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Juan Ambrosio

A narração da existência e da história


a partir da dimensão religiosa

Uma reflexão no âmbito da disciplina de EMRC


• Com frequência ouvimos falar da crise.
– O termo «crise» vem do grego «Krisis» e quer significar «decisão, linha
divisória, eleição, questionamento». Designa uma fase que implica
sempre uma certa tensão e uma crítica na evolução das ideias,
acontecimentos ou situações
• Ela manifesta-se nos mais diversos níveis.
• Também ao nível do fenómeno religioso e da experiência da fé.
• O último estádio de uma crise, dizem alguns, costuma manifestar-se por
uma situação de «saturação indiferente».
• Estamos numa fase de transição epocal, de mudança de paradigma, de
metamorfose, …
“Quando a escatologia (história, utopia, Reino de Deus, etc.) entra em crise,

faz ato de presença o apocalipse (o fracasso dos projetos de futuro, a angústia

existencial), e quando o apocalipse começa a ser insuportável, com o evidente

perigo de provocar os maiores desajustamentos psíquicos, então surge o

universo da gnose (a emigração interior, a cultura do eu, o espiritualismo, etc).”

Jacob Taubes (+ 1987) citado por Lluis Duch, Reflexions sobre el futur del cristianisme, PAM, Montserrat 1997, 52-53.
• Verdadeiramente estamos a presenciar «o fim de um mundo»

– O paradigma antigo já não serve e ainda não temos verdadeiramente


o novo.

• Mas este é o tempo oportuno:

– Para sermos protagonistas da elaboração de um novo paradigma.

– Para ajudarmos a edificar «um novo mundo».


• Para o ser humano não existe a possibilidade ‘extra-cultural’
– O seu habitat não é simplesmente a biosfera, mas simultaneamente a
‘culturosfera’.
– A cultura é constitutiva da natureza humana.

• Para a religião não há possibilidade ‘extra-cultural’.


– A religião não se reduz à cultura, mas tem sempre que encarnar numa
cultura.
• A religião como produto da cultura.
• A religião como produtora da cultura.
– A religião é, igualmente, processo de conhecimento e construção da
existência e da história.
• Para a escola não há possibilidade ‘extra-cutulral’.
– É na escola que se transmite a cultura.
– É na escola que se edifica a cultura.
– É na escola que se faz a leitura cultural da existência e da história.
– É na escola que se educam as pessoas para serem protagonistas da
construção da existência e da história.
 Neste tempo de «viragem epocal» e de edificação de «um novo mundo» a
importância da escola reveste-se de novos contornos.
• No momento do seu nascimento o ser humano é um projeto aberto a
inúmeras possibilidades.

• A capacidade de dizer e de dizer-se é uma das características


fundamentais da condição humana.

• A passagem do caos ao cosmos, em todos os níveis da sua existência, só é


possível mediante o uso da palavra.

• A existência humana exige um constante processo de ‘empalavramento’.


• Da sua capacidade de falar e de ouvir depende, em muito, o rosto que vai
edificando da sua humanidade.

• O poliglotismo (capacidade de falar várias linguagens) é fundamental no


processo de humanização.

• Os ‘monolinguismos’ devem a todo custo ser evitados como perversão e


redução do humano.

• A importância da palavra é, também, sublinhada no âmbito da dimensão


religiosa.
• A escola se quer desempenhar bem a sua missão de educar tem de
trabalhar as diversas linguagens:
– A(s) linguagen(s) do logos.
– A linguagem materna.
– A linguagem da alteridade (reconhecimento, respeito do outro).
– A linguagem dos afetos e do amor (relação com o outro).
– A linguagem da responsabilidade ética (cuidado do outro).
– A linguagem da transcendência/simbólica (relação com o Outro).

 Uma escola ‘logo-mítica’.


• O ser humano é sempre um herdeiro.
– Uma adequada receção, contextualização e assimilação da herança (da
tradição) torna-se decisiva para a existência e para a ‘saúde’ do ser
humano.
– Sem a memória há perdas que dificultarão a humanização do ser
humano.
– Esta é facilitada na medida em que viva em comunidades de memória.
– São estas comunidades que permitem ganhar o desafio ao trabalho,
muitas vezes, desarticulador do tempo.
– A memória permitir situar cada indivíduo numa história concreta, fora
da qual o presente é pouco consistente e o futuro improvável.
• Funções da memória:
– Função de transmissão (insere na continuidade de uma história com as
suas particularidades).
– Função de vivência (vinculada à experiência afetiva e amorosa dos
outros vivos e defuntos).
– Função reflexiva (faz a avaliação crítica de tudo o que é transmitido).
• A «patologia do esquecimento» impede a verdadeira experiência da
existência e a construção da história.

 Uma escola que promove e trabalha a memória.


• O específico do exercício da existência humana passa também pela
resposta ética que sempre tem de ser dada num aqui e num agora
históricos.
• O humano e a história não se edificam exclusivamente a partir da biologia,
do direito, da política, dos costumes, ou mesmo do religioso, mas também
a partir do exercício da responsabilidade ética.
– “Aqui revive aquele desígnio de Deus que interpela a humanidade
desde os seus primórdios: «onde está Abel o teu irmão?» […].”
Homilia de Bento XVI no Santuário de Fátima 13/05/2010.
• O cuidado do outro

• Não se reduz ao âmbito físico, psíquico, social,

• É também uma responsabilidade no âmbito do simbólico.

– O cuidado pelo exercício do sentido da vida do outro;

– O cuidado pela felicidade do outro.


 Uma escola que eduque numa e para uma:

‒ Uma ‘ética assimétrica’ por oposição a uma ética simétrica (do ut des), que não
pode ser explicada a partir da lógica do económico.

‒ Uma ética gratuita, do dom, que não brota da realização de uma função, mas
da presença do outro como outro.

‒ Uma ética da promoção do outro, que não possui.

 O exercício da narração da existência e da construção da história tem de incluir a


responsabilidade ética.
“Uma educação como a que propomos […], que tenha como ponto de
partida e de chegada a ética, ou seja, a autoridade e não o poder, o
testemunho e não a imposição arbitrária, o nascimento e não a fabricação,
a liberdade e não a coação, permite instituir processos pedagógicos
baseados na responsabilidade e no reconhecimento. […].

Não pretendemos que a educação deva ser entendida exclusivamente


desde um ponto de vista ético, mas sim que toda ela deve ser
constitutivamente ética.”

Lluís Duch; Joan-Carles Mèlich, Ambigüedades del Amor.


Antropología de la vida cotidiana 2/2, Trotta, Madrid 2009, 200.
• Todo o exercício do viver humano implica uma experiência de narração.
 Exercício, que se carateriza por procurar um ‘plus’ sapiencialmente ativo,
orientador e terapéutico, possibilitando que a vida não seja apenas vida sentida,
mas adquira um sentido que a permita identificar-se e assumir-se como
humana.
 Exercício que tem como função organizar o passado em relação com o presente
e o presente em função do passado, abrindo-os ao futuro.
 Exercício que pressupõe a memória que consolida o presente e perspetiva o
futuro.
• A narração (e muito especialmente a narração religiosa) é (deveria
ser)uma categoria de futuro que arranca do passado, passando pelo
presente.
• A narração constitui também uma das tentativas mais sérias, por parte do ser
humano, de dar resposta às grandes questões que a existência e a história levantam
(mal, finitude, relatividade, destino) incessantemente, entre desespero e consolo, e
marcam inequivocamente a sua humanidade ( e a sua inumanidade).

• A narração é um exercício fundamental tanto para os processos de construção da


identidade individual e coletiva, como para a recriação de uma determinada tradição
religiosa e cultural.

– A identidade (pessoal e coletiva) encontra-se intimamente vinculada à


organização argumental das experiências vividas em entramados mais ou
menos coerentes, resultantes de exercícios narrativos.

– Sem esses exercícios a existência correria o perigo de ficar reduzida a um


conjunto de cenas e spots.
• A narração, como todas as atividades e realizações humanas, está marcada pela
ambiguidade.

 Pelo que tanto pode ser um meio eficaz para atribuir significado, para sustentar
a existência, para abrir ao futuro.

 Como pode articular narrativas ameaçadoras e desestabilizadoras da saúde


física e mental do ser humano.

– Sabemos bem como algumas narrativas religiosas contribuíram para a


construção da geografia de muitos medos e desequilíbrios.
• Toda a narração é um processo que permanece sempre em aberto.

 Possibilitando que cada um, dentro da trama narrada, conte e reconte, leia e
releia:

 Em cada lugar.

 Em cada tempo.

 Fazendo-a sua narração, mas integrada na narração de um nós mais amplo.


A narração como «reflexão sequencial» tem sido – e será sempre – a forma
expressiva privilegiada e insubstituível para a constituição histórica do rosto
cambiante e passível do ser humano porque outorga orientação e
significação a todas as experiências humanas que, dia a dia, desde o
nascimento até à morte, o acompanham. Os humanos temos uma continua
necessidade de narrações para presentarmos e representarmos os outros e
nós mesmos, descobrindo ao mesmo tempo a nossa mortalidade. […]. Em
resumo, pode afirmar-se que narrar é um comportamento caraterístico do
homem, porque o homem é filho da narração (Pierre Janet). Desde uma
perspetiva histórico-cultural pode afirmar-se que o «lugar natural» da
narração encontra-se na tensão, nunca completamente resolvida, entre
mythos y logos.”
LluísDuch,Religiónycomunicación,FragmentaEditorial,Barcelona2012, 252-253.
• As tradições religiosas são também exercício e proposta de narração.
 Nos seus textos sagrados - narração de uma experiência de vida que se
torna texto e que gera vida (da vida para o texto, do texto para a vida).
 Na sua história - a tradição como narração da identidade e a
construção da história a partir da memória atualizada e concretizada
em cada momento.
 Nas suas propostas antropológicas.
 Nos horizontes de caminho que apontam.
 Nos critérios de discernimento que propõem.

• As tradições religiosas são também constituídas como um «nós narrativo»,


como comunidades narrativas.
 A EMRC como contributo para a edificação de uma «escola logomótica».

 As ciências (lógica) que através dos conceitos e das definições


procuram o conhecimento do ‘como e porquê’.

 A sabedoria (mito) que através da narração procura o conhecimento


do ‘para quê’.

 São dois modos/movimentos complementares de conhecimento.

 O primeiro por via de um certo distanciamento.

 O segundo por vida de uma certa aproximação, interiorização e


compromisso.
“Ainda que procedam da mesma raiz – Hermes, Deus dos intérpretes e dos
parlamentares -, há que acrescentar que a autêntica narração outorga
muito mais importância a hermética (sabedoria) do que à hermenêutica, a
qual, quase sempre, se ocupa da compreensão e dos mecanismos que a
fazem possível na diversidade dos momentos históricos. A hermética tem
como finalidade, por meio de uma forma ou outra de «iluminação», a
transformação profunda, a partir das próprias raízes, do indivíduo,
enquanto que a hermenêutica costuma limitar-se à aquisição, à
conceptualização e à classificação de uns determinados saberes que, de
uma maneira ou de outra , se acredita que são úteis para o indivíduo e para
o conjunto da sociedade.”
LluísDuch, Religióny comunicación, 250-251.
 A EMRC e a construção do futuro a partir da memória.

• A memória da experiência cristã, desenvolvida ao longo de toda a


história (tradição).

• Ajudará a contribuir para que Deus não seja «um estranho em nossa
casa»

• Essa presença, reconhecida, poderá ajudar a organizar a casa e a


edificar a história:

– Com a ajuda de outros critérios.

– Com a perspetiva de outros horizontes.


“No nosso entender, tanto a crise religiosa atual como o ingente fracasso
escolar dos nossos dias são uma consequência, juntamente com a
colaboração de alguns outros fatores, da dissolução da narração como
forma comunicativa religiosa e pedagógica por excelência.”
Lluís Duch, Religión y comunicación, 256
 A EMRC como narração que a partir da dimensão religiosa (cristianismo)
contribui:

 Para o conhecimento e elaboração da própria cultura a partir da qual e


na qual se constrói a identidade e se edifica a história.

 Para a edificação da identidade pessoal e coletiva.

 Para a significação da existência (lidando com as questões do princípio


e do fim e com a ambiguidade característica da condição humana).

 Para o cuidado do outro.

 Para a construção do «mundo novo» que neste momento se está a


forjar.
“A realidade fala, expressa-se de mil maneiras através do homem, porque
Deus, na sua obra criadora e sustentadora da realidade, emprega todos os
géneros literários e artísticos. A questão que surge consiste em saber se o
homem - concretamente, o homem contemporâneo - dispõe dessas
linguagens que lhe permitem captar a voz e os gestos de Deus através da
polifonia da criação.”
Lluís Duch, Religión y comunicación, 297.
“[…] o mundo gramatical e social que, tradicionalmente, tinha servido para
expressar a inefabilidade da experiência religiosa submergiu-se num imenso
abismo de inexpressividade e mutismo. Certamente, que o falar da
experiência não é a própria experiência mas, para o ser humano como tal,
sem a ajuda de uma narrativa adequada, não é possível a passagem da
inexperiência para a experiência.”
Lluís Duch, Religión y comunicación, 299.
“Pela nossa parte […], acreditamos que a premente necessidade de
transmissões religiosas do nosso tempo só poderá ser satisfeita mediante
uma reabilitação das narrativas religiosas. No caso do cristianismo, os
tesouros inesgotáveis das parábolas evangélicas permitem-nos manter a
firme esperança da continuada vitalidade, apesar de tudo, da sua
mensagem de salvação e liberdade .”
Lluís Duch, Religión y comunicación, 302.
juanamb@ft.lisboa.ucp.pt

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