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A NATUREZA DO APRENDER E A

ARTE DO ENSINAR
Prof. Marcos Aurélio Fernandes – UnB1

Aprender é uma práxis. Práxis, mais do que fazer alguma coisa, é fazer-se a si mesmo.
Na práxis, o homem se torna obra de si mesmo, de sua própria ação, de sua própria
liberdade. O sentido da ação é a consumação. Isso quer dizer: que o homem perfaça a
si mesmo, alcançando o sumo, o máximo, de suas possibilidades de ser, que se traduzem
em possibilidades de não somente viver, mas de viver bem, de não somente conviver,
mas de conviver bem.

Ensinar também é uma práxis. Ensinar é uma ação que acontece na relação entre quem
aprende e quem ensina. Em que consiste esta ação? Não é fácil dizer. Ensinar o que é
ensinar é um grande desafio. Mas, para entender o que é ensinar é preciso compreender
o que é aprender. Afinal, o ensinar está a serviço do aprender. O professor está a serviço
do aluno. Todo o seu agir intenciona a aprendizagem do aluno. Ensinar é, então, deixar
aprender.

Nem todo aprender vem de um ensinar, pois o aprendiz de alguma coisa pode aprender
por si mesmo, sem que tenha alguém que lhe ensine. Esta aprendizagem chama-se
“descoberta”. Em todo o caso, porém, o comum é que aprendamos alguma coisa tendo
alguém que nos ensine. Precisamos uns dos outros para aprender. A aprendizagem e o
ensino são, com efeitos, exercícios de convivência, de diálogo, de mútua cooperação
entre aprendizes e mestres.

Na escola, fazermos experiência da aprendizagem que se dá pelo ensino. A escola é o


lugar de convivência em que nos ocupamos com o aprender e o ensinar. A escola, ao
menos em seu ser ideal, é o lugar em que o aluno aprende a aprender; é o lugar em que
o professor aprende a ensinar e ensina a aprender. É o lugar também em que o aluno,
aprendendo, ensina. E em que o professor, ensinando, aprende. Apesar de o aprender

1
Este texto seja dedicado a todos os colegas e as colegas com quem o autor conviveu, na Universidade
Católica de Brasília, compartilhando os desafios e as alegrias de ensinar “Introdução à Educação Superior”
(IES).

1
e ensinar ser ações das quais participam quer o professor, quer o aluno, o ofício próprio
do estudante é aprender e o ofício próprio do professor é ensinar, isto é, deixar o aluno
aprender.

O aprender tem a sua própria natureza. Nós humanos somos seres naturalmente
aprendizes. É pela aprendizagem que nos constituímos como seres humanos, ou seja, é
pela aprendizagem que nós nos tornamos aquilo que somos em nossa essência. É que,
em sua essência, o homem é um ser arrojado, quer dizer, ele está lançado no mundo
como um projeto por se realizar, por se fazer, por se construir e edificar. É a partir do
futuro, a provocação do porvir a que o projeto responde e corresponde, que o homem
vai configurando o seu presente e constituindo seu passado. Provocado pelo apelo do
futuro a se fazer, a se constituir, o homem, muito mais do que realidade, é possibilidade,
ou, se quisermos, a realidade do homem é constituída de possibilidades. A categoria de
possibilidade, aqui, no entanto, precisa ser entendida em sentido concreto – não em
sentido abstrato, lógico, como ausência de contradição. Possibilidade, concretamente
falando, significa poder-ser, ser capaz de ser, ser apto a determinar-se a partir da própria
liberdade. Possibilidade é possibilidade da liberdade. E liberdade é, ao mesmo tempo,
necessidade. Pois a liberdade se impõe ao homem como uma necessidade essencial. Por
isso, não é a liberdade que pertence ao homem, mas é o homem que pertence à
liberdade.

Aprender é uma necessidade radical da liberdade do homem. É uma necessidade livre.


Melhor: é uma necessidade que nasce de sua liberdade, que cresce com a libertação
que se dá no encontro com a verdade, e que se consuma na experiência de uma
liberdade plena, que não é apenas uma liberdade negativa, o desvencilhar-se das peias
da ignorância, mas é uma liberdade positiva: liberdade para a verdade, liberdade como
responsabilidade e compromisso com a verdade, e, igualmente, com o bem, com a
beleza, com tudo aquilo que torna o homem e o seu mundo mais humano.

O aprender tem a sua própria natureza, ou seja, a sua própria dinâmica, o seu próprio
modo de surgir, de crescer, de se firmar, de se constituir e de se consumar. O ensinar,
por sua vez, tem a sua própria arte. A arte de ensinar, porém, está a serviço da natureza
do aprender. Tomás de Aquino elucida, numa questão sobre o ensinar, esta conjunção
de natureza e arte no ensinar. Ele diz:

2
(...) a arte deve atuar do mesmo modo e valendo-se dos mesmos
meios com que atua a natureza: por exemplo, a natureza, em um
doente que padece por sofrer frio, restabelece a saúde
proporcionando-lhe aquecimento – é precisamente isso o que
deve fazer o médico: daí que a arte imite a natureza. E assim, do
mesmo modo, no ensino: o professor deve conduzir o aluno ao
conhecimento do que ele ignorava, seguindo o caminho trilhado
por alguém que chega por si mesmo à descoberta do que não
conhecia 2.

O médico, na arte de curar, que é a medicina, pode e deve aplicar remédios ou fazer
intervenções cirúrgicas, mas tudo o que ele faz é para que o corpo do doente, por si
mesmo, seguindo suas próprias vias de convalescência, se reconstitua em seu vigor e
integridade. Só em sentido secundário e acessório é que se diz que o médico produz a
saúde no doente. Na verdade, porém, o que produz a saúde no doente não é o médico,
nem são os remédios, mas é a própria natureza interior da vida, a sua força criativa, que,
se encontra seus caminhos, ou seja, as vias de realização de suas possibilidades no e
pelo corpo, restabelece-lhe a saúde, quer dizer, o vigor originário de seu ser.

Numa outra comparação, é só em sentido secundário e derivado que nós dizemos que
um agricultor produz os frutos ou os grãos que ele colhe com o seu trabalho. Na verdade,
o trabalho do agricultor seria em vão, se a terra não correspondesse ao seu trabalho, se
o céu, com sua generosidade, não derramasse a bênção do sol e da chuva sobre a terra.
É que a colheita recolhe não somente os grãos ao celeiro. Ela recolhe o trabalho do
homem, o trabalho do céu e o trabalho da terra. Quer dizer: ela recolhe a
correspondência entre estes três trabalhos. Mais ainda: ela recolhe não somente o
trabalho destes três em sua mútua correspondência, como também recolhe a
gratuidade da força criativa da vida, que, para além de todo o trabalho, por si mesma,
deixa ser, fazendo nascer, crescer e consumar, o vivente. E, de sobra, é a força criativa
da vida que torna o vivente fecundo para novos nascimentos nas sementes que ela deixa
e faz surgir na planta madura.

Assim, seguindo o exemplo da medicina e da agricultura, conforme mostrados por


Tomás de Aquino, a arte de quem ensina consiste em colaborar e ajudar que o aprender

2
Tomás de Aquino. Sobre o ensino (De Magistro). Os sete pecados capitais. São Paulo: Martins Fontes,
2004, p. 32.

3
siga os seus caminhos, os caminhos que ele seguiria por si mesmo, se a ele fossem dadas
todas as condições para se realizar plenamente, para se perfazer, para se consumar.

Entretanto, quais são os caminhos do aprender? Qual a sua dinâmica, o seu modo
essencial de acontecer, ou seja, de surgir, de crescer e de se perfazer? Quando e como
aprendemos? Quais as leis essenciais da aprendizagem? Isso é difícil de dizer. Assim
como é difícil dizer em que consiste ensinar também é difícil dizer em que consiste
aprender. Mas, talvez consigamos, aqui e agora, no limite desta reflexão, traçar alguns
traços do que seja aprender. E, a partir daí, esboçar o que seja ensinar. De fato, o
resultado será apenas um esboço3. Mas, que seja um esboço que nos faça reconhecer e
dizer: de fato, isso é aprender! De fato, isso é ensinar!

1º ) Aprender é aprender alguma coisa. A aprendizagem se dá em muitas dimensões.

O que é que aprendemos, quando aprendemos alguma coisa? Talvez aqui haja várias
dimensões em que o objeto do aprender aconteça. Uma coisa é aprender o uso de
alguma coisa. Ainda aqui são possíveis diversas situações de aprendizagem. Por
exemplo: posso aprender a usar um carro como um simples usuário que pega carona
com outrem. Posso aprender também a usar o carro como motorista. Para aprender a
dirigir um carro eu tenho que, por assim dizer, me entender com o carro e isso, enquanto
eu o dirijo. Eu tenho que, por assim dizer, desenvolver uma série de habilidades, que me
permitem, no próprio uso, ter a competência de conduzir um carro. Desta competência,
porém, faz parte não somente saber fazer um carro andar, mas também saber
locomover-me com o carro pelas vias, reconhecendo e respeitando as leis de trânsito,
etc. Este entendimento que eu desenvolvo do carro, porém, é restrito. Eu sei apenas
usar, operacionalizar o carro. Mas, se o carro estraga, eu preciso levá-lo para uma oficina
mecânica. Outros podem aprender não somente a usar um carro, mas podem também
aprender a conhecer como funciona um carro, ou podem, ainda mais, aprender como
produzir um carro. O aprender a conhecer como funciona e o aprender a conhecer como
se produz carros são níveis diversos de aprendizagem. Chamamos de “know how” este
tipo de conhecimento. Uma é aprendizagem de quem trabalha em uma oficina

3
Decisivo para traçar este esboço foi a leitura de: Rombach, Heinrich. Anthropologie des Lernens. In: Der
Lernprozess. Anthropologie, Psychologie, Biologie des Lernens. Freiburg/Basel/Wien: Willman-Institut,
1969, 3-46. Agradecimento seja feito a Ênio Paulo Giachini por uma tradução inédita do texto
disponibilizado ao autor.

4
mecânica, outra, a aprendizagem de um engenheiro automotivo, outra, ainda, a de
quem inventa novas formas de veículos, etc.

Vamos supor, porém, que alguém se interessa não somente por carros, mas que se
interesse, por exemplo, pela natureza, e pelas leis que regem os corpos em seus
movimentos no espaço-tempo, as leis da mecânica, as leis termodinâmicas e
aerodinâmicas que atuam, por exemplo, não só sobre os carros, mas também sobre
outros corpos. Mais ainda, que ele procure compreender todas as leis que regem todos
os corpos em todo o universo. E procure estudar estas leis. Ele se matricula, por
exemplo, num curso de física na universidade. Para além do imediatismo do cotidiano
ele quer aprender tudo aquilo que a física, hoje, pode ensinar a um iniciante no seu
estudo. Este aprendiz, de início, não somente se contenta com o que os professores ou
os livros ensinam, mas tem uma atitude de sadia curiosidade, quer saber sempre mais,
quer conhecer sempre mais a natureza e os seus segredos. Por fim, ele entende que não
basta receber informações que fazem parte do patrimônio desta ciência, chamada física.
Ele quer ir além, ele quer aprender a pesquisar nesta ciência. Ele não somente quer
aprender física, mas quer aprender a aprender física, quer aprender a pesquisar em
física, e ele se inicia na pesquisa. Vamos supor que, depois de concluir sua graduação,
ele faça mestrado, doutorado em física. Vamos supor que ele não se contente em ser,
então, um simples funcionário desta ciência, com todo o seu aparato empreendedor de
pesquisa. Vamos supor que ele quer radicalizar a sua busca pela verdade na física. Ele
começa a buscar a verdade por causa da própria verdade, amando-a por si mesma, para
além do útil e do inútil, do prazer e da dor, do sucesso e do fracasso. Vamos supor que
ele faça pesquisa não para melhorar o seu currículo, ganhar pontos e respeito de seus
colegas, mas por amor, por paixão à causa do conhecimento mesmo. Suponhamos que
ele, movido por esta paixão pelo conhecimento, não somente descubra coisas novas,
mas acima de tudo descubra novos modos de descobrir as coisas. Então ele se tornou,
de fato, um pesquisador, embora esteja posto diante de uma tarefa infinita, que é a
tarefa do conhecimento. Suponhamos, enfim, que este pesquisador entenda que esta
vocação à ciência lhe traga importantes responsabilidades, para com a sociedade, para
com o mundo e a terra, tendo entendido que ciência é uma possibilidade de ser, de

5
existir, do humano, e, como tudo que é humano, é carregado de responsabilidades pelo
cuidado com a vida.

Entretanto, vamos mais adiante, em nossa suposição imaginária. Suponhamos que este
cientista não somente se preocupe com o conhecimento e com a dimensão ética e
política deste conhecimento, mas também, como ser humano, comece a pensar o
sentido de tudo isso, o sentido do universo, da ciência, da existência humana, não só da
existência científica, mas da existência humana como um todo e como tal, sim, que ele
comece a interrogar o sentido de ser de tudo aquilo que é. Imaginemos que ele comece
a perceber que a mente humana está continuamente, em todo agir e conhecer, tendo
que dar sentido a tudo o que é, inclusive a ela mesma e à sua relação com o todo da
realidade, com a realidade de todo o real. Então, certamente, nosso aprendiz irá
aprender que em toda a aprendizagem estamos aprendendo a ser o que já somos, isto
é, seres humanos, estas estranhas criaturas que fazem perguntas, que buscam o sentido
das coisas, que têm de dar sentido a si mesmas, à vida e à morte, sim, ao ser e ao nada.
Assim, no fundo, o que quer que aprendamos, aprendemos para podermos ser, para
podermos ser mais e melhor aquilo que já somos: estas estranhas criaturas, chamadas
de seres humanos. Enfim, estudamos para aprender e aprendemos para aumentar as
condições de assumirmos melhor as possibilidades de ser e não ser inerentes à nossa
existência, isto é, as possibilidades de viver e morrer.

2º) Aprender é uma experiência

O que significa, aqui, “experiência”? Este conceito tem um duplo significado. Experiência
significa, primeiramente, o experimentar, o fazer experiência; segundo, aquilo que por
meio do experimentar é experimentado. Mas o experimentar e o experimentado não se
dão de modo reificado, como se fossem duas coisas da realidade natural, mas sim de
modo fáctico, histórico. E como é este modo? Resposta: a experiência tem o caráter de
uma confrontação, de um medir-se corpo a corpo, em contato pleno, com aquilo que é
experimentado, e, por outro lado, de autoafirmação das figuras do experimentado
mesmo. A experiência é mais do que mera vivência. A experiência é evento e história,

6
em que liberdade e destinação se fazem sentir como envios do mistério da gratuidade
da vida. Heidegger apresenta a seguinte caracterização do que seja “fazer experiência”.
Ele diz:

Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um
ser humano, com um deus, significa que esse algo nos atropela,
nos vem ao encontro, chega até nós, nos avassala e transforma.
“Fazer” não diz aqui de maneira alguma que nós mesmos
produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o
sentido de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao
encontro, harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele. É esse
algo que se faz, que se envia, que se articula.4

Na verdade, em última instância, nós não fazemos experiência. Talvez seja mais exato
dizer que nós sofremos experiência. Pois aquilo de que nós fazemos experiência
sobrevém a nós, nos atinge e atropela. Toca-nos. Faz-nos dar de cara e topar com ele.
Nisso, nossos olhos se abrem. Acontece a descoberta. Nós nos encontramos, então,
afeiçoados desse ou daquele modo com isso que nos atingiu. Entretanto, talvez seja
melhor ainda dizer que o essencial não é que nós fazemos nem que nós sofremos a
experiência, mas seja dizer que a experiência mesma se faz. O fazer-se da experiência
não é nem ativo nem passivo, não é nem mesmo reflexivo, mas é, antes, medial.
Usualmente, consideramos nas vozes de um verbo a forma como ele exprime a situação
do sujeito: se a ação é praticada pelo sujeito (voz ativa), se é recebida pelo sujeito (voz
passiva), ou se é simultaneamente praticada e sofrida pelo sujeito (voz reflexiva). O foco
desta consideração é o sujeito: se ele é o princípio, o término, ou ao mesmo tempo o
princípio e o término da ação. A ação é aqui compreendida e interpretada a partir do
horizonte do “subiectum” (sujeito: fundamento) enquanto egoidade ou ipseidade. É a
vigência da metafísica da subjetividade, que rege a nossa época moderna, que faz do
homem fundamento (subiectum) da realidade do real enquanto representador
(cogitans) e enquanto agente (agens). Nesta metafísica, que tem o homem como
agenciador de um humanismo que busca a segurança na vontade conhecimento (leia-
se, de domínio) do real, a prioridade é sempre do ativo, sobre o passivo e o reflexivo. E
o agir tem prioritariamente o sentido de fazer no sentido de efetivar, operacionalizar. E

4
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora
Universitária São Francisco, 2003, p. 120.

7
isso se dá de tal modo que tudo o que soa passivo ou reflexivo parece ao homem deste
humanismo enfraquecimento do agir, do vigor da vontade do homem que quer se pôr a
si mesmo como senhor (amo, patrão) do ente (do real). Mas este homem senhor do real
é, na verdade, apenas um servo, servo daquilo que podemos chamar de “interpelação
produtiva” 5. Esta questão toca de cheio, hoje, as instituições de ensino, seja em que
nível for:

Toda e qualquer instituição de ensino, aprendizagem e pesquisa,


na medida em que não apenas funciona correta-politicamente,
seguindo os padrões e as medidas impostas pela publicidade do
poder dominante, um dia vai ter que colocar questões que
tocam o fundo, a raiz de toda e qualquer posição fundamental
de nossas impostações disciplinares das matérias de ensino,
aprendizagem e pesquisa do saber, não em referência à
excelência e ao valor da medida e do critério que ali operam
como óbvios, mas enquanto o sentido do ser do todo que ali se
constitui como mundo estabelecido, a partir da mobilidade e da
liberdade de um toque da possibilidade de ser6.

Entretanto, em toda esta “interpelação produtiva”, em todo este afã e em toda esta
sanha de atividade, que domina os nossos tempos, cujo último produto é a sociedade
da produção em sua mais versão mais recente de sociedade do conhecimento (leia-se,
“know how”), permanece esquecido, velado, o caráter medial da experiência, e, com
este, a vigência do mistério do ser. Em vez disso, falseia-se a experiência na celebração
da vivência, tomada em sentido estético-subjetivo, para não dizer em sentido
subjetivista.

Dissemos: o fazer-se da experiência não é nem ativo nem passivo, não é nem mesmo
reflexivo, mas é, antes, medial. “Medial” remete, aqui, à palavra latina “medium”, não
tanto no sentido de meio, mas de permeio, ambiência, atmosfera. A experiência é o

5
Interpelação produtiva corresponde aproximadamente a que Heidegger chamou de “Gestell”: a
armação, a com-posição, que compreende todo o real no horizonte da funcionalidade, do sistema,
enquanto totalidade funcional, operacional, enquanto factibilidade. “Com-posição é a forção de reunião
daquele “pôr” que impõe ao homem des-cobrir o real, como dis-ponibilidade, segundo o modo da dis-
posição. Assim desafiado e provocado, o homem se acha imerso na essência da com-posição” (Heidegger,
Ensaios e Conferências, 2001, p. 27).
6
Harada, Hermógenes. De estudo, anotações obsoletas: a busca da identidade humana e franciscana.
Petrópolis: Vozes / Bragança Paulista: Universidade São Francisco (Instituto Franciscano de Antropologia)
/ Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura, 2009, p. 231-232.

8
permeio de tudo o que fazemos, sofremos e refletimos. É ela que, como vigência e
presença do ser (da vida) dá o tom e a pregnância a toda ação, paixão ou reflexão
humana. Experimentar – o fazer-se da experiência – é, pois, um verbo medial: um evento
do ser (da vida), um acontecer da potência que se dá e se retrai em todas as
possibilidades de ser do homem como “força criativa da vida”, ou melhor, como
potência do ser que, por nada ser deste ou daquele ente, pode ser chamada também de
potência do nada.

O ser sopra sob mil e mil tonalidades em todos os verbos do


nosso falar, seja na voz ativa, na passiva, na reflexiva. E assim,
em suma, ser é a ação de fundo, a ação onipresente em todas as
atuações de todas as nossas ações e não ações (...). E o que os
antigos denominavam de medial, que hoje defasado, restou
como voz reflexiva do verbo, não seria propriamente o modo da
possibilidade de ser que é o originário, elementar e primeiro de
todas as ações, paixões, recepções e reações reflexivas,
portanto, a potência, a possibilidade dada de antemão, a priori,
como entoação do nada, onipresente, retraído no pudor e na
continência da plena liberdade de sua jovialidade? Antes de e
em todas as possíveis e atuais variantes de entidades, silencioso,
modesto e discreto é o nada, antes e depois, dentro e fora do ser
e nada, de tudo e nada, em sendo o constante sustento da
ocorrência do simplesmente dado, de tal modo simples que se
é, antes e sem precisar dizer que ser e pensar é o mesmo7.

O ocidente moderno esqueceu-se da experiência, assim como esqueceu-se do ser, que,


nesta conjuntura epocal, só pode mesmo se dar como “nada”. É que toda experiência
acontece como potência do ser mesmo, da força criativa da vida humana, chamada
existência. Esqueceu-se do ser, que nada é daquilo que é, do ente. Esqueceu-se, pois,
do nada. O niilismo que se expande sobre a face da terra desde o ocidente como uma
imensa desertificação do espírito, uma imensa desolação e um imenso abandono do ser,
da vida, se dá como uma promoção do nada negativo sob a sanha da dominação de
tudo, mas esta promoção do nada negativo, do nada que nadifica tudo, não é outra coisa
do que a ressonância do esquecimento do nada criativo, do nada originário, o nada da
liberdade e da jovialidade de ser.

7
Harada, Hermógenes. De estudo, anotações obsoletas: a busca da identidade humana e franciscana.
Petrópolis: Vozes / Bragança Paulista: Universidade São Francisco (Instituto Franciscano de Antropologia)
/ Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura, 2009, p. 233-234 (negrito do autor).

9
Caso o homem, no aprender, experimente o vigor de ser, ou melhor, o vigor de nada
que funda a sua existência, então a sua aprendizagem se torna transformação. A
experiência é o medium no qual nós vamos sendo transformados, quer em fazendo quer
em sofrendo. Essa transformação, no entanto, é uma transformação que acontece num
caminho, na destinação de uma história, na travessia do viver. No caminho da
experiência, nós oscilamos, tomados pelo frêmito de viver, nós nos afinamos e
desafinamos com a entoação do nada, do mistério do ser, da força criativa da vida.
Entretanto, esta oscilação, que parece como fraqueza, frente a todo o poder dominante,
como pequenez, frente o gigantismo dos espetáculos desse poder, é na verdade ternura.
Mas apesar de sua aparente impotência, a fraqueza da ternura de viver é mais potente
do que toda prepotência do poder dominante, que é maquinal, sem espírito, sem
coração.

3º ) Aprender é uma experiência de apreender o sentido das coisas.

Aprender é apreender. Aprender não é apenas “assimilar uma informação”. É muito


mais. É apreender um sentido naquilo que se vive como experiência. É ler e recolher um
sentido que ilumina, que clareia, os significados daquilo que encontramos no mundo da
vida, nos nossos encontros e/ou desencontros com os outros, daquilo que encontramos
no mundo próprio, ou seja, no mundo que cada um é para si mesmo. Apreender é
inteligir: é colher o sentido que está nas linhas e entrelinhas dos textos do mundo da
vida. É, em inteligindo, alargar, ampliar, aprofundar e elevar a própria visão da vida. É ir
fazendo a experiência de uma verdade que nos torna, a nós humanos, mais livres e,
enfim, mais humanos.

4º) Aprender é apreender e compreender o princípio de alguma coisa.

Assim escreve Tomás de Aquino:

o processo pelo qual a razão chega ao conhecimento mediante


a descoberta de coisas desconhecidas consiste em aplicar
princípios gerais evidentes a determinadas matérias e daí chegar

10
a algumas conclusões particulares, e destas, por sua vez, chegar
a outras etc. 8

O conhecimento das coisas em nós não se realiza pelo


conhecimento de sinais, mas por conhecimentos mais certos: o
dos princípios que são propostos e aplicam-se a algo que antes
era por nós ignorado em termos absolutos, ainda que não
relativamente: pois é o conhecimento dos princípios ( e não o
conhecimento de sinais) que produz em nós o conhecimento das
conclusões 9.

Hoje costumamos pensar que aprender é assimilar informações, é apoderar-se de sinais.


Mas, como Tomás de Aquino diz, aprender não é conhecer sinais, mas apreender
significados, articular sentidos. Tudo isso, porém, partindo de princípios. Em toda a
aprendizagem é, com efeito, decisivo se o homem é capaz de apreender os princípios da
disciplina que ele está aprendendo. A aprendizagem só acontece à medida que se
instaura e se articula uma diferença entre princípio e consequência, entre fundamento e
fundamentado. Ela é uma captação dos princípios gerais evidentes que regem o real em
questão e que são tomados como princípios ou axiomas por esta ou aquela ciência ou
disciplina. Aprender a conhecer alguma coisa é, por conseguinte, aprender a sondar os
seus fundamentos, os seus princípios, as suas causas primeiras. Se a aprendizagem é de
um saber dedutivo, há que se descender dos princípios aos corolários. Se a
aprendizagem é de um saber indutivo, há que se saber ascender do conhecimento dos
fatos para o conhecimento das leis que regem estes fatos.

5º) Aprender é apreender e compreender o fenômeno singular no seu contexto de


sentido mais amplo.

O conhecimento só se torna saber quando o que se conhece é contextualizado em seus


nexos conjunturais de sentido. Por exemplo, aprender a contar ainda não é saber
matemática. A matemática é um contexto de sentido mais amplo, onde o aprender a

8
Tomás de Aquino. Sobre o ensino (De Magistro). Os sete pecados capitais. São Paulo: Martins Fontes,
2004, p. 32.
9
Tomás de Aquino. Sobre o ensino (De Magistro). Os sete pecados capitais. São Paulo: Martins Fontes,
2004, p. 34.

11
contar se insere. O aprendiz não somente deve conseguir desenvolver certas habilidades
pertinentes a operações matemáticas, mas precisa ir se familiarizando com os diversos
âmbitos dessa disciplina ou ciência chamada matemática. Toda aprendizagem
pressupõe este processo de familiarização, o que só acontece à medida que se dá uma
longa convivência com aquilo que se há de aprender, com a “disciplina” em questão.
Neste sentido, a aprendizagem não pode ser de uma habilidade ou competência isolada
no interior de uma disciplina, mas da disciplina mesma como uma totalidade de sentidos
bem articulados.

6º) Aprender é apreender um caso na sua forma típica e conseguir intuir essa mesma
forma típica também em outros casos similares.

A aprendizagem realiza, assim, uma capacidade de transpor uma mesma forma típica
para outros casos. A aprendizagem, por isso, é muito mais do que repetição e
reprodução do que se assimilou. Ela supõe uma capacidade de ver uma realidade à luz
de sua possibilidade essencial e típica, e de intuir essa possibilidade também na
realização de outras realidades. É preciso que o olhar da mente não se detenha no que
se dá empiricamente, nos fatos, mas seja capaz de, nos fatos e com os fatos, intuir o
“eidos”, a forma típica de ser, que ali se anuncia. É o propósito do que Husserl chamou
de “intuição eidética”. Assim, no ensino e na aprendizagem, os fatos são apenas
exemplos, para que o aprendiz possa apreender o exemplar, a forma de ser, o “eidos”
ou “idea”, que ali se anuncia. É que todo fato é sempre feito (factum). E tudo aquilo que
se torna fato no mundo das observações empíricas traz em si as marcas de uma forma
fenomenal típica (eidos / species: espécie) e de sua proveniência ontológica (genos /
genus: gênero). Aprender é, pois, saber diferenciar, não somente entre fatos e fatos,
mas também entre formas e formas (espécies), entre proveniências e proveniências
(gêneros). É o sentido do método dialético platônico, que é, no fundo, um método
genealógico.

Genealogia é um procedimento de triagem, onde se discrimina


os processos de diferenciação que, em diversos modos de
realizações e de relacionamentos, a existência de cada pessoa

12
oferece. Não se trata de triar a coisa já constituída e pronta, a
situação, já montada ou o indivíduo já realizado, em
determinado grau de exercício e cumprimento de sua
individualidade. Trata-se de discriminar um processo dentro do
qual, e a partir do qual se instalaram essas diferenças, se
constituíram os dados e as coordenadas de uma situação.
Genealogia é, portanto, um método de triagem no modo de ser,
onde se faz aparecer na totalidade totalizante de um fenômeno
o seu movimento de ser, a sua dinâmica de constituição.
Constituição do que o fenômeno está sendo, isto é, da maneira
em que ele está sendo o que está sendo10.

Aprender significa, então, se tornar capaz de remontar dos fatos aos processos
gerativos, do real às realizações, em suas formas típicas, e em suas origens, das formas
formadas às formas geradoras.

7º) Aprender é o processo de abertura de um âmbito de conhecimento.

Mera transmissão de informações ou o mero adestramento de habilidades não constitui


aprendizagem. A aprendizagem se constitui quando a apreensão do fenômeno em suas
conexões e contextos vai abrindo o âmbito do conhecimento no qual ele se insere (o
contexto da disciplina e de sua articulação com a totalidade do saber, ou melhor, com o
saber da totalidade). O “sentimento” de que está se descortinando todo um mundo de
conhecimento acompanha a experiência dessa abertura. A falta de abertura se traduz
no “sentimento” de que a aprendizagem está indo a duras penas ou simplesmente não
está deslanchando e de que o ensino está enfadonho e monótono.

8º) Aprender é sustentar na consciência a tensão entre expectativa e satisfação como


uma tensão criativa.

Uma vez que a aprendizagem traz consigo a apreensão de princípios e a abertura de


âmbitos e horizontes de conhecimento, cria-se toda uma expectativa de se poder
apreender diversas possibilidades e de reconhecê-las nos fatos e casos singulares.
Aprender é saber reconhecer, é ser capaz de identificar princípios, leis, estruturações e
possibilidades na dimensão dos fatos, da experiência, das conjunturas e das realidades.

10
Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega: Uma Introdução. Teresópolis-RJ: Daimon, 2010, p. 211.

13
Quando esse reconhecimento acontece se dá a satisfação. Quando ela não acontece, se
dá o desestímulo. A expectativa gera atenção. O ser posto diante do desafio do
reconhecimento e o conseguir cumprir esse desafio geram motivação.

9º) Outras características, sejam aqui apenas acenadas:

a) Aprendizagem se dá por meio do estranhamento: sem que o homem estranhe o


mundo da vida na sua familiaridade cotidiana tida pelo senso comum como óbvio
não se dá aprendizagem. É preciso desanuviar o olhar da mente que olha tudo
como se tudo já tivesse visto. A admiração em face do óbvio é o “páthos”
filosófico de toda a aprendizagem.
b) Aprendizagem é autogeração do saber: saber não é mera posse de
conhecimento. Saber é resguardar a verdade, isto é, é manter-se vigilante,
atento ao cuidado pelo descobrimento do mundo e pela abertura da existência
humana como tal e no seu todo.
c) Aprendizagem provoca aprendizagem: nisso está a sua fecundidade. Quanto
mais aprendemos e vamos sentindo o gosto de aprender, mais queremos
aprender. A aprendizagem é uma fome e uma sede que nunca se satura, que
nunca se enfastia. Por isso, pode-se dizer que a autêntica motivação do aprender
só pode ser procurada e encontrada no próprio processo do aprender: aprender
a aprender e gostar de aprender.
d) A aprendizagem implica um processo de “retorno” ou de “retroalimentação”.
Não se trata, aqui, de um processo mecânico, sistemático, funcional. Trata-se,
antes, de um processo de vida humana, que, a partir da liberdade, vai se
constituindo como história. O aprendiz vai atingindo patamares e incorporando
a si mesmo o saber de cada patamar. Com a incorporação, o saber é encarnado,
isto é, ele passa a integrar a própria vida do aprendiz, a ser integrante do seu
medium, isto é, da sua ambiência de vida.
e) Aprendizagem se dá como realização. Mais importante do que o conteúdo que
se aprende, é como o homem se relaciona com este conteúdo e, acima de tudo,
como ele perfaz este relacionamento, e, em o fazendo, se perfaz a si mesmo,
deixando-se conduzir, pela ação de aprender, ao sumo do seu poder-ser.

14
A partir do que dissemos sobre o que é aprender, cabe-nos agora dizer, em poucos e
essenciais traços, o que é ensinar.

Ensinar não é transmitir informação, nem conhecimento, nem saber, nem sabedoria. Se
aprender não é assimilar uma informação, então ensinar também não é transmitir
informação. Por outro lado, conhecimento não se transmite. Conhecimento se constrói.
Ensinar um conhecimento não é transmitir informação. Mas é ajudar o aprendiz a
tornar-se apto a construir, ele mesmo, por si mesmo e em diálogo com os outros, o
conhecimento. A construção do conhecimento se dá à medida que existe pesquisa,
investigação, indagação, motivadas pelo desejo que querer saber. Neste sentido,
ensinar é convidar e provocar o aprendiz a entrar no movimento da busca, da pesquisa,
da investigação, da indagação. Tudo o que o professor diz, são apenas indicações,
acenos, evocações e provocações, para que o aluno entre na via da pesquisa, faça a
viajem da investigação, experimente as vicissitudes da indagação, questionando e
deixando-se questionar, na busca de inteligir o sentido das coisas, os significados do
mundo, de aprender a ler o sentido da vida.

Ensinar é, antes de tudo, estar em relação com o aluno, em vista de sua aprendizagem.
Ensinar é, por meio da linguagem, interpelar o aluno numa situação, que é a da relação
pedagógica. A relação se torna verdadeiramente pedagógica quando deixa de ser uma
relação sujeito-objeto, ou uma relação eu-isso, na forma, por exemplo, de um contrato
entre um pagador e um prestador de serviço, para ser uma relação eu-tu, ou melhor,
uma relação tu-tu. O outro se torna um ‘tu’ para mim somente quando cessa a simples
relação sujeito-objeto. O primeiro passo rumo ao ‘tu’ é aquele que ‘retira as mãos’ do
outro e lhe deixa livre o espaço para a sua liberdade e responsabilidade de ser. Eu
consinto ao outro que se torne um tu para mim quando abro mão do interesse de usar
o outro, de usar do outro. A verdadeira relação eu-tu acontece, portanto, quando eu
renuncio a possuir e a dominar o outro, quando eu me relaciono com o outro a partir da
gratuidade.

O que caracteriza a relação de tu a tu é que ela é um encontro de liberdades. De cara,


ela deve ter renunciado a toda pretensão de onipotência e de domínio sobre o outro. É
que, em toda relação, nós podemos dar uns aos outros muitas coisas, mas não podemos
dar ao outro a disposição de receber. Na relação de dar e receber, cada qual deve já

15
sempre receber do outro a possibilidade de dar, pois cada um que recebe, dá, antes de
tudo, a possibilidade de receber. E isso ele o faz a partir de sua mais própria liberdade.
No fundo, não se pode ensinar ninguém a ser o que ele é, só se pode é ajudá-lo a partejar
a sua mais plena e originária identidade, como uma parteira faz com uma parturiente.
No ofício de ser, ninguém é “mestre” de ninguém como recordava Sócrates. Não há
mestres, apenas discípulos que se tornam mais experientes na aprendizagem do sentido
da vida. Os discípulos mais experientes são aqueles que, ensinando, estão sempre
prontos a aprender com o que, de repente, lhes sobrevém, emergindo do fundo do
mistério da vida. Sendo nessa disponibilidade para a verdade, os discípulos mais
experientes só podem mesmo confessar e testemunhar aos outros discípulos o seu
entusiasmo pelo aprender. Quiçá, dando-se de cara com o entusiasmo de aprender, por
parte de quem ensina, o discípulo menos experiente deixe acender em si a chama, a
centelha da verdade que ele traz em si mesmo.

Ninguém pode realizar pelo outro a sua humanização. Nesse caso, é impossível qualquer
esforço de substituir o outro no empenho de sua liberdade, ou seja, no empenho da
necessidade de “ter que ser”. O caminho de cada homem é único, exclusivo, irrepetível.
Nasce da in-finita criatividade da vida. Por isso, cada um só pode mesmo caminhar o seu
caminho. Só quem caminha o seu caminho pode ajudar outros a encontrarem o seu
próprio caminho e a segui-lo, em meio a todas as vicissitudes de sua destinação. O
verdadeiro cuidado de mim mesmo me dispõe para o cuidado do outro. Só posso cuidar
do outro se não o substituo em seu próprio cuidado, mas, pelo contrário, se me
empenho em ajudar o outro a assumir, por si mesmo, o seu próprio cuidado. Esse ajudar
tem o sentido de uma antecipação solícita. Essa, por sua vez, acontece quando eu velo
de tal modo pelo outro, que procuro, de antemão, ser para o outro um precursor, isto
é, alguém que lhe prepara os caminhos.

Nesse sentido, a relação de quem ensina e de quem aprende, é, de lá para cá e de cá


para lá, um aproximar-se do outro, um deixar-se-interessar-por-ele, um ser-interpelado-
pelo-outro, um interpelá-lo, um ser solicitado e um solicitar, um responder e
corresponder ao apelo do outro. O educador é, então, aquele que está próximo, para
poder testemunhar o ressoar daquela voz, que ecoa já sempre dentro de cada ser
humano, dizendo-lhe: “vem a ser o que tu és”. Por isso, o fazer pedagógico não é

16
nenhum fazer. É, antes, um deixar-ser. O educador não pode libertar o outro. Ele só pode
mesmo ajudar o outro a caminhar o seu próprio caminho de libertação para a liberdade
que vem da verdade. Educar é o cuidado de tomar em consideração o outro no envio de
sua possibilidade mais própria. É o cuidado de aproximar-se-do-outro, de deixar-se-
interessar-por ele. Supõe a disposição de se deixar interpelar pelo outro e de interpela-
lo, em vista do seu poder-ser, de sua possibilidade mais própria. Tal pedagogia não se
baseia no fazer, no sentido do intervir, mas no agir todo próprio, chamado, no oriente,
de não-ação (wu wei). Este agir não intervém, não calcula, não domina o outro como um
objeto. Ele somente acompanha, segue, “persegue”, o outro, no seu caminho para se
tornar si próprio, pois “vem a ser o que tu és” é o princípio de individuação na educação.
Esta pedagogia apenas segue o movimento da vida mesma, que continuamente
empurra o ser humano para a “originalidade” da singularidade, ou seja, para a
originariedade de seu próprio. Ela apenas testemunha o nascimento do absoluto na
limitação da finitude humana. Testemunha que educação é a autogênese do humano, a
qual só acontece através do despertar para a coragem de ser, de ser na singularidade,
de ser no poder-ser mais próprio e originário da existência.

A relação pedagógica do deixar-ser, não é um fazer, no sentido de intervir. É, antes, o


que os orientais chamam de “não agir”. A não-ação consiste em deixar-ser. Entretanto,
assim como a não-ação não é inação; também o deixar-ser não é omitir-se e negligenciar
o cuidado de alguma coisa. Pelo contrário, a não-ação é a origem e a consumação da
ação e o deixar-ser é a origem e a consumação do cuidado. E, de toda ação, a ação que
por excelência deixa-ser é o pensar. Entretanto, o que é que o deixar-ser do
pensamento deixa ser? Resposta: deixa ser o ser e o nada, ou melhor, deixa ser a
serenidade de fundo do mistério fontal da gratuidade, que recolhe e dispõe, a partir dela
mesma, o ser e o nada, o desvelamento e o velamento, o claro e o escuro, de tudo
quanto é e não é. Costuma-se pensar que a ética seja a ciência filosófica da ação.
Entretanto, o agir segue o ser, como dizia já um adágio da filosofia medieval (agere
sequitur esse). A ética, mais do que ciência da ação, é o saber do ser, ou melhor, daquela
dimensão originária do ser, que é o silêncio. A serenidade, o silêncio, o vazio, a quietude,
da não-ação é a medida do céu e da terra. Medida sem medida, pois é medida que mede
tudo. É somente em comparação com esta medida que podemos avaliar a grandeza ou

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a pequenez de nossas ações. Os antigos pensavam que o mais forte é o que abraça tudo
com a sua suavidade. Pensavam que o que move tudo é ele mesmo imóvel, quieto.
Afinal, como pode algo mover se não estiver ele mesmo firme, estável, assentado? A
ação vem da não-ação. A propósito da não-ação, diz Chuang-Tzu, um dos maiores
pensadores do Tao (caminho):

A não-ação do sábio não é a inação. Não é estudada. Coisa


alguma a abala. O sábio é quieto porque não se altera. Não
porque ele queira ser quieto. A água parada é como o espelho,
você pode olhar nela e ver os pelos em seu queixo. Sua superfície
é perfeitamente plana. Um carpinteiro podia usá-lo. Se a água é
tão clara, e sua superfície plana, quanto mais o espírito do
homem? O coração do sábio está tranquilo. É o espelho do céu
e da terra. O espelho de tudo. É vazio, quieto, é tranquilo, é sem-
sabor. O silêncio, a não-ação: esta é a medida do céu e da terra.
Este é o perfeito Tao. Os sábios encontraram aqui seu lugar de
repouso. Repousando, estão vazios. Do vazio vem o não-
condicionado. Daí, o condicionado, as coisas individuais. Assim,
do vazio do sábio surge a quietude: da quietude, a ação. Da ação,
a realização. Pois a quietude é alegria. A alegria é isenta de
preocupações. Fértil por muitos anos. A alegria faz tudo
despreocupadamente: porque o vazio, o quieto, o tranquilo, o
silêncio e a não-ação: eis a raiz de todas as coisas11.

A serenidade é a medida do céu e da terra. E na serenidade há uma alegria contida. Uma


alegria que se dá, mas que se dá de modo contido, como que se retraindo. A terra é o
que, como mãe, abriga ou alberga tudo o que nela cresce e aparece. Inclusive o ser
humano e o seu mundo. Sua presença é inaparente. Tanto é que nós, os humanos de
hoje, vivemos apenas preocupados conosco mesmos e com o nosso mundo, na
pretensão de, por meio do domínio totalitário da verdade da técnica, ou seja, de, por
meio do pensamento que calcula e controla, podermos prescindir da terra. É que, nós,
os humanos de hoje, pautamos todas as nossas relações a partir da utilidade, do poder,
do controle. Estamos sempre muito ocupados e preocupados com o controle de tudo e
de todos, com o controle de nós mesmos, daquilo que sabemos ou não sabemos,
podemos ou não podemos, temos ou não temos, somos ou não somos. Tão
preocupados estamos com o controle que inventamos cada vez mais meios de controlar
o nosso controle, aumentando ao máximo o nosso desempenho na busca da certeza e

11
Merton, Thomas. A via de Chuang-Tzu (10ª ed.). Petrópolis: Vozes, 2002, p. 125-126.

18
da segurança em todos os processos e recursos com que lidamos. Esta compreensão da
verdade como certeza e segurança, esta busca do controle de todo o controle, nos põe
na civilização da cibernética. Cibernética é o controle do controle, por meio do controle
do conhecimento reduzido a “know how” e da linguagem reduzida a “informação”.
Vivendo, ensinando e aprendendo neste mundo tecnológico, informático, mais do que
nunca é preciso superar a sua unilateralidade e a sua unidimensionalidade, deixando
que nossos alunos conheçam outras dimensões do conhecimento, da linguagem e do
pensamento, percorrendo outras vias de realização humana: a da arte e da poesia, a do
pensamento e da filosofia, por exemplo.

Ensinar e aprender quer dizer movimentar-se, pôr-se sempre de novo a caminho, nas
viagens da experiência, com os outros, percorrendo as vias da linguagem e instaurando
mundos. Nos caminhos da linguagem, o ensinar se torna interpelação. Como se dá,
porém, a linguagem, nesta relação de interpelação? Interpelar é, aqui, antes de tudo,
evocar. Evocar é aproximar. Ao evocar, o professor, traz a coisa para a proximidade da
palavra. O que era distante é chamado para a proximidade. O que era estranho é
chamado para a familiaridade. O professor apresenta o que se há de aprender ao aluno,
para que o aluno entre em relação com aquilo, se entenda com aquilo, deixe que aquilo
entre no horizonte de sua experiência e reflexão, e, de algo estranho que era, se lhe
torne familiar, íntimo.

Em segundo lugar, no ensino, interpelar é convocar. O professor convoca o aluno para


buscar por si mesmo a verdade; para perceber que a potencialidade ativa de
compreender o sentido e os princípios das coisas já está presente nele, mas precisam
ser despertadas, assumidas, cultivadas pelo próprio aluno. Convoca-o desenvolver o seu
potencial de busca, de compreensão, de indagação, de investigação.

Em terceiro lugar, interpelar é provocar. Provocar é desafiar, é chamar para fora, é


eduzir aquelas potencialidades para que possam se tornar realidades. A essas
potencialidades Tomás de Aquino chama de "razões seminais”:

No aluno, o conhecimento já existia mas não em ato perfeito, e


sim como que em “razões seminais”, no sentido que as
concepções universais, inscritas em nós, são como que sementes
de todos os conhecimentos posteriores. Ora, se bem que essas
razões seminais. Ora, se bem que essas razões seminais não se

19
transformem em ato por uma virtude criada como se fossem
infusas por uma virtude criada, no entanto essa sua
potencialidade pode ser conduzida ao ato pela ação de uma
virtude criada. O professor infunde conhecimento no aluno não
no sentido – numérico – de que o mesmo conhecimento que
está no mestre passe para o aluno, mas porque neste, pelo
ensino, se produz passando de potência para ato um
conhecimento semelhante ao que há no mestre 12.

No ensino, a linguagem é muito mais alusiva do que ostensiva e denotativa. Ela tem
apenas um valor alusivo: ela serve para evocar, convocar, provocar. O professor só pode
mesmo indicar, dar dicas, acenos, de como o aluno pode aprender a conhecer melhor
aquilo que ele quer aprender. A palavra do professor serve somente para evocar e
provocar o aluno a buscar, por si próprio, as coisas mesmas na sua evidência.

Engana-se, quem pensa que a aparente transmissão de informações (palavras-sinais) dá


conhecimento. O conhecimento vem da intuição: ou da experiência direta da coisa
mesma por meio da percepção, no caso das coisas sensíveis, ou da intuição direta que
acontece por graça da iluminação, no caso do inteligível. A função da linguagem na
comunicação didática, portanto, é de “admonitio”: de admoestação, um solicitar o outro
para a busca do saber: “É uma raciocínio veríssimo e com absoluta verdade se pode dizer
que quando pronunciamos palavras, ou sabemos o que significam ou não o sabemos: se
o sabemos, então recordamos e não aprendemos; se não o sabemos, nem mesmo
recordamos, mas talvez somos solicitados a buscar”, disse Agostinho no “De magistro”
(Do Mestre)13. O mestre pode apenas aludir à coisa, evocando-a, e, ao mesmo tempo,
advertindo e admoestando o aluno para buscar a sua evidência por meio da intuição da
percepção direta ou por meio da iluminação interior da mente. Com outras palavras,
nenhum mestre humano pode fazer o outro ver, ele só pode provocar, convidar e
advertir o seu aluno para que se ponha em busca da verdade e procure alcançar a
evidência daquilo que se há de ver. Ensinar, portanto, não é inculcar. Ensinar é pro-vocar
para a apropriação autônoma do conhecimento e do pensamento. O saber autêntico é
aquele que é incorporado autonomamente. O ensino genuíno não é transmissão de

12
Tomás de Aquino. Sobre o ensino (De Magistro). Os sete pecados capitais. São Paulo: Martins Fontes,
2004, p. 34-35.
13
Agostino. Il Maestro e la parola: il maestro, la dialettica, la rettorica, la grammatica. Milano: Bompiani,
2010, p. 155.

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conhecimento, mas é provocação de um saber (comunicação indireta, como nomeava
Kierkegaard).

Ensinar é tarefa do aprender. Só pode ensinar quem continuamente aprende a


aprender. Não só. Quem também continuamente aprende a deixar-aprender. O deixar-
aprender é o modo livre e libertador de fundar o relacionamento entre quem ensina e
quem aprende. Só pode ensinar quem se faz companheiro do aprendiz, considerando-
se a si mesmo um eterno aprendiz que, quanto mais aprende, mais se torna um iniciante
na aprendizagem do mistério da vida. Pois a experiência da vida é o horizonte de toda
aprendizagem. Dela emerge a aprendizagem, nela se dá, para ela retorna. Todo
aprender ou é para a vida ou não é aprender. A vida é quem ensina. Em face dela todos
nós somos sempre discípulos e condiscípulos. Sempre. Enquanto vivemos. Até o último
respiro. Ensinar é um fazer que consiste em deixar-ser. Deixar-ser o que? Resposta:
deixar-ser a dinâmica medial do aprender. O verbo “deixar” aqui não significa uma
omissão, pelo contrário, significa uma solicitude que está aquém de toda atitude
intervencionista e invasiva, ou seja, positivamente falando, um cuidado para que a ação
– no caso, a ação do aprender – se desenvolva segundo a força criativa da vida, que
acontece segundo suas próprias leis e segundo sua dinâmica própria. O “deixar” tem,
então, aqui, o sentido de uma ação con-criativa, ou seja, criativa com a própria
criatividade da vida, que age, tanto em quem aprende como em quem ensina. Como,
porém, para os vivos viver é ser, então o deixar aprender é deixar (a vida) viver (em nós
e entre nós), o qual é, em última instância, deixar ser: deixar ser o ser.

OBRAS CITADAS

Agostinho. Il Maestro e la parola: il maestro, la dialettica, la rettorica, la grammatica.


Milano: Bompiani, 2010.

Aquino, Tomás de. Sobre o ensino (De Magistro). Os sete pecados capitais. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.

Harada., Hermógenes. De estudo, anotações obsoletas: a busca da identidade humana


e franciscana. . Petrópolis / Bragança Paulista / Curitiba: Vozes / Universidade

21
São Francisco (Instituto Franciscano de Antropologia) / Instituto de Filosofia São
Boaventura, 2009.

Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003.

—. Ensaios e conferências. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001.

Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega - uma introdução. Teresópolis-RJ: Daimon,


2010.

Merton, Thomas. A Via de Chuang Tzu. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002.

Rombach, Heinrich. “Anthropologie des Lernens.” In: Der Lernprozess. Anthropologie,


Psychologie, Biologie des Lernens. , por Heinrich Rombach, 3-46.
Freiburg/Basel/Wien: : Willman-Institut, 1969.

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