimenco.
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Por oucro lado, o pensamento filosófico não 1cm, arrogam o dirdro de levantar a ~ot sem mais .e dar ª.5~ª
como as ciências, o carácrer de um processo progressivo. opinião. Julga-se condição suficacn1e a própna condiçao
Estamos, decerto, mais adianrados do que H ipócrares, o humana, o destino e a experiência própria.
médico grego. Mas já não podemos d izer que estejamos A cxigencia do livre acesso d e todos à filosofia tem d e
mais adiantados d o que Piarão, excepruando apenas o con· ser reconhecida. Os mais sinuosos cami nhos, as mais com·
junto material de conhecimenros científicos que teve ao seu plexas vias que os seus en_tendidos sigam, só '.erão sentido se
dispor. No filosofar propriameme dilo, calvez nem sequer desembocarem na condição humana definida pelo modo
chegássemos ainda aré onde ele chegou. como se •certifica• do ser e de si própria nele inclusa.
Deve pertencer à índole própria da filosofia esta carên· Segundo: o pensamento filo~ófico deve~ ser ~empre
cia de reconhecimento unânime de qualquer das suas for- original. (',ada homem deverá reahzá-lo por s1 própno.
mas, pda qual diverge das ciências. O modo da certeza que As perguntas das crianças são um admirável sinal de
nela se pode alcançar não é cientifico, ou seja idêntico para q ue o homem, enqua nto homem, filosofa espontanea·
rodos os encendimencos; é o de uma ocertificação• que só é mcnre. Não é raro o uvir-se da boca das crianças algo que,
bem sucedida se o homem na sua totalidade nela cooperar. pê lo seu sentido, mergulha diretamente nas profundezas do
Ao passo q ue os conhecimentos cien tíficos se referem a filosofar. Referi ndo exemplos:
objcctos pa rticulares que não estão necessariam ente ao Uma criança mostra-se su rpreendida: •tento consran·
alcance do conh ecimento de 1odos, a fi losofia refere-se à remenre pensa r que sou o_utro e afi nal sou sempre -~u• .. Este
1oralidade do ser, que importa a todo o homem enquanro rapaz a1ingiu uma das o ngens da cerce1.a, a co_nsc1encia do
homem, procura uma verdade que, onde quer que fulgure, ser na autoconsciência; pasma peran1c o crugma do eu,
comove mais profundamente do que qualquer conhcci- incomprecns!vd a panir de qualquer ourra coisa. Detém-se
mcnco ciendfico. em inccrrogação perante este limite. . . . _
O estudo da filosofia está, aliás, ligado ao das ciências. Outra criança ouviu contar a h1stóna da cnaçao do
Pressupõe o estado avançado que estas arin giram na era mundo: no princípio criou Deus os Céus e a Terra .. . e logo
acrual , mas a filosofia tem o utra origem e sentido. Su rge, pergunto u: • O que _havia então ~"-'~ do princípio?• ~ta
antes de q ualquer ciência, quando os homens d esperram. criança apreendeu a 1lm11rada poss1b1lidade de mterrogaçao, a
impossibilidade de suspensão do enrcndimenro para o qual
Esta filosofo sem ciência surge-nos, po r exemplo, cm não há uma resposta concludcnre. . .
alguns fenómenos curiosos: Passeando num bosque, ou1ra criança ouve contar h1s·
Primeiro: cm assunros filosóficos quase todos se consi- tórias de silfos que ali dançam de noire ... •Mas não há sil-
deram comperentes. Enquanto se reconhece que para a fos!. ..•De outra vez falam-lhe apenas de realidades, fazem·
compreensão das ciências é necessária uma aprendiugem, -na observar o movimento aparenrc do Sol, explicam-lhe o
uma disciplina e um mérodo, cm relação à filosofia"rodos se problema do movimento d e translação da Terra e aprcsen-
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tam-lhc os argumentos a favor da forma esférica do globo e revelou num instante e fica surpreendida quando, mais
da rotação cm rorno de si próprio ... •Isto é que não é ver· tarde, os adultos que registaram os seus gestos e palavr35 lhe
dade-, diz a menina e bate com o pé no chão, •a Terra esr:I comam o que disse e o que perguntou em criança.
fuca. Só acredito naquilo que vejo•. Replicam-lhe: •Então Terceiro: ral como nas crianças, nos psicopat3S mani·
também não acreditas em Deus, porque não o podes ver• ; a festa-se também uma filosofia espontânea. Parece que por
criança cala-se e responde muito decidida, após curta pausa: vezes, embora raramenre, se quebram os laços do que cos·
•Se não fosse Deus nós não existiríamoS>. Esta criança sen- ruma esta r velado e se ouve a voz de uma verdade que nos
tiu o espanto perante a existência que não provém de si perturba. No inicio de certas doenças mentais há rcvclaçõc.s
própria. E entendeu a diferença entre os dois problemas: o metafisicas espantosas, cuja forma e linguagem nem sem·
do objecto no m undo; outro relativo ao ser e à nossa cxis- pre é, ali:ls, de molde a q ue a sua exp ressão tenha um valor
t~ncia na sua toral idade. objeccivo, a não ser cm casos como os do poeta Holderlin
Outra menina sobe uma escada para fuzcr uma visira. ou do pintor Van Gogh. Mas quem os presencia não pode
Apercebe-se de que tudo se vai tornando diferente, ficando furta-se à impressão de que se rompeu o véu sob o qual
para trás e desaparecendo. como se deixasse de existir. •Mas habitualmente vivemos. Também muitas pessoas normais
há-de haver alguma coisa que seja firme ... hei-de fixar que dveram a experiência da revelação de misteriosos e profun·
estou subindo a escada para visitar minha ria.• O rcmor e o dos significados no estado anterior ao desperrar do sono,
espanto que a transitoriedade efémera e universal provoca que se desvanecem ao acordar e apenas se sentem por se
convidam-na a procurar, perplexa, uma solução. terem tornado impenetráveis. Há um senrido profundo no
Poder-se-ia apresentar uma filosofia infantil muito adágio que afirma que crianças e loucos dizem a verdade.
rica, se nos déssemos ao rrabalho de respigá-la. Em relação Porém, a espontaneidade criadora a que devemos os gran·
a estes pensamentos profundamente sérios não colhe a des pensamentos filosóficos não se encontra nestes casos;
objecção segundo a q ual as crianças teriam ouvido aos pais surge cm alguns raros grnndcs espíritos, independentes e
ou a estranhos estas respostas. Outra objecção, a de que não ingénuos, que apareceram no curso dos séculos.
desenvolvem esses pensamentos que seriam, po rrnnto, Q uarto: dado que a filosofia é imp rescindJvel ao
manifestações fortuitas, ignora o facto de as crianças possuí· homem, e.tá sempre presente e manifesta; nos provérbios
rem muiras vezes u ma genialidade que se perde na idade tradicionais, em máximas filosóficas correntes, em convic·
adulta, como se, no decorrer dos anos, nos deixássemos çóes dominantes como sejam, por exemplo, a linguagem e
envolver e aprisionar por convenções e opiniões, por disfar· a~ crenças políticas; csr:I presente, sobretudo, nos mitos
ces e ju{ws sem fundamento, perdendo assim a espontanei· anteriores ao infcio da história. Não se pode fugir à filosofia.
<l.lllc <l• in!Jncia. Esta é ainda rcccptiva, no estado em que Pode perguntar·se apenas, se é consciente ou inconsciente,
• vid.1 é contínua criação; sente, vê e pergunta, para um boa ou má, confusa ou dara. Quem recusar a filosofia est~
puuw m.m tarde tudo esquecer. Abandona o que se lhe realizando um aéro filosófico de que não cem consciàlcia.
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Que é então a filosofia que se manifesta de um modo mos aperceber-nos do que se nos depara no mundo com o
cão universal e sob formas tão insóliras? nome de filosofia.
A palavra grega filósofo (pbilosophos) é formada em Podemos, no entanto, enunciar outras fórmulas relati-
oposição a 10phor, significa o que ama o saber, em contra- vas ao sentido da filosofia. Nenhuma delas esgota esse sen-
posição ao possuidor de conhecimentos que se designava tido e nenhuma é a única v;\Jida. Na Antiguidade dizia-se
por sábio. Este sentido da palavra manteve-se até hoje: é a que a filosofia era (conforme o objecto) conhecimento das
demanda da verdade e não a sua posse q ue consricui a essên- coisas divinas humanas, conhecimento do sendo enquanto
sendo; era (quanto aos fins) aprender a mo rrer, o esforço
cia da filosofia, muito embora tenha sido frequentemente
pensa nte para atingir a bem-aventurança; era (em sentido
rrafda pelo dogmatismo, isto é, por um saber expresso cm
tocai). aproximação do d ivino, o sabet dos saberes, a arte
dogmas definitivos, perteiros e doutrin ais. Filosofa r sign ifica
das arces, a ci€ncia cm absoluto que não se dirige apenas a
esrar-a-caminho. N interrogações são m ais imporrantcs do
um íinico domínio.
que as respostas e cada uma desras transforma-se em nova
Hoje, ao tratar da filosofia, podere mos utilizar as
interrogação. seguintes fórmulas para indicar o seu sentido:
O estar-a-caminho, que é o destino do homem no
tempo, envolve a possibilidade de profundas satisfações e - Contemplação da realidade na origem;
até mesmo, em cenos momcnros sublimes, pode conceder - Apreensão da realidade pelo modo como convive-
a plcnimde. Esca não se encontra nunca num explicitável mos connosco pelo pensamento na intimidade dos
cer-ficado-ciente, nem em dogmas e profissões de fé; rea- nossos actos; -r
liza-se historicamente no assumir da condição humana pela - Consciencia da amplidão do englobante;
qual o próprio ser nasce. O sentido do filosofar reside na 1 - Com unicação de homem para homem, em rodas
conquista da realidade da situação em q ue sempre o indiví- as direcções da verdade, numa arriscada mas gene-
duo se encontra. rosa porfia;
Escar-a-caminho em demanda de algo ou alcançar a - Vigi lancia da razão, paciente e incansável. mesmo
seren idade e a plenitude de um instan te, não são definições perante o q ue h~ de mais estranho e acé cm face do
da filosofia. A filosofia a nada se subordina ou se equipara. iminente malogro.
Não deriva de algo d iferente. Ctda fi~,~fi:Ldelinc-se ,•si
própria pelo modo como se realiza. Pàra saber o que é filo- A filosofia é o acto de concentração pelo qual o
sofia tem de se fazer uma centativa. Só então a filosofia será homem se torna autenticamente no que é e participa da
simultaneamente a marcha do pensamento vivo e a cons- realidade.
ciência desse pensamento (rdlexão), isto é, o acto e o res- Embora a filosofia possa inspirar qualquer pessoa,
pcccivo comenúrio. Só a panir da tentativa pessoal podcrc- mesmo uma criança, sob a forma de pensamentos simples e
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eficazes, a sua dali-Oração consciente é tarefa nunca total- para as forças que, de facto, em todos os homens os impe-
mente cumprida e sempre repetida na sua total idade pre- lem a filosofar. Pode saber que se dedica à causa do homem
sente; assim surge nas obras dos filósofos maiores e, em eco, enquanto homem, alheia a qualquer problema de utilidade
nas dos melhores. A consciência desta tarefa, qualquer que ou prejuízo, e que se processará sempre enquanto houver
seja a forma que assuma, manter-se-á pcrenemente enquanto homens. Nem as forças que a hostilizam podem eximir-se a
os homens forem homens. rcAectir sobre o sentido que lhes é próprio e a produzir cer-
Não é de hoje o ataque radical à filosofia, que a rejeita ras formas de pensamento pragmáticas, que são um sucedâ-
globalmente por supérflua e prejudicial. Para que exisre?- neo da filosofia e estão condicionadas pelo efeito que pre-
dizem. Não resiste à prova da desgraça! tendem obter - como seja o marxismo ou o fascismo.
O pensamento eclesiástico autoritário repudiou a filo-- Estas mesmas formas de pensamenco atestam a inelurabili-
sofia autónoma, alegando que afastava de Deus, que era uma dade da filosofia. A filosofia está sempre aYsenre. , / A
sedução profana e corrompia a alma com futilidades. O pen- Não pode lutar para se impor, não pode demonstrar-
samento rolftico totalitário apresentou outra objccção: os -se, mas pode comunicar-se. Não opõe resistência quando
filósofos reriam apenas interpretado o mundo de diversos é repudiada, não triunfa quando é atendida. Vive equâ-
modos, o que urgia era transformá-lo. Para ambas estas for- nime no fundo de humanidade que permite que todos se
mas de pensamcnro se afigurava perigosa a filosofia, porque liguem com todos. Há dois milénios e meio que se elabora
dissolvia a ordem, fomentava o espírito de independência e, no Ocidente, n a China e na Índia uma filosofia sistemática
concomiranremence, o da insurreição e da revolta, ludi- e de esrrumras alran1ente complexas. Uma grande tradição
briando os homens e desviando-os da sua missão real. Tanto apela para nós. A multiplicidade dos modos de filosofar, as
a força de atracção de um além-terreno iluminado pelo Deus contradições e as prcrcnsõcs à verdade que reciprocamente
da Revelação como a força açambarcadora de um mundo se excluem não logram impedir que haja no fundo uma
sem Deus pretendem aniquilar a filosofia. unidade, que ninguém possui, mas em torno da qual gravi-
Acresce ainda a simples norma de utilidade prÕvc- taram sempre todos os esforços dignos de consideração: a
niente da vida quotidiana, do bom senso equilibrado, eterna filosofia una, a philosophia peremzis. Estamos aridos
perante o qual a filosofia claudica. Já Tales, considerado o a este fundamento histórico do nosso pensamento se qui-
primeiro filósofo grego, fora alvo do riso da sua serva que o sermos meditar no que é essencial com a mais lúcida cons-
viu cair no poço quando observava o firmamento. Porque ciência.
procuraria o mais discante, quando se mostrava rão desajei-
tado em relação ao mais próximo?
A filosofia rem, pois, que justificar-se, o que é impos-
sível. Não pode justificar-se partindo de qualquer outra
coisa que a legitime pela sua utilidade. Só pode voltar-se

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