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SULEANDO O PENSAMENTO LATINO-

AMERICANO EM BUSCA DA DECOLONIALIDADE,


DO DIÁLOGO INTERCULTURAL E DE UMA
EDUCAÇÃO EMANCIPADORA

SULEANDO THE LATIN AMERICAN THOUGHT


IN SEARCH OF DECOLONIALITY, INTERCULTURAL
DIALOGUE AND AN EMANCIPATORY EDUCATION

Ofélia Maria Marcondes


Instituto Federal de São Paulo (IFSP); ofelia@ifsp.edu.br

RESUMO: conhecimento e sua apropriação sejam


Sulear o pensamento latino-americano no coletivizadas. Em decorrência da alteração
sentido de estabelecermos um diálogo na base das opções pedagógicas,
com nossa própria produção espera-se que a educação seja fator de
epistemológica em busca de se mudança no sentido de um mundo menos
compreender a possibilidade de uma desigual, antirracista, antissexista e no
educação em chave decolonial, a partir e qual possamos ver e ouvir ‘a outra’, ‘o
por meio de um diálogo intercultural com outro’.
vistas à emancipação é o que procuramos
trazer neste artigo, construído por uma PALAVRAS-CHAVE:
Pensamento latino-americano. Decolonia-
leitura crítico-teórica do pensamento
lidade. Emancipação. Interculturalidade.
latino-americano, de cunho
Educação.
filosófico-educacional, visa contribuir para
as reflexões sobre como a educação,
ABSTRACT:
processo de formação humana, Sulear, as a southern logic, the Latin
permanece embasada pela epistemologial American thought in the sense of
colonial, patriarcal e dominada pelo establishing a dialogue with our own
pensamento eurocêntrico hegemônico. A epistemological production in search of
ideia é verificar como a epistemologia understanding the possibility of an
decolonial pode nos auxiliar na construção education in a decolonial key, from and
de uma pedagogia ‘outra’, dialógica, through an intercultural dialogue with a
horizontalizada, cuja construção do view to emancipation this is what we seek

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to bring in this article, constructed by a
critical-theoretical reading of Latin
American thought, of a
philosophical-educational nature, aims to
contribute to reflections on how education,
a process of human formation, remains
grounded in colonial, patriarchal and
dominated by hegemonic Eurocentric
thinking. The idea is to verify how
decolonial epistemology can help us to
build an 'other', dialogical, horizontalized
pedagogy, whose construction of
knowledge and its appropriation are
collectivized. As a result of the change in
the basis of pedagogical options, it is
expected that education will be a factor of
change towards a less unequal, anti-racist,
anti-sexist world and in which we can see
and hear 'the other'.

KEYWORDS:
Latin American thought. Decoloniality.
Emancipation. Interculturality. Education.

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hegemônico de pensamento ou se serve
1 COLONIALIDADE,
aos propósitos de libertação e emancipação
DECOLONIALIDADE E
no sentido de livrar-se de diferentes formas
INTERCULTURALIDADE
de tutela que oprimem e manipulam e em
A educação, processo de formação
relação a centros de poder. Neste
humana, pensada a partir do ser humano
movimento reflexivo é possível
concreto, singular, cuja liberdade se
compreender a existência humana em
expressa em suas ações, resultado de seu
relação com seu tempo histórico e como as
diálogo contínuo com as circunstâncias.
singularidades são submetidas aos
Não um ‘dentro’ e ‘fora’, nem tampouco a
processos ideológicos de dominação dos
divisão entre ‘sujeito’ e ‘realidade’, mas uma
modos de pensar, de ser e de sentir.
proposta analítica para se pensar a ação
humana no e com o mundo, assim como já Para Severino e Romão (2019, p.
nos disse Paulo Freire (2019, p. 55, grifos 202), a
do autor): “É fundamental, contudo, visão tradicional do filosofar como
partirmos de que o homem¹, ser de relações modalidade de pensar sob a
perspectiva da universalidade, que
e não só de contatos, não apenas está no sempre predominou em nossos
mundo, mas com o mundo. Estar com o meios acadêmicos em decorrência de
nossa vinculação cultural ao mundo
mundo resulta de sua abertura à realidade, europeu, vem sendo questionada por
que o faz ser o ente de relações que é”. muitos pensadores, particularmente
por pensadores latino-americanos,
Inserida na temporalidade da vida humana, africanos e asiáticos, que se cons-
a educação deve ocupar-se das exigências cientizam do eurocentrismo dessa
proposta filosófica e questionam sua
dos seres humanos e das circunstâncias universalidade e hegemonia. (GUHA,
que dela necessitam para se tornarem 1983; MIGNOLO, 2003, 2007; SAID
1995; 2003; QUIJANO, 1991,1998,
humanos. Não é possível uma educação 2007; GARCIA-CANCLINI, 1997;
que apenas se aproprie de modelos alheios FORNET-BETANCOURT, 2004;
DUSSEL, 2002; CORONIL, 200 ;
às circunstâncias que a ela dão origem. É WALSH, 2007 ; MALDONADO-
no processo de formação, deformação, TORRES, 2007; LANDER, 2005 ;
FANON, 2008, 2010; SOUZA, 2010)
transformação que nós, nascidos como Eles vêm defendendo que ela é antes
‘gênero humano’, nos tornamos humanos, um paradigma vinculado à logosfera
euro-ocidental que se tornou
participantes da construção da humanidade hegemônica e se impôs globalmente
como processo sociohistórico a todas as outras culturas, por
motivos que não exclusivamente
filosóficos. Na percepção desses
Ao nos ocuparmos da reflexão sobre
pensadores, esse processo de
o fenômeno educativo, também nos universalização do paradigma filosó-
fico euro-ocidental não se constituiu a
ocupamos de olhar criticamente como a
custo apenas do desconhecimento de
educação formal é constituída, seu outros possíveis modos de pensar,
mas sobretudo de sua repressão,
processo histórico-filosófico, o modelo de
praticando-se o que se convencionou
ser humano que persegue, bem como designar, sob a inspiração direta de
Boaventura de Sousa Santos, um
buscar compreender em que medida as
verdadeiro epistemicídio (grifo dos
práticas pedagógicas servem ao modelo autores).

1
Em meus textos somente utilizo a palavra ‘homem’ no sentido de humanidade ou se referindo ao ‘gênero humano’ quando usado
por autora ou autor no texto original citado em meus textos. Minha opção é sempre por usar ‘ser humano’ ou ‘seres humanos’; uso
‘pessoa’, no sentido de criatura humana, de indivíduo.

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Pensadores latino-americanos como toda perspectiva teórica que se forja
em novos contextos e se apresenta
Dussel, Mignolo, Quijano, Zea, Salazar
à comunidade acadêmica como
Bondy, Walsh, Maldonado-Torres, ao novidade teórica, [...] apresentam
elaborarem uma crítica ao pensamento diversos conceitos que vão
fundamentar essa perspectiva
produzido na América Latina, revelam um [decolonial], como: o mito de
colonialismo do pensar. Em outras palavras, fundação da modernidade, a
fazem uma revisão crítica da epistemologia colonialidade, o racismo epistêmico,
a diferença colonial, a
hegemônica em Nuestra América, transmodernidade, o pensamento
promovendo um giro epistemológico e liminar, o pensamento de fronteira,
a interculturalidade crítica, a
inaugurando uma nova maneira de olhar os pedagogia decolonial, dentre
problemas dos latino-americanos, e de outros.
todos os seres humanos subalternizados,
silenciados e invisibilizados por essa
Os conceitos a serem investigados
ideologia ou paradigma da modernidade
são a própria ideia de decolonialidade, de
cujas bases são o patriarcado, o
interculturalidade e de uma pedagogia
colonialismo e o capitalismo. Esse giro
decolonial perpassada pelas questões
epistemológico vem sendo conhecido como
étnico-raciais e de gênero. Portanto, o
pensamento decolonial e tem sua origem
problema que se coloca é como pensar
nas discussões do Grupo
criticamente o currículo segundo a
Modernidade/Colonialidade (M/C). Essa
epistemologia decolonial e como o diálogo
virada epistemológica
intercultural torna-se ferramenta para a
superação do racismo e do sexismo numa
gera um "outro" conhecimento. Um
pensamento “outro”, que orienta o perspectiva emancipadora.
programa do movimento nas
esferas política, social e cultural, Refletir sobre filosofia e educação a partir
enquanto opera afetando (e dos debates sobre decolonialidade nos
decolonizando), tanto as estruturas
e os paradigmas dominantes exige pensar sobre interculturalidade como
quanto a padronização cultural que um ‘modo de fazer’ e emancipação como
constrói o conhecimento "universal"
do Ocidente (WALSH, 2019, p. 16,
um fim. É neste sentido que se objetiva
grifos da autora). apresentar um breve panorama sobre como
o debate sobre a epistemologia decolonial
Na trama desse debate surge a discussão permeia a filosofia latino-americana e a
sobre a interculturalidade como diálogo que educação. A filosofia é reflexão sobre
permite a construção de um modo ‘outro’ de problemas concretos, de pessoas
pensar, colocando em jogo as relações concretas, em dadas circunstâncias.
geopolíticas e de poderes constituídos pelo Circunstância como categoria filosófica, na
modelo eurocêntrico de se pensar o mundo perspectiva de Leopoldo Zea, e a
e as relações. problematização da cultura, questão posta
por Enrique Dussel, são os dois eixos para
Segundo Walsh, Oliveira e Candau (2018,
se pensar a libertação: a cultura popular é a
p. 3),
tradição do povo oprimido e tirá-lo do

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silenciamento epistemológico imposto pela estudamos a recém-inaugurada filosofia da
colonialidade é torná-lo protagonista de ancestralidade, estudamos a Filosofia da
suas próprias circunstâncias, sendo o Libertação, lemos Paulo Freire, mas quais
diálogo intercultural o caminho de libertação são os efeitos disso na prática educativa?
e emancipação. Somente de posse desta As críticas ao currículo são feitas a partir de
tomada de consciência é que estaremos um pensamento baseado nas
efetivando uma epistemologia decolonial. circunstâncias ou ainda via pensamento
hegemônico, eurocêntrico e colonial?
O problema que se coloca é pensar
Pensar o currículo, hoje, exige refletir sobre
em que medida a educação pode ser
as circunstâncias em que vivemos,
transformada em seus pressupostos a partir
resultando numa alteração no modo de
de uma crítica decolonial, considerando-se
pensar. A discussão se justifica dada a
que o pensamento educacional e suas
atualidade e urgência de se analisar a
práticas são colonizadas por uma ideologia
educação como uma prática formativa a
eurocentrada. É possível uma educação
partir da crítica à modernidade e ao
decolonial? Se sim, em que medida uma
pensamento eurocêntrico que coloniza
educação decolonial pode resultar em
nossa ação pedagógica. Para tanto,
práticas pedagógicas outras? Seria a
torna-se necessário explicitar o pensamento
interculturalidade a metodologia, por assim
decolonial como uma nova epistemologia:
dizer, própria de uma educação decolonial?
uma epistemologia pedagógica para um
Se a educação é mesmo colonizada e se
currículo decolonial que se caracterize por
necessita ser transformada, quais fins deve
uma base antirracista e antissexista,
perseguir? Seria a emancipação o fim
estabelecendo o diálogo intercultural como
próprio de uma educação decolonial?
chave para a organização de uma educação
Sendo a educação colonizada, é verdadeiramente renovada, democrática e
possível relacioná-la ao capitalismo, à para a emancipação e libertação das
ideologia patriarcal – racista e sexista – e ao relações de opressão.
silenciamento dos subalternizados. Deste
A partir dos anos de 1960,
ponto de vista, a hipótese que se coloca é
pensadores latino-americanos passaram a
que é possível uma educação decolonial
discutir a colonização do poder e dos
desde que seja assumida a crítica ao
saberes a partir da crítica ao pensamento
patriarcado e ao capital por meio de práticas
eurocentrado e da ideologia de opressão
interculturais que visem a emancipação e a
implantado nas mentes e nos corpos da
formação de pessoas críticas. Uma
América Latina. O pensamento eurocêntrico
educação com base decolonial, com um
gera o silenciamento dos saberes que estão
diálogo intercultural e com vistas à
à margem e nas periferias, que respondem
emancipação tem como resposta uma
às necessidades dos povos originários, dos
prática educativa e um currículo antirracista,
afrodescendentes, dos afrodiaspóricos, dos
antissexista e antipatriarcal.
mestiços. Esse modelo adotado como
Nos perguntamos sobre a ideologia, sistema-mundo, branco, machista e
debatemos sobre racismo e sexismo, masculino, cristão, escravista se tornou

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hegemônico e favoreceu a manutenção das tica do conhecimento como estra-
tégia do pensamento moderno
relações de poder.
ocidental que, de um lado, afirmou
suas teorias, seus conhecimentos e
A construção cultural de um país é seus paradigmas como verdades
fruto e processo das relações de poder e de universais e, de outro, invisibilizou e
uma ideologia que se impõem por diversos silenciou os sujeitos que produzem
outros conhecimentos e histórias.
meios. Um dos meios utilizados para o
fortalecimento do pensamento hegemônico Segundo Quijano (1992, p. 11),
eurocentrado é a educação e suas “estabeleceu-se uma relação de dominação
manifestações curriculares. A imagem de política, social e cultural direta dos europeus
ser humano que vem se construindo sobre os conquistados de todos os
historicamente tem a ver diretamente com o continentes. Essa dominação é conhecida
capitalismo, com o neoliberalismo, com as como colonialismo”². Para este pensador, “A
relações políticas de opressão, pela colonialidade, consequentemente, ainda é o
manutenção do patriarcado e com uma modo de dominação mais geral no mundo
prática reprodutivista das relações, dos hoje, uma vez que o colonialismo como uma
valores sociais e dos conteúdos culturais. ordem política explícita foi destruído”
(QUIJANO, 1992, p. 14)³. As guerras e
A leitura de pensadores latino- declarações de independência, do ponto de
americanos, como os já citados vista jurídico, colocam um fim ao
anteriormente, nos leva a pensar colonialismo, mas não à colonialidade. A
criticamente na educação como uma força independência das colônias em relação aos
contra a opressão, a violência, o centros de poder é o que denominamos de
silenciamento, o epistemicídio, o descolonização.
encobrimento das relações de poder. É
vigente um pensamento colonial, Para Quijano, a colonialidade do
entendendo-se colonialidade como a poder persiste no mundo globalizado
presença dos valores coloniais ainda na tendo-se em vista a dominação exercida
contemporaneidade, pautados principal- pelo capitalismo, pelo imperialismo, agora
mente pela racialização, por questões de econômico-político, pelo patriarcado. Esse
gênero e pela divisão do trabalho. Esse colonialismo deixou marcadores de
debate tem força no Grupo exclusão muito presentes nas diversas
“Modernidade/Colonialidade” (M/C); grupo culturas, marcadores como raça e gênero
entendido mais como uma rede, formado que dividem as pessoas em categorias
por intelectuais latino-americanos que altamente subalternizadas. A colonialidade
trabalham na revisão da epistemologia das do poder estabelece quais são os centros
ciências sociais e humanidades (WALSH, de poder e quais são as periferias que são
OLIVEIRA, CANDAU, 2018, p. 3). mantidas submetidas às relações de
opressão, como a divisão do trabalho por
A ideia de que a colonialidade é
etnia e classe social, afetando diretamente a
constitutiva da modernidade signi-
fica o questionamento da geopolí- escolarização das pessoas periféricas. Há

2
“fue establecida una relación de dominación directa, política, social y cultural de los europeos sobre los conquistados de todos los
continentes. Esa dominación se conoce como colonialismo” (QUIJANO, 1992, p. 11).
3
“La colonialidad, en consecuencia, es atin el modo mas general de dominacion en el Mundo actual, una vez que el colonialismo
como orden politico explícito fue destruido (QUIJANO, 1992, p. 14).

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uma certa ‘naturalização’ do trabalho de uma alteridade que, na verdade, se
manual, físico, pesado destinado às entremeia à construção das subjetividades
populações em situação de vulnerabilidade como parte de um todo harmônico e em prol
e de exclusão social, também da sobrevivência da sociedade e, de outro,
‘naturalizando’ o trabalho abstrato, de a subalternização dos povos originários,
condução das vidas humanas e afrodescendentes e afrodiaspóricos,
não-humanas, dos recursos e dos produtos colonizados e mestiços e de seus saberes.
do trabalho, como um algo destinado a uma É uma colonialidade do imaginário,
certa elite cultural, econômica, social, individual e coletivo, pela qual cria-se um
política. A forma do colonialismo trabalhar é pensamento tornado hegemônico para que
sempre de modo classificatório e dualista: o as ações sejam homogêneas, controladas,
centro e a periferia, o desenvolvido e o submetidas às relações de opressão para a
subdesenvolvido, o civilizado e o bárbaro, o manutenção de uma ordem ‘natural’ das
homem e a mulher, o capaz e o incapaz, o relações intersubjetivas. A colonialidade do
sagrado e o pagão, relações estabelecidas saber é a colonialidade do imaginário.
artificialmente para se assegurar o poder.
A tomada de consciência de que já
Na verdade, o que identificamos na
não somos mais colônia nos permitiria a
colonialidade do poder é uma hierarquia
construção de novos processos de ser,
institucional embasada por marcadores de
sentir e saber em relação a um mundo novo,
exclusão como raça e gênero.
descolonizado. O ser colonizado reproduz
Segundo Castro-Gómez (2005, p. 83, uma identidade que não a sua, mas a de
grifos do autor), máscaras eurocêntricas de modos de ver o
mundo, de sentir e de enfrentar os
a modernidade é um “projeto” na
medida em que seus dispositivos dualismos impostos pela própria
disciplinares se vinculam a uma dupla colonialidade. O ser subjetivado, submetido
governamentabilidade jurídica. De
um lado, a exercida para dentro pelos às relações de poder e de opressão,
estados nacionais, em sua tentativa estabelece uma singularidade de mera
de criar identidades homogêneas por
meio de políticas de subjetivação; por reprodução desse imaginário coletivo
outro lado, a governamentabilidade altamente colonizado pelo modelo
exercida para fora pelas políticas
hegemônicas do sistema-mundo patriarcal/colonial. O poder, nesse modelo
moderno/colonial, em sua tentativa de colonialidade, invade aspectos como
de assegurar o fluxo de
matérias-primas da periferia em sexualidade, seus recursos e produtos,
direção ao centro. assim como as singularidades subjetivadas
e seus recursos e produtos. Em outras
Além da colonialidade do poder como
palavras, nosso ser individual, singular, é
uma certa construção de mundo que tem
estabelecido nas relações de poder e de
como objetivo uma política hegemônica do
opressão que controlam o trabalho e as
capital com a perspectiva de que as
organizações políticas. O corpo da mulher
periferias forneçam os recursos e os
interessa ao capital no sentido da
produtos do trabalho para o centro de
reprodução e do ‘fornecimento’ de mão de
poder, é perceptível a colonialidade do
obra. Ora! Nada mais ‘singular’ do que o
saber, de um lado na estratégica elaboração

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desejo ou o não desejo de ser mãe! Exceto, relações se mantém coloniais, modernas,
quando as políticas pró-nascimento se tendo o capital como centro, a manutenção
opõem ao aborto, ou ainda quando se das desigualdades econômicas e sociais
estimula o controle da natalidade. A como forças de controle, a racialização e a
colonialidade do ser é exatamente a divisão do trabalho como instrumentos da
reprodução dos modelos hegemônicos manutenção da hegemonia eurocêntrica,
cridos como opções pessoais. patriarcal, masculina e machista, cristã,
branca, totalizante e que sustenta as
É fundamental que deixemos, na
relações dominadores-dominados, homem-
América Latina, de fazer más cópias,
mulher, brancos-negros.
parafraseando Zea⁴, do pensamento e do
modo de ser do europeu. Nas palavras de No curta documentário Proibido pisar
Quijano (2005, p. 126), “É tempo de na grama, de 2018, dirigido por Letícia Lima,
aprendermos a nos libertar do espelho a entrevistada Thaty Meneses, fala sobre a
eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, questão racial e a construção de singulari-
necessariamente, distorcida. É tempo, dades de pessoas negras, declara que a
enfim, de deixar de ser o que não somos”. ação dos movimentos sociais tem sua
importância “principalmente descolonizan-
Em suma, descolonização refere-se
do as nossas mentes e as mentes de
aos processos de independência e
nossos irmãos” (2018, 10’). A pergunta que
emancipação política das colônias em
fica é: a emancipação política ou a inde-
relação às metrópoles, centros de poder.
pendência não revelam uma libertação e,
Colonialismo foi o processo de invasão e
portanto, continuamos dependentes, sob
aculturação que resulta em criação de
manipulação ideológica colonial que nos
colônias destinadas à ampliação de domínio
exige descolonização de nossas mentes? A
territorial, extrativismo, produção para
descolonização das mentes requer uma
exportação para a Europa. Próprios do
decolonialidade do ser, do saber e do
colonialismo são os marcadores de
poder?
exclusão criados para a manutenção das
desigualdades como cor, raça, gênero. O Assumo o uso do termo ‘decoloniali-
capitalismo e o patriarcado sustentam o dade’ como utilizado por Catherine Walsh⁵
colonialismo. Colonialidade é o que resulta na nota de rodapé às páginas 24 e 25 da
no imaginário, nas relações de poder, na obra Pedagogías decoloniales: prácticas
construção das singularidades no sentido insurgentes de resistir, (re)existir y (re) vivir
de que, mesmo sem o colonialismo, as (Tomo I):

4
Quando Leopoldo Zea faz referência às “más cópias” refere-se à importação de ideias filosóficas ou sistemas filosóficos da
Europa por parte dos filósofos, de maneira geral, os latino-americanos, que desejam importar estas ideias sem levar em conta as
circunstâncias, inserindo-as nestas dadas circunstâncias e vendo-as tomarem diferentes direções daquelas esperadas, pois as
circunstâncias, através da ação dos homens, modificam essas ideias originais. Assim, esta importação de ideias transforma-se em
cópias ruins e equivocadas das ideias originais. Sobre este assunto, consultar En torno a uma filosofía americana,
de 1945.
⁵ Dentro de la literatura relacionada a la colonialidad del poder, se encuentran referencias —incluyendo en este mismo libro— tanto
a la descolonialidad y lo descolonial, como a la decolonialidad y lo decolonial. Su referencia dentro del proyecto de modernidad/co-
lonialidad inicia en 2004, abriendo así una nueva fase en nuestra reflexión y discusión. Suprimir la “s” es opción mía. No es
promover un anglicismo. Por el contrario, pretende marcar una distinción con el significado en castellano del “des” y lo que puede
ser entendido como un simple desarmar, deshacer o revertir de lo colonial. Es decir, a pasar de un momento colonial a un no
colonial, como que fuera posible que sus patrones y huellas desistan en existir. Con este juego lingüístico, intento poner en eviden-
cia que no existe un estado nulo de la colonialidad, sino posturas, posicionamientos, horizontes y proyectos de resistir, transgredir,
intervenir, in-surgir, crear e incidir. Lo decolonial denota, entonces, un camino de lucha continuo en el cual se puede identificar,
visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y construcciones alter-(n)ativas (WALSH, 2013, p. 24-25).

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Na literatura relacionada à Consequentemente, uma implicação
fundamental da noção de
colonialidade do poder, há
'colonialidade do poder' é que o
referências - inclusive neste livro -
mundo não foi completamente
tanto à descolonialidade e ao descolonizado. A primeira des-
descolonial, quanto à descolo- colonização (iniciada no século XIX
nialidade e ao descolonial. A sua pelas colônias espanholas [e
referência no projeto de portuguesa, no caso do Brasil] e
modernidade / colonialidade seguida no século XX pelas colônias
inicia-se em 2004, abrindo assim inglesas e francesas) foi incompleta,
uma nova fase na nossa reflexão e pois se limitou à independência
discussão. Excluir o "s" é minha jurídico-política das periferias. Em
opção. Não é promover um vez disso, a segunda descolonização
anglicismo. Ao contrário, tenta fazer - à qual nos referimos à categoria
descolonialidade - terá que abordar a
uma distinção com o significado em
heterarquia de múltiplas relações
espanhol do "des" e o que pode ser
raciais, étnicas, sexuais, epistêmicas,
entendido como um simples econômicas e de gênero que a
desarmar, desfazer ou reverter o primeira descolonização deixou
colonial. Ou seja, passar de um intacta. Como resultado, o mundo do
momento colonial a um não início do século XXI precisa de uma
colonial, como se fosse possível decolonialidade que complemente a
que seus padrões e traços descolonização realizada nos séculos
desistissem de existir. Com este XIX e XX. Ao contrário dessa
jogo linguístico procuro mostrar que descolonização, a decolonialidade é
não existe um estado nulo de um processo de ressignificação de
colonialidade, mas sim posturas, longo prazo, que não pode ser
reduzido a um acontecimento
posicionamentos, horizontes e
jurídico-político (GROSFOGUEL,
projectos para resistir, transgredir,
2005 apud CASTRO-GÓMEZ;
intervir, in-surgir, criar e influenciar. GROSFOGUEL, 2007, p. 17, grifos
O decolonial denota, então, um do autor).
caminho de luta contínua em que
“lugares” de exterioridade e
construções alternativas podem ser Com a descolonização passamos de
identificados, tornados visíveis e um modelo de colonialismo moderno,
estimulados (WALSH, 2013, p.
capitalista, patriarcal para um modelo de
24-25, grifos da autora).
colonialidade em sentido mais global, ainda
patriarcal, capitalista que sustenta o que
Considero importante colocar em pauta a estamos chamando de hierarquização
discussão que há em relação aos termos institucional embasada por marcadores de
colonialidade, descolonização e decolonia- exclusão como gênero, cor, raça, etnia e
lidade, já que nos encontros de estudiosas outros que destes derivam. Essa
brasileiras e estudiosos brasileiros ainda colonialidade global, como denominada por
paira certa controvérsia quanto ao uso de Castro-Gómez e Grosfoguel (2007),
tais categorias e termos. Neste sentido, mantém a divisão do trabalho, a
trago a contribuição de Grosfoguel⁶: manipulação ideológica na construção das

6
De ahí que una implicación fundamental de la noción de ‘colonialidad del poder’ es que el mundo no ha sido comple-
tamente descolonizado. La primera descolonialización (iniciada en el siglo XIX por las colonias españolas y seguida
en el XX por las colonias inglesas y francesas) fue incompleta, ya que se limitó a la independencia jurídico-política de
las periferias. En cambio, la segunda descolonialización —a la cual nosotros aludimos con la categoría decolonialidad
— tendrá que dirigirse a la heterarquía de las múltiples relaciones raciales, étnicas, sexuales, epistémicas, económi-
cas y de género que la primera descolonialización dejó intactas. Como resultado, el mundo de comienzos del siglo
XXI necesita una decolonialidad que complemente la descolonización llevada a cabo en los siglos XIX y XX. Al
contrario de esa descolonialización, la decolonialidad es un proceso de resignifi cación a largo plazo, que no se puede
reducir a un acontecimiento jurídico-político (GROSFOGUEL, 2005 apud CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007,
p. 17).

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singularidades ou subjetividades, a subalternização dos povos e sua
hierarquização de saberes e as formas de homogeneização cultural.
dominação e opressão próprias do sistema
A presença de múltiplas culturas para
capitalista e das organizações políticas.
o entendimento das relações entre os povos
Assim, sendo a decolonialidade o caminho
não pode cair em mero perspectivismo, mas
de luta, como proposto por Catherine
caminhar para um diálogo intercultural que
Walsh, ou o movimento de ressignificação,
tem como exigência a horizontalidade de
como posto por Castro-Gómez e
saberes e de relações. A multiculturalidade
Grosfoguel, qualquer propósito decolonial
carrega a diversidade e as diferenças e a
torna-se um compromisso ético e político
interculturalidade alinhava essa diversidade
com as populações periféricas,
e essas diferenças com o diálogo, a troca, a
invisibilizadas, silenciadas.
visibilidade e a voz dos subalternizados, dos
Se entendemos que as relações periféricos, de homens e mulheres alijados
raciais, étnicas, sexuais, epistêmicas, do direito à vida, à existência, à
econômicas e de gênero permanecem temporalidade, à história. Como Walsh
intactas, ou não tão transformadas como coloca, “a interculturalidade abre horizontes
desejaríamos, em relação ao pensamento e abre caminhos para enfrentar o
colonial vigente, entendido aqui como colonialismo ainda presente e convida à
colonialidade, torna-se necessária a criação de novas e diferentes posições e
discussão sobre o papel das relações condições, relações e estruturas” (WALSH,
interculturais ou diálogo intercultural que 2009, p. 14)⁷. A interculturalidade é
está para além do multiculturalismo, sendo processo pelo qual se torna possível a
este entendido como mero reconhecimento libertação e a emancipação, colocando
de outras culturas distintas da nossa. A como uma utopia possível a superação da
modernidade se pensou como um discurso racialização e do racismo, do sexismo e do
supra-cultural, monodialógico, homogêneo machismo, numa perspectiva de uma vida
e de aculturação em que o multiculturalismo digna de ser vivida, sem violência, sem
era visto como mera diferença entre os genocídio, sem exclusão. As diferenças e a
civilizados e os bárbaros a serem civilizados diversidade em processo de interrelações
ou colonizados. O multiculturalismo se nos permitem criar novas condições para a
revelou como um dado antropológico- vida em sociedade, pois o contato e o
folclórico sem diálogo, a ser estudado e diálogo com culturas, saberes e modos de
superado pela imposição da cultura vida nos fazem perceber que há
ocidental, branca, masculina; em outras possibilidades outras de se compreender o
palavras, o colonialismo se entende por mundo e as próprias relações.
meio da construção de uma
monoculturalidade: a ocidentalização do
mundo e sua globalização econômica, a

7
“la interculturalidad despeja horizontes y abre caminos que enfrentan al colonialismo aún presente, e invitan a crear
posturas y condiciones, relaciones y estructuras nuevas y distintas” (WALSH, 2009, p. 14).

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do outro, daquele que é subalternizado
2 DECOLONIALIDADE,
pelas relações de poder e pela ideologia
EDUCAÇÃO E CURRÍCULO
tornada hegemônica.
O currículo escolar é uma narrativa
constituída por valores sociais, por A busca pela compreensão de uma
epistemologias, por recortes de pedagogia decolonial passa pela análise
conhecimento produzido historicamente crítica do pensamento decolonial e suas
pela humanidade e por isso mesmo carrega categorias, bem como exige uma discussão
em seu bojo todo o peso do pensamento sobre educação antirracista, antissexista e
eurocêntrico e o sistema-mundo. intercultural. É necessário que se ampliem
os debates sobre a decolonialidade e que
Segundo Moura (2019, p. 39),
possamos contribuir para o entendimento
O (re)pensamento crítico decolonial crítico dessa virada epistemológica, além de
nos processos de produção de
conhecimentos trata de romper com construir reflexões para um currículo
os uni-versalismos alienantes e traz possível que supere as relações de
à pauta, pela análise crítica, os
opressão próprias do pensamento colonial.
binarismos modernos que inundam
as academias: norte/sul,
ocidente/oriente, colonizador/coloni- O pensamento eurocêntrico gera o
zado, rico/pobre, alta cultura/baixa silenciamento dos saberes que estão à
cultura, branco/negro, homem/ margem e que respondem às necessidades
mulher, ciência/arte. Por outras vias,
trata de pensar co-existências – de dos povos originários e o modelo adotado
mundos, de conhecimentos, de como sistema-mundo - branco, machista e
lugares, de povos, de ciências, de
masculino, cristão, escravista - se tornou
artes, de culturas, de pensamentos
– problematizando as hierarquias, hegemônico e favoreceu a manutenção das
legitimando processos anti-hege- relações de poder.
mônicos, imaginando entre lugares
e multiformas de produzir de
Observa-se que a ideologia vigente
conhecimentos.
tem suas bases no capitalismo, no
Assim como o Grupo M/C investe neoliberalismo, nas relações políticas de
seus esforços na revisão das opressão, na manutenção do patriarcado e
epistemologias das ciências humanas, cabe na prática reprodutivista das relações, dos
a nós uma revisão dos pressupostos valores sociais e dos conteúdos culturais. A
educacionais que subjazem os documentos epistemologia escolar é construída pelos
educacionais, buscando fazer uma crítica e valores histórico-culturais e por saberes e
também, como diz Mignolo (2005), conhecimentos científicos que são
empreitando formas de se ultrapassar os permeados, na contemporaneidade, pelo
limites da própria colonialidade e de se pensamento eurocêntrico que é colonial,
superar a hierarquização de saberes e a universalista e totalizante. As relações de
subalternização das pessoas. Para Quijano poder e a ideologia concorrem para a
(2005), como já apontado anteriormente, construção cultural de um povo e se
colonialidade refere-se a uma estrutura de impõem por meio das religiões e suas
dominação que submeteu a América Latina, igrejas, das mídias, da educação e seus
a África e a Ásia, a partir da conquista, e currículos.
caracteriza-se pela ocupação do imaginário

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As relações de dependência são Porém, libertar-se e emancipar-se
verticais e impedem qualquer mudança de exigem um esforço conjunto e pessoal de
pensamento em direção à superação das tomada de consciência para que nossas
relações de dominação. Na história da ações coletivas e individuais tenham como
América Latina se observa a libertação de meta a emancipação e a libertação não
uma situação de dependência ou como dádivas, mas com resultado de ações
dominação para se aceitar outra, parecendo intencionalmente dirigidas.
haver uma cadeia sem fim de processos de
Onde quero chegar com estas
dominação travestidos de libertação. A
reflexões?
libertação não pode depender de uma certa
mudança histórica ‘transcendental’, Busco compreender que ainda
esperando que haja uma superação das permancemos herdeiras e herdeiros de uma
relações de dominação e de ideologia banhada em colonialidade e que
subdesenvolvimento como consequência. A nossos currículos estão pensados nesse
libertação começa, e somente se efetiva, formato hegemônico, hieraquizado em
com a tomada de consciência das relações termos de saberes e de formas de
de dominação e por meio do efetivo diálogo compreensão do mundo, da realidade. Ora!
com as circunstâncias. Exige-se, portanto, Como chegar ao propósito tão veiculado
uma reflexão sobre a realidade. nas esferas educacionais de que a
educação deve promover a emancipação, a
A ideia de emancipação se
autonomia, o pensamento crítico se
estabelece no sentido de uma
docentes e estudantes são submetidos ao
descolonização ao considerarmos a
cumprimento de um currículo determinado
emancipação político-jurídica dos territórios
externamente à escola, seja pela Base
submetidos ao processo de invasão,
Nacional Comum Curricular, seja pelos
aculturação, colonização. Do ponto de vista
exames externos (ENEM, vestibulares,
das singularidades, a emancipação nem
ENADE e outros) que reproduzem a
sempre se dá com a emancipação
ideologia dominante, contam a história dos
político-jurídica. A tutela da metrópole sobre
‘vencedores’, apresentam uma geopolítica
a colônia configura um certo processo de
de invasão e ‘desenvolvimento’, ocupando
dominação e manipulação que envolve
territórios, matematizando o mundo pela
tanto a propriedade, a posse de territórios
única maneira possível, aquela estabelecida
quanto a mente e os corpos, como no caso
pelos saberes consolidados? Como superar
dos processos de escravização. Manipular
o machismo, o racismo, o sexismo, a
teria como etimologia a condução, o
violência, o individualismo, as diversas
transporte, dar forma com as mãos,
formas de opressão se não é alterado o
manejar. Em cotrapartida, emancipar seria
currículo escolar? “Se a educação sozinha
‘tirar’ a mão. Emancipação política, paterna,
não transforma a sociedade, sem ela
alforria... Emancipação como ‘tirar a mão’
tampouco a sociedade muda” (FREIRE,
parece nos remeter a uma ação de outrem
2000, p. 67).
sobre nós, mas o mesmo se dá em termos
de libertação, que alguém nos concede.

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Ao longo do século XX, no bojo das territorialista foi uma conquista epistêmica
discussões étnico-culturais e numa dos colonizadores.
perspectiva da antropologia filosófica,
As práticas coloniais promoveram o
surgem os debates sobre a
silenciamento dos povos originários e dos
interculturalidade que se caracteriza pelo
povos afrodescendentes; silenciamento que
diálogo aberto e convergente e que busca
se estendeu aos povos mestiços e
dignificar todas as tradições humanas em
periféricos, negando-lhes sua história e sua
cooperação. Resulta desse diálogo
tradição, o que dificulta o intercâmbio de
intercultural e polifônico a evidência da
saberes, de valores, de práticas sociais e
pluralidade epistemológica da produção
culturais. O diálogo intercultural não se
humana em sua complexidade e em seus
resume a por a foco a diversidade cultural,
contextos culturais periféricos, já que o
promovendo apenas a tolerância e a
centro é a Europa. O diálogo intercultural
convivência com vistas à mera inclusão
reconhece o valor da cultura do outro; é a
desses povos à estrutura social vigente,
alteridade a base ética para a
favorecendo o avanço do capitalismo, da
interculturalidade. Nas palavras de
globalização e da coesão social. Do ponto
Fornet-Betancourt (2007), a
de vista dos debates decoloniais, o diálogo
interculturalidade é oposição à globalização
intercultural necessita ser crítico,
e ao capitalismo, pois essas formas
tornando-se um projeto social,
ideológicas não são plurais, ferindo a
epistemológico e político, levando os povos
dignidade humana e impedindo a
periféricos a atuarem em suas
comunicação entre as diversas
circunstâncias, modificando a lógica da
comunidades culturais que constituem a
colonialidade que desumaniza e
humanidade.
subalterniza. O diálogo intercultural é
Estivemos – e ainda estamos – num aquele que favorece e estimula a
processo de colonização dos saberes, dos interrelação de saberes, culturas,
corpos, dos poderes, de modo que a racionalidades, lógicas de pensar, de sentir
América Latina viveu – e ainda vive – e de agir; e, neste sentido, é que os estudos
mergulhada em relações de subalternidade decoloniais nos exigem abarcar questões
e silenciamento dos povos periféricos, o que étnico-raciais e de gênero, dando
nos leva a perseguir as questões postas por visibilidade aos problemas advindos da
Catherine Walsh (2007): o que se entende colonialidade, propondo um enfrentamento
por interculturalidade, colonialidade e crítico dessa matriz colonial que descarta e
decolonialidade e como pensar uma desqualifica os modos de vida e de pensar
educação intercultural que promova o dos povos outros.
pensamento crítico e a ação comprometida
O modelo colonial tem a raça e o
com o social? A modernidade traz consigo a
gênero como matrizes das relações de
colonialidade: ação que envolveu a posse
subalternidade e de opressão. A discussão
de terras, a expansão do poder europeu, a
sobre racismo não se limita a um estudo
imposição de uma razão universal. A
histórico sobre esta forma de pensar, ser,
ideologia imposta pela expansão
sentir e agir, mas deve ser pensado e

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analisado em chave decolonial para que se para a utopia, portanto para o sonho,
para a opção, para a decisão, para a
possa chegar a uma educação antirracista. espera na luta, somente como existe
Também os estudos feministas, já que as esperança. Não há lugar para a
educação. Só para o adestramento.
questões de gênero perpassam as relações
de opressão. Assim como o mestiço é o
Um mundo pensado em chave
‘outro’ nas relações coloniais de poder, o
decolonial, uma educação pensada em
feminino também o é, e sustentar as
chave decolonial, as relações cotidianas e a
diferenças étnico-raciais e de gênero é
vivência pensadas em chave decolonial se
sustentar as relações de poder próprias do
configuram em ações de compromisso
patriarcado colonial.
social, de libertação, de emancipação, de
Sem uma educação antirracista e voz e imagem, de saberes; atos
antissexista, seja no ambiente formal da comprometidos com uma vida ‘outra’, uma
escola, seja em ambientes informais de pedagogia ‘outra’; decolonialidade como
aprendizagem ou em lugares não-formais uma ação política e ética cujos fundamentos
de ação pedagógica, a educação contribui são o fim da hierarquização institucional
para a manutenção das relações de poder, embasada por marcadores de exclusão e a
de opressão, de manipulação. Um currículo, alteridade escutada, vista.
para ser emancipador, precisa se
emancipar; uma educação libertadora
3 CONSIDERAÇÕES NEM
somente será alcançada se assumirmos, de
TÃO FINAIS
fato, nosso papel na temporalidade
humana, na defesa das existências e na Após essa breve explanação que
construção de uma vida feliz e digna para envolveu reflexões sobre colonialidade,
todas as pessoas. Uma utopia, sim, uma decolonialidade, interculturalidade, educa-
utopia possível como já nos apontou Paulo ção, emancipação e libertação, passo a
Freire (2013, p. 79-80). responder parcialmente as perguntas
levantadas ao longo deste texto.
não há utopia verdadeira fora da
tensão entre a denúncia de um Ao me perguntar sobre a possibilidade de
presente tornando-se cada vez mais
intolerável e o anúncio de um futuro a uma educação decolonial, me deparo com a
ser criado, construído, política, fundamentação filosófica eucêntrica que
estética e eticamente, por nós,
mulheres e homens. A utopia implica ainda perdura em nossas relações
essa denúncia e esse anúncio, mas pedagógico-escolares em busca de uma
não deixa esgotar-se a tensão entre
ambos quando da produção do futuro consolidação de imagem de ser humano, de
antes anunciado e agora um novo conhecimento, de ética, de desenvo-
presente. A nova experiência de
sonho se instaura, na medida mesma lvimento. Uma pedagogia decolonial precisa
em que a história não se imobiliza, fazer a necessária crítica a esses
não morre. Pelo contrário, continua.
[...] Na verdade, toda vez que o futuro fundamentos de modo que a imagem de ser
seja considerado como um pré-dado, humano corresponda às vivências e não
ora porque seja a pura repetição
mecânica do presente, só aos modelos previamente estabelecidos,
adverbialmente mudado, ora porque tornando a construção do conhecimento
seja o que teria de ser, não há lugar
como algo coletivizado, ampliado pelas

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relações de educadores e educandos com a silenciamento dos subalternizados. Deste
realidade cultural e física. Uma educação ponto de vista, a hipótese que se coloca é
‘outra’, decolonial, a partir de efetiva que é possível uma educação decolonial
apropriação do currículo elaborado desde que seja assumida a crítica ao
coletivamente, resultará na construção de patriarcado e ao capital por meio de práticas
condições de vida para os oprimidos, com interculturais que visem a emancipação e a
vistas à superação das relações de formação de pessoas críticas. Uma
opressão e dominação étnico-raciais, de educação com base decolonial, com um
gênero e de classe. diálogo intercultural e com vistas à
emancipação tem como resposta uma
As práticas pedagógicas ‘outras’,
prática educativa e um currículo antirracista,
decoloniais, são aquelas em que a história,
antissexista e antipatriarcal.
a geopolítica, a linguagem, o raciocínio
façam sentido a educadores e educandos. A É necessário, e até mesmo urgente,
arte como ferramenta para a crítica e a colocar na mesa de discussões uma nova
construção de novos imaginários. A pedagogia que seja pensada a partir da
interculturalidade crítica como ferramenta produção epistemológica latino-americana
de um diálogo horizontalizado, de buscas e decolonial.
descobertas coletivas, de troca de saberes.
Fazer uma crítica à educação escolar
O fim a ser perseguido, sem dúvida alguma,
e sua epistemologia requer, a partir de uma
é a emancipação, uma conquista de
chave decolonial, romper com os
autonomia e pensamento crítico que
universalismos e demais recursos
permita a mulheres e homens serem
alienantes, principalmente os dualismos
protagonistas de sua existência. Somente
como rico e pobre, corpo e mente, homem e
com um diálogo intercultural horizontalizado
mulher, arte e ciência. Buscar uma prática
de trocas de saberes será possível a
pedagógica pensada em múltiplas formas
superação do silenciamento dos
de ser, de pensar e de sentir que supere as
subalternizados.
relações de subalternidade, o silenciamento
Os fundamentos filosóficos na base da outra e do outro, a desconsideração de
do pensamento educacional devem saberes populares e a invisibilização dos
promover a crítica ao capitalismo, à povos periféricos. Requer também uma
colonialidade (do poder, do ser, do saber), à crítica aos pressupostos hegemônicos de
ideologia racista e sexista, ao trabalho como modo a problematizar os fins da educação.
manutenção dos centros de poder, ao
Assim, estes estudos, ainda em
patriarcado. Transformar a educação exige
andamento, têm como referencial teórico e
transformar as instituições excludentes em
ponto de partida o panorama da filosofia
esferas de diálogo e ação inclusivas, voz e
latino-americana no século XX e seus
escuta.
desdobramentos atuais com fito a
Sendo a educação colonizada, é compreender a interculturalidade como um
possível relacioná-la ao capitalismo, à projeto político-epistêmico, de modo a
ideologia patriarcal – racista e sexista – e ao contribuir para se pensar uma educação

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emancipadora e dialógica que corresponda
a um novo ordenamento social mais
horizontal. Uma virada epistemológica,
também teórica e política, necessária para
se alterar a educação deve ter como chave
o pensamento decolonial, construindo uma
crítica ao patriarcado e do que dele decorre
como o sexismo e o racismo. Há de se
colocar em pauta uma educação dialógica e
intercultural que ofereça oportunidades de
formação para a emancipação e para o
pensamento crítico.

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