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CONFERÊNCIA
O QUE É
MESMO EDUCAÇÃO?*

Marcos Aurélio Fernandes**

O que é mesmo educação? Essa pergunta busca o ‘ser’ da educação.


Ela quer entrar em um relacionamento ‘verdadeiro’ com a educa-
ção, ou seja, em um relacionamento que ‘deixa ser’ a educação no que
ela tem de mais próprio e essencial.
Essa pergunta não pode ser respondida por meio de uma infor-
mação. Nem pode ser obtida por meio de uma pesquisa. Nem pode ser
esclarecida mediante um diálogo. Ela não tem nenhuma resposta que
venha de fora dela mesma e a ela se acrescente. Não: por ser uma per-
gunta essencial, sua resposta é o próprio desdobrar da pergunta. E esse
desdobrar se dá como o acontecer de uma decisão. Decisão, aqui, não
é escolha entre isso ou aquilo. Decisão é de-cisão: o desprendimento
da liberdade, no qual a nossa existência se abre para deixar-ser o vi-
gor da educação, em si e no outro e em todo o nosso ser-com-o-outro.
Decisão é o maturar de uma existência.
Se a pergunta pelo ser da educação for colocada de tal modo que,
nesse perguntar, nós não fiquemos de fora da pergunta, mas sejamos
incluídos nela, sim, questionados nela, e se esse perguntar mesmo se
tornar uma experiência de busca e de maturação da nossa existência,
então, quiçá, se dê, de modo curioso, uma repercussão do perguntado
na própria pergunta. Isso quer dizer: pode ser que a própria pergunta
pelo ser da educação nos eduque a nós, os que perguntamos. Então a
pergunta: “o que é mesmo educação?” deixa de ser somente uma per-
gunta ‘sobre’ a educação para ser também e antes de tudo uma pergunta
‘da’ educação ela mesma, uma sua interpelação a nós, os que, avisada
ou desavisadamente, se meteram com ela.
Pode ser que a pergunta pelo ser da educação mesma nos eduque.
Somos nós, os humanos, os que perguntam e os que, no perguntar, são
educados. Isso logo nos faz entrever que educação e ser humano têm
tudo a ver um com o outro. Com efeito, a educação sempre acontece, ali
onde acontece o ser humano. A princípio, podemos até mesmo arriscar
a tese: que, na sua raiz ontológica, a educação é o próprio acontecer do
ser humano como ser humano.

II

No universo, não acontece somente o devir em que as coisas se


alteram, isto é, se transformam em outras coisas. Num nível talvez ain-
da mais originário, acontece também o mais ordinário e o mais extraor-
dinário, o mais simples e o mais maravilhoso devir, em que os entes se
essencializam, ou seja, se tornam, sempre de novo, o que são, realizan-
do sua identidade no ser. Assim, a terra a todo o momento está se tor-
nando terra; a água, água; o ar, ar; o fogo, fogo; as estrelas, estrelas; as
plantas, plantas; os animais, animais. O homem, homem.

O Senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito do mundo é


isto: que as pessoas não estão sempre iguais, não foram termi-
nadas – mas que elas vão sempre mudando.
É o que a vida me ensinou. Isso me alegra... (GUIMARÃES
ROSA, 1986).

Não é somente cada homem individual, na sua singularidade, que


está sempre mudando e que nunca fica terminado. A essência humana
ela mesma, na sua universalidade, está sempre mudando, se configu-
rando sempre de novo na singularidade de cada época, de cada cultura,
de cada povo, de cada comunidade, de cada indivíduo-pessoa. A identi-
dade humana está sempre em realização, em concreção, a caminho de
si. O homem é sempre um rascunho, um esboço, do homem. Melhor:
nisso tudo, ele é o poema apenas começado do ser1. É que ao homem
não é dado ser homem fora da situação de um kairós2. Esta necessidade
e indigência proveniente de sua temporalidade e historicidade é o
apanágio de sua existência, é, ao mesmo tempo, sua grandeza e sua
fraqueza. (Nota 2: Kairós significa tempo apropriado, medida que convém).
‘No nosso tempo, o humano sofre uma transformação radical’.
Nós somos cidadãos de dois mundos: um velho, que se esvai, e um

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novo, que ainda não se delineou claramente. No intervalo entre estes
dois mundos, nós experimentamos, neste início de milênio e de século,
o destino de termos de ser homens da passagem, à espera da irrupção,
em nós e nas gerações posteriores, do “homem humano”.
Nesse kairós, também a educação se encontra entre o exaurir de
uma tradição duas vezes e meio milenária e o advento de um outro
começo. Este hiato põe em questão não só os modelos de educação e os
paradigmas pedagógicos, mas, mais radicalmente, a própria concepção
do que seja educar. Se a educação é um ‘fenômeno constitutivo do hu-
mano’, uma vez que o homem só vem a ser humano por meio da educa-
ção, e se vivemos em uma ‘crise epocal do humano’, então não nos
resta senão nos determos neste hiato e nos perguntarmos de novo: qual
será o caminho da educação, que viabiliza o surgir do ‘homem huma-
no’, cujo apelo é para nós uma necessidade?
Vivemos um tempo em que a aceleração das transformações da
figura do ser-homem parece chegar ao paroxismo. Não são apenas os
modelos pedagógicos que se transformam. Transformam-se, hoje, as pró-
prias estruturas do ser-homem. As transformações destas estruturas produ-
zem fraturas históricas, fraturas que são expostas nas movimentações
inquietas do homem contemporâneo. Por sua vez, estas movimentações
se refletem nas mudanças antropológicas dos últimos tempos. As antro-
pologias são, no cenário do saber contemporâneo, um reflexo das trans-
formações em acontecimento na auto-determinação e na auto-compreensão
do homem. Ora, estas transformações são, por sua vez, um apelo explíci-
to para a tarefa da educação, hoje, onde quer que ela deva ser cumprida.
Ao fim de um dia histórico, cabe-nos olhar para os começos des-
ta auto-compreensão do homem ocidental e dialogar com ela, com vista
a nos dispormos para um outro início do pensar, em que possa surgir o
‘homem humano’ e, com isso, uma educação apropriada para o nosso
kairós. Pois vivemos hoje não somente o perigo de que o homem se
destrua a si mesmo e ao que existe de vivente na terra. Vivemos também
no risco de que o homem continue a existir, sem, contudo, encontrar a
sua própria humanidade e sem resguardá-la, em si e nos outros, e em
todos os seus relacionamentos.

O grande desafio de nossa época é o desafio de uma conversão


do homem para a sua jovialidade. Impõe-se uma conversão que
reponha o homem no lugar de sua humanidade, na sua essência
de futuro (leão, 1977, p. 42).

educ , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 161-175, jan./jun. 2010. 163


A partir desta disposição de abertura para o porvir do ‘homem
humano’, toca-nos, hoje, realizar um diálogo com as fontes de nosso
passado, ou seja, com as forças plasmadoras de nossa tradição. Só as-
sim nos disporemos para um porvir da educação.

III

No princípio, colocamos a seguinte tese: que, na sua raiz


ontológica, a educação é o próprio acontecer do ser humano como ser
humano. Cabe-nos elucidá-la um pouco mais.
Educação se refere ao processo de ‘hominização’ do homem, ou
seja, àquele curso histórico que o homem precisa, sempre de novo, per-
correr, por e para poder vir a ser humano, por e para vir a humanizar-se.
Educação é o acontecer desse processo. Educação é o processo de gênese,
isto é, de nascimento e formação, do humano, na realização de suas
possibilidades de ser.
O homem vem a ser o que ele é medindo-se com as suas possi-
bilidades de ser. Mais do que um ser de realidade, ele é um ser de
possibilidades. Na vida humana, as possibilidades são mais reais do
que as realidades. As realidades factuais são apenas as pontas, para
usar a terminologia de Paul Klee, são apenas as “formas terminais”
das possibilidades da vida (formas plasmadoras), que se transformam
a cada momento. Essas possibilidades da vida sempre em mutação
são, cada vez, interpelação e provocação a vivermos na alegria pela
finitude, ou seja, na jovialidade de nossa mortalidade.
Essas possibilidades que brotam sempre de novo do fundo da
vida, o homem ‘tem que ser’. São ‘necessidades’. Necessidades que se
impõem ao homem como ‘tarefa’ de ‘ser’, ou seja, como tarefa de es-
crever e inscrever o próprio ser no livro da vida, através das vicissitu-
des de sua história. Pelo fato de não ter tudo o que é e de não ser tudo o
que tem, ‘o homem tem que ter o seu ser’, isto é, ele precisa conquistar
o que ele ‘pode’ ser, a saber, num processo de ‘apropriação’ de suas
possibilidades, de ‘maturação’ de sua identidade. Chamamos de ‘edu-
cação’ o perfazer dessa tarefa.
Do mesmo modo, ‘o homem tem que ser o seu ter’, ou seja, ele
carece de escrever e inscrever o seu poder-ser no cuidado e no cultivo
de tudo aquilo que lhe foi designado e consignado pela vida, em todo o
seu fazer ou deixar de fazer. Do ‘empenho’ por cultivar aquilo que tem,
inscrevendo e escrevendo no seu cuidado as suas possibilidades de ser,

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DOI 10.5216/ia.v37i2.20728

Educação, escola e formação*


Ildeu Moreira Coêlho,
da Universidade Federal de Goiás
Ged Guimarães,
da Universidade Federal de Goiás

Resumo: O artigo trabalha a relação intrínseca entre educação, escola


e formação. Na Grécia do período clássico os gregos buscam o
sentido original da formação do homem para vida pública, visando
à existência da pólis e do homem excelente e justo, o que exige
permanente cuidado e vigilância sobre os interesses e a vontade dos
indivíduos. Daí o sentido e a importância fundamental conferida à
paideía, à educação como formação cívica e cultural para a efetiva
participação na vida coletiva. Ao caminhar no sentido oposto, a
educação e a escola hoje têm se perdido na esfera da prática, do
utilitário, da qualificação, da profissionalização do indivíduo, da
preparação para o mercado de trabalho, e esquecido o sentido
primeiro de sua existência: contribuir para que o homem, a
sociedade e a humanidade busquem a excelência, a vida virtuosa.
Uma educação, uma escola diferente, não só é possível, mas
necessária, e trabalhar para instituí-la é defender a causa da
autonomia, da liberdade, da política, da primazia da vida pública
e da ética.
Palavras-chave: Educação. Escola. Formação. Autonomia.

O debate das questões na área da educação tem escorregado


na discussão da escola, e mesmo de determinadas fases do processo
de escolarização – fundamental, média ou superior – ou dos problemas
específicos de conteúdos, currículos, avaliação, evasão, repetência, política
educacional e gestão, como se eles tivessem vida própria, existissem um ao
lado dos outros ou numa sequência temporal entre o antes e o depois, sem

* Artigo recebido em 2/2/2012 e aprovado em 10/4/2012.


COÊLHO, I.M.; GUIMARÃES, G. Educação, escola e formação

que uma relação intrínseca os constitua. Ora, conferir ou aceitar o primado,


a supremacia das partes ou aspectos sobre o todo, é silenciar o debate do
sentido e da importância de uma educação que busque elevar a existência
dos homens,2 da sociedade e da humanidade, em proveito de práticas que
procuram se adequar às exigências do chamado mercado, vistas, então, como
necessidades naturais ou sociais.
Assim, a educação em sentido amplo não é assumida pela sociedade,
nem pelo Estado, cujo Ministério da Educação mais parece um setor da
burocracia estatal que cuida da escola, das coisas da escola, conforme a
lógica da quantidade, dos produtos, dos resultados, da produtividade. Estado
e Ministério, em nome da qualidade da educação, opera sua gestão de olho
nos números e percentuais de acesso à rede escolar; observa os índices de
aprovação em etapas ou áreas, de “inclusão social” e de inclusão digital;
estabelece metas para a aquisição de computadores, de tablets e de outras
tecnologias existentes, acreditando que isso levará ao bom funcionamento da
escola. Em nome do direito à educação de qualidade, de uma transformação
na educação, da escola pública e de sua melhoria, cria projetos e programas
de governo, chamados de “políticas”, que podem até deixar satisfeitos
alguns professores, mas têm feito a alegria dos empresários que produzem
e comercializam máquinas, artefatos tecnológicos e softwares voltados para
a educação.
Na Idade Moderna e na contemporaneidade, indivíduos, Estado e
sociedade têm confundido esfera pública e esfera privada, vida pública e vida
privada, ação e operação, política e jogo de interesses, direito e lei, igualdade
e discurso retórico, práksis e comportamento, direito e atendimento de
necessidades, carências e interesses, ou melhor, têm reduzido o primeiro ao
segundo. A crescente primazia da vida privada, íntima e familiar, das carências,
necessidades e interesses, do comportamento, em detrimento do público,
do que é de todos, do direito, da ação, da política, em seu sentido original
na Grécia Antiga; bem como a primazia do consenso, da uniformidade, da
acomodação, da apatia, da manipulação e do politicamente correto, em
detrimento do reconhecimento do conflito como inerente à existência
sociopolítica, da liberdade e da democracia; o primado do dinheiro e do poder,
em detrimento da verdade, da ética, da igualdade e da justiça compromete
o debate de ideias e projetos, e a efetiva participação de todos na discussão
e definição do que é comum, e na constituição da ética, da política, da vida
pública, da coisa pública, da Respublica, da sociedade justa (Arendt, 2002,
p. 31-88; Sennet, 1993).
Inter-Ação, Goiânia, v. 37, n. 2, p. 323-339, jul./dez. 2012 Dossiê 325
Sem se perder na esfera do empírico e do imediato, do que interessa
apenas aos indivíduos e suas famílias, os gregos dos séculos V e IV a. C. sabiam
que, sendo “por natureza” um ser político, constituído na efetiva participação
da vida da pólis, é próprio do homem, no sentido genérico do termo, viver
em coletividade, de forma civilizada. Somente na cidade, pólis, como
“comunidade de vida entre vários seres humanos diferentes” (Wolff, 1999,
p. 40), comunidade perfeita, autárquica, autossuficiente, capaz de suprir todas
as necessidades de seus membros, o homem pode ser plenamente Homem.
Fora da pólis, sem participar efetivamente das discussões e da vida da
cidade, dos debates e da realização, do tornar real a vida coletiva, o homem
seria um ser desprezível, degradado, insignificante, phaûlos , ou um grande,
um superior, um sobre-humano, kreítton (Aristóteles. Política, 1253 a 2-5; Ética
a Nicômaco, 1097, b 8-11; 1169 b 17-20). Não sendo, entretanto, nem uma
coisa nem outra, ele é por natureza um ser que vive a forma mais perfeita de
existência, a vida na pólis, a existência política que, em seu sentido originário,
tà politiká, esfera da vida pública, da vida coletiva, do que é comum, tò
koinón, “abarca todas as atividades, todas as práticas que devem ser objeto
de participação, isto é, que não devem ser privilégio exclusivo de ninguém,
nem de indivíduo, nem de grupo nobiliário, e das quais é preciso participar
para ser cidadão” (Vernant, 2007, p. 1460).
A semelhança e a igualdade entre os cidadãos se constitui, assim, na
plena participação na condução da vida coletiva, na posse da excelência ou
virtude política, aretè politiké, que faz de todo cidadão alguém em condições
de governar e de ser governado (Cf. Política, 1277a 25-29 e 1277 b 7-16). Essa
vida em comum precisa ser pensada e construída à luz da razão que interroga
o sentido da vida coletiva, pública, a ética e a política, tendo em vista a
compreensão daquilo que é, do ser, da Ideia, do conceito, e a realização da
vida excelente, virtuosa, comedida, da justa medida, métron, da igualdade,
da justiça e da felicidade.
Nesse contexto não há política e cidadania sem formação ético-
política, que começa na infância e continua ao longo da vida. Sabendo-se
limitados, inacabados, os gregos antigos procuraram elevar a existência
humana a sua plena realização na vida pública, tornando-a excelente, virtuosa.
Daí o sentido e a importância fundamental da educação como paideía,
formação cultural, sem a qual não há pólis, comunidade de cidadãos unidos, na
igualdade e na justiça, por profundos laços de amizade, philía; não há também
preocupação, cuidado nem busca da vida boa, da pólis excelente, a melhor
possível para todos os que constituem a comunidade política (Vernant,
2002, p. 325-348; Aristóteles. Política, 1252 b 27-31; 1279 b 33-1281 a 4;
1283 a 24-26; 1325 a 9-10).
COÊLHO, I.M.; GUIMARÃES, G. Educação, escola e formação

Apesar do tempo, das diferenças, a Grécia Antiga tem condições


de provocar nossa sensibilidade, imaginação e inteligência, de ajudar-nos
a pensar e a recriar a vida coletiva, a esfera pública, a educação e a escola
que temos. Não se trata de copiar nem de transpor supostos modelos de
sociedade, de democracia, de educação e de escola, mas de aprendermos com
os gregos a pensar o contemporâneo, em sua relação intrínseca com o futuro
e com o passado. Quanto à educação e à escola, questão de nossa discussão
neste texto, não podemos perder de vista a dimensão sociocultural inerente
e, portanto, constitutiva do trabalho educativo, bem como de todas as formas
de pensá-lo e de realizá-lo. Como movimento civilizatório e de humanização
de todos os homens, como práksis, a educação visa a elevar o gênero humano
à excelência, areté, desenvolver o que nele há de melhor como possibilidade
e disposição, realizar a plenitude de sua existência, especialmente no que se
refere à vida coletiva e a tudo o que é humano. O que se busca na educação
e na escola não é preservar a situação atual dos indivíduos, da sociedade e
da humanidade, mas a Ideia mesma, o projeto de uma sociedade e de uma
humanidade melhor, fundadas na liberdade, na igualdade, na justiça e na
fraternidade, como algo a ser realizado.

Não se deve educar as crianças segundo o presente estado da espécie


humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, se-
gundo a ideia de humanidade e da sua inteira destinação. Esse princípio é
da máxima importância. De modo geral, os pais educam seus filhos para o
mundo presente, ainda que seja corrupto. Ao contrário, deveriam dar-lhes
uma educação melhor, para que possa acontecer um estado melhor no
futuro. (Kant, 2004, p. 22)

O que está no horizonte da educação não é, em primeiro lugar, a


escolarização, a informação, a formação do erudito, do homem de negócios
ou do funcionário do Estado, nem a instrumentalização de crianças, jovens e
adultos e sua inserção no mercado de trabalho, o desenvolvimento científico-
tecnológico, o sucesso dos educandos e o aumento da produção. Pelo
contrário, é sobretudo a dimensão ético-política do homem e da sociedade,
a elevação espiritual, a humanização de todos os homens, grupos, povos e
instituições, enfim, a realização de sua dimensão humana. Esse é o sentido e
a finalidade da educação, o que justifica sua existência.
Quando se olha para as carências, as necessidades e os interesses
imediatos do indivíduo acaba-se reduzindo o sentido da formação. Em
meados do século XVIII Rousseau afirmava que, ao se educar pensando
primeiro na formação que responda ao contingente, forma-se “um homem à
venda” (Rousseau, 1992, p. 25). Ele poderá até saber muito a respeito daquilo
Inter-Ação, Goiânia, v. 37, n. 2, p. 323-339, jul./dez. 2012 Dossiê 327
em que foi formado, mas pouco ou nada saberá a respeito da finalidade
política de seus fazeres. Para fugir da formação que torna o homem venal,
Rousseau diz que seu aluno, Emílio, não será “nem magistrado, nem soldado,
nem padre; será primeiramente um homem” (p. 15; cf. Rousseau, 1992, p.
13-38).
No plano da educação, Rousseau apresenta a seu hipotético Emílio
o fracasso da sociedade e da razão, após um longo exercício, com seu
discípulo, de preservação do sentido humano da existência. Para fugir do
sentido único, autoritário, que é a educação para a vida social, Rousseau
torna-se o preceptor de Emílio, tendo a certeza de que há em cada homem
a possibilidade da formação humana, pois, diferentemente dos animais, que
são presos à natureza, o homem é livre. E se foi a liberdade que o jogou na
condição atual, é a compreensão do sentido humano da liberdade que o fará
trilhar outro caminho.
Para Rousseau (1992, p. 10), “tudo o que não temos ao nascer, e de que
precisamos adultos, é-nos dado pela educação”. Diferentemente de muitos
animais que não necessitam de suplemento, o homem, radicalmente carente
ao nascer, necessita da ajuda dos adultos para sobreviver, fazer desabrochar
e elevar à perfeição a natureza humana, maquiada pelos discursos de estima
e consideração, próprios da vida em sociedade.
Se para Rousseau devemos procurar em nós mesmos a bondade
original, escondida pela razão corrompida, para Kant essa bondade original
não existe, mas, em seu lugar, há a natureza e tudo o que é inerente ao
contingente, à vontade, ao desejo e à paixão. Embora com pressupostos
e concepções diferentes, eles concordam que é pela educação que nos
humanizamos. Conforme lemos logo no início das reflexões de Kant sobre
a educação, desenvolvidas em quatro cursos ministrados na Universidade
de Königsberg, entre 1776 e 1787. “A espécie humana é obrigada a extrair
de si mesma pouco a pouco, com suas próprias forças, todas as qualidades
naturais, que pertencem à humanidade. [...] O homem não pode tornar-se
um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação
dele faz” (2004, p. 12-15).
Ainda que, ao nascer, o homem necessite de cuidados para que possa
sobreviver, não é sua fragilidade física inicial que torna a educação necessária
à existência da espécie humana, mas o fato de que esta não é um dado, não
está acabada, nem se encontra regulada pelo instinto e pela necessidade.
Diferentemente dos outros seres vivos, os humanos precisam ser formados.
Se não estão prontos, se a razão e a liberdade precisam ser desenvolvidas, a
educação é a condição para a emergência e o aperfeiçoamento do humano
em cada um de nós.
desenvolvimento da capacidade de pensar, de
Educação, escola, cultura e duvidar e de criar. Essa maneira pobre e
limitada de compreender e de fazer a
educação e a escola privilegia sua dimensão
formação propedêutica e instrumental, sua estrutura e
funcionamento, deixando de lado seu sentido
e razão de ser no contexto da existência
Ildeu Moreira Coêlho pessoal e coletiva.
Universidade Federal de Goiás Embora seja constitutiva dessa
existência e sem ela tudo se desagrega, a
educação, em seu sentido pleno e rigoroso,
Entre nós é muito frequente a redução não tem recebido a necessária atenção por
da educação à escola e desta a “espaço” de parte da sociedade e do Estado. Reduzir e
socialização do saber sistematizado, de empobrecer seu sentido e importância é
transmissão de conhecimentos, informações e negar a existência social, contribuindo para
habilidades úteis, de preparação dos alunos romper e esgarçar as relações que a
para a vida, para o uso da tecnologia, para a constituem. O próprio Ministério da Educação
continuação dos estudos, para serem bem está preocupado mesmo é com a escola,
sucedidos no vestibular e em processos sobretudo com as coisas da escola, com a
seletivos para ingresso no ensino superior, em escola que, funcionando bem, possa
empresas e órgãos públicos; enfim, a redução supostamente contribuir para que a sociedade
da escola a locus onde se ensina a operar, a (ou o mercado?) também funcione bem. Não
fazer funcionar o mundo físico e social, o é por acaso que o Ministério tem se perdido
mundo da produção. À medida que cresce a em questões menores do funcionamento, da
presença e a influência da tecnologia na produtividade e da avaliação das escolas.
sociedade, é visível a ênfase na necessidade Contra essas ideias e práticas, é
de preparar as pessoas para a incorporação de preciso compreender e construir a escola
novas máquinas e tecnologias na esfera da como instituição que, em seu trabalho
produção, da existência pessoas e social, para sociocultural e educativo, privilegia a
as mudanças de papeis e para se adaptarem, formação humana, a invenção e a afirmação
sem maiores problemas, às novas formas de da igualdade, da autonomia, da liberdade, da
trabalho. “con-vivência” democrática, da vida pessoal e
A escola se reduz então a empório do coletiva como existência ética e feliz, bem
conhecimento, a supermercado da informação como a inserção de todos na vida intelectual,
e das novidades nos vários campos do saber e no processo civilizatório de produção de
da atividade humana, a espaço da apropriação direitos, de humanização da natureza, da
do saber acumulado pela humanidade, existência social e do próprio homem, com a
deixando de contribuir para a ampliação, o construção de novas relações interpessoais e
aprofundamento e a crítica dessas sociais. Instituição que forma sujeitos
experiências e saberes, para a superação dos culturais, cultiva uma sólida cultura comum,
limites da existência social, do mundo pessoal produtora e expressão da identidade pessoal,
e familiar dos alunos. A própria alfabetização local e nacional, sem perder de vista sua
passa a ser entendida e realizada como dimensão universal e não-utilitária, a escola a
domínio formal da leitura, da escrita e dos ser criada insere crianças, jovens e adultos no
conhecimentos exigidos para a vida moderna aprendizado e no cultivo do pensamento, das
e as novas relações de trabalho, silenciando a ciências, da tecnologia, da filosofia, das letras,
compreensão do texto lido e o das artes plásticas (desenho, pintura,
escultura, gravura), do teatro, do cinema, da
 música, da dança, da ginástica, do esporte.
Conferência na mesa redonda “Papel da escola:
equívocos e perspectivas”. XII Encontro Regional Compreender a escola como
de Psicopedagogia. Goiânia, 2012. instituição por natureza cultural e educativa é
pensá-la e instituí-la no plano do simbólico, do
significado, da criação, do rompimento e da direito da sociedade, que se sobrepõe aos
superação dos limites e das visões estreitas e projetos e interesses dos professores, alunos,
pobres que tudo circunscrevem ao dado e nos famílias, Igrejas, Estado, partidos políticos,
reduzem a coisas, a objetos, a mercadorias empresas e sindicatos. Não se separa, ainda,
que satisfazem interesses de grupos, a dos processos sociais mais amplos de
supermercados de informações e de produção e reprodução da existência
conteúdos, detentores de saber fazer. E, ao individual e coletiva, bem como do desejo, da
mesmo tempo, pensá-la e instituí-la como utopia da sociedade justa, da existência feliz.
abertura de horizontes, desafio e “pro-jeto” A existência da escola e a formação
de criação de seres humanos e de sociedades das crianças, jovens e adultos, então, não
diferentes, à luz do ideal de excelência. Ao podem ser definidas pelo mercado, mas
arrancar-se à esfera da necessidade, a escola apenas pelo direito, pois somente este rompe
torna possível a emergência da liberdade, do com a dimensão meramente propedêutica da
imaginário, do desejo do que é significativo e escola e é inseparável da construção da
capaz de nos levar à felicidade. Instituição igualdade e da democracia. Como dizia Kant
cultural que busca a realização da excelência, em seus cursos sobre educação, ministrados
da perfeição pessoal e social, a escola insere na Universidade de Königsberg, entre 1776 e
os estudantes no convívio com saberes 1787, “o homem não pode tornar-se um
capazes de ajudá-los a viver de modo verdadeiro homem senão pela educação”.2
excelente, autônomo, com dignidade e Esse processo somente existe à medida em
respeito ao outro e à natureza ou, como dizia que homens e mulheres, educadores e
Aristóteles, a viver a “vida boa”.1 educandos, professores e estudantes, ao
Dimensão de uma totalidade concreta submeterem os instintos, as necessidades e os
mais ampla, a escola recupera seu verdadeiro interesses imediatos, ao domínio da razão,
sentido e identidade – não como espaço, lugar buscam o saber, trazem à tona o Homem que
e organização -, mas como instituição por está em cada um como possibilidade e, ao
excelência (da pré-escola à universidade) de mesmo tempo, como exigência, constroem a
educação do corpo, da mente, da alma, do formação humana e autonomia, elevam a
espírito humano. Faz-se, pois, instituição que existência coletiva e pessoal ao máximo de
cultiva a criação, o respeito ao outro, a justiça, perfeição possível. O processo de
o direito, a solidariedade, a esperança. Enfim, humanização não significa assumir um modelo
instituição que visa contribuir para que as de homem universal e anistórico, mas,
pessoas, os grupos e as instituições realizem reconhecendo as determinações histórico-
suas aspirações e potencialidades, cultivem sociais, não perder de vista o ser humano
sonhos, utopias e uma saudável contestação à como ideal perfectivo e, sem se acomodar,
sociedade que temos, em todas as suas superar o dado, os valores e as realidades
dimensões. Tudo isso é profundamente vigentes.
educativo, essencial à existência humana, ao Essa ação disciplinadora, entretanto,
processo geral de humanização e ao exercício jamais elimina a consciência, a contestação, a
de qualquer atividade, profissional ou não. autonomia e, portanto, a possibilidade de que
Esse processo, é claro, não passa pela crianças, jovens e adultos se tornem sujeitos
primazia dos bens materiais, pela submissão do conhecimento e da ação, criem alternativas
ao mercado, à eficiência, à produtividade, ao diferentes das que lhes são propostas ou
Estado ou qualquer outro poder externo. Se o impostas. Elevá-los a esse patamar é o desafio
humano é algo a ser criado, inventado, e a obra da educação e, por conseguinte, da
humanizar é assumir o convite, o imperativo escola, o que evidencia seu sentido profundo
ético e político de realizar possibilidades que e sua importância fundamental para o
estão acima e além dos limites pessoais e presente e o futuro dos indivíduos, da
institucionais. Nesse sentido, a escola é um sociedade e da espécie humana.

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ARISTÓTELES. Política, 1252 b 27- 1253 a; 1280 b KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Piracicaba:
33- 1281 a 4; 1324 a 6- 1325 a 10. Ed. Unimep, 1996, p. 15.
A Grécia Antiga encarnou, num que devemos criar e realizar pensa, inventa e
determinado contexto histórico, o ideal e a realiza a escola, o saber, os métodos de
luta para realizar a educação como paidéia, investigação e ensino, a prática educativa.
cultura, elevação da alma à sua mais alta Criador de ideias e artesão do saber, com o
perfeição, formação humana fundada na qual mantém relação intrínseca, ética, de
excelência moral (areté). Compreendeu muito crítica e de fidelidade, ele trabalha com livros
bem o sentido e a importância da educação, que respeitam a inteligência do
ao não separar a ética e a política, o homem estudante/leitor, provocando-lhe a
(ánthropos) e a cidade, a paidéia e a pólis, ou inquietação intelectual, a dúvida, a crítica, a
seja, a educação como cultura, civilização, permanente busca da verdade, a sede
formação do caráter, e a cidade como insaciável do rigor no trato com os textos, com
existência humana fundada na autonomia, na as ideias.
igualdade e na justiça e, portanto, na areté. Ao procurar a cada momento se fazer
Impossível, pois, haver ação política, sem professor, não coloca o mercado e o sucesso
formação ético-política que leve o homem a pessoal e profissional em primeiro lugar, não
colocar a coisa pública em primeiro lugar, nem apresenta modelos a serem seguidos, não
educação, sem cuidado com a perfeição da impõe doutrina e padrões de conduta, não
pólis, a realização da vida excelente, a melhor repete o já pensado por ele ou por outrem.
possível para todos os membros da Pelo contrário, busca, duvida, questiona; refaz
comunidade política. Os vínculos entre caminhos, produz conceitos e, por isso, ensina
educação como paidéia e a pólis, a sociedade, com autoridade, iniciando os estudantes nos
eram demasiado estreitos e profundos para caminhos do pensamento.
que pudessem ser esquecidos e banalizados Ao retomar a formação humana na
sob a ótica da transmissão de conhecimentos escola, repensá-la e recriá-la, ensina a ler com
e informações. rigor os textos, o mundo físico e social e a
Assim como os gregos do passado todos convida ao trabalho e ao prazer da
também nós somos chamados a reconhecer leitura e da produção intelectual. Esse
que a sociedade atual e seus cidadãos não são professor possível (diferente de provável),
perfeitos, não são excelentes e, ao mesmo esse professor utópico,3 exigido pela história,
tempo, a não afastar nosso olhar da pela democracia e pela ética, e cuja
autonomia, da igualdade, da justiça, da construção se impõe a todos, é e será sempre
perfeição, e a buscá-la sempre. A situação insubstituível, jamais será superado pela
concreta de opressão, de injustiça, de miséria, mídia, pelo avanço da tecnologia.
de desemprego, de prepotência, de negação
dos mais elementares direitos e de grave
empobrecimento do processo de
escolarização não pode levar-nos à
acomodação, mas impõe a todos lucidez,
coragem e persistência no trabalho de
superação dessa realidade existente e, ao
mesmo tempo, de criação do que ainda não
existe. E nesse processo é imprescindível a
criação de uma outra escola.
Mais do que transmitir conhecimentos
e informações, essa escola radicalmente
diferente será imprescindível para a formação
do homem em cada professor e estudante,
para a humanização de todos os seres
humanos, para o aprofundamento do
processo civilizatório. Em vez de armazenar e 3
CHAUÍ, Marilena de Souza. Ideologia e educação.
distribuir o conhecimento aos alunos, o In: Educação e Sociedade. São Paulo, v. 2, n. 5, p.
professor exigido pela educação e pela escola 24-40, jan. 1980.

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