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A INFÂNCIA DA EDUCAÇÃO: O a infância, sobre o que somos em relação à infância?

Será
que algo infantil nos atravessa com a pergunta?
CONCEITO DEVIR-CRIANÇA Em outros trabalhos, temos estudado uma forma
dominante de responder essa pergunta no pensamento
Walter Omar Kohan filosófico educacional da tradição que chamamos
Professor de Filosofia da Educação da Uerj Ocidental (cf., por exemplo, Kohan, 2003, passim). Para
dizê-lo em poucas palavras, segundo essa forma, educar a
É preciso pensar o devir-criança enquanto
infância é importante porque as crianças serão os adultos
átomos de infantilidade, que produzem uma
do amanhã e, portanto, os artífices das futuras sociedades;
política infantil (desta vez, sim) molecular, que se
assim, educar a infância é a melhor e mais sólida maneira
insinuam nos afrontamentos molares de adultos
de introduzir mudanças e transformações sociais. A
e crianças...
infância, entendida em primeira instância como
S. Corazza, Infancionática..., 2003, p. 101 potencialidade é, afinal, a matéria-prima das utopias, dos
sonhos políticos dos filósofos e educadores.

Introdução Platão é talvez quem mais nitidamente inaugure essa


tradição, particularmente em A República. Pensamos,
[Suficiente] é a educação e a criação, respondi;
sobretudo, no livro II, aquele da censura aos poemas
pois se bem educados, surgirão homens medidos
homéricos e hesiódicos, que não contribuíam à
que distinguirão claramente todas estas coisas e
propagação de uma divindade verdadeira, perfeita,
outras...
imutável. Situemos esse livro no projeto da obra: depois
Platão, A República IV 423e de uma discussão sobre o conceito de justiça, no livro I,
'Sócrates' e seus interlocutores percebem que não há
O que é a infância? A pergunta ressoa sem parar. Será como não se ocupar e preocupar com a educação da
que conseguimos levar a interrogação até onde ela infância, se é que a investigação pretende estabelecer as
consiga, de verdade, fazermo-nos interrogar? Será que nos condições que tornem possível a justiça na pólis.
perguntamos mesmo pela infância? Será que
conseguimos interrogarmo-nos sobre nossa relação com Com efeito, o livro II de A República trata, sobretudo,

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da educação dos guardiões da pólis que são, segundo no tempo: o ser humano está pensado como um ser em
Platão, as melhores naturezas, as mais aptas para cumprir desenvolvimento, numa relação de continuidade entre o
essa função. Tratar de educação permitirá compreender a passado, o presente e o futuro. A intervenção educacional
gênese da justiça e injustiça na pólis e será inevitável se tem um papel preponderante nessa linha contínua. Ela se
queremos pensar numa pólis mais bela, justa e melhor. A torna desejável e necessária na medida em que as crianças
estratégia adequada para chegar a tal pólis é a educação não têm um ser definido: elas são, sobretudo,
dos guardiões segundo os modelos mais apropriados. Essa possibilidade, potencialidade: elas serão o que devem ser.
intervenção se fundamenta em que a educação tem uma Assim, a educação terá a marca de uma normativa estética,
importância extraordinária para conduzir alguém até a ética e política instaurada pelos legisladores, para o bem
excelência ou virtude, areté (Ibid., II 378e ), tanto que toda dos que atualmente habitam a infância, para assegurar seu
educação determina uma ordem social: uma boa educação futuro, para fazê-los partícipes de um mundo mais belo,
leva a uma ordem justa e uma má educação a uma ordem melhor. A infância é o material dos sonhos políticos a
injusta (Ibid., II 376 c-d). A tarefa começará cedo, desde a realizar. A educação é o instrumento para realizar tais
sua mais tenra idade porque “o princípio de toda obra é o sonhos.
principal... porque então se forma e imprime o tipo que
alguém quer disseminar em cada pessoa” (Platão. A 1. Outros ares para a infância: outros
República, II 377a-b). De modo que, para educar essas tempos
tenras naturezas, será necessário tomar, quanto antes,
todos os cuidados necessários, e definir muito precisa e Por isso, um adulto não pode aprender a falar;
escrupulosamente as formas (os modelos) e também os foram crianças e não adultos os que acessaram
caminhos que haverão de seguir desde o início de suas pela primeira vez a linguagem e, apesar dos
vidas. Depois, quando eles se tornem os reis-filósofos, quarenta milênios da espécie homo sapiens, a mais
desde o governo da pólis, “educarão” todos os outros humana de suas características, precisamente - a
habitantes. aprendizagem da linguagem - permaneceu
tenazmente ligada a uma condição infantil e a
O conceito de infância que se desprende dessas uma exterioridade: quem acredita num destino
passagens é nítido. Ela é uma etapa da vida, a primeira, o específico não pode verdadeiramente falar.
começo, que adquire sentido em função de sua projeção G. Agamben, Infância e história, 2001, p. 79-80.

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Mesmo que chrónos tenha sido a palavra mais bem-
Diversos trabalhos contemporâneos afirmam outros sucedida e comum entre nós, não é a única para designar
conceitos e outros lugares para a infância. Dentre eles, G. o tempo. Outra é Kairós, que significa 'medida',
Agamben mostra como a infância é, antes de uma etapa, 'proporção', e, em relação com o tempo, 'momento crítico',
uma condição da experiência humana (2001, p. 5 ss.). 'temporada', oportunidade (Liddell; Scott, 1966, p. 859).
Como diz o texto da epígrafe desta seção, Agamben Uma terceira palavra é Aión que designa, já em seus usos
esclarece que ela indica uma condição: infância é tanto mais antigos, a intensidade do tempo da vida humana, um
ausência, quanto busca de linguagem; só um infante se destino, uma duração, uma temporalidade não-numerável
constitui em sujeito da linguagem e é na infância que se nem sucessiva, intensiva (Liddell; Scott, 1966, p. 45).
dá essa descontinuidade especificamente humana entre o
dado e o adquirido, entre a natureza e a cultura. O ser O intrigante fragmento 52 de Heráclito conecta esta
humano é o único animal que aprende a falar, e não palavra temporal ao poder e à infância. Ele diz que “aión é
poderia fazê-lo sem infância. uma criança que brinca (literalmente, “criançando”), seu
reino é o de uma criança”. Há uma dupla relação afirmada:
Notemos que a infância não é apenas uma questão tempo- infância (aión - paîs) e poder-infância (basileíe -
cronológica: a infância é uma condição da experiência. É paîs). Este fragmento parece indicar, entre outras coisas,
preciso ampliar os horizontes da temporalidade. Os que o tempo da vida não é apenas questão de movimento
gregos, aqui também, podem nos ajudar. Em grego numerado e que esse outro modo de ser de temporal
clássico há mais de uma palavra para referir-se ao tempo. parece com o que uma criança faz. Se uma lógica temporal
A mais conhecida entre nós é chrónos, que designa a segue os números, outra brinca com os números.
continuidade de um tempo sucessivo. Aristóteles define
chrónos como “o número do movimento segundo o antes Com relação à infância, o fragmento também sugere
e o depois”, na Física (IV, 220a); percebemos o movimento, que o próprio da criança não é ser apenas uma etapa, uma
o numeramos e a essa numeração ordenada damos o fase numerável ou quantificável da vida humana, mas um
nome de chrónos. O tempo é, nesta concepção, a soma do reinado marcado por outra relação - intensiva - com o
passado, presente e futuro, sendo o presente um limite movimento. No reino infantil que é o tempo não há
entre o que já foi e não é mais (o passado) e o que ainda sucessão nem consecutividade, mas a intensidade da
não foi e, portanto, também não é mas será (o futuro). duração. Uma força infantil, sugere Heráclito, que é o

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tempo aiónico. criança.

2. Uma infância inventada De forma semelhante, a memória seria algo da


ordem da descoberta, da recuperação, da rememoração,
Desse modo, essas duas dimensões da em suma, algo da ordem do não inventado, da des-
temporalidade se desdobram em dois modos de pensar a invenção. Ao contrário, a invenção parece indicar algo
infância. De antecedentes muito antigos, como acabamos novo, que se inicia, que começa, portanto impossível de
de ver, também há inúmeros registros desses modos na ser lembrado. A invenção seria algo da ordem da des-
arte, literatura e na filosofia de nosso tempo. memória e a memória algo da ordem do não inventado.
Se algo é inventado não poderia vir da memória; se algo
Um deles é a poesia do mato-grossense, Manoel de vem da memória não poderia ser inventado. A memória e
Barros. Visitemos por um instante um dos seus livros mais a invenção andariam em direções contrárias, encontradas,
recentes, Memórias inventadas. A infância (2003). Como o desentendidas.
título sugere, são dezesseis curtas crônicas de uma
memória que o poeta inventa. Vamos nos deter no título. Alguém poderia pensar que um oxímoro congela o
pensamento. Mas acontece o contrário. É justamente nas
Memórias inventadas é um oxímoro. Isto significa que contradições que podemos pensar, se é que pensar tem a
se trata de dois termos em contradição, um nega o outro. ver com criar e não apenas com reproduzir o já pensado.
Expressões semelhantes seriam, por exemplo, “mar É quando nos situamos nesse espaço em que o já pensado
pequeno” ou “criança velha”. Em todos estes casos os dois parece impossível que nascem as condições para pensar
termos parecem estar em contradição. Se algo é um mar outra coisa, algo diferente do já pensado. O pensar é algo
então não pode ser pequeno porque dentro do conceito que se faz sempre entre o possível e o impossível, entre o
“mar” não cabe o conceito “pequenez”; ao contrário, ele saber e o não saber, entre o lógico e o ilógico. Se
contém o contrário de pequenez, a imensidão; nenhuma estivéssemos situados na clareza do absolutamente lógico,
coisa pequena poderia aspirar a ser um mar; e o mesmo da pura consistência, muito provavelmente não teríamos
sucede com o conceito “criança” que parece conter notas materiais para criar; se estivéssemos situados na absoluta
que se opõem à velhice. Nenhuma criança poderia ser certeza do que não responde a qualquer lógica talvez não
velha se é criança; nenhum velho poderia aspirar a ser poderíamos sequer pensar. É na tensão da contradição

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entre os dois extremos que algo nos força a pensar, nos evolução. A memória se faz companheira e amiga da
faz perceber o sentido e o valor de pensar algo não invenção, de um novo tempo, de um novo pensar.
pensado. E assim, pensamos como quem caminha sobre
um fio composto pela consistência e a contradição. Mais uma vez, o poeta ajuda a pensar e a nos
interrogar. Depois do título, Memórias inventadas, lemos o
De modo que na aparente contradição das memórias subtítulo: a infância. Acometem-nos algumas perguntas
inventadas pensamos, de novo, a memória, a invenção. infantis: qual o sentido e significado dos “dois pontos”? É
Junto com a memória vem o tempo. Talvez se abríssemos a infância que é inventada ou é a infância que inventa? São
o tempo poderíamos abrir a memória: o que poderia ser a as memórias da infância ou a infância das memórias? Não
memória se não fosse algo da ordem da recuperação, da podemos parar de perguntar: É a invenção da infância ou
cronologia, da descoberta do que já foi, e, portanto, já não a infância da invenção?
é mais: o que não “lembramos”? O que outra coisa poderia
fazer a memória que não seja recuperar o passado? Depois do título e do subtítulo vem a epígrafe: tudo
o que não invento é falso. Parece fala de criança, primeira
Talvez se abríssemos a memória em uma dimensão memória inventada, primeiro invento da memória,
aiónica do tempo, quiçá ela pudesse ser, ao contrário, algo primeiro novo início. Estamos acostumados a pensar a
da ordem da ruptura com o passado e com a verdade do lado da ciência, do lado da demonstração, da
temporalidade contínua e sucessiva do antes e o depois; prova, da regra, da lei, do estatuto, da argumentação, da
talvez a memória possa ser algo da ordem do afastamento aquiescência, da conformidade, da proposição, da
do passado, da recusa de outro tempo e da instauração de concordância entre o discurso e a realidade. Aqui, ao
um novo tempo para pensar, de um novo início de pensar contrário, a invenção é a produtora e condição de
o tempo, e de um tempo para pensar. possibilidade da verdade. A sentença significa, então, que
não há nada verdadeiro que não seja inventado, ou que só
De forma semelhante ao tempo de Heráclito, que pode existir a verdade quando há invenção. O que não
brinca, como uma criança, a memória do poeta brinca, significa que toda invenção seja verdadeira, mas significa,
irreverente, com o passado, o presente e o futuro: altera diferentemente, que sem invenção não há verdade. A
sua ordem, não respeita sua sucessão; abre, a cada vez, um invenção - e não outra coisa - é condição da verdade.
novo início da não continuidade, do não progresso, da não

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Talvez possamos agora entender melhor um dos com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso
“porquês” do título memórias inventadas: porque se a quintal são sempre maiores do que as outras
invenção é a condição da verdade então não poderíamos pedras do mundo. Justo pelo motivo da
ter memórias apenas descobertas e rememoradas, porque intimidade. [...] Mas eu estava a pensar em
não poderiam ser memórias verdadeiras... E como achadouros de infância. Se a gente cavar um
poderíamos aceitar que a memória fique do lado da buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará
falsidade? Não há então como fugir da invenção se um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente
pretendemos manter-nos do lado da verdade. Mesmo cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará
tratando-se da memória que pensávamos estar um guri tentando agarrar no rabo de uma
acostumada a fazer outras coisas, ela deve tornar-se lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de
inventora. A invenção torna-se assim condição infância. Vou meio dementado e enxada às
epistemológica, estética e política do pensar. O poeta costas a cavar no meu quintal vestígios dos
proclama, deste modo, o “dever” universal de inventar, meninos que fomos. [...]
com o prêmio inveterado das mais potentes verdades para
as mais potentes invenções. Vou me deter em duas invenções dessa memória
infantil. A primeira está naquelas primeiras linhas onde se
Transcreverei apenas um trecho de uma dessas diz que, de grandes, “a gente descobre que o tamanho das
memórias inventadas, como exercício de invenção, de coisas há que ser medido pela intimidade que temos com
pensar e de infantilizar, como forma de exercitarmo-nos as coisas.” Descobrimos (ou inventamos?) que a
nessa invenção de verdade infantil. Vou transcrever parte intimidade é a medida do tamanho das coisas. Assim, na
da memória XIV, uma das últimas, que tem por título, falta de intimidade o mar pode ser muito pequeno,
“Achadouros”. Ela diz assim: menorzinho, imperceptível. Mas também ele pode ser
aquela imensidade infinita na intimidade do pescador, do
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior achador de infâncias marítimas, do inventor de memórias
do que a cidade. A gente só descobre isso depois marinhas. Tamanho também pode querer dizer força,
de grande. A gente descobre que o tamanho das potência, alegria. A intimidade indica, então, uma relação
coisas há que ser medido pela intimidade que potente, alegre com os outros, com o mundo.
temos com as coisas. Há de ser como acontece

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A segunda ideia está no título e repercute no meio devir sempre contemporâneo.
do texto: “achadouros”, lugares onde se acha ou encontra
G. Deleuze, Crítica e clínica, 1997, p. 129.
alguma coisa. O que ao poeta interessa especialmente
achar são lugares onde se encontra a infância. De modo
que a memória não apenas inventa, mas também G. Deleuze, filósofo francês contemporâneo,
encontra. Encontra o que inventa ou inventa o que distingue também dois modos da temporalidade. De um
encontra? Ou encontrar é um ato de invenção e só se pode lado, temos o devir e, do outro, a história (Deleuze, 1992,
encontrar o que se inventa? Teremos que dizer então p. 210-1). A história não é a experiência, mas o conjunto
“tudo o que não invento não posso encontrar? Talvez de condições de uma experiência e de um acontecimento
também isso signifique pensar: encontrar a invenção, que têm lugar fora da história. A história é a sucessão de
inventar encontros. Algo da ordem do achado, do efeitos de uma experiência ou acontecimento. De um lado,
cruzamento, da encruzilhada, uma localização. então, estão as condições e os efeitos; do outro lado, o
acontecimento mesmo, a criação, o que Nietzsche
No texto do poeta convivem duas infâncias, uma da chamava de intempestivo. De um lado, está o contínuo: a
cronologia; a outra de um tempo intenso, contemporâneo, história, chrónos, as contradições e as maiorias; do outro
presente. As duas convivem. A primeira remete a nossa lado, o descontínuo: o devir, aión, as linhas de fuga e as
biografia primeira, às crianças; a outra não tem idade, diz minorias. Uma experiência, um acontecimento,
respeito à potência de cada idade. Talvez outro pensador interrompem a história, a revolucionam, criam uma nova
nos ajude a pensar essa infância. história, um novo início. Por isso o devir é sempre
minoritário.
3. Ainda novos ares para a infância: tempo
As maiorias não se definem pelo número ou pela
e devir quantidade, mas porque são um modelo ao qual há que
se conformar. As minorias, ao contrário, são potências não
A obra gaguejante de Biely, Kotik Letaiev,
numeráveis ou agrupáveis em conjuntos (Deleuze;
lançada num devir-criança que não é eu, mas
Guattari, 1997b, p. 174); elas não têm modelo, estão
cosmos, explosão de mundo: uma infância que
sempre em processo. O dinamismo das minorias, o que
não é a minha, que não é uma recordação, mas
libera o devir é um certo nomadismo (ser nômade é
um bloco, um fragmento anônimo infinito, um

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alcançar velocidade, movimento absoluto, pode-se ser Esses espaços são coextensivos, no campo social, e
nômade sem sair do lugar. Cf. Deleuze; Guattari, 1997b, p. estão mutuamente imbricados, entrelaçados. Os dois
50-4), um certo fugir do controle, da pretensão espaços são reais: não há como habitar um deles sem, ao
unificadora, totalizadora; é uma força de resistência, um mesmo tempo, estar habitando também o outro. De modo
“exorcizar a vergonha” (Deleuze, 1992, 212). Por isso o que toda política é, a uma só vez, macro e micro. Na
devir, o acontecimento e a experiência são verbos em perspectiva de Deleuze, o que diferencia uma e outra
infinitivo e não conjugados ou substantivos. Por isso a política não é tanto uma questão de tamanho ou de escala,
infância ou a criança não são propriamente mas de massa, vibração e fluxo (Deleuze; Guattari, 1997a,
acontecimentos, mas o devir-criança, o infantilar o são p. 95). Enquanto os segmentos molares concentram,
[estamos criando este neologismo para evitar o centralizam e totalizam, os fluxos moleculares vazam,
“infantilizar” de sentido usualmente pejorativo. Sandra escapam à captura, se conectam na diversidade, fogem da
Corazza é mestre desta criação. Dela são meninar; devir centralização e da totalização. Uma sociedade, uma
crianceiro; crianceirar; devir-infantil e tantas outras (2003; instituição, um indivíduo são atravessados por linhas de
2004)]. um e de outro tipo.

Entre a geografia e a história, Deleuze privilegia a Na macropolítica, o possível é o que antecipa o real
primeira. Assim, sua ontologia é cheia de planos, e o real é o que atualiza o possível a partir de um projeto
segmentos, linhas, mapas, territórios, movimentos político, ou político-educacional. Nela, o possível é
(Deleuze; Guattari, 1997a, p. 83 ss.). Os seres humanos - anterior do real e dá sentido a uma prática política. Por
como todas as formas da vida - atravessamos exemplo, Platão, desde sua macropolítica, pensava a
simultaneamente espaços cruzados, entrelaçados, infância como pura possibilidade e partir de sua utopia
opostos. De um lado, estão os espaços da macropolítica, o pedagógica buscava concretizar essa possibilidade
Estado, os segmentos molares, binários por si mesmos, espelhando-se nas formas puras de beleza, bem e justiça.
concêntricos, ressonantes, exprimidos pela Árvore,
princípio de dicotomia e eixo de concentricidade. De outro Na micropolítica, o possível é o resultado da política,
lado, os espaços da micropolítica, os segmentos seu produto. Uma política do acontecimento,
moleculares, o rizoma, aonde as binaridades vêm de revolucionária, não é aquela que atualiza um projeto
multiplicidades, e os círculos não são concêntricos. possível, mas a que provoca o possível, a experiência; ela

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cria novos possíveis, novas possibilidades de vida, uma Existe também uma outra infância, que habita outra
vida nova, uma nova política (Zourabichvili, 2000). Uma temporalidade, outras linhas, a infância minoritária. Essa é
micropolítica não parte da infância como possibilidade e a infância como experiência, como acontecimento, como
não define uma educação que transforme a infância, ruptura da história, como revolução, como resistência e
atualizando suas já pensadas potencialidades. Uma como criação. É a infância que interrompe a história, que
micropolítica gera novas potências infantis, devir-criança, se encontra num devir minoritário, numa linha de fuga,
infantilar. O possível é criado pelo devir, pela experiência, num detalhe; a infância que resiste aos movimentos
pelo acontecimento, pelo infantilar. concêntricos, arborizados, totalizantes: “a criança autista”,
“o aluno nota dez”, “o menino violento”. É a infância como
4. Devir-criança, infância e infantilar intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair
sempre do “seu” lugar e se situar em outros lugares,
Não é a criança que se torna adulto, é o devir- desconhecidos, inusitados, inesperados.
criança que faz uma juventude universal.
Somos habitantes dos dois espaços, das duas
G. Deleuze - F. Guattari, Mil Platôs, 1997a, p. 69.
temporalidades, das duas infâncias. Uma e outra infância
não são excludentes. As linhas se tocam, se cruzam, se
As distinções entre história e devir, chrónos e aión, enredam, se confundem. Não nos anima a condenação de
macro e micropolítica, podem nos ajudar a pensar a uma e a mistificação da outra. Não somos juízes. Não se
infância. Em certo sentido, há duas infâncias. Uma é a trata de combater uma e idealizar a outra. Não se trata, por
infância majoritária, a da continuidade cronológica, da último, de dizer como há que se educar as crianças. A
história, das etapas do desenvolvimento, das maiorias e distinção não é normativa, mas ontológica e política. O
dos efeitos: é a infância que, pelo menos desde Platão, se que está em jogo não é o que deve ser (o tempo, a
educa conforme um modelo. Essa infância segue o tempo infância, a educação, a política), mas o que pode ser
da progressão sequencial: seremos primeiro bebês, (poder ser como potência, possibilidade real) o que é. Uma
depois, crianças, adolescentes, jovens, adultos, velhos. Ela infância afirma a força do mesmo, do centro, do tudo; a
ocupa uma série de espaços molares: as políticas públicas, outra, a diferença, o fora, o singular. Uma leva a consolidar,
os estatutos, os parâmetros da educação infantil, as unificar e conservar; a outra a irromper, diversificar e
escolas, os conselhos tutelares. revolucionar.

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Talvez o conceito de “devir-criança”, inventado por Afirma Deleuze que as crianças obtêm suas forças do
Deleuze e Guattari (cf., por exemplo, 1997a, p. 41 ss.), devir molecular que fazem passar entre as idades (Deleuze;
mereça ainda alguns esclarecimentos. Como acabamos de Guattari, 1997a, p. 70) e que saber envelhecer não é
ver, o devir instaura outra temporalidade, que não a da manter-se jovem, mas extrair os fluxos que constituem a
história. Por isso mesmo, o devir não é imitar, assimilar-se, juventude de cada idade (ibid.). Devir-criança é, assim, uma
fazer como um modelo, voltar-se ou tornar-se outra coisa força que extrai, da idade que se tem, do corpo que se é,
num tempo sucessivo. Devir-criança não é tornar-se uma os fluxos e as partículas que dão lugar a uma “involução
criança, infantilizar-se, nem sequer retroceder à própria criadora”, a “núpcias antinatureza”, a uma força que não se
infância cronológica. Devir é um encontro entre duas espera, que irrompe, sem ser convidada ou antecipada.
pessoas, acontecimentos, movimentos, ideias, entidades,
multiplicidades, que provoca uma terceira coisa entre 5. Considerações finais
ambas, algo sem passado, presente ou futuro; algo sem
temporalidade cronológica, mas com geografia, com Os conceitos filosóficos são também para aquele
intensidade e direção próprias (Deleuze; Parnet, 1988, p. que os inventa ou os libera, modos de vida e
10-15). Um devir é algo “sempre contemporâneo”, criação modos de atividade.
cosmológica: um mundo que explode e a explosão de Deleuze, As praias da imanência, 1985, p. 80.
mundo.

O devir-criança é o encontro entre um adulto e uma O que todo este devaneio sobre a infância diz em
criança - o artigo indefinido não marca ausência de respeito à educação ou, melhor, a um encontro entre
determinação, mas a singularidade de um encontro não filosofia e educação como o que motiva nossa presença
particular nem universal - como expressão minoritária do neste lugar?
ser humano, paralela a outros devires (devir-intenso, devir-
O discurso pedagógico está cheio de pessoas e ideias
animal, devir-imperceptível, Deleuze; Guattari, 1997a, p. 11
bem-intencionadas, que buscam formar as crianças para
ss.) e em oposição ao modelo e à forma Homem
que elas adquiram as habilidades, capacidades e valores
dominante. O devir-criança é uma forma de encontro que
que as constituam em pessoas melhores e façam do
marca uma linha de fuga a transitar, aberta, intensa.
mundo um lugar melhor para viver. As ideias sobre a

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infância aqui apresentadas, inspiradas em autores tão forças que poderiam estar a serviço da criação de outros
diversos quanto Manoel de Barros e G. Deleuze podem mundos.
nos ajudar a encontrar um novo modo de pensar a
educação, um novo início para a educação. Seria algo Talvez possamos pensar a educação de outra forma.
assim como uma infância da educação e não já apenas Quiçá consigamos deixar de nos preocupar tanto em
uma educação da infância. transformar as crianças em algo distinto do que são, para
pensar se acaso não seria interessante uma escola que
Talvez possamos pensar de novo um outro lugar possibilitasse às crianças, mas também aos adultos,
minoritário, molecular, para a infância, na espacialidade professoras, professores, gestores, orientadores, diretores,
molar e concêntrica da escola; talvez queiramos promover enfim, a quem seja, encontrar esses devires minoritários
outras potências de vida infantil, outros movimentos e que não aspiram a imitar nada, a modelar nada, mas a
linhas nesse território tão maltratado, descuidado e interromper o que está dado e propiciar novos inícios.
desconsiderado que é a escola. Nessa tentativa, estão Quem sabe possamos encontrar um novo início para outra
envolvidas questões ontológicas e políticas. ontologia e outra política da infância naquela que já não
busca normatizar o tipo ideal ao qual uma criança deva se
As questões ontológicas dizem respeito à não conformar, ou o tipo de sociedade que uma criança tem
percepção das forças que fazem com que sejamos o que que construir, mas que busca promover, desencadear,
somos e à ilusão - haverá que qualificá-la de iluminista, estimular nas crianças, e também em nós mesmos, essas
antropocêntrica ou moderna? - de que o Homem é o intensidades criadoras, disruptoras, revolucionárias, que só
centro do mundo e, portanto, o artesão privilegiado e podem surgir da abertura do espaço, no encontro entre o
autoconsciente do homem. O mito de Frankenstein, o novo e o velho, entre uma criança e um adulto.
homem que fabrica o homem, ilustra a ilusão do Homem
pseudoartífice de seu próprio destino e o mito da Não se trata de nos infantilizarmos, de voltarmos à
educação como fabricação (Meirieu, 1996, p. 15 ss.). As nossa tenra infância, de fazer memória e reescrever nossa
questões políticas derivam, em parte, das ontológicas e, a biografia, mas de instaurar um espaço de encontro criador
uma só vez, as alimentam: sob os efeitos da forma Homem, e transformador da inércia escolar repetidora do mesmo.
no mundo concêntrico da escola, nos ideais unificantes do Quem sabe, um tal encontro entre uma criança e uma
bom pastor pedagógico, opera todo uma mutilação das professora, ou entre uma criança e outra criança, ou ainda

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entre uma professora e outra professora possam abrir a ARISTÓTELES. Física. Trad. Cast. Alejandro Vigo. Libros III-
escola ao que ela ainda não é, permitam pensar naquilo IV, Buenos Aires, Biblos, 2001.
que, a princípio, não se pode ou não se deve pensar na
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas. A infância. São
escola, e fazer dela espaço de experiências,
Paulo: Record, 2003
acontecimentos inesperados e imprevisíveis, mundo do
devir e não apenas da história, tempo de aión e não CORAZZA, Sandra. Metainfanciofísica 1 - A criança e o
somente de chrónos. infantil, 2004, mímeo.

Deleuze se perguntava insistentemente, com ________. Infancionática: dois exercícios de ficção e algumas
Spinoza, o que pode um corpo (por exemplo, Deleuze; práticas de artifícios. In: CORAZZA, Sandra; TADEU, Tomaz.
Guattari, 1980, p. 312). Talvez nunca possamos sabê-lo e a Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 89-129.
pretensão de antecipá-lo contribua, infelizmente, para
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
obstruir parte dessa potência. Algo dessa ordem podemos
também perguntar a respeito da infância e sua educação: ________. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
“o que pode uma criança?” Não o sabemos. Quem sabe a
________. As praias da imanência. In: LYOTARD, François,
pergunta não seja tão diferente da que se interroga o que
CAZENAVE, Annie (orgs.) L´art des confins. Mélanges offerts
pode um corpo. Não estamos certos. Mas nesse espaço
à Maurice De Gandillac. Paris: PUF, 1985, p. 79-81
que a insistência da pergunta abre - e que nenhuma
(tradução de Tomaz Tadeu da Silva).
resposta consegue fechar - talvez encontremos forças para
desdobrar potências impensadas na infância. E um novo DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e
início para a educação. Esquizofrenia. Vol. IV. São Paulo: Editora 34, 1997a.

________. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. V. São


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