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CADERNOS DE CULTURA
CULTURA RELIGIOSA 1

O Fenômeno Religioso
Prof. Josimar Azevedo*
Adaptação: Prof . José Ruiz

1. A Religião como fenômeno universal

Já no terceiro milênio, em um mundo tão modificado pelas conquistas da modernidade, a


religiosidade, a mística e a religião com todas as suas formas de expressão, continuam a
mostrar a sua relevância na auto-compreensão do ser humano, no processo de construção do
mundo e na interpretação da vida como um todo. Não é sem razão que a religião, como um
fenômeno que atinge a totalidade da vida humana, enquanto expressão cultural, social, ou
mesmo nos mistérios de sua interioridade, tem sido considerada como um fenômeno universal
e de expressivo interesse científico.
O mundo globalizado e pluralizado, em que vivemos, tem introduzido novas questões para
a pauta das atenções da humanidade. No interior dos desafios de ordem política e econômica,
como a fome, a paz e a sustentabilidade ecológica, entre outros, está a religião, envolvida em
novo dinamismo, articulando, de forma diversa, sentidos radicais que vão determinando os
rumos da existência humana.
A religião é um fenômeno universal! Não são poucos os testemunhos de estudiosos que
nos confrontam esta realidade:
- “Não há povo, por mais primitivo que seja, em que não se veja a religião” (Antropólogo
Bronislaw Malinowski);
- “Se encontram no passado, e se encontram até hoje sociedades humanas que não
possuem ciência, nem artes, nem filosofia. Mas nunca existiu sociedade sem religião”
(Pensador fancês Henri Bergson);
- “A religião (...) até épocas recentes era encontrada universalmente em todas as
sociedades humanas de que temos registro” (Sociólogo Thomas O’Dea);
- “O homem desenvolveu uma atividade religiosa desde a sua primeira aparição no
cenário da história e que todas as tribos e todas as populações, de qualquer nível
cultural, cultivaram alguma forma de religião” (Pesquisador Batista Mondin. Citado em
SIMÕES, Cultura, p. 11-12)
A religião, ao longo de sua história, tem sido a grande companheira da humanidade,
tirando-a de sua solidão no universo, oferecendo uma orientação global, dando sentido às
coisas, criando valores e normas, gerando solidariedade, construindo a realidade a fundo, a
partir de um sentido último e definitivo. Neste sentido, a religião, é a organização mais
ancestral e sistemática da dimensão utópica inerente ao ser humano, que aposta que o mundo
não está definitivamente perdido, mas que se orienta para uma comunhão plena entre homem
e mulher, ser humano e natureza, Deus e a humanidade. (BOFF, Ecologia, p. 63).

A religião como transcendência do mundo

“A intenção da religião não é explicar o mundo. Ela nasce, justamente, do protesto contra
este mundo que pode ser descrito e explicado pela ciência. A descrição científica, ao se
manter rigorosamente dentro dos limites da realidade instaurada, sacraliza a ordem
estabelecida de coisas. A religião, ao contrário, é a voz de uma consciência que não pode
encontrar descanso no mundo, tal como ele é, e que tem como seu projeto transcendê-lo”
(ALVES, R. O enigma da religião, p. 25, Citado em: BOFF, Ecologia, p. 63-64).

Todavia, os propósitos da religião podem ser orientados para caminhos diversos. A história
da humanidade, também, está profundamente marcada por experiências negativas de
violência, etnocentrismos, autoritarismos, patriarcalismos, preconceitos, feitos em nome da
religião. Atualmente, muitos dos conflitos mundiais estão fundamentados no fanatismo e
fundamentalismo religiosos; basta lembrar os recentes acontecimentos que ficaram conhecidos
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O Prof. Josimar é teólogo, professor na PUC MINAS

como “11 de setembro”, a “Guerra do Iraque” e o terrorismo ainda em curso. A religião, ainda,
tem servido como fundamento de projetos políticos e econômicos desumanizantes, que têm
conduzido parte da humanidade para a fome, o abandono e a exclusão.
Desta forma, o fenômeno religioso, tão antigo quanto a humanidade, se apresenta como
uma realidade sempre atual e desafiante. Refletir sobre ele, significa buscar entender a teia de
relações vitais na qual ele se constrói e se entende, identificar os elementos dessa construção,
suas possíveis representações, codificações, interesses e significados. Tal conhecimento é de
fundamental importância, pois permite:

 Evitar a absolutização da própria experiência religiosa como sendo a única ou


a melhor;
 Perceber a relatividade da experiência pessoal em relação às multiplicidade e
diversidade de experiências humanas, percebendo criticamente seus limites e
possibilidades;
 Sintonizar o ideal com a problemática real, o ideal religioso articulado com a
complexidade da vida quotidiana;
 Ampliar os horizontes de compreensão de si mesmo, do homem, da mulher,
da natureza, da sociedade e do mundo;
 Perceber, com seriedade, os condicionamentos de uma cultura na linguagem,
no agir e em todo o modo de ser, entendendo-a no contexto das muitas
culturas;
 Tomar consciência, no contexto da sociedade globalizada, da parcialidade de
toda experiência e da necessidade das interações entre o particular e o
universal;
 Perceber as várias formas de aproximação do fenômeno religioso, de dentro, a
partir da fé e de fora, a partir das ciências;
 Pensar o fenômeno religioso, de forma interdisciplinar, dentro do entrelaçado
das relações sócio-culturais, identificando seus conflitos, limites e
possibilidades;
 Desmitificar os preconceitos para poder possibilitar o dialogo com o diferente;
 Construir um saber crítico sobre a religiosidade, a mística e suas múltiplas
expressões no concreto da história.

ATIVIDADE.

1. Religião, humanidade, ciência, valores... tem andado juntos ao longo da história, mas
nem sempre na mesma direção.
Em sua opinião, como tem sido essa “companhia”? Justifique.

2. Conhecer o Fenômeno Religioso é de fundamental importância, pois nos permite


(re)descobrir novos valores e atitudes.
Indique algum desses valores que podem aparecer quando o Fenômeno Religioso é
abordado e estudado de maneira científica.
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2. A Religião como um fenômeno humano

O fenômeno religioso é antes de tudo um fenômeno humano, para entendê-lo é preciso


entender o ser humano na sua totalidade, em todas as suas dimensões (biológica, psicológica,
social e transcendental), inter-relacionando-as. Neste contexto, o objeto de estudo do
fenômeno religioso é o mundo do sagrado, o universo religioso do ser humano, multiplicado
por tantas perspectivas quanto as culturas. Aqui vale a observação e a análise da participação
desta dimensão no processo de construção da vida como um todo.
A dimensão transcendental é inata no ser humano, como afirma Mircea Eliade: “Ser -
ou, antes, tornar-se – ser humano significa ser religioso” (ELIADE, 1983, p. 14). Desde os
mais primitivos traços nas cavernas, que demonstram sua inteligência, o homem manifesta a
dimensão religiosa.

O homem é o único capaz da manifestação Religiosa

“Dentre os seres vivos sobre a terra, é o homem o único capaz da manifestação


religiosa. Essa capacidade é constitutiva do ser humano, como o são a racionalidade, a
vontade e a liberdade. Por isso todo homem tem em si a capacidade de
autotranscendência religiosa. As mais diversas pesquisas etnológicas e antropológicas
constatam traços de manifestação religiosa em todos os grupos humanos, desde os
mais primitivos aos mais civilizados. O homem se percebe superior à universalidade das
coisas (apesar de algumas vezes, por não impostar bem sua manifestação, fazer de
certas coisas ou de outros homens superiores a si), e não se contenta com o anonimato
entre os outros seres animais. Penetrando no íntimo mais recôndito de si mesmo atinge
a própria profundidade real: sua grandeza. Esta mesma constatação, porém, evidencia
seu limite: existe algo além de si próprio. A dor, a morte, a solidariedade e a utopia
ocultam e desvelam outras dimensões sem seu coração inquieto” (HELCION,
Religiosidade, p. 11)

O ser humano é um ser que não se contenta em viver enclausurado dentro dos limites
da história, da vida física, do perceptível e compreensível, ele sempre se projeta inquietamente
para o mais, para o maior, para o além. A sensação de incompletude, de carência que lhe
assola a existência o tempo inteiro, o remete, constantemente, na busca do eterno e
definitivo. Esta abertura radical, essa projeção infinita do ser humano é o que caracteriza,
antropologicamente, sua religiosidade.
A Religiosidade é, portanto, uma atitude dinâmica de abertura efetiva da pessoa ao
sentido fundamental, radical de sua existência – seja qual for o modo como este sentido é
percebido –, a ponto de tornar-se a orientação básica de sua vida. Parte das perguntas: de
onde vim? Qual a razão de existir? Pra onde vou? unindo passado, presente e futuro. É uma
atitude pessoal de protesto do ser com relação ao mundo que ele integra, buscando respostas,
soluções existenciais que o extrapolem. Neste sentido, apresenta-se como a dimensão mais
profunda da vida, como a matriz de todas, capaz de projetar o ser humano para além dos
limites, suprir sua ignorância em relação à existência, transcendê-lo e determinar seu modo de
intervenção na história.
A religiosidade, como dimensão constitutiva de todo ser humano, é anterior à religião .
O ser humano é histórico, por isso, sua religiosidade é exteriorizada dentro de sistemas
formais (ritos, mitos, doutrinas, mistérios, celebrações, reuniões, comunidades, tradições,
etc.), próprios de seu espaço cultural. Esta maneira de viver a religiosidade, no colorido
conjuntural das épocas e dos lugares, profundamente marcada pelas circunstâncias históricas,
é o que constitui a grande diversidade e pluralidade das religiões. As religiões são as
respostas, no plural, das perguntas humanas pelo sentido, codificando seus mais nobres
desejos, anseios e expectativas, suas mais sofridas angústias e suas mais profundas
esperanças.
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Simbolismo religioso

“O simbolismo acha-se intimamente unido ao mito em toda religião, e é um elemento


capital e universal em que trabalha intensamente a pesquisa científica moderna. Na
mentalidade e na psicologia religiosa, sobretudo do Oriente, tem simplesmente lugar
primacial. Uma dicotomia fundamental caracteriza o universo: uma parte das coisas, as
sensíveis, simbolizam; ao passo que as outras, as divinas, são simbolizas; assim
confirma-se a intuição do poeta que via no universo ‘floresta de símbolos’. Mas é
preciso compreender o simbolismo num sentido bem realista. Não se trata, com efeito,
em muitos casos, de simples reminiscência intencional, mas como que de uma
composição real, de um simbiose, de um e de outro lado, como no direito e no avesso
dum tecido. Então o lado sensível não se limita a simbolizar, mas evoca o lado
misterioso e invisível que se acha muito além das aparências” (SHLESINGER, Hugo et
PORTO, Humberto. As religiões ontem e hoje. São Paulo, Paulinas, 1982, p. 251)

Para viabilizar toda essa experiência que as religiões comportam, o ser humano cria
símbolos. Ele tem necessidade dos símbolos para a sua orientação e ordenação do mundo em
que vive. O símbolo é um nexo que une a manifestação terrena e o sagrado que nela se
manifesta, constituindo uma única experiência. As religiões, portanto, ao nascerem da
transparência das manifestações humanas, do quotidiano para a realidade última, apresentam-
se, em sua expressão e comunicação, de forma obrigatoriamente simbólica.
O simbolismo religioso abrange especialmente as palavras religiosas (linguagem
sagrada: latim, sânscrito, etc.), objetos visíveis (representação visual do sagrado), ações
(ritual), músicas, danças, etc. Os símbolos têm um grande papel em todas as atividades
religiosas. Não há religião sem símbolos. Tudo pode tornar-se símbolo quando há um
significado que vai além daquilo que a pessoa vê, ouve, sente, cheira ou toca. É próprio do
símbolo expressar significados que não podem ser percebidos diretamente pelos sentidos.
Todavia, toda linguagem simbólica está estreitamente relacionada com seu contexto, a partir
de onde ela se faz entender em seu significado.
O símbolo, portanto, é sinal que combina dois aspectos da realidade: objetivo (mundo
exterior dos seres e objetos) e subjetivo (mundo interior de sua experiência). Os símbolos são
marcos de orientação, formulações de sentido que o homem utiliza para identificar, explicar e
ordenar suas experiências internas e as que o mundo exterior nele provoca. O símbolo possui
dois componentes: vivencial, pré-racional (com suas raízes no mundo interior das emoções, na
camada psíquica do inconsciente) e racional: pertencente à camada da consciência reflexa. A
união de ambos os componentes constitui o símbolo.
Em síntese, podemos definir o símbolo como a formulação figurada de uma experiência
humana, com o fim de lhe atribuir sentido no interior do mundo. Entre os dois elementos
constitutivos do símbolo, podemos encontrar o significante (a imagem ou realidade em que o
símbolo se encarna) e o significado (a experiência expressada).
A partir desses pressupostos entendemos a Religião como relegere (reler), ou seja, é
preciso aprender a decodificar o fenômeno religioso presente em cada contexto. Wittengstein
define a religião como um abajur que ilumina bem um determinado lugar e emite pouca luz
para outro contexto. Desta forma, não há uma definição que esgote o sentido da religião. Em
sua estrutura simbólica, a religião apresenta-se sempre revestida de um dinamismo originário,
que faz e refaz seu significado constantemente. É algo vivo, em constante processo de
construção, subordinado à complexidade das possibilidades do ser humano conceber o
universo inteiro como algo humanamente significativo.
Como fenômeno humano, as religiões estão subordinadas as condições de
possibilidades da história, encontrando aí suas riquezas, limites e definições. Por isso não
convém falar de religião, mas de religiões, para expressar sua pluralidade de formas e
complexidade de interpretações.

ATIVIDADE

1. Escreva um breve texto relacionando os conceitos de Religiosidade, Cultura e Religião.


Qual é a função do símbolo nessa relação?
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3. A Religião como realização socioindividual

“Religião é a realização socioindividual (em doutrina, costume, freqüentemente ritos)


de uma relação do homem com algo que o transcende e a seu mundo, ou que abrange
todo o mundo, que se desdobra dentro de uma tradição e de uma comunidade. É a
realização de uma relação do homem com uma realidade verdadeira e suprema, seja
ela compreendida da maneira que for (Deus, o Absoluto, Nirvana, Shûyatâ, Tao).
Tradição e comunidade são dimensões básicas para todas as grandes religiões:
doutrina, costumes e ritos são suas funções básicas; transcendência (para cima ou para
dentro, no espaço e/ou no tempo, como salvação, iluminação ou libertação) é sua
preocupação básica” (H. Küng, Introdução: o debate sobre o conceito de religião, in
Concilium 1986/1, n. 203. Pp. 5-10; aqui p. 8. In: LIBANIO, A religião, p. 91).

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Religião como relacionamento pessoal do homem com Deus

“Forma concreta, visível e social, de relacionamento pessoal e comunitário do homem


com Deus. Conjunto sistemático de ritos, costumes, atos e palavras culturais, relações
humanas, patrimônio escriturístico e sapiencial. No caso concreto, significa a religião
um todo de homens fiéis a mesma crença, dados a idênticos atos de culto e concordes
no procedimento moral. Importa distinguir entre a religião como dimensão interior do
homem (religio subiectiva) e a religião como instituição externa exprimimdo-se em
crenças e práticas pessoais ou coletivas (religio obiectiva)” (SHLESINGER, Hugo et
PORTO, Humberto. As religiões ontem e hoje. São Paulo, Paulinas, 1982, p. 251).

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A religião pode, ainda, ser definida a partir de seu objeto (religião como crença em
seres sobrenaturais: Deus, deuses, espíritos etc.), ou a partir de sua função (Religião como um
instrumento para resolver problemas existenciais, legitimar a ordem social, proteger a pessoa
contra a angústia etc.
Desta forma, a complexidade da religião, permite que ela seja compreendida de muitas
formas:

- Como a instituição de um sistema de ritos, práticas, doutrinas, constituições,


organizações, tradições, mitos, artes que possibilitam a re-ligação com o mundo divino;
- Como a indicação do caminho da razão, da experiência humana para religar-se com o
divino;
- Como a configuração de um sistema de representação, de orientação, de
normatividade;
- Como a tradução de uma realidade objetiva, uma tradição acumulada e vivida por uma
comunidade;
- Como a expressão visível da relação com o sagrado;
- Como a expressão histórica da relação salvífica entre Deus e a humanidade.

Todas as definições de religião propostas mostram que religião é algo que não se
conforma dentro de uma definição. Assim como não existe a religião perfeita, também não
existe uma definição perfeita. A definição se presta ao serviço de ser mais útil que verdadeira,
por que ela é um instrumento de trabalho e não a finalidade da pesquisa. Toda e qualquer
definição possui uma subjetividade inerente que a determina.

ATIVIDADE

1. Identifique alguns elementos que não podem faltar numa visão –mesmo que
parcial- de Religião.
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4. A Religião como fenômeno cultural

As manifestações religiosas foram se estruturando, no decorrer da história da


humanidade, no interior das diferentes culturas. Não há época nem espaços humanos sem
religião. A religião sempre esteve presente na história da humanidade sob as formas mais
distintas. Ela é patrimônio antropológico de base. Malinowski, já observava, tal como citado
acima, que não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religião e magia, bem
como sem atitudes científicas ou ciência, mesmo que se lhes fossem negada esta capacidade.
Desta forma, a religião como fenômeno universal é também um fenômeno cultural, ou seja,
todos os elementos materiais que a compõe estão profundamente enraizados na totalidade da
experiência humana, mediada pelas diferentes culturas. Só aí podemos compreendê-los.

Religião como expressão cultural

“Toda experiência religiosa se exprime mediante um código cultural. Ela é parte da


cultura; vem influenciada pela cultura ambiente e influencia a cultura. Já E. Durkheim
mostrou como a religião não se esgota na expressão do rito, do culto e da doutrina (Les
formes élémentarires, p. 611-5). Ela produz também uma cosmologia, quer dizer, um
discurso sobre o mundo. Não se trata de fazer ciência, porque este não é o sentido da
religião, mas de projetar uma imagem global do mundo que mostre sua religação com
a divindade. Cada cosmologia representa, a seu modo, Deus e o sentido globalizador,
integrador e sacramental do mundo”. (BOFF, Ecologia, p. 65);

O conceito cultura

“O conceito ‘cultura’ nos diz respeito ao sentido da produção material, da conduta e


‘administração’ social e da criação e/ou interpretação intelectual, artística e espiritual
dos grupos humanos. Ao criar coisas, o homem pode forjar um sentido. Este significado
é historicamente elaborado e transmitido. É embutido em sistemas de símbolos e
representações, administrados em instituições coletivas de longa memória. A gênese e
a transmissão da cultura não podem ser pensadas a partir de indivíduos. Indivíduos não
têm memória além de sua morte. O samba que criaram não está no sangue dos seus
filhos. A herança cultural – e a cultura sempre é uma herança novamente
experimentada – é transmitida e aprendida em instituições coletivas do grupo. O
“aparelho religioso” em sociedades de uma certa complexidade é uma destas
instituições. Não só o samba, também o tambor, a banda, a rua e própria escola de
samba são dados culturais. A questão da cultura nos leva ao conjunto de bens,
significados, valores e normas (condutas) produzidos coletivamente no espaço de
experiência cognitiva e material, no território reflexivo e consciente, livre e tutelado”.
(SUESS, Culturas e Evangelização, p. 46-47);

A relação entre religião cultura e, em primeira mão, advém do próprio significado do


termo “culto”, que estabelece uma ligação entre os dois campos. No latim, quer dizer, para os
camponeses da Roma antiga, cultura agri não significava apenas trabalhar na lavoura, mas
também cultus agri, uma postura religiosa em face dos doadores dos frutos da terra e das
suas forças telúricas. Esta unidade cultural-religiosa está presente no trato que os povos
indígenas ainda hoje dispensam à sua terra. Consideram-na “terra-mãe”, Patcha Mama,
divindade fiel e generosa, e não um mero objeto socioeconômico.
As tentativas de reconstrução histórica das primeiras culturas e religiões, por
pesquisadores, tarefa que não logrou êxito, têm possibilitado, contudo, a verificação de suas
primeiras articulações na memória mítica dos povos. Nos mitos de origem de quase todos os
povos encontra-se uma articulação íntima e original entre cultura e religião. Quase sempre são
seres divinos que estão como criadores e/ou “ladrões” doadores na origem das aquisições
culturais dos homens. O mito, contado de geração em geração, e representado no culto, é
palavra eficaz; é verdade absoluta sobre o caminho do bem e do mal; é história sagrada das
origens, constitutiva para a identidade do respectivo grupo humano. O mito é, ao mesmo
tempo, uma palavra narrativa e lógica, afetiva e efetiva, repetitiva e historicamente aberta.
Segundo testemunho de Paulo Suess, um dos estudiosos das culturas indígenas no Brasil,
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quem teve a oportunidade de presenciar entre os povos indígenas a narrativa ou a celebração
destas origens mitológicas, percebe na emoção do narrador ou dos celebrantes – por vezes,
vai do choro ao grito – a vida real que a narração representa. Em sociedades autóctones não-
estratificadas, o mito tem a vantagem de representar a reflexão consensual de um
determinado povo. As “intuições míticas” mostram até hoje uma certa força explicativa. Depois
de quase três mil anos do seu surgimento, o mito de Édipo, por exemplo, tornou-se um
conceito-chave de interpretação do homem moderno (SUESS, Culturas e Evangelização, p.
49).

Reconstrução das origens da humanidade (cultura x natureza)

“Para entender a questão das culturas, os cientistas sociais tentaram reconstruir a


passagem dos “naturais” para os “culturais” a partir das origens da humanidade. Nas
origens do homem se encontrariam também as da cultura e da religião. Mas a
reconstrução das origens revelou-se cada vez mais impossível. As diferentes hipóteses
sobre as origens da humanidade – a origem humana a partir da palavra (Monod), do
parentesco (Lévi-Strauss) ou da produção (Marx) – representam antes chaves de
leitura complementares que reconstruções históricas. Também os etnólogos não
conseguiram avançar além da barreira do som de hipóteses. Nem o animismo (E.
Tylor), nem o totemimsmo (E. Dukheim, S. Freud), nem o dinamismo (Van Gennep)
conseguiram esclarecer a origem da totalidade dos fenômenos religiosos para a
reconstrução histórica das religiões “primitivas” ou de uma proto-religião. O que as
descrições da etnografia e da história das religiões mostram é uma multiplicidade de
religiões, que corresponde a uma multiplicidade das culturas, ao mesmo tempo
interdependentes e independentes entre si”. (SUESS, Culturas e Evangelização, p. 48-
49);

A relação entre cultura e religião é dinâmica e mútuo implicativa. Parafraseando Otto


Maduro, ao tratar da relação entre religião e sociedade, podemos dizer que ela se dá em três
posições: a cultura exerce, com suas estruturas, enorme influência sobre a religião; por sua
vez, a religião influencia também a cultura; e, além disso, cada uma dessas instâncias
conserva um grau de autonomia em relação à outra.
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5. Dessacralização da natureza

“Na história das religiões, observa-se uma progressiva retirada dos seres divinos da
natureza para o além. Esta “transcendentalização” desarticulou a antiga síntese entre
natureza, cultura e religião. A conquista da autonomia humana em face das
contingências da natureza também é um dado religioso. Para se libertar desta natureza
arbitrária, do destino cego e da programação natural, o homem tinha de dessacralizar
esta natureza externa e interna (consciência). O Deus soberano, pessoal e
transcendente do judeu-cristianismo é criador dessa natureza, não o seu inquilino. O
processo de dessacralização da natureza, porém, está na raiz do processo de
secularização. Em diferentes vertentes deste processo de secularização, Deus não só
deixou de ser habitante da natureza. Deixou de ser também o seu criador. No ateísmo
prático e programático deixou até de existir”. (SUESS, Culturas e Evangelização, p. 42)

Historicamente, o processo de dessacralização da natureza, que se deu em larga escala


no interior da modernidade, deu origem a outro processo, o da secularização, hostil às
religiões, o que possibilitou a progressiva emancipação do campo cultural do campo religioso,
principalmente pela crescente complexidade das respectivas sociedades. Contudo, esta
emancipação, possibilitou também, cada vez mais, que uma religião possa ser vivida em várias
culturas e que uma cultura possa fornecer as mediações materiais, institucionais e simbólicas
para diferentes religiões. Uma religião monoteísta, por exemplo, pode coexistir com um resto
cultural específico de várias culturas complexas. Nestas condições, as mudanças culturais não
significam, necessariamente, a destruição da religião, como as mudanças religiosas não
significam, automaticamente, a destruição cultural. (SUESS, Culturas e Evangelização, p. 43-
44);

Transversalidade das culturas e das religiões

“Nenhuma cultura, nenhuma religião são entidades fechadas. Pelas culturas, os seres
humanos constroem os meios de habitar o mundo, segundo as modalidades de uma
riqueza e inventividade extraordinária; esse esforço, na base da cultura, lhe é comum.
Em todas as partes e sempre a humanidade encontrou e encontra os mesmos
problemas de sobrevivência, do sentido da diferença dos sexos, da seqüência de
gerações, do sofrimento, da morte. As respostas, os desafios fundamentais e as
interrogações são os mesmo. Eis o que funda certa transversalidade entre as culturas,
uma possibilidade de compreendermo-nos nas nossas próprias diferenças” (P. Valadier,
La mondialisation et les cultures, in Études n. 3955, novembre, 2001, p. 512. Citado
em: LIBANIO, A religião, p. 150).

O sujeito da cultura é o mesmo da religião. É o mesmo ser humano que atravessa


todas as culturas, levantando as mesmas perguntas sobre o sentido da vida, da dor, do
sofrimento, da morte. É de fundamental importância considerar que a expressão concreta do
religioso e do místico passa pela diferença das culturas. Tal consciência permite que se evite
uma aproximação superficial e abstrata e se perceba os limites inerentes a cada expressão
religiosa cultural, bem como a contribuição específica que se pode esperar dela.

ATIVIDADE

1. Faça uma pesquisa conceitual sobre os termos: Totemismo, Animismo,


Modernidade, Secularização.
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6. A Religião como fenômeno social

Compreender que o fenômeno religioso é contextual é aceitar que os fatores sociais o


provocam, o alimentam, lhe dão inteligibilidade. Neste contexto, é preciso explicitar alguns
elementos fundamentais que caracterizam a relação entre religião e sociedade. Como ponto de
partida, vale para esta relação o que foi dito acima da relação entre cultura e religião, ou seja,
que é dinâmica e mútuo implicativa.

Relação dialética ser humano e sociedade

“Toda sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo. A religião


ocupa um lugar destacado nesse empreendimento... A sociedade é um fenômeno
dialético por ser um produto humano, e nada mais que um produto humano, que no
entanto retroagem continuamente sobre o seu produtor. A sociedade é um produto do
homem. Não tem outro ser, exceto aquele lhe é conferido pela atividade e consciência
humana. Não pode haver realidade social sem o homem. Pode-se também afirmar, no
entanto, que o homem é produto da sociedade”. (P. Berger, O dossel sagrado.
Elementos para uma teoria sociológica da religião, São Paulo, Paulinas, 1985, p. 15.
Citado em: LIBANIO, A religião, p. 111).

A religião, historicamente, teve e tem uma participação significativa no processo de


construção da sociedade, influenciando seus rumos, por vezes seguindo por caminhos nem
sempre produtivos para o desenvolvimento da humanidade. É do conhecimento de todos as
mazelas históricas, ainda atuais, feitas em nome da religião. Todavia, tem se apresentado,
institucionalmente ou não, como uma referência crítica para a organização social,
influenciando, com sua perspectiva humanitária, a consolidação dos valores, oferecendo, de
forma particular, os fundamentos últimos para a determinação dos princípios éticos
fundamentais da convivência humana.

Relações mútuas mas não iguais

“Hoje há clareza suficiente para saber como as relações são mútuas, mas não iguais no
tempo, no espaço e nas questões. Há momentos, há lugares, há temas em que a
religião influencia mais a sociedade. Há outros em que o braço da balança inclina-se
para a sociedade”. Dito de maneira simplificadíssima, na Idade Média a religião
influenciava mais a vida da sociedade do que por ela era influenciada. E na
modernidade inverte-se o processo. A economia, a política, a cultura modernas
impactam tão profundamente a religião, a ponto de teóricos interpretá-la como mera
ressonância da sociedade. Se antes se dizia que cada religião era seu povo, depois
valeu o aforismo ‘omnis regio, ibi religio’ – ‘cada região, sua religião’”. (LIBANIO, A
religião, p. 46)

Por muito tempo, os estudos, principalmente sociológicos, que se ocupavam da tarefa


de observar a relação sociedade-religião, evidenciavam unicamente as influências da primeira
sobre a segunda. Ora, uma análise que só consegue perceber as influências da sociedade
sobre a religião, apresenta-se, de início, comprometida e quando absolutizada, torna-se falsa,
por desconhecer o papel da religião na sociedade, bem como sua autonomia. A teoria marxista
rígida, que afirma que a religião não passa de uma superestrutura determinada pela infra-
estrutura econômica, é um exemplo clássico dessa leitura parcial. O mesmo vale para as
leituras que pensavam a religião imune dos processo sociais, salvaguardada da contaminação
das impurezas históricas da sociedade. Tal realidade nunca foi possível e tal compreensão,
além de não ter valor algum, não é mais aceita.

É fato, os limites, conflitos e possibilidades da sociedade refletem dentro da religião e


vice-versa. A religião, no seu processo de organização, se apropria do socialmente disponível.
A sociedade, por sua vez, em seu processo de construção, é profundamente influenciada pelas
perspectivas e orientações oriundas da religião. Desta forma, todo e qualquer agir da religião
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deve levar em consideração as condições sociais reais. Por outro lado, toda e qualquer
intervenção na sociedade deve, necessariamente, considerar o dinamismo da religião em seu
interior.

Uma definição sociológica da religião

“Uma definição sociológica da religião é uma definição da religião enquanto parte da


dinâmica social, influi sobre ela e dela recebe um impacto decisivo. Uma definição
sociológica da religião é uma definição da religião como fenômeno social, fenômeno
social imerso numa complexa e movimentada rede de relações sociais. Vale dizer, uma
definição sociológica da religião é uma definição que procura recolher e expressar um
aspecto das religiões: o aspecto de fenômeno social presente em todo fato religioso.”
(O. Maduro, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-
relações na América Latina, Petrópolis, Vozes, 1981, p. 41. Citado em: LIBANIO, A
religião, p. 113).

Todavia, a sociedade não é a religião e a religião não é a sociedade. Não há uma


relação de identificação. A religião e a sociedade guardam sua autonomia. Se uma fosse puro
reflexo da outra a religião já não seria religião com suas regras, com sua lei interna, com suas
reivindicações e propostas, com suas demandas e ofertas e, da mesma forma, a sociedade. O
espaço da autonomia varia de acordo com o momento histórico e o lugar, obedecendo o jogo
das força no entrelaçado das relações.
A autonomia da religião em relação à sociedade, consiste na sua religiosidade, que não
é uma simples produção do meio, mas a afirmação de uma orientação ontológica fundamental
na existência humana, um dinamismo que a faz aberta e voltada para o Absoluto, o
Transcendente. Essa raiz ontológica entrelaça-se com o contexto, assumindo uma forma
concreta, mas não se fundamenta nela. Essa reserva originária da religião é o que define, em
última instância, sua identidade, o que lhe dá a consistência e a preserva em situações
adversas. Essa autonomia, no entanto, varia de religião para religião.
A autonomia de ambas as esferas, quando levada a bom termo, se absolutismos e
atropelamentos, possibilita uma ação interativa, necessária e produtiva. A ação da sociedade
sobre a religião permite manter-lhe sintonizada com as expectativas humanas e seus projetos
concretos, tornando-a companheira no quotidiano da vida. A religião, por sua vez, ao fazer das
relações sociais, políticas, econômicas e culturais seu campo de atuação, assumindo os
conflitos próprios dessa opção, sintoniza os projetos históricos com as mais nobres aspirações
da humanidade, suas mais profundas esperanças, seu sentido fundamental e radical, sua
vocação última e definitiva, superando a condição de ópio do povo ou reprodução da
hegemonia dominante, assumindo-se como uma força revolucionária. (LIBANIO, A religião, p.
114).

ATIVIDADE

1. A sociedade é um produto humano, é o ser humano um produto social?


2. Qual é a influência da Religião na construção de uma sociedade, e vice-versa?
3. Indique alguns pontos positivos / negativos dessa mútua influência.
11
7. A religião no contexto das ciências

São muitas as possibilidades de relacionar religião e ciência. Em primeiro lugar, a


religião, como lugar de atribuição de sentido aos dados da realidade, é também um modo de
compreensão do mundo e, portanto, de conhecimento. Neste sentido, pode-se até considerar
que a ciência estabelecida e as religiões históricas e organizadas partilham um passado
comum, dividindo a mesma fonte inspiradora, que continua ainda a fluir: o mito e a
metafísica.

A ciência no confronto com as questões da vida

“A ciência se defronta com um certo número de questões muito importantes, em que a


separação entre o que é propriamente ciência e o que ultrapassa é difícil e até
impossível. É o caso do começo do universo, da formação e desenvolvimento da
matéria, primeiro; depois, da vida, desde a primeira célula até o homem, da geração do
ser humano. Processo que não podemos tratar em termos de pura materialidade
positiva; ‘sentimos’ que ele implica o que chamamos comumente de espírito, finalidade
e, com o homem, liberdade” (F. RUSSO, “Sur l’affaire Galilée”, in Études, junho de
1980, p.752. Citado em: MORIN, Dominique. Para falar de Deus. São Paulo, Loyola,
1993, p. 55);

A religião, como fenômeno humano, cultural e social, concretizado nas diferentes


formas de expressões religiosas, é portadora de uma riqueza inesgotável das possibilidades de
viver e compreender a existência humana. Neste sentido, ela constitui um patrimônio precioso
de conhecimento, que diz muito a respeito do passado, presente e futuro da vida humana.
Desta forma, como patrimônio que pertence à toda humanidade, tem sido objeto valioso de
estudo da ciência moderna, de forma particular, das ciência humanas. É neste contexto, que
surge, dentro das diversas ciências, áreas específicas para o estudo da religião. São
significativos, entre os vários estudos, a filosofia da religião, sociologia da religião,
fenomenologia da religião, psicologia da religião, história das religiões e ciência das religiões,
entre outras.

FILOSOFIA DA RELIGIÃO

“Estudo que reúne o conjunto de conhecimentos ligados ao fenômeno religioso, em um


número reduzido de princípios que lhe servem de fundamento e lhe delimitam o âmbito
de compreensão. Sobre o fundamento do mito desenvolveu-se ordinariamente nas
grandes religiões uma filosofia religiosa verdadeira e própria, se bem que mito e
especulação filosófica se penetrem e se apóiem reciprocamente. O mito, como
linguagem altamente simbólica, é por natureza polivalente, necessita, por conseguinte,
de precisões conceituadas; por isso para cada religião a faculdade de precisar-se, de
especificar-se, de expandir-se continuamente em novas concepções, mesmo
contraditórias, mas sempre na linha de certa continuidade tradicional. Mas a filosofia
não se limita a esta conexão com o mito no quadro de uma visão de mundo. Achamos-
la também em todas as religiões no nível da vida prática sob forma de sabedoria
popular, muitas vezes expressa em provérbios e axiomas, ou em intuições relativas à
vida e à morte, ao homem e à sua experiência, ao mundo presente e ao além. Esta
filosofia não ultrapassa o “senso comum”, é a expressão de um realismo sadio que
apresenta muitas vezes uma plataforma de encontro no plano humano e no da
sabedoria” (SHLESINGER, Hugo et PORTO, Humberto. As religiões, p. 115-116).

SOCIOLOGIA DAS RELIGIÕES

“Estudo objetivo das relações sociais estabelecidas pelas religiões. Abrange os dois
campos relacionais, interpessoal e intergrupal; e considera as instituições, normas, leis
e valores criados por essas relações no campo religioso”. (SHLESINGER, Hugo et
PORTO, Humberto. As religiões, p. 255).
12

FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO

“Estudo descritivo de uma religião ou de um conjunto de religiões em seus princípios e


em suas manifestações históricas. Através da análise da experiência, tenta remontar
aos elementos originários e explicativos, e destrinçar-lhe todos os componentes. Não é
ciência que não dependa de outras, como a antropologia, a filosofia, a etnologia etc,
tanto com relação ao conteúdo, quanto ao método. É próprio da fenomenologia
religiosa aprender o significado último dos fenômenos religiosos como expressões da
espiritualidade humana”. (SHLESINGER, Hugo et PORTO, Humberto. As religiões, p.
113).

PSICOLOGIA DA RELIGIÃO

“Estudo dos fenômenos psíquicos e do comportamento que acompanham a vida


religiosa dos indivíduos e dos grupos sociais” (SHLESINGER, Hugo et PORTO, Humberto.
As religiões, p. 221).

HISTÓRIA DAS RELIGIÕES

“Estudo científico e metódico da origem e evolução de todas as expressões religiosas da


humanidade. Ocupa-se em narrar o surgimento de cada uma delas como fato social em
diferentes épocas e culturas. Descreve o papel das religiões na vida do homem e no
desenvolvimento da sociedade. O primeiro autor foi JENOFANES no século VII a.C”.
(SHLESINGER, Hugo et PORTO, Humberto. As religiões, p. 133).

CIÊNCIA DAS RELIGIÕES

“Disciplina autônoma que tem por objeto a análise dos elementos comuns da diversas
religiões com o fito de decifrar-lhes as leis de evolução e sobretudo precisar a origem e
a forma primeira da religião”. (SHLESINGER, Hugo et PORTO, Humberto. As religiões,
p. 63).

A história da relação entre religião e ciência, foi também profundamente marcada por
conflitos e hostilidades. No ocidente, de forma particular, o confronto foi desde a submissão da
ciência à teologia, enquanto expressão refletida da fé, passando pelos conflitos que se
agravaram na modernidade e por uma seguinte etapa intermediária de harmonização
apologética até chegar a ruptura radical com o positivismo da ciência. Neste contexto, a
relação entre fé cristã e ciência levou a uma ruptura catastrófica entre Igreja e mundo
moderno, a tal ponto que chegou–se à crer, por um lado, na endemonização da ciência e, por
outro, que a ciência moderna ia extinguir definitivamente a religião e eliminar Deus da cultura
contemporânea.
13

8. A ciência ou Deus? (ou a relação Razão x Fé)

“Durante mais ou menos dois milênios, acreditou-se, com fundamento nas afirmações
bíblicas, que o universo fora criado em sete dias e que essa criação datava de cerca de
4.000 a.C. Ora, hoje os astrofísicos calculam em cerca de quinze bilhões de anos de
idade do nosso universo, e são mais ou menos capazes de reconstruir as principais
fases dessa história, a partir do “big bang” inicial, que se supõe ter sido o “começo” do
mundo. Passou-se do fixismo a transformismo; de um mundo terminado e estável, a
um universo em expansão e em constante evolução. Portanto, aparentemente há uma
grande distância entre essas descobertas prodigiosas e as duas narrativas bíblicas da
criação do mundo, que nos mostram, por exemplo, Deus modelando a terra como um
oleiro trabalha a argila, ou “operando” Adão para tirar dele uma costela e poder formar
Eva! Infelizmente, durante muito tempo, quiseram tomar essas imagens – aliás, ricas
de significação em outro nível – por verdades científicas... o que elas absolutamente
não eram. ...Esse lamentável engano contribuiu para formar, na mente de inúmero
não-crentes – e de certos crentes constrangidos em sua fé, por esse fato -, a convicção
de que não se podia aceitar ao mesmo tempo o que afirmava a ciência e o que dizia a
Bíblia. E, portanto, que não era possível crer simultaneamente na ciência e em Deus!”
(MORIN, Dominique. Para falar de Deus. São Paulo, Loyola, 1993, p. 39);

Afinal, historicamente, nem a Igreja nem a ciência lograram êxito em suas pretensões
funestas. Hoje se tenta superar tal momento, principalmente depois do doloroso caso Galileu e
dos problemas da evolução pós-Darwin, a partir da consciência de que a realidade é muito
mais complexa do que se acreditara no momento em que o positivismo triunfante atacava
com violência uma Igreja imobilizada no conservadorismo e na desconfiança. Na verdade, cada
vez mais se foi evidenciando que, não apenas a ciência não contradizia a confissão do Deus da
Revelação cristã, mas que às vezes até poderia levar a ele. Desta forma, pauta-se por uma
compreensão hermenêutico - crítica de ambas as partes.

Nova abertura entre religião e ciência

“É possível fechar os olhos para o fato de que o relacionamento entre ciência e religião
melhoram lentamente, apesar da desconfiança recíproca persistente? Estamos
caminhando na direção de uma nova abertura... É entre os físicos que a coisa é mais
surpreendente: muitos vêem hoje como é insuficiente a imagem do mundo e a
concepção materialista e positivista da realidade; como é relativo também o seu
método mesmo. É precisamente entre os físicos que não se vêem mais, na atualidade,
senão poucos ateus militantes, ainda que haja um bom número de agnósticos. A
invenção da bomba atômica mas, cada vez mais, também os resultados negativos do
progresso científico e técnico em geral, suscitaram, em primeiro lugar entre os físicos
nucleares, a questão da responsabilidade na ação científica e técnica e, por sua vez, o
questionamento sobre o sentido que se há de procurar, sobre a escala de valores, sobre
os modelos que se seguirão e - para encontrar-lhes um fundamento – sobre a religião”
(H. KÜNG, Dieu existe-t-il?, Seuil, 1981, p. 640. Citado em: MORIN, Dominique. Para
falar de Deus. São Paulo, Loyola, 1993, p. 57);

Do lado da ciência, não só os resultados científicos negativos, mas principalmente as


prodigiosas descoberta científicas modernas, que trouxeram nova luz para compreender
sempre mais a complexidade propriamente inimaginável do universo, recolocando a questão
da origem e sentido da existência, possibilitaram maior abertura para o diálogo com a religião.
Do lado da religião, de forma particular da Igreja católica, maior abertura foi
conquistada pelo Concílio Vaticano II, que estimulou uma aproximação positiva da
modernidade e de todas as suas conquistas.
O postulado indicado na relação da religião com a cultura e a sociedade, vale também
aqui na relação com a ciência, ou seja, é uma relação dinâmica e mútua implicativa. As
religiões, enquanto instituições, e as ciências estabelecem entre si mútua crítica. As ciências
14
criticam a religião no que ela ainda conserva de concepção animista, mágica, pré-científica da
realidade; aponta para os riscos da alienação e para as confusões entre ação de Deus e
eventos puramente naturais. A religião, por sua vez, alerta as ciências à não se perderem na
desumanidade, na ideologia, além de questionar muitas de suas pretensões e de seus
pressupostos (LIBANIO, A religião, p. 199).
Ciência e religião também influenciam-se mutuamente. As ciências decidem muito
sobre a organização das instituições e os comportamentos religiosos, conduzindo-os sempre
para novas possibilidades de articulação e entendimento. Basta verificar as alterações
possibilitadas, neste campo, pelas descobertas científicas como a eletricidade, os meios de
transportes, os meios de comunicação eletrônica entre outros. Um dos exemplos mais claros
disso são as chamadas “igrejas eletrônicas”. Em algumas situações esta acolhida positiva da
ciência pela religião é transformada em verdadeiro fascínio, desdobrando-se em uma assunção
acrítica das afirmações científicas e, às vezes, ainda, em buscas alucinantes pela constatação
científica de toda e qualquer experiência religiosa.
Por outro lado, as religiões, também têm oferecido a sua contribuição às ciências. I.
Prigogine e I. Stengers em A nova aliança: metamorfose da ciência, entre outros, têm
apontado para a importância de sua visão de mundo na construção do novo paradigma
científico, o que tem possibilitado verdadeira aliança da religião, sobretudo com a astrofísica, a
cosmologia moderna e a teoria quântica. F. Euvé, também, ao estabelecer os princípios
fundamentais dessa nova aproximação global, holística e ecumênica, criada pelas novas
ciências, indica características que respondem muito bem às exigências das religiões.
Caminha-se na linha da unidade em vez da oposição clássica que distinguia, separava,
delimitava. Propugna uma fusão entre sujeito e objeto. (LIBANIO, A religião, p. 200-201).

Nova cosmologia

“A partir dos anos 20, com a teoria da relatividade de Eistein, com a física quântica de
Bohr, com o princípio de indeterminabilidade de Heisenberg, com as contribuições da
física teórica de I. Pringogine e I. Stengers, bem como com as conquistas da psicologia
do profundo (S Freud e C. G. Jung), da psicologia transpessoal (A. Maslow, P. Weil), da
biogenética, da cibernética e da ecologia profunda surgiu uma nova cosmologia. Passa-
se rapidamente das era industrial a era da comunicação e do gerenciamento da
complexidade, transita-se de um mundo “materialista” (orientado na produção de bens
materiais) para um mundo “pós-materialista” e espiritual (interessado na integração do
cotidiano com místico). Diante dessa realidade, a síntese desempenha uma função
mais primordial que a análise, a visão holística e orgânica deve completar a visão
setorializada das ciências. Importa articular as duas maneiras de viver e de ler o
mundo, a do homem e a da mulher. Por isso, a nova cosmologia incorpora fortes
elementos femininos, já que ela, culturalmente, vinha marcada de modo quase
exclusivo por elementos masculinos”. (BOFF, Ecologia, p. 64-65);

Todavia, ambas realidades, religião e ciência, não se identificam; salvaguardam sua


autonomia. Mesmo que a ciência, em algumas circunstâncias históricas, tenha reivindicado
para si as funções da religião, a ciência não é a religião. Da mesma forma a religião, diante do
fascínio causado pelas conquistas da ciência, não pode permitir o enclausuramento de suas
experiências e afirmações nas amarras da verdade científica. O reconhecimento das fronteiras
e os distanciamentos práticos e metodológicos não só é importante mas necessário.

Concluindo, todo esforço na relação religião e ciência deve concentrar-se na postura de


abertura, diálogo crítico e mútua colaboração. Neste sentido é significativo o esforço de
trabalhos interdisciplinares entre representantes de instituições religiosas, teólogos e cientistas
no intuito de encontrar uma interface entre avanços científicos e doutrinas religiosas. Na
academia isso tem significado, na prática, o estabelecimento de centros de saber
(departamentos em universidades e institutos e centros independentes), periódicos com um
corpo editorial e assessores multidisciplinares, reuniões locais e internacionais (como os
Congressos da Sociedade de Teologia e Ciência da Religião – SOTER, no Brasil, e as
conferências bienais organizadas pela Sociedade Européia para o Estudo da Ciência e da
15
Teologia) e, o mais importante, o estabelecimento de grupos especializados dedicados à
pesquisas diversas, de interesse comum, estudos históricos, de questões epistemológicas,
morais ou, mesmo, aquelas mais propriamente ontológicas (CRUZ, Eduardo R, Revanche do
sagrado, Parte II: a ciência. In: VV.AA. Interfaces do Sagrado em véspera de milênio. p. 38).

ATIVIDADE

Historicamente, as relações Ciência x Religião (Razão x Fé) passaram por etapas


diferentes. Identifique alguma delas, justifique os motivos e as conseqüências que
provocaram essas relações.

Bibliografia

LIBANIO, J. B. A religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002.

BOFF, L. Ecologia, mundialização e espiritualidade. São Paulo: Editora Ática. 1993.

ALVES, Rubem. O enigma da religião. Petrópolis: Vozes, 1975.

MALINOWSKI, B. Magic, Science and Religion, New York, doubleday Books, 1948, p. 17

BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião. Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 85.

O’DEA, Th. Sociologia da religião. São Paulo: Pioneira, 1969.

MONDIN, B. O homem, quem é ele?. São Paulo: Paulinas, 1980.

SIMÕES, Jorge. Cultura religiosa. O Homem e o Fenômeno Religioso. São Paulo: Loyola, 1994.

RIBEIRO, Helcion. Religiosidade popular, na teologia lationo-americana. São Paulo: Paulinas,


1985.

SHLESINGER, Hugo e PORTO, Humberto. As religiões ontem e hoje. São Paulo: Paulinas, 1982.

MADURO, Otto. Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-relações
na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1981.

KÜNG, H. Introdução: o debate sobre o conceito de religião, in Concilium 1986/1, n. 203.

SUESS, P. (org.). Culturas e Evangelização. São Paulo: Loyola, 1991.

MORIN, Dominique. Para falar de Deus. São Paulo: Loyola, 1993.

VV.AA. Interfaces do Sagrado em véspera de milênio. São Paulo: CRE PUC-SP – OLHO dágua,
1996, p. 38);

AURÉLIO – Século XXI (Dicionário virtual).


16
A FÉ COMO RELAÇÃO
(Texto adaptado) 1

1. INTRODUÇÃO

O fato de a pessoa ser o único ser vivo capaz de estabelecer relações livres, e por isso
gratuitas, é uma característica humana, essencial e exclusiva. A necessidade e o instinto não são os
únicos motivos que levam à pessoa humana a conviver, a trocar objetos e experiências, a se
comunicar. Na liberdade intrínseca e fundamental da estrutura humana se fundamenta a capacidade
de “com-fiar”, de crer, de esperar, de fiar-se dos outros.
O ser humano é voltado para o sagrado, para o transcendente, para o mysterium, para o
numinoso... isto é, a transcendência é uma das dimensões constituintes do ser humano.
As relações humanas podem estar fundamentadas em múltiplas razões, sejam estas de
necessidade ou supervivência, mas também de confiança e esperança. Por tanto é legítimo pesquisar
onde é que se alicerçam as relações com o mysterimun.
A questão é que a resposta que parece lógica, a Fé, resulta ser ao mesmo tempo solução e
problema (nossa sociedade destaca mais a situação problemática da fé) mas essa situação não
acontece igualmente em todos os momentos históricos, em todas as culturas, em todos os estágios
da vida humana. Houve momentos de grande concordância em questões de Fé; há culturas mais
religiosas do que outras. Há idades em que mais facilmente cremos; a infância, a adolescência e
juventude, a idade adulta, na “melhor idade”... Alguns até destacam o fato de que aparentemente as
mulheres são mais sensíveis à dimensão da Fé. Seria, então, correto afirmar que para a pessoa
madura e inteligente, ocidental, moderna e secular... o a-teísmo é a única postura pertinente? A
opção pela fé seria coisa de pessoas ou sociedades fracas?
A morte de Deus já foi anunciada:

Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos
de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais
sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará
desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos
sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste acto não será demasiada para nós?
Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele?
Nunca existiu acto mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer
parte, mercê deste acto, de uma história superior a toda a história até hoje! —
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência, §125

Porém nem Deus morreu, nem a Fé ficou obsoleta, nem a humanidade passou a viver como
nas sociedades preconizadas pelas ideologias ou pelas economias, isto é, sociedades que teriam
superado o estágio primitivo da fé. Assistimos hoje em dia a um aumento da curiosidade pelas
relegiões, mas trata-se de uma curiosidade intelectual. O exôtico dá ibope...
Convém destacar que nosso tema e a Fé, e não a Religião. Embora pertençam a um mesmo
universo semântico, têm suas diferenças. A Fé terá um tratamento sustantivo; a Religião adjetivo;
assim entenderemos a expressão fé religiosa. E a partir daí perceberemos que o termo fé cobre
outras realidades, anteriores e posteriores à experiência religiosa. A Fé não se identifica com a
Religião.

Observemos a seguinte aproximação ao conceito de fé:


Ato pelo qual nos entregamos, numa atitude de confiança, a uma realidade ou a
alguém.

Três elementos constituem esse elemento básico:


1
Baseado no livro de J.B. Libânio, Fé (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004)
17
1. Um sujeito que se relaciona com um objeto
2. Um objeto (realidade ou pessoa) com quem o sujeito se relaciona
3. A relação

O termo “fé” é utilizado para diversas situações:


- creio que tem razão...
-creio que vai chover...
- você crê em fantasmas...?
- você crê em Deus..?
Então, será que por trás de todos esses termos e situações, existe uma experiência humana
fundamental? Que significa dizer: “eu creio”?

2. FÉ HUMANA

A Fé é uma experiência humana fundamental que se faz entre as pessoas e que se prolonga
para coisas, mistérios e religiões. Crer é a condicção de existir num convívio humano. Nascemos
incompletos. Observe as diferenças ao compararmos com os animais; eles conseguem com horas
ou dias libertar-se dos vínculos de seus progenitores. Já o ser humano recém-nascido permanece
numa dependência total de vida e morte em relação aos pais e aos que cuidam dele. Tal situação de
incompletude predispõe-nos –e até nos obriga- a manter uma atitude de confiança no outro.
Necessitamos da liberdade de outros para existir.
O primeiro movimento instintivo é o de confiança no outro que acolhe, que protege, que
cuida. O sucesso dessa primeira experiência humana colocará a base psicológica para a fé. Como
poderá ter fé quem já na infancia viu frustrada e traida a confiança? É claro que a confiança cresce
junto da desconfiança, a experiência nos ensina em quem podemos confiar e de quem devemos
desconfiar. Por isso existem crianças mais ‘confiadas’ do que outras que são mais tímidas.
Nos primeiros momentos da vida planta-se a semente da fé humana ou da resistência a ela.
O jogo de experiências, que constitui nossa existência, irá nos ensinar a dificuldade de discernir em
quem ter fé. A infidelidade e a traição de amigos, de pessoas em quem acreditamos, deixam-nos
perplexos.
A fé humana implica, necessariamente, risco. Não vamos conseguir nunca penetrar no
íntimo da outra pessoa; somos mistério para o outro. Mais uma vez é por causa da liberdade. Então,
que podemos fazer? Devemos arriscar-nos e confiar? Devemos ser cautos e desconfiados?
Devemos é utilizar a razão, a inteligência para poder discernir os sinais de credibilidade. Ao
observar pessoas, detectamos elementos que abonam ou desabonam a veracidade de suas palavras e
condutas. Ao discernir, atribuimos fé ou desconfiança. A questão está nos sinais de credibilidade:
quais permitem maior ou menor credibilidade?
Os sinais de credibilidade não pertencem ao campo das ciências exatas, não são empíricas;
esses sinais dependem de culturas, idades, histórico-existencias, etnias. Numa relação constante
com a cultura em que se vive, cada um constrói os sinais de credibilidade que opera nas relações
humanas, confiando numas e não em outras. Essa fé humana não é definitiva. Os sinais emitidos
pelos outros estão sujeitos à mudança. Daí que a fé humana está sempre sujeita a reversões; basta
pensar nas separações, nas amizades desfeitas, nas traições... Toda fé humana é um risco inevitável
pelos dois lados –o de quem crê, porque é falível a nossa percepção do outro, e o de quem se crê,
porque também ele pode enganar.
A verdadeira experiência de fé humana exige de quem crê a verdade de sua existência, a
veracidade de seu ser. A fé é sempre bilateral. De um lado há entrega; de outro aceitação merecida.
Portanto, a fé humana se opõe à ilusão, ao engano, à mentira, ao mito, à surperstição.

Situações que impedem a fé humana.


A fé humana é construída ao longo da existência. Há fatores psicossociais que a favorecem
ou dificultam. A psicololgia aponta a infância e a adoslescência como períodos da existência
humana em que a capacidade de distinguir os sinais é pouco desenvolvida e, por tanto, os mais
18
jovens facilmente sâo induzidos a equívocos. Experiências de abandono ou de superproteção na
primeira infância traumatizam cianças no processo de desenvolvimento da fé humana.
A fé humana ancora-se fundamentalmente na nossa experiência de fragilidade, de
incopletude, de carência de outros para existir. Nessse sentido também a autoconfiança, a
paparicação, podem dificultar a pessoa a crer no outro.
Quando as pessoas se apaixonam, conseguem perceber com claridade todos os sinais de
credibilidade? A paixão costuma dificultar essa percepção; a paixão pode ser uma forma de
alienação –cadê a razão?- que impede de crer.
Por outro lado, o oposto da fé é o medo. Dele vem a maior dificuldade de crer. O medo
diminui o espaço da fé, pois onde há medo não há espaço para a confiança. Quanto mais medo,
menos possibilidade de crer humanamente.

Conclusão
A pesar da crescente onda de descrença, o ser humano ainda vive mais da fé do que da
desconfiança. A vida sem fé, sem confiança, é impossível. Quem garante que o garçom me traz um
alimento comestível e não veneno? Ou quem diz que o taxista me levará para o endereço que pedi?
O ser humano é paradoxalmente um ser de fé e de desconfiança com predomínio da fé; uma
constante falta de fé humana nos levaria à locura.
A psicologia tem demonstrado a importância de figuras simbólicas e significativas no
desenvolvimento da personalidade, especialmente de crianças e jovens, que nelas confiam e
segundo elas se moldam.

3. FÉ RELIGIOSA

Essa fé religiosa é construída sobre a base humana. Sem fé humana não havería fé religiosa,
mas ela pede un salto para além da esfera das relações humanas: entra-se no campo do mistério.
O mistério tem dupla conotação: de limite e de sedução, ou no dizer de R.Otto é o
tremendum e o fascinans. Quando alguma coisa desafia nossa inteligência dizemos : “isso é um
mistério!” O mistério marca o limite do conhecimento... e o início da descoberta. Para o ser
humano, mistério é –principalmente- tudo aquilo que ainda não é conhecido. È assim que os
cientistas pensam. (O mito do eterno progresso)
Devemos fazer algum alerta, principalmente sobre essa postura que identifica a realidade
com o verificável. Partindo dessa perspectiva o mistério é apenas algo transitório que aguarda seu
momento para ser desvendado. E se alguma coisa não pode ser desvelada, então não é mistério, e
sim mito, superstição, fábula... isto é: mentira!! Parece que a razão não sería parceira, co-
responsável com a fé, para interpretar a realidade, e sim o antídoto da fé, que desse modo pasaria a
ser uma categoria totalmente prescindível, e incluso, necesáriamente prescindível. No império
absoluto da razão não há lugar para nehuma realidade transcendente ou sobrenatural. A
fenomenologia da religião constata como experiência existente em todas as culturas, exceto na
cultura moderna, a realidade do mistério
A realidade a que se refere o termo “mistério” tem tudo a ver com o campo religioso; traz o
significado de iniciar (alguém) nos mistérios (religiosos), de ensinar e instruir. Apenas
analogicamente, mistério significa “segredo”. Mistério é, fundamentalmente, algo transcendente
onde a razão não é a ferramenta mais adequada.
O termo “religioso” que estamos utilizando como adjetivo da fé tem dois lados:
- lado subjetivo: re-ligar, relacionar. Ele comprende meios, ritos, cultos, lugares e
pessoas que permitem, facilitam e mediam nossa relação com o mundo divino.
- lado objetivo: re-ler. Ser religioso é cuidar das coisas que pertencem ao culto dos
deuses, escolhendo-as.
A fé religiosa implica, portanto, ligar-se com o mundo divino e cuidar das coisas do culto.
Implica a bipolaridade de dois universos existenciais: o humano e o divino.

Fé religiosa no mundo secular.


19
A secularização reduziu o papel e o poder das religiões sobre a sociedade e a cultura
produzindo uma privatização das formas religiosas. As pessoas escolhem as formas religiosas que
mais respondem a sua subjetividade O alvo da secularização foram as instituições tradicionais
(igrejas, particularmente cristâs) o que gerou uma busca sedenta de expressões religiosas não
ligadas ou dependentes dessas instituições. Nesse sentido, a fé religiosa sacia a dimensão religiosa
pessoal, gera alívio e consolo diante da agústia, da depressão, da fadiga psiquica. Em muitos casos,
interferem nela dois movimentos místicos atuais: o ecológico e o psicológico.

a. Fé religiosa de corte ecológico


A ecologia tem seu espaço científico de autonomia. Questiona o modelo de desenvolvimento
do Ocidente em nome da defesa do meio ambiente, da consciência do limite dos recursos naturais,
do risco da destruição de toda a vida no planeta, de uma tecnologia limpa e preservadora, de
políticas locais, regionais e mundiais de controle do desenvolvimento.
A ecologia tem ido mais longe tornando-se um verdadeiro movimento religioso, defendendo
a criação de uma relação sagrada com o cosmo, porém, não mais em nome de uma sacralidade pagã
tradicional que se fundava na incapacidade do ser humano de transformar a natureza, na ignorância
dos fenômenos astronômicos e que surgia diante dele como uma força divina indomável.
O desenvolvimento técnio-científico não trouxe apenas progresso, mas também destruição, e
é precisamente como reação a essa face negativa do senhorio humano sobre a natureza que brota
uma nova consciência ecológica, que se que diz religiosa e que reconhece a profunda sacralidade no
coração das coisas. A natureza começa a sair do âmbito fechado do turismo, do lucro e do comércio
e migra para o espaço da espiritualidade, da gratuitade. A tradição oriental trouxe expressiva
contribuição para isso.

b. Fé religiosa de corte psicológico


Outra vertente religiosa mistura-se com traços da psicologia humanista transpessoal.
Prefere-se o termo espiritualidade em vez de fé. O acesso ao divino se faz no interior de cada pessoa
e não por meio das realidades objetivas que as religiões tradicionais oferecem: dogma, sacramentos
e ritos institucionalizados. É uma experiencia de interioridade, intuitiva, contemplativa do ser que
transcende o fazer no interior do ser. Aí está a presença divina, não necessariamente da pessoa de
Deus. Trata-se de uma fé religiosa, não teologal...
A psicologia encontra-se com a mística oriental, dai a influência de religiões não
monoteístas, mas de um teísmo amplo. Há profunda relação entre o crescimento psicológico pessoal
e o crescimento espiritual.

Conclusão
A fé religiosa identifica-a antes com um sentimento religioso, vago, sem contornos, que
responde à necessidade afetiva pessoal de ligar-se a um mistério. É de tendência monista, isto é, de
uma concepção do mundo pensada como uma grande e unica realidade. Somos parcela dessa
realidade, por isso a encontramos em nós mesmos. Rompe-se qualquer dualidade de criatura e
criador, de ser finito e infinito. Somos todos um só.
Essa fé situa-se no lado oposto da racionalidade moderna que consideraria essas reflexões
como puro mito, fantasmagorias, projeções inconscientes da subjetividade. A fé religiosa respira a
sacralidade do mundo e da inerioridade subjetiva.
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4. FÉ TEOLOGAL

Este estágio aparece como um aprofundamento que não se segue necessáriamente dos
anteriores –fé humana e fé religiosa- mas que apresenta elementos similares com eles. O Ser
humano continua estabelecendo relações de confiança, mas desta vez não mais com pessoas, com
referências sagradas, com o mystério... a fé teologal implica outro horizonte de compreensãso:
significa que se dirige explicitamente a um Deus pessoal.
A fé teologal é explícita nas relgiiôes monoteístas –judaísmo, cristianismo e islamismo- e
nelas aparecem dois elementos fundamentais:

- existe um Deus pessoal que se revela (pro-posta)


- existe o ser humano que acolhe essa manifestação (res-posta)

Podemos dizer que a fé teologal é uma “res-posta” humana a uma “pro-posta” divina. Supôe
um Deus que se autocomunica com o ser humano. Assim a fé teologal é também um relação
dialogal entre Deus e a creatura

QUESTÕES ABERTAS

1. Qual é a intenção do autor?


2. Que elementos estruturam o conceito de fé proposto pelo autor?
3. Qual é para o autor a base psicológica da fé?
4. Como superar os riscos implícitos na fé?
5. Porque podemos dizer, segundo o autor, que a fé humana se opõe à ilusão, ao engano, à
mentira, ao mito e à surperstição?
6. Qual é principal diferença entre a fé humana e a fé religiosa?
7. Você concorda com a opinião do autor de que a fé religiosa responde à subjetividade, sacia
a dimensão pessoal, gera alívio e consolo diante da angústia, da depressão da fadiga?
Justifique sua opinião.
8. Crer num Deus pessoal ou crer no mystério, são estágios diferentes. Concorda? Justifique
sua resposta

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