Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
\.
'"
A INVENÇAO DA CULTURA ')
~
l"'t
t Roy Wagner !. I ~ ~ ~ J\
~ ! .~o ~ I
~
vru o If~
~,.
., t'
~
~
YI-l ~
C:i
~ o
~'\
D\,
'I
..
liA
RoyWagner
A invenção da cultura
.~
COSACNAIFY
9 Prefácio
13 INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I
27 A presunção da cultura
CAPÍTULO 2
9
Departamento de Antropol ogia da Universidade de Chicago e benefi INTRODUÇÃO
ciou-se das inspiradas críticas e comentáriostão característicos daquelas
sessões. Uma versão do capítulo 3 foi lida na Universidade de Northern
Illinois em abril de 1973, e gostaria de agradecer particularmente a M.
Jamil Hanifi e Cecil H. Brown pelas proveitosas observações e ideias
que externaram na ocasião. Comentários e críticas sucintos mas ines
timáveis foram proferidos po r meu colega Johannes Fabian enquanto
pescávamos (sem sucesso) em Sturgeon Bay, Wisconsin, em junho de
1972. Minha esposa, Sue, deu mostras de considerável tolerância durante
a redação do livro, eminha filha, Erika, revelou-seuma instrutora muitís
simo valiosa para o papai no envolvimento dela com aquela queé a mais
vital de todas as invenções da cultura: a primeira. Sou grato, igualmente,
'-~
10 Prefácio
..
são derretidos pelo calor e pela pressão das evidências acumuladas, verifi-
cando-seentão uma "revolução tectônica". A antropologianão é uma delas.
Como disciplina, a antropologia tem sua história de desenvolvimento teó-
rico, de ascendência e antagonismo com
relação a certas orientações,uma
história que sem dúvida manifesta certa lógica ou ordem [capítulo 6]. Com
toda a unanim idade de qu e goza, porém, esse fluxo de ideação pode muito
bem ser descrito como p ura dialética, um jogo de exposições (e refutações)
po r vozes disparatadas ou uma eclética soma de tudo e mais um pouco den-
tro dos manuais. O que é notável nissonão é tanto a persistênciade fósseis
teóricos (uma persistênciaque é o recurso básicoda tradição acadêmica),
mas a incapacidade da antropologiapara institucionalizaressa persistência,
ou mesmo para institucionalizar qualquer tipo de consenso.
Se A invenção da cultura exibe uma tendência a defende r suas opi-
niões em vez de arbitrá-las, isso reflete, pelo menos em parte, a condi
ção de uma disciplina na qual um autor é obrigad o a destilar sua própria
tradição e seu próprio consenso; Além disso, essa tendência se relaciona
com algumas das pressuposições expostas nos três primeiros capítulos
IJ
que eu esteja beatífica e ingenuamente desavisado de que esses interesses tão formidável quanto o antigo. Um exame exaustivo desses problemas
existem, ou não tenha consciência da força p rática e ideol ógica do "inte seria proveitoso, assim como o seria um arrolamento de evidências pró e
resse" no mundo moderno. Significa que eu gostaria de considerar tais cOntra minha posição. Mas, argumentos e evidênci as dizem respeito a um
interesses como um subconjunto, ou fenômeno de superfície, de questões nível de investigação (e talvez de "ciência") diferente daquele visado aqui.
mais fundamentais. Desse modo, seria um tanto ingênuo esperar que um Este livro não foi escrito para provar, mediante evidências, argu
estudo da constituição cultural dos fenô menos argumentasse a favor da mentação ou exemplos, qualquer conjunto de preceitos ou generaliza
"determinação" do processo, ou de partes significativas dele, po r algum ções sobre o pensamento e a ação humanos. Ele apresenta, simplesmente,
contexto fenomên ico especíl ico e privilegiad o - especialmente quando um ponto de vista diferente aos antropólogos, adumbrando as impli
o estudo argumenta que tais contextos assumem seus significados em cações desse ponto de vista para certas áreas de interesse. Se algumas
grande medida uns a partir dos outros. ou muitas dessas implicações deixam de corresponder a alguma área de
É esse, então, o ponto de vista analítico de um livro que el ege obser "fatos observados", isso certamente se dá porq ue o mo delo foi deduzido
var fenômenos humanos a partir de um "exterior" - entendendo que uma e estendido para fora, e não construído por indução. Embora não seJa
perspectiva exterior é tão prontamente criada quanto as nossas mais con- grau
fiáveis perspectivas "interiores". A discussão sobre a relatividade cultural preciso dizer
construção deque algumque a liga
modelo, de circunspe cção éecrucial
está no modelo não nosnesse tipo deo
detalhes,
é um ótimo exemplo. Em parte uma pista falsa para aqueles que querem procedimento é em última instância aquele da famosa sentença de Isaac
afirmar o caráter generalizado da pressão socioeconômica, ou refutar a Newton: "Hypothesis nonfingo". "Não formulo hipóteses", relata-se ter
possibilidadede uma objetividade cientílic a verdadei ramente antisséptica , dito o fundador (e ultimamente, parece, o "inventor") das ciências exa
ela foi introduzida aqui de uma maneira que aparenta ser controvertida tas, indicando qu e compunha suas equações e delas deduzia o mundo.
mente idealis ta. Considere-se porém o que é feito desse "idealismo" na Eu acrescentaria que a capacidade de enxergar isso como uma humilde
discussão subsequente, na qual a própria "cultura" é apresentada como e sóbria declaração de procedimento, e não como vanglória, é um teste
uma espécie de ilusão, um contrapeso (e uma espécie de falso objetivo) de aptidão par a perspecti vas" exteriores".
para ajudar o antropólogo a ordenar suas experiências. É possível, sem A diversidade teórica da antropolo gia tor na difícil generalizar criti
dúvida, que a questão de saber se uma falsa cultura é verdadeiramente ou camente sobre o campo, por mais oportunas que possam ser certas apreen
falsamente relativa tenha algum interesse para aqueles verdadeiramente sões críticas das derivas da teorização. Assim, embora aparentemente boa
fastidiosos, mas de um modo geral foram obviadas as costumeiras premis- parte da teorização antropológica reconheça a relatividade cultural para
sas para um debate satisfatório, vigoroso, sobre a "relatividade cultural". meramente transformá-la em alguma outra coisa (e a presente teoria sim
A tendência a evitar, a obviar, a "não lidar com" muitas ou quase bólica não é exceção), certamente houve abordagens (a de Franz Boas,
todas as velhas e intermináveis querelas teóricas da antropolog ia, por des por exemplo) que não fizeram is so. E a tendência - catalogada em minha
norteante que possa ser para aqueles que têm seu terreno reconhecido e discussão sobre o "museu de cera" [capítulo 2] - a descobrir por analogia
minado, é um artefato da posição que assumi. Af ora isso, não faz parte de (e ratilicar com evidências) engenhocas de programação de computadores
uma política deliberada para repelir a antropologia ou os antrQRíÍlogos e de contabilidade de custos primitiva, ou gramáticas e dogmáticas da vida
ou para pleitear uma imunidade espúria para uma posição privilegia da. social, embora ainda seja perturbadoramente difundida, não é por certo
Ao escolher um terreno novo e diferente, apenas troquei um conjunto de universal na moderna antropologia. Reconheço que alguma simplificação
problemas e paradoxos por outro, e o novo conjunto é tim-rim por tim-tim excessiva nesse aspecto, assim como em outros, pode ter sido resultado do
14 Introdução II
amontoado crítico que fiz de certas abordagens, levando a uma desconsi N a inspiração e no desenvolvimen to de seu programa teórico,
deração completamente não intencional de uma série de direcionamentos A invenção da cultura representa uma generalização do argumento de
e autores promissores no âmbito da antropologia. minha monografia Habu: The lnnovation o f Meaning in Daribi Religion
Outro ponto que pode soar ao leitor como má estratégia, ou talvez (1972) e se empenha em situar esse argumento no contexto da constitui
como impensada perpetuação de um erro mais que comum, é a oposi- ção e da motivação simbólicas dos atores em diversas situações culturais.
ção entre o conven cionali smo ocidental e a característica diferen ciação Especificamente, leva adiante a ideia central de Habu, de que todas as sim
simbóli ca preferida pelos povos "tradicionais" - compreendendo socie bolizações dotadas de significado mobiliza m a força ino vadora e expres
dades "trib ais" e as ideologias de civilizações complexas e estratificadas siva dos tropos ou metáforas, já que mesmo símbolos convencionais (refe
e de certas classes na sociedade civil ocidental. O fato de que a distinção renciais), os quais não costumamos pensar como metáforas, têm o efeito
é mais intrincada do que as simplistas dicotomias "p rogress ista/ conser de "inovar sob re" (isto é, "ser reflexivamente motivados em contraste
vador" - apropr iadame nte pa rodia das por Marshall Sahlins como" he com") as extensões de suas significações para outra s áreas. Assim, Habu
West and the Rest"l- deve ficar evidente na discussão do capítulo). Em deriva significado cultural de atos criativos de entendimento inovador,
suma, meu argumento sugere que o modo de simbolização diferenciante construindo metáfora sobre metáfora de modo a redirecionar continua
provê o único regime ideológico capaz de lidar com a mudança. Povos mente a força de express ões anteriores e subsumi- Ia em novas constru
descentralizados, não estratificados, acomodam os lados coletivizante ções. A distinção entre metáforas convencionais, o u coletivas, e metáforas
e diferenciante de sua dialética cultural mediante uma alternân cia episó individuantes não é contu do perdida; ela fornece um eixo de articula
dica entre estados rit uais e secula res; civilizações altamente dese nvolv i ção entre expressões socializantes (coletivas) e expressões que conferem
das asseguram o equilíbrio entre essas necessárias metades da expressão poder (individu ativas). (Sob esse aspecto, o modelo assemelha-se, e sem
simbólica por meio da interação dia lética de classes sociais complem en dúvida deve algo, à discussão sobre "universalização e particularização"
tares. Em ambos os casos, são atos de diferenciação incisivos, contun em O pensamento selvagem de Lévi-Strauss.) Além disso, o aspecto cole
dentes - entre sagrado e sec ular, entre propriedades e prerrogativas de tivo da simbolização é também identificad o com o mo do moral, ou ético,
classe -, que servem para regular o todo. Mas a moderna sociedade oci da cultura, colocando-se em uma relação dialéti ca com o modo factuaL'
dental, que Louis Dumont acusa de "estratificação envergonhada", é Como epistemologia de Habu, A invençãoda cultura situa seu argu
criticamente desequilibrada: sofre (ou celebra) a diferenciação como mento no interiordo modelo ali configurado e empreende uma exploração
sua "história" e contrabalança o coletivi smo intens ivo de seus empreen e um desenvolvimento radicais das suas implicações. A série de impli
dimentos públicos com estratagemas competitivos semiformais e enver cações inter-relacionadas e entrelaçadas é apresentada no capítulo 3 e,
gonhados em todos os tons de cinza e com a bufonaria desesperada da apesar dos riscos de jargão na necessária referência cruzada de termos
propaganda e do entreteni mento. Eu argumentaria que compartilha mos especiais, é apresentada "de uma vez só".
com o período helenístico em Alexandria, e co m fases pré-dialéticas Os acréscimos mais significativos ao modelo de Hahu compreendem,
de outras civilizações, uma orientação transitória e altamente instável. em primeiro lugar, uma clarificação dos efeitos COntrastantes dos modos
Mas isso é parte de um modelo, e não, com toda a certeza, uma posi~ de simbolização convencional e diferenciante. Como partes da dialétic a,
assumida por conveniência.
2. Cf. Clifford Geertz, "Ethos, visão de mundo e a análise de símbolos sagrados", in A in-
I. Em tradução literal: "O Ocidente e o Resto". [N. T.) terpretaçãodas cu.ltu.ras. Rio de Janeiro: Guanabara, [1973] 1989.
16 Introdução 17
eles necessariamente simbolizam um ao outro, mas o fazem de maneiras A noção de uma dinâmica culrural baseada na mediação de domínios
diferentes. A simbolização convencional estabelece um contraste entre os de responsabilidade (e não responsabilidade) humana é mais dificil de ser
próprios símbolos e as coisas que eles simbolizam. Chamo essa distinção, rastreada de outr as fontes. O tema foi retoma do em meu artigo "Scientific
que opera par a distinguir os dois modos em seus respectivos pesos ideo and Indigenous Papuan Conceprualizations of the Innate"(1977) e em "No
lógicos, de "contraste contextual". Os símbolos diferenciantes assimilam Narure, no Culrure: Th e Hagen Case", da Dra . Marilyn Strathern. 3 Meu
ou englob am as coisas que simbolizam. Chamo esse efeito, que s empre livro Lethal Speech: Daribi Myth as Symbolic Obviation (1978) leva o arg u
opera para negar a distinção entre os modos, para aboli-la ou derivar um mento adiante ao desdobrar as implicações radicais da obviação como forma
do outro, de "obviação". Uma vez que esses efeitos são reflexivos (isto estendida ou processual do tropo. Lethal Speech é um livro "sobre" a obvia
é, aquilo que "é simbolizado" exerce seu efeito, por sua vez, sobre aquilo ção, assim comoHabu na verdade é um livro sob re a metáfora, e A invenção
que simboliza), todos os efeitos simbólicos são mobilizados em qualquer da cultura, preocupado co m a relação dessas formas com a convenção, torna
ato de simboliz ação. Consequentemente, o segundo acréscimo ao modelo se assim o elemento intermediário de uma trilogia não programada.
é o de que a consciência do simbolizador em qualquer mo mento dado se O uso que aqui faço do t ermo "i nvenção" é, creio eu, bem mais tra
concentra forçosamente sobre um dos modos. Focalizando a atenção nesse dicional do que os contemporâneos estereótipo s do tipo "raio-em-céu
"controle", o simbolizador percebe o modo oposto como algo bastante azul" de homen s das cavernas sortudo s e descobertas acide ntais. Como
diferente, uma "compulsão" ou "motivação" interna. O terceiro acré s no caso da invenção na música, ele se refere a um componente positivo e
cimo é o de que toda " cultu ra", ou classe cultural significat iva, irá favore esperado da vida humana. O termo parece ter retido muito desse mesmo
cer uma das duas modalidades simbólicas como a área apropria da à ação sentido desde o tempo dos retóricos romanos até a aurora da filosofia
humana e considerar que a outra manifesta o mundo "dado" ou "inato". moderna. Na Invenção dialética do humanista do século xv Rodolphus
O capírulo 4 explora o significado disso para a estrurura das motivações e Agricola, a invenção aparece como uma das "parte s" da dialética, encon
da personalidade humanas, e o capítulo í desenvolve um modelo de inte trando ou propondo uma analogia para um propositus que pode então ser
gração e evolução culrural baseado no contraste contexrual e na obviação. "julgado" ao chegar a um a conclusão - um pouco como uma hipótese
A operação" episódica" da dialética em sociedades tribais ou acé científica é submetida a julgamento ao ser "testa da".
falas tem estreito para lelismo - exceto por seus sustentáculos teóricos - Sendo a invenção amplamente indetermin ada tanto para os antigos
co m o modelo de cismogênese simétrica e complementar equilibrada como par a os filósofos medievais, coube à visão de mundo materialista
apresentado por Grego ry Eateson no "Epílogo 1936" de seu livro Naven. mecanicista, com seu determinismo newtoniano, bani-la para o domínio do
Isso sem dúvida alguma reflete minha familiaridade com a obra de Eate "acidente". Al ém disso, é claro, há a inevitável tentação de coopt ar o próprio
son e minha admiração po r ela. Menos óbvia é a inadvertida similari acidente (ou seja, entropia - a medida,por avor, não da aleatoriedade, mas
dade entre o contraste" homo hierarchicus/homo aequalis" de Dumont e da nossa ignorân cia!) para dentro do "sistema", de brincar de cobra-cega
as comparações mordazes que faç o entre a sociedade americana moder na com a "necessidade" nos estudos evolutivos, de jogar o "jogo do seguro
"relativizada" e as ordens sociais dialeticamente equilibradas de civiliza de vida" com partículas subatômicas, de escrever a gramática da metáfora
ções mais antigas. A dialética de classes sociais vislumbrada aqui talvez ou o braile da comunicação não verbal, ou de programar computadores
,"*
deva muitíssimo a Dumont e ao notável Class Differences and Se x Roles
in American Kinship and Family StruClure [1973], de David M. Schneider 3. Marilyn Strathern, "No Nature, no Culture: The Hagen Case", in C. MacCormack & M.
e Raymond T. Smith. Strathern (orgs.), Nature, Cu/ture and Gender. Cambridge: Cambridge University Press, 1980.
18 IntroduçiW 19
para compor versos brancos (de modo quase tão ruim, às vezes, quantose convencionais, longe de ganharem circulação por meio do contínuo
sabe que os seres humanos compõem).Mas cooptar, ou afirmar, a inven reembaralhamento das metáforas, são engolidos no ato sigiloso de
ção e lidar satisfatoriamente comela são duas coisas um tanto diferentes. sua formação, e qualquer "conhecimento" que possa existir é açam
Houve uma certa inevitabilidade, em todo caso, na confluência barcado e confiado em bocadinhos a iniciados. Como mensagens de
entre a antropologia dos símbol os e o "buraco negro" da moderna teo rádio enviadas entre buracos negros, muito pouco passa. Mesmo con
ria simbólica - o "símbolo negativo", o tropo, que gera (ou nos obriga cedendo a Barth alguma licença retórica para o exagero, somos obriga
a inventar) seus próprios referentes. A invenção da culturafoi publicado dos a perguntar, em meio a esses vácuos de não comunicação egoísta
mais ou menos ao mesmo tempo [em 1975] que três outras sondagens hermeticamente fechados, de quem afinal os Baktaman pensam que
notadamente diferentes desse buraco negro: Rethinking Symbolism, de estão guardando seus segredos.
Da n Sperber, Ritual and Knowledge among the Baktaman, de Fredrik Depois de tudo o que foi escrito sobre as fontes conjecturais dos
Barth, e Porta para o infinito [Taleso f Power], de Carlos Castafieda. Para escritos de Castafieda, tudo o quese pode fazer é estender a eles a mesma
Sperber, o buraco negro não é tanto um poço de gravidade quanto uma atitude profissional de suspensão da descrença que se teria para com o
nuvem de poeira obscurante. Ele equivale ao lugar onde a referência relato de um etnógra fo sobre algum exótico sistema de crenças africano
cessa; obtém-se"conhecimento" ao se formar uma metáfora,mas trata-se ou oriental. O modelo requintadamente autocontido e dialético apre
de um conhecimento forjado em um âmbito pessoal por imitação de um sentado em Porta para O infinito parece uma resposta "budista" ao "hin
conhecimento "enciclopédico" (isto é, convencional) mais amplamente duísmo" da teologia asteca de Moyucoyani (o deus que "inventou a si
sustentado. Sperber compreende perfeitamente bem que uma metáfora mesmo", do verbonahualtyucoyo,"inventar") descritapor León-Portilla.
coloca um desafio, que é preciso, como diriam os confidentes de Cas Mesmo se Castafíeda tivesse "inventado" a coisa toda ele próprio,cará
o
tafieda, "conquistar o conhe cimento para si próprio". Mas o resultado, ter oportuno desse exemplar da antropologia dos símbolos ainda seria
a julgar por suas conclusões, é mais um simulacro do que uma inven significativo. Pois onagual (o poder, "aquilo com que não lidamos"), em
ção. Para Sperber, a invenção não pode revelar - e desse modo criar - o sua oposição ao tonal ("tudo o que pode ser nomeado", a convenção),
mundo como pode para Piaget, pois desempenha um papel desprezivel é a mais nítida expressão do símbolo negativo que temos.É a coisa que
mente secundário em relaçãoao conhecimento "real". fa'( a metáfora mas sempre escapa em sua expressão. (E aqui pode ser útil
A cultura baktaman, na interpretação de Barth, é quase o oposto relembrar queas culturas mesoamericanas compartilham com caultura
disso. Emb ora ele tacitamente admita que o significado seja constituído indiana a distinção de terem independentemente srcina do o símbolo do
por meio da metáfora, a metáfora, na absoluta ausência de pressupo zero, a "quantidade negativa".)
sições ou associações comparti lhadas , é construída com base em Discuti aqui, de modo evidentemente tendencioso, essestrês contem
sensações compartilh adas - o orvalho sobre o capim, a vermelhidão porâneosde A invenção da cultura - , não em razão de quaisquer defeitos ou
do fruto do pandano e assim po r diant e - medi ante uma es pécie de vantagens que possamter, mas porque eles, com todasas suas diferenças
"troca silenciosa" [dumh hartert de penhores semiológicos. Os signos de abordagem ou epistemologia, apreendem as propriedades do símbolo
,""
4. Prática também denominada na literatura anglo-saxã como "si/ent trade": "forma de tro > sinalização] emum contexto no qual o mercado, como instituição, ainda não está desen
ca {intersocietal]na qual as partes envolvidas atuam sem o auxílio de intermediários, sem volvido" (ver Wilson Trajano Filho, "A troca silenciosa e o silêncio dos conceitos". Dados,
a utilização de signos linguísticos, sem contatos face-a-face [e mediante alguma forma de > voI. 35, n. I, pp. 87-1I6, 1991). [N.T.]
20 Introdução 21
negativo exatamente da mesma maneira. As diferenças dizem respeito ao não é "filosófico" nem é filosofia. Ele na verdade se esquiva das "Ques-
que é feito dessas propriedades e como a relação delas com os símbolos tões" e do s pontos de orientação etnocêntricos que a filosofia considera
convencionais é efetuada. Tratar a invenção como um simbolismo man- tão necessários para sustentar Ce defender) seu idealismo. Mas também
qué, considerá-la um conhecime nto espúrio, como faz Sperber, é subverter quer dizer que, a despeito do importante idioma da "produção" ado-
a coisa mais poderosa que existe para o alento de um a civilização orgu- tado no segundo capítulo, não tenho nenhum interesse em movimento s
lhosa de seu conhecimento. Tratá-la, com o faz Barth, com o um verdadeiro "pelo flanco esquerdo" que trariam as "realidades" da produção inexor á
"buraco negro" - invenção que d evora convenção - , ao passo que, há de vel para os fóruns rançosos do discurso acadêmico. Realidades, o capí
se reconhecer, constitui uma esplêndi da demonstração da tendência à sim tulo 3 parece nos dizer, são o q ue fazemos delas, não o q ue elas fazem de
bolização negativa, é uma espécie de abdicação da situação humana. Seria nós ou o que nos fazem fazer.
possível, de fato, contrastar Sperber e Barth na form a de um "objetivismo Por fim, já que pareço sim estar interessado em símbolos, cabe aqui
subjetivo" e um "subjetivismo objetivo", respectivamente. algum esclarecimento sobre esse tópico tão repisado. Como deve ficar
A abordagem dialética, em contraste, subverte tanto a subjetividade evidente no s últimos capítulos, não aspiro (a não ser conceitualmente,
quanto a objetividade em prol da mediação. Sua postura - que para os cri talvez) a um a "linguigem" que falaria sobre símbolos, símbolos-em-dis
ticas deste livro se mostrou ora enlouquecedoramente frustrante, ora tan curso etc. mais acuradamente, mais precisamente ou de maneira mais
talizantemente obscura - é a de afirmar algumas coi sas inquietantemente completa do que eles "falam sobre si mesmos". Uma ciência dos sí mbolos
subversivas sobre o conhecimento tradicional e algumas outras implausi pareceria tão pouco recomendável quanto outras tentativas quixotescas
velmente positivas sobre operações não convencionais. O exercício dessa de declarar o indeclarável, como um a gramática de metáforas ou um
mediação por Castafieda, com suas bizarras aventuras em meio a mariposas dicionário absolu to. E isso é porque símbolos e pessoas existem em uma
e xamãs acrobáticos, está a serviço de uma iluminação tão sedutora e na relação de mediação m útua - eles são demônios que no s assediam assim
prática tão inalcançáv el quanto o satori zen. A antropologia tem tradicio como somos os que assediam a eles -, e a questão de sabe r se "coleti vi
nalmente mirado um tanto mais baixo, fazendo um pequeno satori render o zar" e "diferenciar" são afinal disposições simbólicas ou humanas se vê
máximo possível. Mas os problemas de seguir "os significados produzidos irremediavelmente enredada nas armadilhas da mediação.
sob a ordem do tonal" não deixam de exercer efeitos contaminadores sobre Terei eu, então, exagerado artificialmente as polaridades da simbo
o estilo de prosa de um autor, bem como sobre o seu modelo. lização human a ao impor contrastes e opos ições extremos a usos que no
voltando então à questão de como meus argumentos estão situados mais das vezes são oponíveis de um modo apenas relativo, e ainda assim
no domínio do discurso teórico: há o grave perigo, especialmente em discutível? É certo que sim, na espera nça de que essa "i magística" - tal
face da abstrata discussão sobre "cultura" feita no início, de que alguns como o traçado da geometria semivisível que Cézanne introduziu em
leitores queiram alinhar minha posição no eixo "idealistal pragmático". suas p aisag ens - nos ajuda ria a ver melhor a paisagem. Terá este con-
À maneira dos fenomenólogos e dos etnometodologistas e de alguns certo para símbolos e percussão demasiadas notas, como uma vez foi
antropólogos marxistas, porém, minha atitude foi a de evitar, analisar dito sobre a música de Mozart? É certo que sim - e prefiro ouvir Mozart.
ou circunscrever esse eixo, em vez de tomar uma posição quanto a~e. U ma vez cumprid a aquela que é em grande parte a função de uma
Isso quer dizer que, a despeito de quaisquer analogias que alguém possa tal introdução, que consiste em dizer ao leitor o que o livro não é, pode
encontrar com Alfred Schütz, com modelos filosóficos de "construç ão da mo s considerar a questão perenemente "relevante" posta por Lênin: que
realidade" ou com o "sintético a prion'" de Immanuel Kant, este trabalho fazer? Um a autênti ca antropologia como aquela imaginada po r Kant e
22 Introdu.ção 23
Sartre é poss ível ou está um pouco mais próxima de concretizar-se do CAPÍTULO I
que na época em que escrevi este livro? Talvez. Mas visto que a antro
pologia, assim como a maioria dos empreendimentos modernos, é em
boa medida "sobre" si mesma, a melhor questão seria: o que essa antro
pologia idealmente constituída produziria? (E a resposta é, evidente-
mente, "mais antropologia".) O qu e dizer, então, da possibilidade de
alcançar um equilíbrio autenticamente dialético na sociedade ocidental,
de obviar o inútil desperdício de balelas ideológicas e motivacionais e a
"quantidade a be m da quantidade" (isso significa "mobilização econômica
a bem dela própr ia") desse miasma de Estados beligerantes? Sem conta r
com o fato de que ela pode tomar conta de si mesma (de quais terríveis
maneiras, iss o só podemos conjecturar), a questão da melhoria global
faz pensar nas atribulações de um poeta chinês. Ele viveu naquele tempo
grandioso e modorrento em que Con fúcio e o Tao tomavam conta da s
discórdias espirituais da china e os mandarins tomavam conta de tudo
o mais. Quando via uma grande nuvem de poeira levantar-se no hori
zonte, ele ansiosamente imaginava que era a "poeira de mil carruagens".
Nunca era. Vivemos em tempos interessante s.
,"'"
24 introdução
A presunção da cultura
A IDEIA DE CULTURA
27
outros fenômenos do universo: com sociedades animais e espécies vivas, cultura". Uma vez que toda cultura pode ser entendida como uma mani
com os fatos que dizem respeito à vida, à matéria, ao espaço e assim festação específica ou um caso do fenômeno humano, e um a vez que
por diante. Em seu sentido mais amplo, o termo "cultura" também jamais se descobriu um método infalível para" classificar" culturas dife
procura reduzir as ações e propósitos humanos ao nível de significân rentes e ordená-las em seus tipos naturais, presumimos que cada cultura,
cia mais básico, a fim de examiná-los e m termos universais para tentar como tal, é equivalente a qualquer outra. Essa pressuposição é denomi
compreendê-los. Qu ando falamos de pesso as que pertencem a diferentes nada "relatividade cultural".
culturas, estamos portanto nos referindo a um tipo de diferença muito A combinação dessas duas implicações d a ideia de cultura - o fato
básico entre elas, sugerindo qu e há variedades específic as do fenômeno de que nós mesmos pertencemos a uma cultura (objetividade relativa),
humano. Embora a palavra "cultura" tenha sofrido uma "inflação" con e o de que devemos supor que todas as culturas são equivalentes (rela
siderável, é nesse sentido "forte" que irei utilizá-la aqui. tividade cultural) -leva a uma proposição geral concernente ao estudo
O fato de que a antropologia opta por estudar o homem em termos da cultura. Como sugere a repetição da raiz "relativo", a compreensão
que são ao mesmo tempo tão amplos e tão básicos, buscando entender de um a outra cultura envolve a relação entre duas variedades do fenô
por meio da noção de cultura tanto sua singularidade quanto sua diver meno humano; ela visa a criação de uma relação intelectual entre elas,
sidade, coloca uma questão peculiar para essa ciência. Assim como o uma compreensão que inclua ambas. A ideia de "relação" é importante
epistemólogo, que considera o "significado do significado", ou como aqui, pois é mais apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos
o psicólogo, que pensa sobre como as pessoas pensam, o antropólogo é de vista equivalentes do que noções como "análise" ou "exame", com
obrigado a incluir a si mesmo e seu própri o modo de vida em seu objeto suas pretensões de objetividade absoluta.
de estudo, e investigar a si mesmo. Mais precisamente, já que falamos do Vejamos mais de perto a maneira como essa relação é estabelecida.
total de capacidades de uma pessoa como "cultura" , o antropólogo usa Um antropólogo experiencia, de um modo ou de outro, seu objeto de
sua própria cultu ra para estudar outras, e par a estudar a cultura em geral. estudo; ele o faz através do universo de seus próprios significados, e
Desse modo, a consciência da cultura gera uma import ante qualificação então se vale dessa experiência carregada de significados para comunicar
dos objetivos e do pont o de vista do antropól ogo com o cientista: ele precisa uma compreensão aos membros de sua própria cultura. Ele só consegue
renunciar à clássica pretensão racionalista de objetividade absoluta em favor comunicar essa compreensão se o seu relato fiz er sentido nos termos de
de uma objetividade relativa, baseada nas características de sua própria cul sua cultura. Ai nda assim, se suas teorias e descobert as representarem
tura. É evidente que um pesqu isador deve ser tão imparcial quanto possível, fantasias desenfreadas, como muitas das anedotas de Heródoto ou das
na medida em que esteja consciente de seus pressupostos; mas frequente histórias de viajantes da Idade Média, dificilmente poderíamos falar de
mente assumimos os pressupostos mais básicos de nossa cultura como tão um relacionamento adequado entre culturas. Uma "antropologia" que
certos que nem nos apercebemo s deles. A objetividade relativa pode ser jamais ultrapasse os limiares de suas próprias convenções, que desdenhe
alcançada descobrindo quais são essas tendências, as maneiras pelas quais investir sua imaginação num mundo de experiência, sempre haver á de
nossa cultura nos permite compreender uma outra e as limitações que isso permanecer mai s uma ideolog ia que uma ciência.
impõe a tal compreensão. A objetividade "absoluta" exigiria que o . ~ p t r o Mas aqui surge a questão de saber o quanto de experiência é necessá
pólogo não tivess e nenhum viés e portanto nenhuma cultura. rio. É preciso que o antropó logo seja adotado por uma tribo, fique íntimo
Em outras palavras, a ideia de cultura coloca o pesquisador em pé de chefes e reis ou se case no seio de uma família típica? Ou basta que
de igualdade com seus objetos de estudo: cada qual "pertence a um a ele veja slides, estude mapas e entreviste cativos? Idealmente, é claro, o
28 A presunção dacu.ltu.ra 29
pesquisador gostaria de saber o máximo possível sobre seu objeto de COmo uma maneira segundo a qual ele poderia fazer as coisas. Desse modo,
estudo; na prática, porém, a resposta a essa questão depende do tempo e ele pela primeira ve z compreende, na intimidade de seus próprios erros e
do dinheiro disponíveis e da abrangência e dos propósitos do empreen êxitos, o que os antropólo gos querem dizer quand o usam a palavra" cul
dimento. Para o pesquisad or quantitativo, o arqueólogo que lida com tura". Antes disso, poder-se-ia dizer, ele não tinha nenhuma cultura, já
indícios de uma cultura ou o sociólogo que mede seus resultados, o pro que a cultura em que crescemos nunca é realmente "visível" - é tomada
blema é obter uma amostra adequada, encontrar evidências suficientes como dada, de sorte que suas pressuposições são percebidas como autoe
para que suas estimativas não sejam muito desviadas. Mas o antropólogo videntes. É apenas mediante uma "invenção" dessa ordem que o sentido
cultural ou social, ainda que por veze s possa recorrer a amostragens, está abstrato de cultura (e de muitos o utros conceitos) pode ser apreendido, e
comprometido com um tipo diferente de rigor, baseado na profundidade é apenas por meio do contraste experienciado que sua própria cultura se
e abrangência de seu entendimento da cultura estudada. torna "visível". No ato de inventar outra cultura, o antropólogo inventa
Se isso a que os antropólo gos chamam de "cultura" é tão englobante a sua própria e acaba por reinventar a própria noção de cultura.
como vimos supondo, então essa obsessão por parte do pesquisador de
campo não é despropositada, pois a cultura estudada constitui um universo
de pensamento e ação tão singular quanto a sua própria cultura. Pa ra que TORNANDO A CULTURA VisíVEL
o pesquisador possa enfrentar o trabalho de criar uma relação entre tais
entidades, não há outra maneira senão conhecer ambas simultaneamente, A despeito de tudo o que possam ter-lhe dito sobre o trab alho de campo,
apreender o caráter relativo de sua cultura mediante a formulação con a despeito de todas as descrições de out ras culturas e de experiências d e
creta de outra. Assim é que gradualmente, no curso do trabalho de campo, Outros pesquisadores que ele possa te r lido, o antrop ólogo que chega
ele próprio se torna o elo entre culturas por força de sua vivência em pela primeira vez em campo tende a sentir-se solitário e desamparado.
ambas; e é esse "conhecimento" e essa competência que ele mobiliza ao Ele pode ou não saber algo sobre as pessoas que veio estudar, pode até
descrever e explicar a cultura estudada. "Cultura", nesse sentido, traça um ser capaz de falar sua língua, mas permanece o fato de que c omo pessoa
sinal de igualdade invi sível entre o conhecedor (que vem a conhecer a si ele tem de começar do zero. É como uma pessoa, então, como um par
próprio) e o conhecido (que constitui uma comunidade de conhecedores). ticipante, que começa sua invenção da cultura estudada. Ele até agora
De fato, poderíamos dizer que um antropólogo "inventa" a cultura experimentou a "cultura" como uma abstração acadêmica, uma coisa
que ele acredita estar estudando, que a relação - por consistir em seus supostamente tão diversa e tão multifacetada, e no entanto monolítica,
próprios atos e experiênc ias - é mais "real" do que as coisas que ela "rela que se torna difícil apod erar-se dela ou visualizá-la. Mas, enquanto ele
ciona". No entanto, essa explicação somente se justifica se compreende não puder "ver" essa cultura em torno de si, ela lhe será de pouco con-
mos a invenção como um proces so que ocorre de forma objetiva, por meio forto ou utilidade.
de observação e aprendizado, e não c omo uma espécie de livre fantasia. Ao Os problemas imediatos que o pesquisador iniciant e enfrenta em
experienciar uma nova cultura, o pesquisador identifica novas potencia campo não tendem a ser acadêmicos ou intelectuais: são práticos e têm
lidades e possibilidades de se viver a vida, e pode efetivamente passar.;;!e causas evidentes. Provavelmente desorientado e aturdido, ele muitas
próprio por uma mudança de personalidade. A cultura estudada se torna veze s encontra difi culdades para se instalar e fazer contatos . Se uma casa
"visível" e subsequentement e "plausível" para ele; de início e le a apreende está sendo construída para ele, o trabalho sofre todo tipo de atraso; se
como uma entidade distinta, uma maneira de fazer as coisas, e depois contrata assistentes ou intérpretes, eles não aparecem. Quando reclama
30 A presunção da culcura JI
dos atrasos e deserções, ouve as habituais desculpas esfarrapadas. Suas nessas ocasiões jamais substituirão o companheirismo e a compreensão
perguntas podem ser respondidas co m mentiras óbvias e deliberadas. mais íntimos e profundos que são elementos tão importantes da vida em
Cães latempara ele e crianças seguem-no pelasruas. Todas essas circuns qualquer cultura. Um relacionamento que se baseie na simplificação de
tâncias se devemao fato deque as pessoas geralmentese sentem descon si mesmo ao mínimo essencialnão leva a lugar algum - a não ser que se
fortáveis com um estranho em seu meio, ainda mais um forasteiro que esteja disposto a assumir permanentemente o papel de idiota da aldeia .
bem pode ser louco ou perigoso, ou as duas coisas. Frequentemente lhe Quer considere esses contatos iniciais satisfatórios
ou não, o pesqui
criam difi culdades como uma forma de "defesa", para tentar mantê-lo sador irá tentar desenvolvê-los e erigi-Ios em amizades mais substanciais.
a uma certa dis tância ou pelo menos retardá-lo enquanto ele é contem Talvez ele o faça por estar só, ou então porque sabe que, se quiser apren
plado e examinado mais detidamente. de r algo sobre essas pessoas e seu modo de vida, terá de aprender com
Esses atrasos, defesas e outros modos de esquivar-se do pesquisa elas. Pois,em todas as sociedades humanas, relaçõescasuais são um pre
dor não são necessariamente hos tis (embora possam sê-lo) nem exclu lúdio aceitávelpara relacionamentosmais íntimos. Noentanto, tão logo
sivos no universo da interação humana . "Distanciamentos" desse tipo empreende algo mais ambicioso que simples gracejos ele começa a expe
são uma ocorrência comum nos estágios iniciais daquilo que pode vir rimentar contradiçõesem suas expectativasbásicas sobre como as pessoas
a ser um envolvimento pessoal íntimo , c omo uma amizade ou um caso deveriam conduzir seus assuntos. Isso não irá envolver coisastão abstra-
amoroso, e comument e se diz que familiaridade excessiva nessa fase do tas como "ideias" ou "pontosde vista", pelo menosnão nesse estágio,mas
relacionamento tende a minar o respeito mútu o das partes envolvidas. noções comunsde "decência em público" e talvez efeitossubliminares que
Seja como for, seres humanos,em todas as sociedades, são quase sempre tendem acausar certo desconforto, como proximidade física, rapidez dos
mais perceptivos do que supomos, e a vida emuma pequena comuni movimentos, gestos eassim por diante.Caso o bem-intencionadoforas-
dade é geralmente muito mais íntima do que imagina o recém-chegado. teiro, talvez sentindo-se culpado pelos"erros" que já cometeu, redobre
A cortesia, essa antiga "solução"
para os problemasdo contato humano, seus esforços para estabelecer amizades, conseguirá apenas aumentar
tem feito de situações desse tipo a base de uma arte elabo rada, e a coisa ainda mais suas dificuldades. Pode ser que os laços de amizade sejam tão
mais gentil que um pesquisador aflito pode fazer é ao menos imaginar em tantas pequenas comunidades,
envolventes, como ocorre que se espere
que seus anfitriões estejam sendo corteses. que um "am igo" desempenhe ao mesmo tempo os papéis de confidente,
Por mais que esses primeiros contatos
sejam estremecidos por mal parente, credor e sócio; talvez
haja excessivas expectativas
de reciproci
entendidos, mascarados por formalidades ou abrandados por cortesias, é dade, uma espécie de hospitalidade "competitiva",ou mesmo se espere
necessárionão obstanteque ocorram, pois o merofato de ser humano e fortemente que os amigos sejam solidários em disputas facdonais.
estar num lugar gera por si só certas dependências. Assim,são as ocasiões Essas frustrações iniciais tendemsea acumular, pois o padrão con
as mais triviais eridículas, como procurar um lugar para aliviar-se,tentar cernenteà amizade com frequência se reproduz em muitos outrosaspectos
fazer um fogão funcionarou lidar com o senhorio,que no mais das vezes da vida social. Aos poucos, o pesquisa dor começa a sentir a efetividade de
constituem o grossodas relações sociaisdo principiante. Na verdade, essas sua condição de pessoa diminuída, e é de pouco consolo saber que as pes
ocasiõespropiciam a única "ponte" disponívelpara que haja empatia entre soas podemestar tentando"agradar" o estranhoou tornar sua vida mais
~"'
o forasteiro e o nativo; elas "humanizam" o primeiro ao tornar seus proble- fácil: mais vale uma incompreensão honesta doque uma amizade falsa.
mas tão imediatamente compreensíveis que qualquer um poderiase identi Mesmo o forasteiromais tolerante e bem-intencionado,que se mantenha
ficar com ele.E, ainda assim, o riso e aternura que tão facilmente surgem reservado efaça de tudo para não demonstrarsua frustração, acabará por
32 A presunção da cultura 33
achar extremamente desgastante a tensão de tentar preservar seus pensa o antropólogo" - e se tornar autoconscientede seus atos.5 Também para
mentos e expectativas e ao mesmo tempo "respeitar" os da população local. ela o "controle" é um problema importante. Mas o problema da comu
Ele pode se sentir inadequado, ou talvez ache que seus ideais de tolerância nidade não é o mesmo do antropólogo, que consiste em administrar sua
e relatividade acabaram por enredá-lo numa situação além de seu controle. competência pessoal ao lidar com os Outr os: o problema da comunidade
Esse sentimento é conhecido pelos antropólogos como "ch oque cul é simplesmente controlar o antropólogo.
tural". Nele, a"cultura" local se manifestaao antropólogoprimeiramente A solução para todos os envolvidos reside nos esfor ços do antro
po r meio de sua própria inadequação; contra O pano de fundo de seu novo pólogo para control ar seu choque cultural e lidar com a frustra ção e o
ambiente, foi ele que se tornou "visível". Essa situação tem algunspara- desamparo de sua situação inicial. Uma vez que esse controle envolve
lelos em nossa própria sociedade : o calouro que entra na faculdade, o adquirir competência na língua e nos modos de vida locais (e quem são os
recruta no exército,qualquer pessoa que se veja na circunstânciade ter de especialistas nisso senão os nativos? ), as pessoas dali terão a oportunidade
viver num ambiente "novo" ou estranho há de experimentarum pouco de faze r sua parte controlando o foraste iro - domest icando -o, po r assim
desse tipo de "c hoque". Tipicame nte, a pessoa em questão fica deprimida dizer. E é aqui que as experiências do antropólogo diferem daquelas dos
e ansiosa, podendo fechar-se em si mesma ou agarrar qualquer oportuni missionários ede outros emissáriosda sociedade ocidental.Em razão dos
dade para se comunicar com os outros.Em um grau de qu.e raramente nos papéisque assumiram e de seus modos de compreender a situação, esses
damos conta, dependemosda participação dos outros em nossas vidas e últimos frequentemente são levados ainterpretar suas deficiências como
da nossa própria participaçãonas vidas dos Outros. Nosso sucesso e a efe fruto de inadequação pessoal- e ficam loucos - ou da estupidez e da
tividade de nossa condição de pessoas se baseiam nessa participação e na suas próprias autoimagens elitistas.
indolência nativas, reforçando assim
habilidade de manter a competência controladora na comunicação com Mas a antropologia nos ensina a objetificar aquilo a que estamos nos
os outros. O choque cultural é uma perda do eu em virtude da perda des ajustando como "cultura", mais ou menos como o psicanalista ou o xamã
ses suportes. Calouros e recrutas logo estabelecem algum control e sobre exorcizam as ansiedadesdo pacienteao objetificar sua fonte.Uma vez que
a situação, pois afinal de contas se encontram num outro segmentode a nova situação ten ha sido objetificada como" cultura", é possível dizer
sua própria cultur a. Para o antropólogo em campo, porém, o problema aquela cultura, assim comouma
que o pesquisador está "aprendendo"
é ao mesmo tempo mais urgente e mais duradouro. pessoa aprende a jogar cartas. Por outro lado, visto que a objetificaç ão
O problema se põe também, embor a não exatamente do mesmo modo, ocorre ao mesmo tempo que o aprendizado, poder-se-ia igualmente dizer
para as pessoas entre as quais o antropólogo foi trabalhar. Elas se deparam que o pesquisadorde campo está "in,:,entando" a cultura.
com um forasteiro excêntrico, intrometido,de aparência curiosa e estra Essa distinção é crucial, porém, noque diz respeitoao modo como
nhamente ingênuo vivendoentre elas; alguém que, como uma criança, não um antropólogovem a compreender eexplicar a situação que experiencia.
para de fazer perguntas e precisa ser ensinado acerca de tudo; alguém que,
também como uma criança, é propenso ase meter em encrencas. Apesar 5· Nesse sentido, o reverendo Kenneth Mesplay, encarregado de uma escola e de outros
das defesasque foram levantadas contra ele, o pesquisadorcontinua sendo serviços missionários em Karimui, onde fiz meu trabalho de campo, afirmava que as aldeias
objeto de curiosidade e muitas vezesde temor, encaixando-seem muitos onde um antropólogo tivesse vivido revelavam padrões distintos ao lidar com europeus: a
~ «
frequência escolar diminui, as pessoas se mostram mais seguras de si etc. Um antropólogo é
dos estereótiposum tanto ambíguosdo forasteiro "perigoso",ou talvez do
algo como um "missionário da cultura", acreditando (como todos os bons missionários) na
ocidental traiçoeiro. A comunidade pode ela própria experimentar um leve coisa que inventa, e pode angariar um grupo substancial de adeptos em seus esforços para
"choque" com sua presença - talvez devêssemos chamá-lo "choque com inventar a cultura local.
34 A presunção da cultura 35
A crença do pesquisador de que a nov a situação com a qua l está lidando conjunto de analogias, que "traduz" um grupo de significados básicos
é uma entidade con creta - uma "coisa" que tem regra s, "funciona" de em um outro, e p ode-se dizer que essas analogias parti cipam ao mesmo
uma certa maneira e pode ser aprendida - o ajudará e encorajará em seus tempo de ambos os sistemas de significados, da mesma maneira que seu
esforço s para enfrentá-la. Mas num sentido muito importante ele não está criador. Eis a mais simples, mais básica e mais importante das conside
. aprendendo a cultura do modo como o faria uma criança, pois aborda a rações a fazer: o antropólogo não pode simplesmente "aprender" uma.
situação já como um adulto que efeti vamente internalizou sua própria nova cultura e situá-la ao lado daquela que ele já conhece; deve antes
cultura. Seus esforços para compreender aqueles que está estudando, para "assumi-la" de modo a experimentar uma transformação de seu próprio
tornar essas pessoas e suas condutas plenas de significado e para comuni universo. Da perspectiva do trabalho de campo, "virar nativo" é tão inútil
car esse conheciment o a outros irão brotar de suas habilidades para pro- quanto permanecer no aeroporto ou no hotel fabricando histórias sobre
duzir significado no âmbito de sua própria cultura. Desse modo, o que os nativos: em nenhum dos casos haverá qualquer possibilidade de uma
quer que ele "aprenda" com os sujeitos que estuda irá assumir a forma significativa relação (e invenção) de culturas. É ingênuo sugerir que virar
de uma extensão o u superestrut ura, construída sobre e com aquilo que nativo é a única maneira de alguém "aprender" efetivamente outra cul
ele já sabe. Ele irá "participar" da cu ltura estudada não da maneira como
um nativo o faz, mas como alguém que está simultaneame nte envolvi do tura, pois isso exigiria abrir mão da sua própria cultura. Assim sendo, já
que todo esforço para conhecer outra cultu ra deve no mínimo começar
em seu próprio mundo de significados, e esses significados também farão por um ato de invenção, o aspirante a nativo só conseguiria ingressar num
parte. Se retomarmos aquilo que foi dito sobre a objetividade relativa , mundo criado por ele mesmo, como faria um esquizofrênico ou aquele
lembraremos que é o conjunto de predisposições culturais que um foras apócrifo pintor chinês que, perseguido po r credores, pintou um ganso
teiro traz consigo que faz toda a diferença em sua compreensão daquilo na parede, montou nel e e fugiu voando!
que está "lá". A cultura é torn ada visível pelo choque cultural, pe lo ato de subme
Se a cultura fosse uma "coisa" absoluta, objetiva, "aprender" uma ter-se a situações que excedem a competência interpessoal ordinária e de
cultura se daria da mesma forma para todas as pessoas, tanto nativos como objetificar a discrepância como uma entidade - ela é delineada por meio
forasteiros, tanto adultos como crianças. Mas as pessoas têm todo tipo de de uma concretização inventiva dessa entidade após a experiência inicial.
predisposições e inclinações, e a noção de cultura como uma entidade Para o antropólogo, esse delineamento comumente segue as expectativas
objetiva, infle xível, só pode ser útil como uma espécie de "mul eta" p ara antropológicas quanto ao q ue a cultura e a diferença cultural deveri am ser.
auxiliar o antropólogo em sua invenção e entendimento. Para isso, e para U ma vez que a concretização ocorre, o pesquisador adqu ire uma cons
muitos outros propósitos em antropologia, é necessário proceder como se a ciência intensificada dos tipos de diferenças e similaridades implicadas pelo
cultura existisse na qualidade de uma "coisa" monolítica, mas para o pro termo "cultura" e começa a usá-lo cada vez mais como um constructo
pósito de demonstrar de que modo um antropólogo obtém sua compreen explanatório. Ele começa a ver seu próprio modo de vida em nítido relevo
são de um outro povo , é necess ário perceber que a cultura é uma "muleta". contra o pano de fundo das outras ('culturas" que conhece, e pode ten
A relação que o antropólogo cons trói entre duas cult uras - a qual, tar conscientemente ohjetificá-Io (por mais que esse modo de vida esteja
por sua vez, objetifica essas culturas e em consequência as "cria",p!Fa ('ali", por implicação ao menos, nas analogias que ele já criou). Assim, a
ele - emerge pr ecisamente desse seu at o de "invenção", do uso que faz invenção das culturas, e da cultura em geral, muitas vezes começa co m
de significados por ele co nhecidos ao construir uma represe ntação com- a invenção de uma cultura par ticular, e esta, por força do proces so de
preensível de seu objeto de estudo. O resultado é uma analogia, ou um invenção, ao mesmo tempo é e não é a própria cultura do inventor.
36 A presunçã() da cultura
37
A peculiar situação do antropólogo em campo, participando simulta de cultura, esta tornou-se seu idioma geral, um a maneira de falar sobre
neamente de dois unive rsos de significado e aç ão distintos, exige que ele as coisas, compreendê -Ias e lidar co m elas. É incidental questiona r se as
se relacione com seus objetos de pesquisa como um "forasteiro" - ten culturas existem. Elas existem em razão do fato de terem sido inventadas
tando "aprender" e adentrar seu modo de vi da - ao me smo temp o em e em razão da efetividade dessa invenção.
que se relaciona com sua própria cultura como uma espécie de "nativo" Essa invenção não necessariamente se dá no curso do trabalbo de
metafórico. Para ambos os grupos ele é um estranho profissional, um a campo; pode-se dizer que ela ocorre toda vez e onde quer que algum con
pessoa que se mantém a certa distância de suas vidas a fim de ganhar pers junto de convenções "alienígena" ou "estrang eiro" seja posto em relação
pectiva. Essa "estranheza" e o caráter "interposto" do antropólogo são com o do sujeito. O trabalbo de campo é um exemplo particularmente
motivo de muitos equívocos e exageros po r parte daqueles COm quem ele instrutivo porque desenvolve tal relação a partir da situação de campo e
entra em contato: os de sua própria sociedade imaginam que ele "virou dos problemas pessoais dela derivados. Mas muitos antropólogos jamais
nativo" ao passo que os nativos muitas vezes acham que ele é espião ou fazem trabalho de campo, e para muitos que o fazem trata-se apenas de um
agente do governo. Por mais perturbador as que possam se r tais suspeitas, caso particular (embora altamente instrutivo) da invenção da cultura. Essa
elas são menos importan tes do que o impacto da situação sobre o próprio invenção, por sua vez, faz parte do fenômeno mais geral da criatividade
antropólogo. Na medida em que ele funciona como uma "ponte" ou um humana - tra nsforma a mera pressuposição da cultura numa arte criativa.
ponto de conexão entre dois modos de vida, ele cria para si mesmo a ilu Um antropólogo denomina a situação que ele está estudando como
são de transcendê-los. Isso explica muito do poder que a antropologia "cultura" antes de mais nada para poder compreendê-laem termos familia
tem sobre seus convertidos: sua mensagem evangélica atrai pessoas que res, para saber com o lidar com sua experiên cia e controlá-Ia. Mas também
desejam se emancipar de suas culturas. o faz para verificar em que isso afeta sua compreensão da cultura em geral.
U ma emancipação pode efetivamente vir a ocorrer, menos pelo fato Quer ele saiba ou não, quer tenha a intenção ou não, seu ato "seguro" de
de o pesquisador ter conseguido "escapar" do que pela circunstância tornar o estranho familiar sempre torna o familiar um pouco estranho.
de te r encontrado um novo e poderoso "controle" sobre sua invenção. E, quanto mais familiar se torna o estranho, ainda mais estranho pare
'A relação po r ele criada amarra o inventor quase tanto quanto as "cul cerá o familiar. É um a espécie de jogo, se quisermos - um jogo de fingir
turas" que ele inventa. A experiência da cultura, dotada da formidável que as ideias e convenções de outros povos são as mesmas (num sentido
realidade das dificuldades nela envolvid as, confer e ao seu pensame nto e mais ou menos geral) que as nossas para ve r o que acontece quando
a seus sentimentos aquela convicção que a confirmação da crença parece "jogamos com" nossos próprios conceitos po r intermédio das vidas e
sempre proporcionar a seus adeptos. ações de Outros. À medida que o antropólogo usa a noção de cultura
para controlar suas experiências em campo, essas experiências, po r sua
vez, passam a controlar sua noção de cultura. Ele inventa "uma cultura"
A INVENÇÃO OA CULTURA para as pessoas, e elas inventam "a cultura" para ele.
Um a vez que a experiência do pesquisador de campo se organiza
A antropologia é o estudo do homem "como se" houvesse cultra~ em torno da cultura e é controlada po r ela, sua invenção irá conservar
ganha vida por meio da invenção da cultura, tanto no sentido geral, como uma relação significativa com nosso próprio modo de vida e pensamento.
um conceito, quanto no sentido específico, mediante a invenção de cul Assim, ela passa a encarnar um a espécie de metamorfose, um esforço
turas particulares. Um a vez que a antropologia existe po r meio da ideia de mudança contí nua e progressiva das nossas formas e possibilidades d e
38 A presunção da cultura 39
cultura, suscitada pela preocupação em compreender outros povos. Não dos limites impostos por pontos d e vista prévios. Se ele pretende r que suas
podemos usar analogias para revelar as idiossincrasias de outros estilos analogias não sejam de mo do algum analogias, mas uma descrição objetiva
de vida sem aplicar estes últimos como "controles" na rearticulação de da cultura, concentrará esforços para refiná-las de modo a aproximá-las
nosso próprio estilo da vida. O en tendimento antropológico se torna um cada vez mais de sua experiência. Quand o encontr a discrepância s entre sua
"investimento" de nossas idei as e de nosso modo de vida no sentido mais própr ia invenção e a "cultura " nativa tal como vem a conhecê-la, ele altera
amplo possível, e os ganhos a serem obtidos têm, correspondentemente, e retrabalha sua invenção até que suas analogias pareçam mais apropriadas
implica ções de lon go alcance. A "Cultura" que vivenciamos é ameaçada, ou "acuradas". Se esse processo é prolongado, como é O casO nO decurso
critica da, contraexemplif icada pelas "culturas " que criamos, e vice-versa. do trabalho de campo, o uso da ideia de "cultura" pelo antropó logo acabará
O estudo ou representação de uma outra cultura não consiste numa por adquirir uma forma articulada e sofisticada. Gradualmente, o objeto
mera "descrição" do objeto, do mesmo modo que um a pintura não mera- de estudo, o elemento objetificado que serve como "controle" para sua
mente" descreve" aquilo que figura. E m ambos os casos há uma simbo invenção, é inventado por meio de analogias que incorporam articulações
lização que está conectada com a intenção inicial do antropólogo ou do cada vez mais abrangentes, de modo que um conjunto de impressões é
artista de representar o seu objeto. Mas o criador não pode estar cons- recriado como um conjunto de significados.
ciente dessa intenção simbólica ao perfazer os detalhes de sua invenção, O efeito dessa invenção é tão profundo quanto inconsciente; cria-se
pois isso anularia o efeito norteador de seu" controle" e tornaria sua o objeto no ato de tentar rep resentá-lo mais objetivamente e ao mesmo
invenção autoconsciente. Um estudo antropológico ou uma obra de arte tempo se criam (por meio de extensão analógica) as ideias e formas po r
autoconsciente é aquele que é manipulado po r seu autor até o ponto em meio das quais ele é inventado. O "controle", seja o modelo do artista
que ele diz exatamente o que q ueria dizer, e exclui aquele tipo de extensão ou a cultura estudada, força o representador a corresponder às impres
ou autotransformação que chamamos de "aprendizado" ou "expressão". sões que tem sobre ele, e no entanto essas impressões se alteram à medida
Assim, nosso entendimento tem necessidade do que lhe é externo, que ele se vê mais e mais absorto em sua tarefa. Um bom artista ou cien
objetivo, seja este a própria técnica, como na arte "não objetiva" ou obje tista se torna uma parte separada de sua cultura, que se desenvolve de
tos de pesquisa palpáveis. Ao forçar a imaginação do cientista ou do modos inusitados, levando adiante suas ideias mediante transformações
artista a seguir po r analogia as conformações detalhadas de um objeto que outros talvez jamais experimentem. É po r isso que os artistas podem
externo e imprevisível, sua invenção adquire uma convicção que de outra se r chamados de "educadores": temos algo - um desenvolvim ento de
forma não se imporia. A invenção é "controlada" pela imagem da reali nos sos pen same ntos - a aprender com eles. E é po r isso que vale a pena
dade e pela falta de consciência do criador sobre o fato de estar criando. estudar outros povos, porque toda compreensão de uma outra cultura é
Sua ima ginação - e muitas vezes todo o seu autogerenci amento - é com- um experimento com nossa própria cultura.
pelida a enfrentar uma nova situação; assim como no choque cultural, Co m efeito, os objetos de estudo a que nos dedicamos nas artes e
ela é frustrada em sua intenção inicial e levada a inventar um a solução. nas ciências podem ser vistos como "controles" na criação de nossa cul
O que o pesquisador de campo inventa, porta nto, é seu próprio enten tura. Nosso "aprendizado" e nosso "desenvolvimento" sempre levam
dimento: as analogias que ele cria são extensões das suas próprias no.Ç~s adiante a articulação e o movimento significativo das ideias que nos
e daquelas de sua cultura, transformadas por suas experiências da situação orientam. A título de ex em pl o - e de "controle" para um a discussão
de campo. Ele utiliza essas últimas como uma espécie de "alava nca", co mo que necessariamente tendeu à abstração - , consideremos a obra de um
faz o atleta no salto com vara, para catapultar sua compreensão para além artista que teve tanto interesse pelo homem em geral e po r seus estilos
40 A presunção da cultura 41
de vida que quase pode ser chamado de antropólogo: o pintor flamengo força da alegoria, incluindo O procedimento irônico de tratar temas pro-
Pieter Bruegel, o Velho. fanos em detalhes intrincados, mas ele moderou sua caricatura. Muito
Como ocorre com todos os exemplos históricos, o contexto da vida mais do que Bosch, que geralmente recorriaao fantástico, a caricatura e
e da obra de Bruegel é complexo, com muitas influências entrelaçadas, e a ironia simbólica das obras de Bruegel são alcançadas mediante a figura
uma simplificaç ão é necessária par a qualque r discussão. Em termos artís ção detalhada dos camponeses flamengos e de seus costumes. O contraste
ticos, é fundamental considerar a tradição de pintura que se desenvolveu entre essa temática - representada com uma caracterização penetrante,
nos Países Baixos e no Ducado da Borgonha do início do século xv em que implica longa observação - e os aspectos que Bruegel escolheu ilustrar
diante, a qual contrastava com aarte renascentista da Itália e por vezes é tão diferente
geram um a ironia e tambémuma força explicativa que não
se nutria dela. Os primeiros mestres dessa escola flamenga, entre eles daquela da antrop ologia, a qual também objetific a suas visões po r meio
la n van Eyck, Rogier van der Weyden e Hans Memlinc, desenvolveram dos costumes dos outros. Em ambos os casos a vida do povo é descrita,
um estilo de figuração baseadona perspectiva, no realismo gráfico e na explicada, tornada plausível;
mas no processo aobra como um todo vem a
intensidade do detalhe. A força dessa arte residia na materialização de significar algo mais do que a me ra descrição ou compreensão de um povo.
cenas e temas religiosos idealizados, sob formas as mais convincentes Como mostram seus esboços, Bruegel era fascinado pelas circuns
possíveis: cada quadr o é um estudo em complexidade. A Crucificação, a tâncias da vida entre os camponeses de seupaís: suas roupas, suas casas,
Virgem e o Menino e outros temas ganhavam "vida" e presencialidade seus hábitos e divertimentos. Ele extraía
um deleite artísticoda geometria
graças ao excepcional controle do artista sobre "aparência"
a e a "textura" de suas formas, acentuadas pelas posturas características desuas labutas
de objetos familiares: o lampejo de luz no metal polido, as dobras da pele e recreações, e harmonizava o todo de sua composição com uma rara
ou do tecido, os precisos contor nos de folhas ou galhos. percepção da intimidade entre o camponês e a paisagem. A significância
N a medida em que esse estilo geral se consolidou, prop iciou uma dessa magnífica apreensão artíst
ica dos costumes locaisse evidencia numa
base para novos desenvolvimentos. O excepcional domínio do detalhe outra fascinação do artista: sua obsessão po r provérbios e alegorias. Pro-
e a convincente habilidade de simular a realidade ampliaram enorme- vérbio e campesinato são na verdade dois aspectos do mesmo interesse,
mente o leque de invenções possíveis para o artista. Enquanto os pin pois os próprios provérbios fazem parte da sabedoria popular do cam
tores de princípios e meados do século xv enriqueceram sua própria pesinato, compreensíveis em seus termos,ao passo que a representação
concepção do Evangelho C a de seu s conterrâneos) ao recriá-lo com de camponeses segundo os estilos, temas e gêneros da pi ntura flamenga
realidade, seus sucessores se utilizaram dessa técnicapara esquadrinhar cria alegorias ao apresentar os temas tradicionais sob forma analógica:
Ce ampliar) toda a sua visão de mundo . Hi eronymus Bosch dominou todo ela os humaniza. A alegoria veio a ser a forma s ob a qual o significado
um gênero ao combinar o realismo da pintura flamenga com alegorias dos quadros de Bruegel foi transmitido, além de concebido. Assim como
fantásticas da condição humana. Seus quadr os de vermes e pássaros em se dá com o antropólogo, sua invenção de ideias e temas familiares num
trajes humanos, atrocidades e objetos estranhamente justapostos
usam o meio exótico produziu uma automática extensão analógica de seu uni
realismo dos mestres anteriores como instrumento para a pura caricatura. verso. E uma vez que essas ideias e temas permaneceram reconh~ívis
Foi dessa forma, a mais radical possível, que o caráter edifernc~ a a transformação delas no processo corporificou o tipo de ressimboliza
moral foram introduzidos no âmbito da figuração realista. ção que chamamos de alegoria - analogia com uma signif icação incisiva.
A arte de Pieter Bruegel constitui uma deriva análoga do realismo O "gume" do tipo particular de antropolog ia de Bruegel é mais
anterior, embora um tanto diferente. As obras de Bruegel conservaram a visível em algumas de suas cenas de rua que retratam temas religiosos.
42 A presunção da cultura 43
Esses quadros evocam dramas quase contemporâneos de Shakespeare Herodes, determinados a assassinar o Cristo menino, como tropas espa
na universalidade de sua visão e em seu intento de generalizar a vida nholas dos Habsburgos, devastando os Países Baixos com finalidades
humana po r meio da caracterização de sua imensa variedade. A seme igualmente nefastas. Seja na arte ou na antropologia, os elementos que
lhança é realçada pelo fato de que o humanismo de ambos os artistas fre somos obrigados a usar como "modelos" analógicos para a interpretação
quentemente serve como meio para compreender e interpretar o exótico, ou explicação de nossos temas são eles mesmos interpretados no processo.
esplendor e a espirituosidade da vida elizabetana como um sementeiro flamenga a partir desse ponto: O uso da pincelada por Rubens para criar
para analogias em suas incursões na Roma antiga, na Veneza contempo uma arte impressionística que jogasse com as expectativas do observador,
rânea ou na Dinamarca medieval, e o retrato que fez de seus habitantes ou as obras soberbamente abrangentes de mestres como Rembrandt ou
como ingleses metafóri cos certamente rendeu caricaturas que deliciaram Vermeer. À medida que a tradição se desenvolveu, seu centro de gravi
seus conterrâneos. dade alegórico mudou, movendo-se da delineação na própria tela para
Da mesma forma, os povoados bíblicos retratados em O recensea- a relação entre artista (ou observador) e quadro, e desse modo para um
meio de co municação altamente sofisti cado. À medida que o conteúdo
mento em Belém e O massacre dos inocentes, pinturas de Bruegel, são comu expressivo da pintura foi sendo cada vez mais claramente focalizado no
nidades flamengas da época em todos os aspectos. Os eventos em si, a
chegada de Maria e José a Belém para o censo e o intento dos soldados ato de pintar, simbolizado na ênfase na pincelada, na escolha do tema e
quadros: Maria veste um manto azul e está montada num burrico; José percepção. Rembrandt foi colecionador de arte e Vermeer negociante de
carrega uma serra de carpinteiro; um censo está sendo realizado; os solda quadros, atividades que em ambos os casos se tornavam apropriadas em
dos estão assediando o pop ulacho e assim por diante. N o entanto, a aldeia razão do intenso envolvimento pessoal (quase confessional) que ligava
poneses setentrionais, e os telhados altos e íngremes, as árvores poda das era criado po r meio da realização da pintura.
e a própria paisagem são típicas dos Países Baixos. Todos esses detalhes Mas neste ponto devemos recuar e nos perguntar se esse alto grau
serviram para tornar famili ares os even tos da Bíblia, torná-los críveis e de autoconhecimento é alcançável em nossa disciplina, se é possível uma
"explicado" seus esforços nessas bases. a arte de Rubens ou de Vermeer, um a ciência desse tipo se basearia num
Mas o ímpeto interpretativo va i be m mais fundo do que a mera entendimento introspectivo de suas próprias operações e capacid ades; ela
"tradução", pois a analogia sempre retém o potencial da alegoria. Ao desdobra ria a relação entre técnica e temática como um meio de extrair
exibir figuras e cenas bíblicas num ambiente contemporâneo, Bruegel autoconhecimento do entendimento de outros e vice-versa. Finalmente,
também sugeria o julgamento de sua própria sociedade flamenga em ela tornaria a seleção e o uso de analogias e "modelos" explicativos pro
termos bíblicos. Assim, o significado de O recenseamento em Belém não venientes de nossa própria culnua óbvios e compreensíveis como parte
é apenas que "Jesus nasceu do homem, em um ambiente humild<:."I,1l da extensão simultânea de nosso próprio entendimento e da apreensão
como as pessoas vivem hoje", mas também que, "se Maria e José che de outros entendimentos. Aprenderíamos a externalizar noções como
O massacre dos inocentes é ainda mais incisivo, pois retrata os soldados de seu próprio comportamento e caráter em seus autorretratos ) e, vendo-as
44 A presunção da cultura 4\
como ve mos os co nceitos de outros povos , viríamos a apreender nossos CAPÍTULO 2
próprios significados de um ponto de vista genuinamente relativo.
O estudo da cultura é cultura, e uma antropologia que almeje ser
consciente e de senvolver seu sens o de objetividade relativa precisa se avir
com esse fato. O estudo da cultu ra é na verdade nossa cultura: opera por
meio das nossas formas, cria em nossos termos, toma emprestados nos
sas palavras e conceitos para elaborar significados e nos recria mediante
nossos esforços. Todo empreendimento antropológico situa-se portanto
numa encruzilhada: pode escolher entre uma experiência aberta e de
criatividade mútua, na qual a "cultura" em geral é criada por meio das
"culturas" que criamos com o uso desse conceito, e uma imposição de
nossas próprias preconcepções a outros povos. O passo crucial- que é
simultaneamente ético e teórico - consiste em permanece r fiel às impli
cações de nossa presunção da cultura. Se nossa cultura é criativa, então
as "culturas" que estudamos, assim como outros casos des se fenômeno,
também têm de sê-lo. Pois toda vez que fazemos com que outros se tor
nem parte de uma "realidade" que inventamos sozinhos, negando-lhes
sua criatividade ao usurpar seu direito de criar, usamos essas pessoas e
seu modo de vida e as tornamos subservientes a nós. E se criatividade
e invenção emergem como as qualidades salientes da cultura, então é para
elas que nosso foco deve voltar-se agora.
~"
46 A presunção da cultura
A cultura como criatividade
Quan do fui fazer trabalho de campo entre os Daribi da Nova Guiné pela
primeira vez, eu tinha certas expectativasquanto àquilo que esperavarea-
lizar, ainda que, naturalmente, tivesse
poucas noções preconcebidassobre
"como seriam" aquelas pessoas.Afinal de contas, o trabalho de campo é um
tipo de "trabalho": é uma experiência criativa, produtiva, muito embora
suas "recompensas" não necessariamente se materializem da mesma
maneira que aquelas obtidas em outras formas de trabalho. O pesquisa-
de campo produz uma espécie de conhecimento como resultado de
do r
49
primeiros meses, pois a ideia de uma atividade regular, constante, ajudava Quem paga por esse tipo de trabalho, e por quê? Isso é serviço para um
a sustentar minha sensação de utilidade em fac e do choque cultural, das homem adulto? (D úvida: será esse nosso ston'masta um homem adulto?)
preocupações de "não estar chegando a lugar ne nhum" e das frustraçõe s Se o trabalho que eu fazia entre os Daribi era para eles problemá
em geral. Mesmo após vários meses, quando
já compreendia a situação tico e desconcertante, talvez a maneira comoeu vivia pudesse oferecer
muito melhor eme sentia mais à vontade com meus amigos
daribi, ainda uma pista para compreendê-lo. Comoeu não era casado, minhacasa foi
me apegava aos rudimentos daquela agenda como um programa desig construídaao lado da residência dos homens solteiros, euma vez que os
nado para aprimorar meu conhecimento da cultura. Daribi veem o celibato como um estado nada invejável acabe i recebendo
Suspeito que minha tenacidade em meio inclusive à perplexidade de comiseração e solidariedade consideráveis. Suscitou especial interesse o
meus amigos locais (muitos dos
quais "trabalhavam" dia sim, dia não, e fato de que tive de contratar um cozinheiro para preparar minhas refei
somente pela manhã) tenha resultado simplesmente de "q uere r fazer um ções. 2 Seu relacionamento comigo tornou-se objetode curiosidade, e
bom trabalho", d e uma ideia deveras ocidental de trabalho e compro- muitos vinham investigarsuas tarefas e minhacasa em geral. Todasas
misso com aprópria vocação. Rotinas desse tipo
não são incomuns entre noites uma pequenamultidão de homens e meninosse reunia para me ver
antropólogos em campo - elas fazem parte da definiç ão geral do traba comer minha refeição noturna. O clima prevalecente era de curiosidade
lho do antropólogo (por mais ilusória que possa ser): a de que atuamos e cordialidade. Embora eu procurasse partilhar minha comida, o que
sobre os nativos de maneira a produzir etnografias. (Independentem ente havia era pouco mesmo para mim, e normalmenteapenas três ou quatro
das sutilezasdo envolvimento do pesquisador com a cultura nativa,
é ele espectadores conseguiam dar uma "provada". Amistura de assombro e
que dá início a esse envolvimento e os resultados são vistos como sua companheirismo durou toda a minha estada, e apenas
foi gradualmente
"produção"). Assim, a totalidadedo interesse do etnógrafona "cultura" que pude entrever seu fundamento: a ideia de que meu estranho "tra-
e o modo como ele implementa esse interesseem campo é que definem balho" estava de alguma maneira relacionado ao meu estado celibatá rio.
seu trabalho como pesquisador de campo. Sem dúvida, o fato de eu ter de pagar alguém que cozinhasse para
Deinício, não era fácil para meus amigos daribi compreender em mim era estranho e talvez comovente. Os Daribi comentavam com fre
que consistia esse trabalho - esse interesse por elese suas maneiras- , quência que "nossas esposas são nossas cozinheiras"; daribi
os solteiros
e muito menos levá-lo a sério. Perguntavam-me seeu era "governo", têm de encontrar comida porsi mesmos ou consegui-la com suasmães
"missão", ou " doutor" (eles recebiam visitas regulares dos membros de ou com as esposas de seus irmãos. Possivelmenteeu confirmavamuitas
um programa de controle da lepra), e informados de que eu nã o era suspeitasquando, ao me perguntarem sobre por que eu não era casado, eu
nada disso estarreciam-se: "Nãoé governo, não é missão,não é doutor!". respondia que preferia primeiro terminar meus estudos e meu trabalho de
Quando descobri o termoem pidgin para antropólogo, storimasta, ado campo. Minha condição continuou a suscitar a compaixãode meus vizi
tei-o como rótulopara o meu trabalho, e os nativos puderam me colocar nhos, e quando eu persistiaem importuná-lospara que me fornecessem
no mesmo "bolo" dos linguistas missionários que lhes eram familiares. relatosde como as coisas vieram aser como são, esse era um fator crucial
Mas, embora o termo te nha resolvido o pr oblema da classif icação, pouco na obtenção de respostas. Um informante de meia-idade, que passava
contribuiu para to rnar meu trabalho plausível para eles. Po r que pr~S.\)a várias de suas horas ociosas lamuriando seu estado celibatário (ele de
suas ideias e modosde vida?
saber sobre as "histórias" de outros povos,
2. Suas tarefas mais árduas consistiam em buscar água, lavar pratos e remover as pequenas
I. Derivação da expressão inglesa story master ("mestre de histórias"). [N.T.] larvas que sempre conseguiam infestar meu suprimento de arroz integral.
otimista de "progresso". vasta panóplia de ideias, fatos, relíquias, segredos, técnicas, aplicações,
Independentemente de suas associações mais específicas, cont.Y.9o, fórmulas e documentos como "nossa cultura", a soma de nossas maneiras
nosso termo moderno "cultura" conserva as diversas associ ações - e
portanto a ambiguid ade criati va - introduz idas po r essas metaforizações. 4· A anterior "derivação" do sentido "sala de ópera" da palavra a partir do sentido agrícola
Com efeito, a confusão de "cultura" no sentido "sala de ópera" com a provavelmente coincidia com uma confusão e uma ambiguidade criativa similares.
encanador como um tra balhador, quant o estabelece uma relação de com troca, a educação define um certo pré-requisito p ara a participação.
plementaridade entre seus esforços e os esforços de outros trabalhado E, todavia, ao passo que a produti vidade é pública, pode-se dizer que
res. O trabalho do an tropólog o também faz isso : utiliza-se de um fundo a família é periférica e privada. Dinheir o e, por conseguinte, trabalho são
comum de habilidades e ideias que podem s er adquiridas po r "educação" necessários para "sustentar" uma família, mas nem dinheiro nem trabalho
e contribui para uma totalidade chamada "a literaturaantropológica". [labor] devem ser a principal preocupação no i nterior da família. A des
O trabalho [work] dotado de signif icado, produtivo, que também peito de como o dinheiro é ganho ou gasto, a renda familiar é em alguma
é chamado de "labor" [labor],' é a base do nosso sistema de crédito, de medida compartilhadaentre seus membros, mas não distribuída em troca
forma que podemos computá-lo em termos monetários. Isso possibilita de serviços familiares. Como mostrou David Schneider em American
avaliar outras quantidades, tais como tempo, recursos e trabalho [labor] Kinship, 6 as relações no interior da família são simboliz adas em termos de
acumulado, ou mesmo "direitos" e "obrigações" abstratos. Essa produ- amor, de amor sexual ou de uma relação de "solidariedade difusa, dura
tividade, a aplicação e implementação do refinamento do ho mem po r ele doura". A oposição entre dinheiro e amor dramatiza a separação nítida
próprio, consiste no foco central de nossa civiliz ação. Isso explica o alto traçada em nossa cultura entre "negócios" e "vida doméstica".
valor atribuído à "Cultura" no sentido restrito, marcado, "sala de ópera", O amor é tradicionalmente aquilo que "o dinheiro não pode com
pois ela representa o incremento criativo, a produtividade que cria tra prar" , e o dever, alg o que se supõe estar acima de considerações pessoais.
balho e conhecimento ao fornecer-lhes ideias, técnicas e descobertas, e Por isso, as histórias de casos amorosos entre homens de negócios e suas
que em última instância molda o próprio valor cultural. Experimentamos secretárias, médicos e enfermeiras ou pilotos e aeromoças tornam-se escân
a relação entre os dois sentidos de "cultura" nos significados de nossa dalos célebres, assim como relatos sobre estrelas do cinema ou da televisão
que se casam entre si em proveito de suas imagens. E, é claro, o papel da
5.Tanto lahor quanto work foram traduzidos como "trabalho". Entretanto, há uma dife-
,'" prostituta, que faz "por dinheiro" aquilo q ue outras mulheres fazem "por
amor" e que vive em uma "casa que não é um lar", simboli za para muitos
rença entre os termos na medida em que work se refere ao trabalho em geral, num sentido
mais abstrato, e lahor indica mais especificamente mão de obra ou trabalh o enquanto esforço
fisico ou mental.[N. T.] 6. David M. Schneider,American Kinsh'.f: A CulturalAccount. New jersey: Prentice-Hall, '968.
mais especializadas, ou preocupações com habilidades e técnicas em si Guiné, a criatividade do antropólogo é a sua interação com eles, em vez de
mesmas, são periféricas e individuais. Os antropólogos conhecem esses resultar dela. Eles percebem o pesquisador em campo como alguém que está
empreendimentos como "magia", "feitiçaria" e "xamanismo": o desen "fazendo" vida, um pouco como Zorba o Grego poderia percebê-lo, uma
volvimento e entesouramento de técnicas muitas vezes secretas a fim de forma de " vida" ousada e inclusiva. E, como em todos os casos dessa natu
garantir o sucesso pessoal. reza, deseja-se ajudar o incaut o forasteiro. Ou pelo menos tem-se pena dele.
Assim, as culturas tribais encarnam uma inversão de nossa tendên De sua parte, o antropólogo supõe que o nativo está fazendo o que
ele está fazendo - a saber, "cultura". E assim, como um modo de entender
cia a fazer das técnicas produtivas o foco das atenções e a relegar a vida os sujeitos que estuda, o pesquisador é obrigado a inventar uma cultura
familiar a um papel subsidiário (e subsidiado). E essa inversão não é
trivial: ela permeia ambos os estilos de criatividade em todos os seus para eles, como um a coisa plausível de ser feita. Mas, como a plausibi
aspectos. Na medida em que produzimos "coisas", nossa preocupação é lidade é um a função do ponto de vista do pesquisador, a "cultura" que
com a preservação de coisas, produtos, e com as técnicas de sua produ- ele imagina para o nativo está fadada a mant er um a distinta relação com
ção. Nossa Cultura é um a soma dessas coisas : c onservamos as ideias, as
aquela que ele reivindica para si mesmo.
citações, as memórias, as criações, e deixamos passar as pessoas. Nossos Quando um antropólogo estuda outra cultura, ele a "inventa" gene
sótãos, porões, baús, álbuns e museus estão repletos desse tipo de Cultura. ralizando suas impressões, experiências e outras evidências como se estas
Por outro lado, a sugestão de que povos tribais são "materialistas "- fossem produzidas por alguma" coisa" externa. Desse modo, sua invenção
com frequência levantada no caso dos habitantes das terras altas da Nova é uma objetificação, ou reificação, daquela "coisa". Mas para que a cultura
Guiné - faz tão pouco sentido quanto a acusação de que eles "compram" que ele inventa faça sentido para seus colegas antropólogos, bem como
esposas. Aqui, como diz Bugotu, as pessoas é que são importantes; os para outros compatriotas, é necessário que haja um controle adicional
objetos de valor consistem em "fichas" para" contar" pessoas, e, longe de sobre sua invenção . Ela precisa ser plau sível e plena de sentido nos termos
serem entesourados, são frequentemente dispersos po r ocasião da morte de sua própria imagem de "cultura". Vimos que o termo "cultura" não
mediante pagame ntos mortuários. São as pessoas, e as experiências e sig tem para nós um referente único: seus vários e sucessivos significados são
nificados a elas assoc iados, que não se quer perder, mais do que as ideias criados mediante uma série de metaforizações ou, se se preferir, "ambigui
e coisas. Meus amigos da Nova Guiné transferem os nomes dos mortos dades". Quando identificamos um conjunto de observações ou experiên
recentes para os recém-nascid os e também consideram imprescind ível cias como uma" cultura", estendemos nossa ideia de cultura para englobar
inventar os mortos sob a forma de fantasmas, de modo a não per4~os novos detalhes e ampliar suas possibilidades tanto quant o sua ambiguidade.
po r completo. Fazemos algo muito semelhante com os livros, que são Em um sentido importante, a "invenção" hipotética de uma cultura po r
nossos "fantasmas", nosso passado, onde vive bo a parte daquilo que um antropólogo constitui um ato de extensão: é uma "derivação" nova e
chamamos nossa "Cultura". singular do sentido abstrato de cultura a partir do seu sentido mais restrito.
61
60 A cultura como criatividade
Mas, se o significado da noção abstrata e antropológica de "cultu ra" sentidos de "cultura": eles metaforizam espécimes e dados etnográficos,
depende da noção "sala de ópera", o inverso também é verdadeiro. E a analisando-os e preservando-os, e os tornam necessários ao nosso refi
questão tampouco se restringe a essas duas variantes; constructos mais namento, ainda que pertençam a uma outra cultura. Os postes totêmicos,
recentes, como "subcultura" ou "contracultura", metafor izam o termo as múmias egípcias, as pontas de flechas e outras relíquias em nossos
antropológico para gerar uma riqueza ainda maior - e também uma museus são "cultura" em dois sentidos: são simultaneamente produtos de
mudança - de significados. As possibilidades semânticas do conceito de seus criadores e produtos da antropologia, que é "cultural" no sentido
"cultura" permanecem uma função dessa riqueza e dessa interação entre restrito. Na medida em qu e pacotes mágicos, cerâmicas, mantos e Outros
alusão e insinuação. A escrita antropológica tendeu a conservar a ambi itens foram fundamentais para a definição e a reconstrução museo lógica
guidade da cultura, pois essa ambiguidade é continuamente acentuada de outras" culturas" adquiriram a mesma importância e stratégic a que
pela identificação de "culturas" provocativamente novas e diferentes e as relíquias que nós buscamos preservar: a primeira máquina de costura,
continuamente controla da mediante a formação de analogias explicat ivas. mosquetes usados em guerras revolucionárias ou os óculos de Benjamin
Não é de surpreender portanto que os antropólogos sejam tão fas Franklin. O estudo dos "primitivos" tornou-se uma função de nossa
cinados po r povos tribais, po r modos de pensamento cuja ausência de invenção do passado.
qualquer coisa similar à nossa noção de "cultura" provoca nossas gene Tendo isso em mente, não é de espantar que Ishi, o último sobre
ralizações a tomar formas fantásticas e alcançar extremos. Esses objetos vivente yahi da Califórnia, tenha passado os anos após sua rendi
de estudo são provocativos e interessantes justamente po r essa razão, ção vivendo em um museu. 9 Àquela época os museus haviam assumido
porque introduzem no conceito de cultura o "jogo" de possibilidades plenamente o papel de reserva da cultura indígena, e conta-se que,
mais amplas e de generalizações mais extensivas. Tampouco deveríamos quando fazia tempo bom, Kroeber e outros acompanhavam Ishi às
nos surpreender se as analogias e os "modelos" resultantes parecerem montanhas para que ele pudesse demonstrar procedimentos e técni
desajeitados ou mal ajustados, pois eles se srcinam do paradoxo gerado cas de sobrevivência na selva dos Yahi. A despeito da profunda simpa
pelo ato de imaginar uma cultura para pessoas que não a concebem para tia de Kroeber por Ishi, é dificil evitar o sentimento de que ele consti
si mesmas. Esses constructos são po ntes aproximativas para significados, tuía o espécime museológico ideal, que fazia o trabalho antropológico
são parte de nosso entendimento, não seus objetos, e nós os tratamos para o antropólogo ao produzir e reconstituir sua própria cultura. Essa
como "reais" sob o risco de transformar a antropologia em um museu sugestão facilita o esquecimento de que o trabalho de Ishi como índio
de cera de curiosidades, de fósseis reconstruídos, de grandes momen era primordialmente o de viver, e que ele meramente havia trocado sua
tos de histórias imaginárias. existência fugitiva po r um a sinecura formolizada. Mas este, uma vez
mais, é precisamente o ponto: ao aceitar um emprego como espécime
de museu, Ishi realizou a metaforização da vida em cultura que define
o MUSEU DE CERA grande parte da compreensão antropológica.
62 A culturacomo criatividade 6)
parentesco de Morgan, podem ser compreendidos como traços sobrevi a considerar que as "razões" e os "propósitos" teoricamente aduzidos
ventes de um estágio evolutivo anterior, eles então seriam, assim como são propriedades universais subliminares, subconscientes ou implícitos.
os índios "não produtivos", fósseis. Os primeiros evolucionis tas esta O resultado foi uma sobrecarga do conceito generalizado de cultura,
vam dispostos a admitir como autovidente q ue a vida produt iva foss e abarrotado com tantas lógicas explanatórias, níveis e sistemas de sobre
dotada de significad o, reservando o restante para a sua própria inven determinações heuríst icas a ponto de fazê-lo surgi r como a própria metá
ção produtiva do passado. Mas o sentido reflexivo dessa metaforização fora da "ordem ". Uma tal "cultura" é totalmente dotada de pr edicados: é
transformou todo o mundo dos "costumes" num gigantesco museu vivo, regra, gram ática e léxico, ou necessidade, uma perfusão completa de formas
que somente os antropólogos tinham o privilégio de interpretar. Não e paradigmas rigidos que perpassa todo o leque do pensamento e da ação
era apenas o museu que constantemente recriava o passado, mas a pró humanos; em termos freudianos, aproxima-se de uma compulsão coletiva.
pria vida do homem. Além disso, já que essa "ordem" de ferro representa ao mesmo tempo nosso
Tanto no caso de Ishi quanto no de Tylor, a "cultura" no sentido abs meio de compreender a cultura, a mudança ou variação só pode ser abor
trato e antropológico era um artefato reificado da "Cultura" no sentido dada negativamente, co mo uma espéci e de entropia, estática ou "ruído".
restrito, marcado. Na medida em que essa invenção, ou derivação, se
deu Na busca por análogos de nossas ordens lógica, lega l, política e
no contexto dos museus e da nossa autoidentificaç ão histórica, a noç ão econômica entre os povos tribais, apoderamo-nos de toda sorte de uso
de cultura resultante assumiu as características de um acervo de museu. convencional, simbólico e idiomático para transformá-los em "estru
Era finita, discreta e inequívoca: possuía "estilos""usos"
e peculiares,que tura". Isso é particularmente evident e na antropologia social, em que
podiam ser determina dos com grande precisão . Podia ser difíc il afirmar se os significados associados a relações interpessoais são frequentemente
um determinado índio era de fato um Cheyenne ou um Arapabo, mesmo literalizados em termos de seus componentes simbólicos: o parentesco
interro gando-o de perto, mas nunca havia dúvida alguma sobre estilos e é reduzido à biologia ou a paradigmas genealógicos, e a própria socie
artefatos. Sob a égide protetora de nossas "instituições Culturais" cons dade é truncada em uma série de mecanismos para a contínua redistri
truiu-se uma série de culturas distintas e uma concepção geral de cultura buição de pessoas e bens. Aqui somos uma vez mais confrontados com
em todos os aspectos análogas ao nosso sentido "marcad o" de Cu lnua, a afirmação de Francis Bugotu: as pessoas é que são importantes, não a
como um acúmulo de grandes ideias, invenções e realizações. economia e a mecânica de sua transferência. Uma abordagem que vê o
Sob vários aspectos, essa ideia de cultura jamais deixou a imaginação gado pago pela noiva em povos af ricanos - virtualmente uma ma triz de
antropológica. Nossas tentativas de metaforizar os povos tribai s como metáforas sociais - comO "propriedade" econômica, ou que interpreta
"Cultura" os reduziram a técnicas e artefatos; nossas tentativas de produ os sistemas de casamento de aborígines australianos como engenhosos
zir essas cultur as etnologi camente, de compreender o "artefato" repro programas de comp utador ou como vertiginosas permutações do tabu do
duzindo-o, redundaram em "sistemas" sobredeterminados. A lógica de incesto, é uma abordage m que efetivamente operou uma vivisecção dos
uma sociedade em que "cu ltura " é algo consciente e deliberado, em que significados nativos na tentativa de entendê-los.
a vida serve a algum propósito, em vez do inverso, em que se requer que O estudo desses modos de conceitualização exóticos realmente
cada fato ou proposição tenha uma razão, cria um efeito estranhamente equivale a um a ressimbolização deles, transformando seus símbolos
~"
surrealista quando aplicada a povo s tribais. De fato, tais "funções", "fatos nos nossos, e é por isso que eles aparecem tão frequentemente sob
sociais" e "estruturas lógicas da mente" são tão pouco críveis em nos- uma forma reduzida ou literalizada. Uma antropologia que se recusa a
sas experiências in loco com os nativos que forçosamente somos levados aceitar a universalidade da mediação, que reduz o signifi cado a crença ,
nossas ideologias. A questão pode ser formulada em linguagem prática, Lawrence, a "estrada da carga", o caminho por onde a carga chegari a - isto é, as práticas
filosófica ou ética, mas em todos os casos ela diz respeito àquilo qu e esco- rituais ou sociais e a moralidade a serem adotadas de modo a obter os bens e a tecnologia
~" ocidentais. O conteúdo dessas práticas e moralidade alterou-se durante as várias fases do
lhemosquerem dizer com a palavra" cultura" e a como decidimos dirimir,
movimento, mas envolvia em geral a adoção de elementos da fé e moralidade cristãs (Peter
e inventar, suas ambiguidades. Lawrence, Road Belong Cargo: A Study o f riu Cargo Movement in the Southern Mandang
Distn'ct, New Guinea. Manchester: Manchester Univer sity Press, 1964). [N.T.]
Se chamamos esses fenômenos de "cultos da carga", então a antro o símbolo da "carga", quase tanto quanto o da "cultura", extrai
pologia talvez devesse ser chamada de "culto da cultura", pois o "kago" sua força e seu significado de suas ambiguidades: ele é simultaneamente
melanésio é bem a contrapartida interpretativa da nossa pa lavra " cultura". o fenômeno enigmático e tantalizante dos bens materiais ocidentais e a
Essas palavras são em certa medida "imagens espelhadas", no sentido de profun da implicação humana destes para o pensamento nativo . Qua ndo
que olhamos para a carga dos nativos, suas técnicas e artefatos, e a chama o símbolo é invocado, o segundo desses sentidos incorpora o primeiro em
mos de "culnua", ao passo que eles olham para nossa cultura e a chamam uma poderosa relação analógica, que tanto reestrutura o fenômeno quanto
de "carga". Estes são usos analógicos, e dizem tanto sobre os próprios lhe confere significado. Essa relação, com o significado que ela impõe,
intérpretes quanto sobre as coisas interpretadas. "Carga" é praticamente engloba todos os aspectos do dilema moral: é o acesso à carga, o vínculo
uma paródia, uma redução de noções ocidentais como lucro, trabalho assa implicado po r um compartilhamento da carga e as condições milenarist as
lariado e produção pela produção aos termos d a sociedade triba l. Para do necessárias para a chegada da carga. Além disso, já que "car ga", assim
xalmente, não é mais materialista do que as práticas matrimoniais mela como "cultur a", é um t ermo de mediação entre diferente s povos, a relaçã o
nésias, e essa é a chave para suas associações apocalípticas e milenaristas. que ele encarna torna-se aquela dos melanésios com a sociedade ocidental.
A "carga" raramente é pensada da maneira que poderíamos espe O fato de que "carga" e "cultura" metaforizam a mesma relação
rar, como simples riqueza material: sua significância baseia-se antes na intersocietária, conqua nto o façam em direções opostas, po r assim dizer,
utilização simbólica da riqueza europeia para representar a redenção torna-as efetivamente metaforizações uma da outra. "Cultura" estende
da sociedade nativa. Nesse uso, assemelha-se àquelas outras" cargas" - a significância técnica, do modo e do artefato para o pensamento e a
os constituintes simbólicos mais tradicionais do preço-da-noiva ou a relação humana; "carga " estende a signifi cância da produção m útua e
atividade e os produtos da hor ticu ltur a - que encarnam o significado das relaçõe s humanas pa ra os artefatos manufaturados: cada conceito
central das relações humanas para os melanésios, e que nós tendemos a usa o viés extensivo do outro como seu símbolo. Assim, é fáci l par a os
interpretar em termos materialistas e econômicos. A carga é de fato um ocidentais "literalizar" o significado de "carga" e supo r que queira dizer
antissímbolo da "cultura": ela metaforiza as ordens estéreis da técnica e simples mente produtos manufaturados ou modos de produção ociden
da produção autossatisfatória como vida e relação humana, assim como a tais, isto é, "Cultura" no sentido restrito. Esse tipo de simplificação, o
"cult ura" faz o inverso. Nas palavras de Kenelm Burridge, que distingue curto-circuito de um símbolo, consiste, de fato, na visão popularizada,
do sentido ordinário de "carga" um sentido em maiúscula, um pouco jornalíst ica, do culto da carga, uma contrapartida da ideologia missio
como fizemos aqui com "cultura": nária acerca da salvação dos idólatras "perdidos" ou do sentimentalismo
que vê os povos tribais como parentes empobrecidos implorando por um
Está claro que, se carga signif ica bens manuf atur ados, Carga abrange óbolo transistorizado.
um conjunto de agudos problemas morais; os movimentos de Carga não Mas também se mostra mais vividamente na análise de Peter
se devem simplesmente a um mal-enten dido concernent e à srcem dos Lawrence da carr eira de Yali, o líder dos cultos da costa setentrional da
bens manufaturados, mas estão inseridos em urna complexa situação Nova Guiné , que o inverso é verdadeiro: quan do os melanési os se depa
glob al e dela emergem.
11
," " ram com a noção de "cultura", tendem a interpretá-la como "carga" no
sentido deles. Quan do Yali, cuja cooperação fora solicitada pelo governo
11. Kenelm Burridge, Mambu: A Study of Melanesian Cargo Movements an d Their Ideological australiano, foi levado a Po rt Moresby, em 1947, ficou estarrecido c om
Background. Nova York/Evanston: Harper & Row, 1970, p. 246. duas coisas. A primeira foi uma mudança na política da administração
"o próprio Vali descrevera esses artefatos nesses termos: 'Nossos mitos religiosos que esperavam conquistar entre silvícolas supostamente
também estão lá' [ .. . N esse contexto, a palavra 'mito' (perambik,siton") 15 "simples" uma audiência para ideias que seus conterrâneos tinham pas
conotava de forma ampla 'a cultura da Nova Guiné'''.16 As experiências sado a considerar demasiado simples. Mas não proponho da r conta da
de Vali com a maneira como os ocidentais pensam sobre seu passado e motivação e da criatividade de Vali dessa maneira, no mínimo porque
o preservam, e com a maneira como toleram e prese rvam o passado dos explicações em termos de perturbações e injustiças rebaixam as reali
outros, proporcionaram-lhe uma percepção da "cultura" mais abran zações humanas ao nível de corretivos e reduzem a vida a um modelo
gente do que aquela que a maioria dos melanésios consegue obter. No de equilíbrio. Seria dizer muito pouco sobre aquele líder do primeiro
entanto, essa noção de cultura era invariavelmente assimilada a (e con movimento cristão, Joshua de Nazaré, remeter a fonte de suas ideia s e
fundida com) suas próprias expectativas de "carga"."Road belong cargo" propósitos à injustiça romana ou à diferença de padrão de vida entre
converteu-se em "road belong culture",como fica evidente no desfecho romanos e palesti nos.
do episódio d e Yali em Port Moresby, pois ele retoma à sua área natal De resto, nossa discussão mostrou que não há razão para tratar o
em Madang para da r início a um amplo revivescimento de cerimônias culto da carga como qualquer coisa alé m de uma contrapartida inter
tradicionais a fim de fazer vir a carga. pretativa da próp ria antropologi a, e que sua criatividade não prec isa ser
O revival de Yali não era de modo algum uma tentat iva de replicar em nada mais problemática do que aquela dos antropólogos que o estu
a vida pré-colonial; caracterizava- se por uma frenétic a hiperatividade dam. O culto da carga pode ser pensado como um gênero pragmático de
cerimonial, bem como pela incorpo ração de práticas de cultos anteriores. antropologia, que invent a em antec ipação a o futuro - de uma maneira
que faz lembrar a magia me lanésia - em lugar de reconstruir o pas sado
12. Peter Lawrence, Road Belong Cargo: A Study oi lhe Cargo Movement in the Southern ou o presente a p artir de cacos de evidências. Fica claro do q ue se expôs
Madang District, New Guinea. Manchester: Manchester University Press, '964, pp. IW8. que os devotos de ambos os conceitos, carga ou cultura, não conseguem
13' Derivação em pidgin do inglês monlcey, "macaco". [N.T.]
apreender facilmente o outro conceito sem transformá-lo no seu pró
14· Id., ibid., pp. '74-~.
I~.Derivação em pidgin do inglês sto/)', "história". [N.T.] prio, mas també m fica claro que essa característica não é exclusiva dos
16. Id., ibid., p. 19I. seguidores do culto ou dos antropólogos, que todos os homens projetam,
seus espíritos familiares, o que nos põe na pista de uma explicação para
as incongruências de Yali e suas contrapa rtidas antropológicas.
~"
INVENÇÃO É CULTURA
75
de se comunicar co m membros de um a sociedade diferente por meio nossas concepções de "eu" e motivação assim como da sociedade e do
da "cultura" que inventou para eles. Uma vez que a cultura estudada mundo circundant e. Assim, se desejamos levar a invenção a sério , deve
ganhou signif icado para ele - da mesma maneira qu e sua própria vida mos estar preparados para ab andona r muitas de nossas suposiçõe s sobre
é dotada de significa do -, ele é capaz de c omunicar suas experiências o que é real e sobre por que as pessoas agem como agem.
dessa cultura àqueles que comparti lham os significados e convenções do Palavras como "invenção" e "inovação" são frequentemente uti
seu próprio modo de vida. lizadas para distinguir atos ou ideias srcinais, ou coisas criadas pela
Se assumimosque todo ser humano é um "antropólogo",um inven primeira vez, de ações, pensamentos e arranjos que se tornaram esta
tor de cultura , seg ue-se que todas as pessoas necessitam de um conjunto belecidos ou habituais. Tal distinção oculta uma pressuposição quanto à
de convenções compartilhadas de certa forma similar à nossa "Cultura" natureza "automática" ou "determinada" da ação ordinária, quase como
coletivapara comunicar e compreendersuas experiências. Ese a invenção ocorre com noções deterministas. Ao estender o us o de "invenção" e
é realmente tão básica para a existência humana quanto sugeri, então a "inovação" a toda a gama de pensamento e ações, pretendo contrapor
comunicação e o conjunto de associações e c onvenções compartilhadas me a essa pressuposição e afirmar a realização espontânea e criativa da
cultura humana.
que permite que a comunicação ocorra são igualmente básicos. Toda A comunicação e a expressão significativa são mantidas por meio do
expressão dotada de signifi cado, e portanto toda experiência e todo enten
dimento, é uma espécie de invenção, e a invenção requer uma base de uso de elementos sim bólicos - palavras, ima gens, gestos - ou de sequê n
comunicação em conve nções compartilhadas para que fa ça sentido - isto cias destes. Quando isolados e vist os como "coisas" em si mesmos, esses
é, para que possamos referir a outros, e ao mundo de significados que elementos aparentam ser meros ruídos , padrões de luz ou mov imentos
compartilhamos com eles, o que fazemos, dizemos e sentimos. Expressão arbitrários (como ilustração, tente repetir uma palavra como "zepelim"
e comunicação são interdependentes: nenhuma é possível sem a outra. ou "papoula" várias vezes, concentrando-se exclusivamente no som, e
Nossa discussão sobre o culto da carga e a produç ão em sociedades veja como ela soará peculiar depois de ce rto tempo). Esses elemento s só
tribais mostrou o quão inadequada é a Cu ltura ocidental do empreendi têm si gnificado para nó S mediante suas associações, que eles adquirem
mento coletivo como modelo para a autoinvenção dos povos tribais. Se ao ser associados ou opostos uns aos outros em toda sorte de contextos.
a base comunicativa da invenção de Vali é assim tão diferente da nossa, O significado, portanto, é uma função das maneiras pelas quais criamos
um entendimento da cultura como invenção exige que consideremos e experienciamos contextos.
em certo nível de detalhe toda a questão da comunicação e da expres A palavra" contexto" tem sido usada extensivamente pelos linguistas
são inventiva. O que queremos dizer com "associações convencionais" modernos na busca de uma base ou matriz relacional para o uso dotado de
de uma palavra ou de qualquer outro elemento simbólico? Como essas sentido das palavras. Ela geralmente conota o "am biente" de significad o
associações objetificam a "realidade"? E qual é a relação de sua "con- no qual um símbolo é utilizado. Mas elude fronteiras e definições precisas
vencionalidade" com aquele tipo de extensão que assimilei à invenção? num grau que exaspera o s lingui stas - meu colega Oswa ld Werner bati
Em outras palavras, como a invenção se relaciona com a c oncepção mais zou-a de a "panaceia" da explicação linguística. Emprego o termo no sen
ampla que o homem tem de si mesmo e do mundo? Tentarei resPQ~ tido mais amplo possível, aplicando-o a qualquer pun hado de elementos
a essa questã o primeiramente de modo geral, e em seguida com exem simbólicos que ocorram juntos de alguma maneira, seja formando uma
plos específicos, extraídos da cultura norte-americana moderna. Mas suas sequência ou entidade reconhecível (a "cadeia sintagmática" de alguns
implicações s ão ao mesmo tempo tão cruciais e tão gerais que englobam autores), seja entrando em oposição como aspectos contrastantes de uma
76 O poderda myenção 77
distinção (a b ase de uma relaç ão "paradi gmática"). O ptei por generalizar significância de sua extensão ou "empréstimo" para us o em outros
"contexto" com a expectativa de que um conceito que desafia o estreita- contextos também será compartilhada.
mais útil sendoampliado - à maneira do
mento construtivo possa nos ser Um a palavra ou qualquer outr o elemento simbólico adquire suas
conceito matemático de "conjunto" na "teoria dos conjuntos". associações convencionais do papel que desempenha na articulação dos
Um contexto é uma parte da exper iência - e também algo que nossa contextos em que ocorre e da importância e significância relativa des-
experiência constrói; é um ambiente no interior do qual elementos sim ses contextos. Quando um elemento é invocado fora de um tal contexto,
bólicos se relacionam entre si, e é formado pelo ato de relacioná~s. Os lançamos mão e fazemos uso do caráter, da realidade e da importância
elementos de um contexto convencionalmente reconhecido parecem se desse contexto como "associações" do elemento. Sob esse aspecto, pode
pertencer mutuamente assim como elefantes, lonas, palhaços e acrobatas se dizer que uma palavra ou outro elemento relaciona todos os contextos
"pertencem" a um circo. Alguns elementos são partes menos convencio em que aparece, e que ela os relaciona, direta ou indiretamente, mediante
nais de um contexto que outros, embora isso varie no tempo e no espaço. qualquer novo uso ou "extensão".
Por exemplo, um urso bailarino é uma parte menos convencional de um Nossa palavra "pai" [falher] carrega as associações de parentesco
circo para os norte-americanos do que para os europeus. Alguns contex biológico (como em uma ação judicial de atribuição de paternidade), de
tos são menos convencionais que outros, embora isso também varie com relaçõe s de parentesco (agir c omo pai), de cosmologia religio sa ("P ai
o tempo, o lugar e as pessoas. Os contextos mais convencionais parecem nosso, que estás no céu .. ") e de oficio religioso ("padres jesuítas" Uesuit
tão familiares que os percebemos como todos, coisas ou experiências Fathers)), entre muitas Outras. Ela relaciona essas associações, direta e indi
em si mesmos, como o "outono", a "escola" ou a Declaração da Inde- retamente, de diversas maneiras específicas, algumas das quais impõem
pendência. Outros são mais obviamente "montados" , como o punhado significados em si mesmos tão importantes quanto a transformação da
de palavras que compõe um p oema não familiar o u uma rotina que ainda Cultura no sentido "sala de ópera" em cultura no sentido antropoló
não aprendemos a viver. gico, que exploramos no capítulo anterior. "Pai" tem um amplo leque
Não há limites perceptíveis para a quant idade e a extensão dos con de significados e associações" convencionais", uma associação específic a
textos que podem existir em uma dada cultura. Alguns contextos incluem ("estreita") com cada um de seus contextos convencionais, uma incalcu
outros, e fazem deles uma parte de sua articulação; outros podem se lável dissemi nação de associaçõe s "pessoais" ou idiossincráticas para dife
inter-relacionar de um modo que não envolve total exclusão ou inclu rentes indivíduos, grupo s e períodos e um potencial virtualmente infinito
são. Alguns, de tão tradicionais, parecem quase permanentes e imutáveis, para a criação de novos significados por meio de todos esses.
ao passo que novos contextos são criados o tempo todo na produção de Toda vez que usamos um a palavra desse tipo nu m contexto espe
afirmações e situações em que consiste a vida cotidiana. cífico, "estendemos" suas outras associações contextuais. Só podemos
Qualquer elemento simbólico dado pode ser envolvido em vários definir um elemento simbólico, ou atribuir prioridades às suas várias
contextos culturais, e a articulação desses contextos pode variar de associações 'convencion ais, com base na (suposta) significância relativa
um momento para outro, de uma pessoa para outra ou de um grupo dos contextos do qual ele participa. Assim, a definição acaba sendo um
de pessoas para outro. No entanto, a comunicação e a expressão só exercício de afirmação ou ajuste do pont o de vista cultural do definidor,
, ~
são possíveis na medida em que as partes envolvidas compartilham de suas prioridad es e convenções de comunicação. Se julgamos o paren
e compreendem esses contextos e suas articulações. Se as associa- tesco biológico mais "básico" que a cosmol ogia religiosa, as associações
ções contextuais de um elemento simbólico são compartilhadas, a primárias de "pai" serão naturais e biológicas, e o uso dessa palavra em
78 Opoder da invenção 79
referência ao Ser Superior será uma" extensão". À parte esse tipo de com algumas associações convencionais, e, por implicação, os contextos
que as
promisso ideológico, não existem significados "primários",aedefinição proporcionam, devem estar envolvidas em toda expressão significativa. As
e a extensão de uma palavra ou outro elemento simhólico constituem funda- associações compartilhadas servempara relacionaras qualidades significa
mentalmente uma mesma operação. Todo uso de um elemento simbólico tivas da expressão às vidas e às orientações daqueles quese comunicam;
é uma extensão inovadora das associações que ele adquire por meiode sem esse caráter relacional, essas qualidades significativas,
não importa o
sua integração convencional em outros contextos. quão provocativas,não seriam compreendidas ou apreciadas. Desse modo,
O significado é pois produto das relações, e as propriedad es signifi todo empreendimento humano de comunicação, toda comunidade, toda
cativas de uma defin ição são resultados do ato de relaciona r tanto quanto "cultura" encontra-se atada a um arcabouço relacionalde contextos con
as de qualquer outro constructo expressivo.Mas o significado seria sempre vencionais. Esses contextosnunca são ahsolutamenteconvencionalizados,
completamente relativonão fosse a mediaçãoda convenção - a ilusão de que no sentido de serem idênticos para todos aqueles que os compartilham;
algumas associaçõesde um elemento simhólicosão ''primárias'' e autoeviden
- sempre têm pontas soltas,são incompletamente compartilhados, estãoem
teso Se o significado é baseado na relação, então o bom e sólido sentimento processo de mudança, e podem ou nãoser aprendidos conscientemente,
de denotação "absolu ta" (sobre o qual tantas epistemologias linguísticas no sentido de "regras". Mas essa coisa um tanto tênue emal compreendida
são fundadas) é uma ilusão fundada na não relação, ou tautologia. Cor- à qual nos referimos, com otimismo, como "comunicação"só é possível
responde ao efeito de um contexto que" confere associações a si mesmo" na medida em que associações são compartilhadas.
por meio de seus elementos articuladores. Quando usamos
"pai" em um Em toda" cultura", em toda comunidade ou todo empreendimento
contexto familial, a palavra carrega associações de paternid ade biológica humano de comunicação, o leque de contextos convencionais gira em
e talvez de divindade, mas também leva adiante as próprias associações torno de uma imagem generalizada do homem e das relações interpes
"familiais" que ligam essa aplicação particular a outros casos do mesmo soais humanas e articula essa imagem. Esses contextos definemcriam
e
tipo. Chamar um pai de "pai" restitui ao contexto familial suas próprias um significado para a existência e a socialidade humanas ao fornecer uma
associações. Proporciona o bom e confortável (e um tanto surrado) sen base relacional coletiva, uma base que pode ser atualizada explícita ou
timento de estar usando uma palavra tal como ela foi feita para ser usada, implicitamente po r meio de uma infinita variedade de expressões possí
e esse uso aparece como autoevidente. Quanto mais completamente esse veis. Eles incluem coisas como linguagem, " ideologia" social, aquilo que
efeito de "conferir características a si mesmo" se realiza, mais se pode é chamado de "cosmologia" e todos os demais conjuntos relacionais que
dizer que o uso é convencionali'{ado,amplamente compartilhado, comu os antropólogos se deliciam em chamar de "sistemas" (embora,é claro,
nicável, facilmente defi nido (e desprovid o de sentido). Ou , para dizê-lo seu aspecto "sistemático" possa ganhartanta importância ou desimpor
de outro modo, as coisas que melhor podemos definir são as que menos tância quanto se deseje). Isso não significa, evidentemente, que o ideal e
vale a pena definir. Mesmo Jeová (em sua feição popular, versão rei sua imagem do homemsejam os mesmos para todas as culturashumanas,
Jaime), quando pressionado a definir a si próprio, recorreuum
a a tauto ou que desempenhem em todas elas o mesmo papel na visão ou esquema
logia: "Eu Sou o que Sou". da pessoa e de sua ação no mundo - ainda que os modos como diferem
Vimos que a comunicaçãoé tão importantepara a expressão dO!!2a a esse respeito sejam cruciaispara a nossa compreensão dessas culturas.
de significado quanto a "extensão". E a comunicação só é possível Os significados convencionais, coletivos, do homem e de sua socialidade
mediante o compartilhamento de associações derivadas de certos con podem ser aspectos implícitos ou explícitosda ação humana, e portanto
textos convencionaispor aqueles que desejam se comunicar. Segue-se que da própria invenção, mas estão sempre presentes. Uma ideia centralna
80 O poder da myenção 81
obra de Émile Durkheim era a de que em toda culrura essa imagem cole obtidas mediante participação em vários contextos. Conrudo, seria a mais
tiva do homem e da socialidade humana compreende o que poderíamos pura tautologia dizer que um contexto particular recebe suas caracterís
chamar de um campo de moralidade. ticas de si mesmo ou das experiências que estrutura. Uma vez que seus
elementos articuladores guiam e canalizam nossa experiência de sua rea
É moral, pode-sedizer, tudo o que é fonte de solidariedade, tudo oque lidade, os contextos não podem receber sua forma e seu caráter direta
força o homem a contarcom outro, a regular seus movimentos por outra mente dessa experiência. Segue-se que essas característi cas são dadas em
coisa que não os impulsos de seu egoísmo, e a moralidade é tanto mais grande medida pelas outras associações dos elementos que articulam o
sólida quanto mais seuslaços são numerosos e fortes.l contexto, aquelas que eles obtêm com a participação em contextos exter
nos àquele em questão. Os vários contextos de um a cultura obtêm suas
A moralidade, nesse sentido , constirui a metade do mundo do significado. características significativas uns dos outros, po r meio da participação de
E a moralidade pode ajudar a clarificar a ilusão de meados do século xx elementos simbólicos em mais de um contexto. Eles são inventados uns
de que é possível dar conta da vida humana falando em "sistemas", "codi a partir dos outros, e a ideia de que alguns dos contextos reconhecidos
em uma cultura são "básicos" ou "primários", ou representam o "inato",
ficação", "norsignificado
nificado, um mas" o u "relações". A moralidade é uma espéci e de sig
com direção, propósito e motivação, e não um ou de que suas propriedades são de algum modo essencialment e objeti
substrato sistêmico. É um constructo cultural, um leque de contextos cons vas ou reais, é uma ilusão cultural.
truído a partir das associações de outrOS contextos, assim como suas pró E, no entanto, trata-se de uma ilusão necessária, que faz parte do
prias associaçõe s podem servir para a articulação de outras construções. viver em uma cultura e do inventá-la" de dentro" , tanto quanto a pres
Os contextos morais ou convencionais de um a cultura definem e suposição do antropólogo de r egras firmes e rigorosas é uma muleta para
orientam suas expressões significa tivas e aqueles que as constroem; eles a sua invenção da cultura a partir "d e fora". A expr essão significativa
"juntam os pedaços do mundo". Eles ao mesmo tempo relacionam cons sempre envolve o uso de "muletas" desse tip o, e po r isso sempre se move
truções expressivas e são eles prõpn·osconstruções expressivas, criando em um mundo de ilusão culrural - um mundo, ademais, que ela conti
uma imagem e uma impressão de um absoluto em um mundo que não tem nuamente "traça" para si mesma, como um tanque de guerra deitando
absolutos. N osso problema, nossa tarefa e nosSO interesse neste capítulo seu próprio rastro. Nossos símbolos não se relacionam com nenhuma
é entender como essa ilusão é criada, como ela funciona e se motiva a si "realidade" externa; nO máximo referem-se a outras simbolizações, que
mesma e como mantém sua preeminência no decorrer da ação. percebemos como realidade.
Todo pensamento, ação , interação, percepção e motivação humana
pode ser entendida como uma função da construção de contextos lan
CONTROLE
çando mão das associações contexruais de elementos simhólicos (semió
ticos). Como toda ação des se tipo - eficaz ou ineficaz, boa ou má, "cor
Está claro que, se palavras são apenas sons, e imagens visuais apenas reta" ou "incorreta" - se desenvo lve mediante construções suce ssivas, sua
geração pode ser descrita como "invenção" ou "inovação". A invenção
P adrões de luz, nem umas nem outras têm associações inatas ou autoe ~«'
videntes. Vimos que quaisquer associações que venham a adquirir são mescla associações contexruais em um produto complexo de um modo que
pode ser ilustrado pela noção de construção "metafórica" ou "pragmática"
I. Émile Durk.heim, De la Diyision du trayail social. Paris: F. Alcan, 18 93. no sentido linguístico. Uma metáfora incorpora um a sequência nova ou
82 O poder da invenção 8)
..o
inovadora, mas também muda as associações dos elementos que reúne A delineação desses contextos e a oposição entre modos de simbolização
ao integrá-los numa expressão distintiva e muitas veze s srcinal. Em outro "coletivizan te" e "diferenciante" que ela implica podem ser igualmente
lugar empreguei o termo "metáfora" em referência à invenção cultural,z tratadas como ficções ou ilusões da convenção, mas são extremamente
embora tal emprego exija que "metaforizemos" a noção de metáfora, esten importantes. Elas decompõem o mundo do ator, e da tradição em geral,
dendo-a de modo a englobar formas não verbais e desenvolvendo assim em suas categorizações mais significativas e efetivas.
um a teoria da simbolização po r analogia com a linguagem. No entanto, O eleme nto que contrasta com o convencional, aquele que é "repre
interesso-me por fenômenos linguístic os em larga medida como exemplos sentado" ou "significado" pela simbolização convencional (e que por sua
de operações semi óticas mais gerais, mais do que o contrário, e po r isso vez a simboliza, evidentemente), não deve ser simplesmente assimilado
cito aqui o exemplo da metáfora apenas por seu val or ilustrativo. ao leque de coisas "autoevidentes" no mundo - pessoas, lugares, eventos
As simbolizações conve ncionais são aquelas que se relacionam ent re etc. individuais -, embora certament e as inclua. Ele de fato constitui um
si no interior de um campo de discurso (linguagem e matemática são outro modo de sirnbolização: o modo diferenciante, ou não convencio
os exemplos óbvios) e formam "conjuntos" culturais, como sentenças, nal. Seus efeitos são opostos àqueles do modo convencional em quase
equações, kits de ferramentas, trajes completos ou ruas de uma cidade. todos os aspectos, ainda que também possam ser entendidos em termos
Elas generalizam ou coletivizam po r meio de sua capacidade de conec de propriedades semióticas.
tar signos de uso comum em um padrão único. Mas podem fazê-lo ape Quando um símbolo é usado de modo não convencional, como na
nas porque rotulam, ou codificam, os detalhes do mundo que ordenam. formação de um a metáfora ou um tropo de alguma outra ordem, um
Todas as simbolizações convencionais, na medida em que são conven novo referente é introduzido simultaneamente com a nova simboliza
cionais, têm a propriedade de "representar" ou denotar algo diferente ção. Uma vez que nem significante nem significado perten cem à ordem
delas mesmas. Essa é a noção tradicional de "símbolo", empregada po r estabelecida das coisa s, o ato de simbolização só pode ser referido a um
Charles Sanders Peirce e outros. evento: o ato de invenção no qual forma e inspiração passam a figurar
Assim, um contraste contextual- entre o contexto simbólico articu um a à outra. O resultado não é diferente nas simbolizaç ões que apre
lado po r signos e o contexto de fenômenos aos quais esses signos se refe endemos ao descobrir um rosto novo ou uma nova situação: um evento
rem - é uma característica da simbolizaçã o convencional toda vez que esta manifesta símbolo e referente simultaneamente. Assim, a tensão e o con
ocorre. Os símbolos se autoabstraemdo simbolizado. Um a vez que somos traste entre o símbolo e o simbolizado desmo ronam , e podemos falar de
obrigados a usar símbolos para nos comunicar, e já que eSses símbolos tal construção como um "símbolo" que "representa a si mesmo". Todas
necessariamente têm de incluir associações mais ou menos convencio as experiências, pessoas, objetos e lugares singulares da vida cotidiana
nais entre aquelas disponíveis, o efeito da autoabstração simbólica, com correspondem, nos traços que as tornam distintas, a esse modo de sim
O contraste contextual resultante, é sempre um fator na simbolização. bolização - como "símbolos", el as representa m a si mesmas.
Além de da r ao mundo um centro, um padrão e um a organização, Desse modo, a tendência do simbolismo diferenciante é impor dis
a convenção separa suas próprias capacidades de ordenação das coisas tinções radicais e compulsórias ao fluxo da construção; é especificar, e
ordenadas ou designadas, e nesse processo cria e distingue cont~s. assimilar uns aos outros os contextos contrastantes dispostos pela con
venção. "Invenção", o "signo" da diferenciação, é o obviador [obviator]
2.. Roy Wagner, Habu: The lnnovation of Meaning in Dan'bi Religion. Chicago: The Univer dos contextos e contrastes convencionais; de fato, seu efeito total de fun
sity of Chicago Press, 1972.· dir o "sujeito" e o "objeto" convencionais, transformando um com base
84 Opoder da invenção 8,
no outro, pode ser rotulado "obviação" [ohviation]. Conferir ou receber Um controle desse tipo é fornecido pela discriminação ideológica
associações de um contexto para o o utro é uma consequência desse efeito, nítida e compulsória entre os dois modos simbólicos feita em todas as
a qual proponho chamar de objetificação. (Meu emp rego do termo "obje tradições humanas. Ou o modo convencional se abst rai como o reino
tificar" [objectifYl aqui é um tanto fenomenológ ico e se assemelha ao uso apropriado à ação humana, deixando o modo diferenciante como o
do termo "objetivar" [objectivate1 or N ancy Munn em sua discussão da reino do dado ou inato, ou então o convencional se abstrai como O inato,
iconografia walbiri, na qual ela demonstra como a imagística da represen designando a diferenciação como o modo apropriado à ação humana.
tação walbiri fornece" correlatos objetivos" para as "formaçõ es sensuais Em ambos os casos, o peso e a ênfase moral diferenciais atribuídos a
da experiência s ubjetiva").' cada um dos modos servirão para controlar a atenção do simbolizador,
Um a simbolização convencional objetifica seu contexto díspar ao mascarando- lhes a natu reza essencialmente simbólica e a reHexiv idade
conferir-lhe ordem e integração racional; uma simboliz ação diferenciante obviante. Como veremos, as consequências e motivações serão muito
especifica e concretiza o mundo convencional ao traçar distinções radi diferentes conforme o simbolizador se mova "junto com" ou "contra" as
cais e delinear suas individualidades. Mas, como a objetificação é sim prescrições convencionais para a ação; do ponto de vista do controle e
um
plesmente o efeito da fusão ou obviação dos contextos sobre cada do mascaramento, porém, tudo o que importa é que os dois reinos sejam
deles (assim como , de fato, os própri os contextos são merame nte deli mantidos suficientemente distintos.
neações da autoabstração convencional) , os dois "tipos" de objetificação Vou me referir ao contexto no qual se concentra a atenção de um sim
são necessariamente simultâneos e recíprocos: o coletivo é diferenciado bolizador, independentemente de seu status ideológic o, como controle ou
ao mesmo passo que o individ ual é coletiviza do. contextode controle, pois é esse contexto, e esse modo simbólico, que con
U ma vez que, dada a natureza da simbolização convencional, o cole trola sua atenção ao rest ringir seu campo de percepção consciente. Vou
tivo sempre precisa "significar" o diferenciante e vice-versa, e uma vez me referir ao modo oposto, aquele que é "tomado" ou sobre o qual se age,
que, dada a natureza da simbolização diferenciante, a ação de um modo como contexto implícito.O efeito de mascarar, de restringir a intenção e a
simbólico sobre o outro é sempre reflexiva, todos os efeitos simbólicos percepção consciente do ator dessa maneira, é o de envolvê-las não apenas
são mobilizados em qualquer simbolização dada. É impossível objetifi na ação em si,mas também nos juízos e prioridades do mundo convencional.
car, inventar algo sem "contrainventar" seu oposto. A percepção desse Pois o mascaramento nada mais é que o condicionam ento de nossa
fato pelo simbolizado r ser ia, é claro, fatal par a a sua intenção: enxe rgar percepção consciente pela propriedade de autoabstraçã o dos símbolo s
o campo inteiro de uma só vez, em todas as suas implicações, é sofrer convencionais. Sejam es tes empregado s para constru ir um contexto con
uma "relativização" da intenção, tornar-se consciente de como é gratuito vencionalmente reconhecido ou utilizados em atos deliberados de obvia
o papel que ela desempenha na ativação dos símbolos. Assim, a mais ção, os símbolos convencionais estão lá, e seu efeito de distinguir os
imperiosa necessidade de ação sob essas circunstâncias é uma restrição contextos, o sujeito do objeto, será necessariamente parte da ação, per
da visão, concentrando a percepção consciente e a intenção do ator em cebida ou pretendida, confor me o caso. Quando o controle é diferen
um dos mo dos e em seu efeito. ciante, porém, a separação mascar adora dos contextos se manifestará
como uma in trusão sobre a intenção, como uma consciência culpada,
~'"
pois a força dos atos diferenciantes está em produzir uma união entre
3. Nancy D. Munn, Walhin' Jconography: Graphic Representation and Cultural Symholirm in a sujeito e objeto, e a intenção do simbolizador busca uma espécie de
Central Australian society. Ithaca/Londre s: CorneU University Press , '973, p. 221. desmascaram ento, a obviação da dicotomia sujeito/ objeto. O aspecto
86 O poder da invenção 87
"psicológico" da simbolização resulta da separação, incorporada na per Pode-se descrever sua ação dizendo que ele "segue as regras" ou tenta
cepção consciente do simbolizadof, entre coletivizante e diferenciante, explicitamente ser moral, mas de todo m odo ele coletiviza sua a ção. Isto
e entre mascaramento e obviação uma
- separação necessáriapara que é, ele controla seu ato de acordo com um tipo de modelo que significa a
ele seja proteg ido do relativismo essencial de toda construção simbólica. "conjunção"de sociedade e moralidade, construindo consistência e coe
são social. Mas é evidente que,na medida em que o Outro contexto,aquele
mútua de dois contextos, todo
Por envolver a combinação ou articulação no qual ele age dessa maneira coletivizante,não é um contexto convencio
ato de invenção cultural resulta em dois tipos de objetificação. Ambos são, nal, a construção resultante incluirá características tanto convencionais
por certo, consequências e aspectos de um ato único, complexo, ecada um (morais) como não conven cionaliza das (particula res) - ela será "pare
representa a significânc ia desse ato em ter mos de uma parte específica do cida com" as intenções do ator em alguns aspectos e "diferentede" tais
mundo conceitual . O controle particular empregado pelo ator faz com intençõesem outros. Oator, seguindo suas intenções,terá conseguidoem
que ele veja um tipo de transformação ou objetificação como resultadode certa medida" coletivizar" o contexto de sua ação, transformandomato
suas próprias intenções, como aquilo que ele está "fazendo". Ele identi em uma roça ouum grupo de pessoas em uma famíliaou nação. Ele terá
fica
o outro tipo de objetificação, aquele que transforma o próprio contexto recriado e estendido algum contexto não convencionalizado (um certo
de controle eque poderíamoschamar de "contrainvenção", com causa a mato, um certo punhado de indivíduos) sob uma forma convencional,
ou motivação de suas intenções. Essa observação podeparecer à primeira transformando-oem "cultura" ou '~moralide". Mas ele também terá
vista enigmáticaou forçada, mas deveriaestar claro que a transformação em alguma medida recriado e estendido um contexto convencional(as
do controle é facilmente perceptível em relação à ação, e como ela não faz "regras" ou técnicas aceitaspara fazer uma roça,ou uma família, ouuma
parte da intenção do ator é invariavelmente associada a alguma compul nação) de forma particularista ou não convencional. O mascaramento
são motivacional ou externa inata, àquilo que está "causando" a intenção. que acompa nha essa ação fará com que ele veja esses dois tipos de obje
Isso também é uma ilusão cultural, e uma consequência do fenô tificação resultantes de m odos diferentes.
meno do mascaramento.Mas, se a fonte da motivação é uma ilusão, seu Suponhamosque eu busque tratar minha esposa" comoum marido
efeito motivantenão é, pois ao comprometer-se com o controle como deve tratar", seguindo um conjunto compartilhadode expectativas cul
um curso de ação o ator se torna vulnerávelàs ilusões do mascaramento em "um
turais como controle, esperando transformar nossa associação
que essa ação produz sobre ele. É uma ilusão traiçoeira. Podemos com casamento" e em "uma família". O contexto não convencionalizado
preender melhor como essa ilusão opera retornando ao fato de que toda de minha açãoserá constituído pelas características pessoais, sociais
invenção dotadade significado precisa envolvertanto um contexto con e situacionais individuais minhas ede minha esposa e por aquelas de
vencional quanto um contexto não convencionalizado, um dos quais nossa associação prévia. Ao dirigir o foco de minha ação para "ser um
"contr ola" o outro, e explor ando as implicações des se fato. bo m marido", e por conseguinte dirigir o foco da atenção dela para "ser
Quando o contexto convencional é aquele que serve de controle, uma boa esposa", participoda atividade comumde "construirum casa-
o foco do ator se dirige auma articulaçãode coisas que se conforma a mento" e "construiruma família". Na medidaem que nossos esforços
algum tipo de convenção cultural (e moral). Ele age em confoqnjPade forem bem-sucedidos, transformaremos uma interaçãoentre indivíduos
explícitacom um ideal ou uma expectativa coletivaquanto ao modo como em algo próximodas noções convencionaisde "casamento" e "família".
as coisas "devemser feitas", construindo seu contexto segundo linhas U ma vez que pertencemos auma culturaque possui noçõesbastante pre
que correspondem a uma imagem compartilhada do moral e do social. cisas do que devem ser um "casamento" e uma "família", euma vez que
88 Opoder da invenção 89
......
ao contr olar nossas ações colocamos essas noções em foco, estaremos sob e individual. Em vez de coletivizar o individual e o particular, o ator
a ilusão de que o complexo produto de nossa invenção é uma coisa real. está particularizando e diferenciando o coletivo e o convencional. Ele está
E, em razão de nosso compromisso com essa coisa, o outro tipo de obje "fazendo as coisas do seu próprio jeito", seguindo um curso particular de
tificação que está em curso aparecerá, enquanto um a consequência direta ação em uma situação (isto é, as convenções compartilhad as da sociedade)
de nossa ação, como um processo natural, um a consequência "daquilo que admite cursos alternativos, e assim tornando aquilo que faz distintivo
que somos", de "nosso próprio jeito (individual e coletivo) de fazê-lo". e individual. Em vez de "seguir as regras" e dirigir seu foco para a consis
Dessa maneira, a objetificação do contro le - nesse ca so um contexto tência e a coesão, el e está deliberadamente "testando" e "estend endo" as
convencional- será mascarada pela identificação que fazemos de nossas "regras" po r meio da construção de um mundo de situações e particulari
intenções com aquele controle. Embora elas sejam tornada s aparentes, e dades às quais elas se aplicam. Mas uma vez que o contexto de su a ação, a
nessa medida cn'adas como um contexto cultural, po r nossas ações, não coisa (isto é, "regras", convenções) que ele está diferenciando, é coletivo
enxergamo s essas características pessoai s e situacionai s como resultado e convencionalizado, a construção resultante irá incluir características
dessas ações. Mais do que isso, como a tendência d essa objet ificação - que tanto convencionais como não convencionalizadas (particulares). Ela será
vai
é particularizar em lugar de coletivizar - diretamente contra aquela de "parecida com" a sua intenção em certos aspectos e "diferente de" tal inten
nossas intenções, ela é percebida como uma espécie de resistência a estas. ção em outros. A seus olhos , o ator terá conseguido em alguma medida
Enquanto nos esforçamos para transformar nossas idiossincrasias e nos "diferenciar" o contexto de sua ação, transformando um a linguagem ou
sas situações diversas em algo próximo a um ideal social e moral, essas um código social comum em sua expressã o, poema ou festa singular. Ele
idiossincrasias e situações estão simultaneamente se impondo a esse ideal terá recriado e estendido um contexto convencionalizad o de forma indi
e alterando sua forma e aparência, criando uma resistência a nossas inten vidual, transformando-o em "sua" vida ou em "seu tipo" de vida. Mas
ções. Mas essa resistência também tem o efeito de "preparar" situações também terá, em alguma medida, recriado e difundido um contexto não
para coletiviz ação posterior, ao sempre desfazer parcialmente o que quer convencionalizado ("seu próprio jeito" de escrever um poema ou de dar
que tenhamos nos proposto a fazer: ela tem o efeito de motivar nossa cole um a festa) de forma coletiva ou convencional. E o mascaramento que
tivização. Como a reconhecemos como parte de nossos" eus naturais", acompanha sua ação terá como resultado o fato de que ele decerto verá
ela aparece sob a forma de motivação natural, impulsos sexuais, fixações de maneiras diferentes esses dois tipos resultantes de objetificação.
pessoais, talentos ou propensõ es ineren tes - aqui lo que "somos" e aquilo Suponhamos que em vez de tratar minha esposa "como um marido
que "fazemos" uns aos outros. Por certo, quanto mais agimos de acordo deve tratar" eu decida agir "como um homem", diferenciar minhas
com nossas intenções coletivizant es, mais solidamente construímos uma ações das ações dela com base em um modelo qu alquer de masculi nidade.
impressão dessa resistência impositiva como uma força contínua motivando No contexto de nosso casamento, com todos os seus arranjos e expectati
nossa ação. Ao inventar coletividades culturalmente prescritas, contrain vas convencionais, tentarei conscientemente tornar aquilo que faço dife
ventamos nossa noção de um mundo "dado " de fatos e motivações naturai s. rente daquilo que ela faz, e com isso criar minha individualidade como
Quando é o contexto não convencionalizado que serve de controle, pessoa e como homem. (N a vida da classe média norte-american a isso
o ator enfoca uma articulação de coisas que difere em alguns aspecto:;jas decerto seria visto como algo "forçado" e não natural, já que se supõe
convenções correspond entes às expectativas soci ais (e morais), Quando que impulsos sexuais e traços de personalidade sejam "dados" e natu
um controle particular é selecionado dentre outros possíveis ou permis rais). Ao dirigir minha atenção para "ser um homem" ou "ser um indi
síveis, o constructo de significação que é produzido se torna distintivo víduo" e separar os esforços dela dos meus ("Não me importune com
90 O poder da inyenção 91
coisas de mulherl"), busco deliberadamente criar os fatores pesso ais e Entre os dois tipos de objetificação o mundo inteiro é inventado -
situacionais que cercam nosso casamento. Minha esposa pode ou não um de seus aspectos motivando o outro e vice-versa. Mas nisso cumpre um
assentir a esse programa, mas quer ela tente frustraclamente coletivizar, papel importante a questão de saber qual dos tipos de objetificação é con
quer procure atuar como "mulher" diante do meu atuar como "homem", siderado o meio normal e apropriado para a ação humana (o reino do
eu hei de conseguir diferenciar. N a medida em que eu for bem-sucedido, artifício humano) e qual é compreendido como funcionamento do inato
transformarei um casamento em uma interação entre indivíduos. Como e do "dado". Isso define a forma aceita e convencional da ação huma na,
estou controlando minha ação com um padrão co ntextual específic o em o modo como o ator interp reta e experiencia o controle e suas ilusões , e
mente, estarei sob a ilusão de q ue o complexo produto dessa invenção é assim também define que coisas e que experiências devem ser vistas como
uma transformação real . E, em virtude do meu compromisso com essa anteriores às suas ações, e não como resultado delas. Podemos denominar
transformação, o outro tipo de objetificação que está em curso, a coleti essa orientação colet iva de "masca ramento convencional" de um a cultura
vização de meu controle diferenciante, aparecerá para mim como algo particular. Na mode rna Cul tura da ciênci a e do empreendimento coletivo
imposto de fora, um "dado" que não faz parte de m inha intenção. da classe média norte-americana, com sua ênfase no acúmulo progres
Sem dúvida, eu contrainventarei o contexto coletivo de nosso casa sivo e artificial de formas coletivas, o mascaramento convencional equi
mento no próprio ato de me individualizar contra ele. E como estou vale ao entendimento de que o mundo do incidente natural (a soma de
tentando diferencia r, criar minha individual idade, essa contrainvenção todos os contextos não convencionalizados) é dado e inato. Já no mundo
coletivizante será percebida como uma espécie de resistência às minhas dos Dar ibi e do po vo de Yali, com sua ênfase na prioridade das relações
intenções, um fator motivador que continuamente "dispõe as coisas" para humanas, é o mundo incidental dos controles não convencionalizados que
novos atos de diferenciação. Mas nesse caso não posso atribuir a força envolve a ação humana, ao passo que a articulação do coletivo é o objeto
motivadora ao meu ~'eu natural", pois as convenções de minha cultura me da contrainvenção e do mascaramento convencional.
ensinam que os "dados" naturais são individuais e particularizantes, ao A cultura de Yali e a cultura dos Daribi são inatas e motivadoras:
passo que essa motivação é social e coletiv izante. Assim, em bora a moti elas "querem ser" estendidas e diferenciadas po r oposição; faz parte de
vação seja efetivamente criada e tornada visível no decorrer do controle, seu caráter convencional que elas devam ser normalmente contrainven
os tipos de objetificação a que ela leva não são considerados "normais" tadas po r meio de c ontroles diferenciantes. Já a Cultura norte-am eri
em minha cultura, mas patológicos. Eu os percebo como "compulsões" cana é artificial e im posta; é o legado de muitas gerações de progresso,
vagas, inexplicáveis, que incidem sobre a minha atividade e me forçam de construtores e criadores que, motivados eles próprios pela "natu
a diferenciar cada vez mais. Na medida em que dependo de controles reza", desenvo lveram nossas técnicas de domínio, aplicação e regulação
não convencionalizados, irei perceber Ce contrainventar) minha cultura da natureza. No primeiro caso, a convenção cultural mascara sua pró
como uma compulsão nesse sentido. Se eu vivesse em um a cultura em pria invenção como motivação; no segundo, sua articulação consciente
que controles não convencionalizados fos sem considerados normais, per mascara a invenção de uma natureza inata e motivadora. Assim, o mas
ceberia essa compulsão coletiva como minha "alma". Se eu fosse um caramento convencional é sempre estendido e recriado como parte da
criminoso nessa sociedade, sua importunação patológica me lev~ a operação da próp ria invenção: está implícito nos próprios contextos con
cometer crimes cada vez maiores. Mas sou apenas um acadêmico ino vencionais, na medida em que eles são inventados ou contrainventados.
fensivo, com uma cultura obsessiva que deseja liberar-se ao ser escrita E sua contínua recriação motiva, ou é motivada, da mesma maneira que
em mais e mais livros. esses contextos o são.
92 O poder da invenção 93
Se isso é verdadeiro, como pod emos dar conta de atos que invertem ser retidos e reconhecidos como
tais ao ser continuamentefiltrados através
a ordem de controle culturalmente apropriada: a diferenciação del ibe das malhas do individual e do particular, e as características individuais
rada que ocorre na Cultura norte-americana e a coletivizaçãoque tem e particulares do mundo só podem ser retidas e reconhecidas como tais
lugar na Nova Guiné? Uma vezque essas inversõescontrariam a criação ao ser filtradas através das malhas do convencional. Ordem e desordem,
de motivações ordinária, não podemos atribuí-las às ilusões do masca conhecido e desconhecido, a regularidade convencional e o incidente que
ramento convencional. Elas são na verdade uma espécie de "desmas desafia a regularidade estãoatados entre si de maneira inata e estreita,são
caramento", fazendo aquilo qu e ordinariamente não se pode fazer; e, funções um do outro, necessariamente interdependentes. Não podemos
conquanto criem sua própria motivação sob a forma de compulsão, o agir sem inventar um por meio do outro.
ímpeto para tal "reversão" da ação permanece p or explicar. Se puder Se a invençãoé assimde importânciacrucial para a nossa apreensão
mos explicá-la, isso talvez nos ajude a entender po r que os modos de ação da ação e do mundo da ação, a convenção não o é menos, pois a convenção
convencionais e as ilusões que eles criam permanecem convencionais. cultural define a perspectiva do ator. Sem invenção, o mundo da conven
Pois a afirmação de que as ações criam suas próprias moti vações nos diz ção, com sua tão importante distinção interpretativa entre"inato"
o eo
pouco, na verdade, sobre o modo como esse estado de coisas veio a se
estabel ecer ou sobre para onde ele está indo. A existência de um modo
"artificial", não poderiaser levado adiante. Mas sem as distinções conven
"cionais, que orientam oator em seu mundo,que lhe dizemquem ele é e
de ação convencional e de mascaramento põ e um problema que não pode o que pode fazer e desse modo conferem a seus atosum mascaramento
ser solucionado apenas pela noção de controle, e esse problema é o da convencional euma motivação convencional, a invençãoseria impossí
necessidade da invenção. vel. O cer ne de todo e qualqu er conjunto de convenções culturais é uma
simples distinção quanto aque tipo de contextos - os não convenciona
lizados ou os da própria convenção - serão deliberad amente articu lados
A NECESSIDADE DA INVENÇÃO no curso da ação humana e que tipo de contextos serão contrainventados
como "motivação" sob máscara
a convencionaldo "dado" ou do "inato".
Os contextos de cultura são perpetuados e estendidos por atos de objetifi É claro que, para qualquer conjunto de convenções dado, seja ele o de
cação, pela sua invençãouns apartir dos outros e uns por meio dos outros. Isso uma tribo, uma comunidade, uma"cultura" ou uma classe social,há ape
significa que não podemos apelar para a força de algo chamado "tradição", nas duas possibilidades: um povo que diferencia deliberadamente, sendo
"educação" ou orientação espiritual para da r conta da continuidade cultu essa a formade sua ação, irá invariavelmentecontrainventar uma cole
ral- ou, na verda de, da muda nça cultural. As associações simbóli cas que tividade motivadora como "inata", eum povo que coletiviza delibera
as pessoas compartilham,sua "moralidade","cultura", "gramática" ou damenteirá contrainventaruma diferenciação motivadoradessamesma
"costumes", suas "tradições", são
tão dependentes de contínua reinven maneira. Como modos de pensamento, percepção eação contrastantes,
ção quanto as idiossincras ias, detalhes e cacoetes que elas percebem em há toda a diferença do mundo entre essas duas alternativas.
si mesmasou no mundoque as cerca. A invenção perpetuanão apenas as Assim, o ponto de vista ou a orientação coletivade uma cultura, o
coisasque "aprendemos", como a língua ou boas maneiras,mas ta~ modo como seus membros aprendem a experienciar a ação e omundo '~I
as regularidadesde nossa percepção, como cor e som, e mesmo o tempo e da ação, é sempre uma questão de convenção. Ele persiste ao ser cons
o espaço. Uma vez que o coletivo e convencion al só faz sentido em relação de contextos convencionais.Mas o
tantemente reinventado sob a forma
ao individual e idiossincr
ático, e vice-versa,contextos coletivos sópodem meio pelo qual esse ponto de vista é estendido e reinventado é aquele
94 Opoder da invenção 9,
.. ...1
da diferenciação e particularização em termos de contextos não conven mais invenção), para me referir ao que os antropólogos geralmente con
cionalizados. Os atos de expressão que necessariamente devem articular sideravam convenção mais força natur al ou convenção mais evoluç ão.
um tipo de contexto com o outro para que ambos sejam comunicáveis e Embora seu conteúdo, e po r vezes sua relação com o ator, possa
significativos asseguram a contínua reinvenção de um a partir do outro. mudar, essa dialética compulsória nunca será menos ou mais que uma dia
É uma invenção que constantemente recria sua orientação, e uma orien lética. Ela contém em si sua própria continuidade: não importa o aspecto
tação que continuamente propi cia sua própria reinvenção. Identificando que o ato r escolha como controle para suas açõe s, não importa se ele cole
a orientação com a consistência compartilhada das associações conven tiviza ou diferencia, ele irá contrainventar e "preparar" o outro aspecto.
cionais e a inven ção com a contradiçã o impositiva dos contrastes diferen A convenção, que integra um ato na coletividade, serve ao propósito
dantes, podemos concluir que a necessária interação e interdependência de traçar distinções coletivas entre o inato e o reino da ação humana.
entre elas é a necessidade mais urgente e poderosa na cultura humana. A invenção, que tem o efeito de continuamente diferenciar atos e eventos
A necessidadeda invençãoé dada pela convenção cultural e a necessidade da do convencional, continuamente assoc ia ("metaforiza") e integra con
convenção cultural é dada pela invenção. Inventamos para sustentar e res textos díspares. E a dialética cultural, que necessariamente inclui ambas,
taurar nossa orientação convencional; aderimos a essa orientação para
torna- se um universo de distinções integrati vas e de integrações d istinti
efetivar o poder e os ganhos que a invenção nos traz. vas, reunindo pessoas ao decompor sua ação contínua em "o inato" e "o
Invenção e convenção mantêm entre si uma relação dialética, uma artificial" e distinguindo pessoas, atos e eventos individuais ao combinar
relação ao mesmo tempo de interdependência e contradição. Essa dialé contextos inatos e artificiais de maneiras srcinais e altamente específicas.
tica é o cerne de todas as culturas humanas (e muito provavelmente as Consideremos o que acontece quando falamos. Muitas vezes me
animais). Pode ser que o conceito de "dial ética" seja familiar aos leitores parece que os membros de uma civiliz ação altamente let rada como a
em sua formulação hegeliana e marxista, como um processo ou desdo nossa imaginam espaços entre as palavras que usam quan do falam, quase
bramento históri co envolvendo uma sucessão de tese, antítese e síntese. como aqueles espaços que aparecem entre as palavras em uma página
Minha formulação, muito meno s explicitamente tipológica, é mais simples impressa (parecem mesmo im aginar as próprias palavras, bem como sua
e, creio eu, mais próxima à ideia grega srcinal- a de uma tensão ou alter pontuação). Na verdade, o que produzimos ao falar é uma espécie de
nância, ao modo de um diálogo, entre duas concepções ou pontos de vista música indistinta e murmurada, e a pessoa tem de ap render como decom
simultaneamente contradit órios e solidários entre si. Como um modo de po r essa orquestração em formas e unidades convencionais se quiser
pensar, um a dialética opera explorando contradições (ou, como Lévi compr eendê- la - mais ou menos como um músico treinado aprende a
Strauss a s chamaria, "oposições") contra um a base comum de similari decompor um rumor de tonalidades sensoriais em notas, acordes, har
dade - em vez de recorr er à consistência contra uma base comum de dife monia, linha melódica e forma estrutural. Não importa realmente quais
renças, à maneira da lógica racionalis ta ou "linear". Segue-se que culturas são as convenções em si, se a pessoa é ou não letrada ou que aspecto
que convencionalmente diferenciam abordam as coisas com uma "lógica" da produção total é convencionalmente visível (muitas vezes suspeito
dialética, enquanto aquelas que convencionalmente coletivizam (como que meus amigos daribi decompõem a fala em coisas e intenções,mais
a nossa própria tradição racionalista) invocam uma causalidade 14:~r. do que em palavras e sentenças); no que se refere à comunicação, o que
Uma vez que quer o enfatizar a presença e a interdependência necessárias importa é se o falante (que evidentemente está escutando sua própria
de contextos tanto convencionais como não convencion alizados, trata música) e o ouvinte fazem as mesmas decomposições. Se a convenção
rei de uma dialética significativa e coletivamente compulsória (convenção desempenha o papel do crítico nessa performance hum ana infinitament e
96 Opoder da invenção
97
concertada, então a invenção é o compositor. Para nós, o compositor às suas intenções que não tem nenhuma srcem óbvia em suas próprias
vem a ser "inato", como um Beethoven subterrâneo e incompreensível, intenções. Assim, a motivação sempre emerge da relativização das dis
enquanto para os Daribi e outros povos tribais é o crítico que é inato. tinções convencionais, da diferença entre os contextos que um ator reco
A invenção muda as coisas, e a convenção decompõe essas mudan nhece e aqueles que ele produz, e a tendência da motivação é sempre se
ças num mund o reconhecível. Mas nem as distinções da convenção nem opor à relatiyz'{ação das distinções convencionais e contrariá-la. Em última
as operações da invenção podem ser identificadas com algum "meca- instância, a motivação é simplesmente a inércia ou a necessidade que se
nismo" fixo no interior da mente humana ou com algum tipo de "est ru sente de ter de resolv er as coisas de um certo modo.
tura" superorgânica imposta à situação humana. Tudo o que temos é É importante notar que a motivação, embora ligada à ação, não
um conjunto de ordenamentos e art iculações - relativamente m ais ou necessariamente se srcina" dentro " do indivíduo. Ela é parte do mundo
menos conv enciona lizados para cad a ator - que a ação representa para da convenção e da ilusão do qual participamos e no qual atuamos, mas
nós em termos absolutos com o inato e artifici al, convencional e não con não - à parte as ilusões necessárias do próprio ator - uma "coisa" ou
venciona lizado. Participamos desse mundo po r meio de suas ilusões e força que emana do ator. Objetos, imagens, memórias e outras pes
como suas ilusões. As invenções nas quais ele se realiza só se tornam soas nos motivam tanto q uanto nos moti vamos a nós mesmos, e de fato
possíveis mediante o fenômeno do controle e o mascaramento que o nossas personalidades constantemente penetram o teatro de nossas ações
acompanha, e as distinções convencionais nas quais o contro le se baseia e percepções. É somente a convenção cultural, se bem que nesse caso
só podem ser estendidas ao ser recriadas no curso da invenção. uma convenção m otivada, que resolve as situações de nossa açã o e nossa
U ma vez que a convenção só pode ser estendida po r meio de um invenção nas fronteiras culturais dos indivíduos, "movimentos", espíri
processo de mudança, é inevitável que suas distinções convencionais tos-guia, ou nas formas culturalmente apropriadas de "impulsos", "ins
sofram mudanças no curso desse processo. Além disso, como a invenção tintos", "a alma" e assim por diante. As motivações podem ser "dispostas"
é sempre uma questão de combinar contextos convencionais com o par po r aquilo que uma pessoa fa z, po r aquilo que outros fazem, po r uma
ticular e não convencionalizado, coletivizando deliberadamente o parti situação em que a pessoa se encontre, e a forma e a fonte da motivação
cular e o individual ou diferenciando o coletivo, fic a claro que qu alquer são sempre uma função das distinções convencionais po r meio das quais
dos tipos de ação irá resultar numa progressiva "relativização" de ambos, essas coisas são interpretadas.
particularizando o coletivo e ao mesmo tempo orde nando e coletivizando A motivação, portanto, é o modo como o ator percebe a relativ i
o particular. Aplicamos as ordens convencionais e as regularidades da zação da convenção, e consequentemente dos contextos convencionais
nossa ci ência ao mundo dos fenômenos ( "natureza") para poder racio po r meio dos quais as distinções convencionais são realizadas. Aprende
nalizá-lo e compreendê-lo, e no processo a nossa ciência se torna mais mos uma língua, interação social, papéis, habilidades e criatividade COmo
especializada e irracional. Simplificando a natureza, nós assumimos sua parte do relacionamento com outros, co meçando com a família e depois,
complexidade, e essa complexidade aparece como uma resistência interna fora dela, com colegui nhas, amigos, colegas, inimigos, parceiros e mesmo
à nossa intenção . A invenção in evitavelmente conf unde as distinções da conhecidos casuais. Aprendemos a atuar, a nos orientar, e assim a apren
conve nção ao relativizá-Ia s. ...« de r nossas motivações, em contextos múltiplos, que envolvem um des
Este é, está claro, o fenômeno da motivação tal como encontrado norteante rol de elementos gerais e particulares, pessoas, lugar es, objetos,
em nossa discussão do controle. A motivação é o efeito sobre um at or da situações e institu ições. Com o esse aprendizado sempre ocorre como um
objetificação reflexiva (e da relativização) de seu controle, uma resistência aspecto do relacionamento com outr os, segue-se que o indivíduo nunca
98 Opoder da invenção 99
.
aprende a atuar ou a se motivar simplesmente como uma resposta "neu quanto uma explosão de raiva, pois tem as mesmas raíze s; sob todos
tra" Ou descomprometida. Ele aprende a fazê-lo a partir de uma posição os aspectos, trata-se de uma reação descontrolada. E ela atinge crianças
particular, a objetificar através de um foco particular, e assim aprende tanto quan to adultos, pois o aprendizado dessa reação é concomitante ao
a identif icar diferentes modos de sua ação co m intenção consciente e aprendizado da convenção no curso da invenção, e vice-versa. No caso
motivação inconsciente . Ele aprende u ma orientação convencional como do trocadilho, a plateia reage à relativização da língua, à sua ambigui
resultado do inventar, mas também aprende a inventar usando controles dade (pois a língua é tão motivada e motivadora quanto qualquer outra
em um relacionamento convencional, que o torna vulnerável às ilusões parte da cultur a); no caso de uma atuação teatral ou cinematográfic a, a
da motivação. A invenção é sempre um a espécie de "aprendizado", e audiência reage à relativização de uma situação de "representação" na
o aprendizado é invariavelmente um ato de invenção, ou reinvenção - qual investiu credulidade com a expectativa de certas recompensas em
tanto que é de pouca ajuda fa lar do aprendizado como um "processo" , ou forma de "entretenimento".
dividi-lo em "estágios". Uma criança participa da dialética da invenção A reação, é claro, não se limita de modo algum a piadas e a situações
e da convenção tanto quanto um adulto (n o máximo, sua memória é um de entretenimen to: está na raiz de tod os os atos que associamos com um
pouco mais curta), e afirmar que ela vive em "u m mundo diferente" não comportamento "negativo" ou "destrutivo", incluindo boa parte da cri
diz muita coisa. Todos vivemos em mundos diferentes. minalidade e do vandalismo que assaltam nossa altamente relativizada
O que acontece então q uando a relativizaçã o, e portanto a resistên Cultura urbana, bem como das depredações que as pessoas tantas vezes
cia motivadora, do controle que um determinado ator está usando sobre infligem aos" estrangeiros" que aparentemente zombam do seu jeito de
puja a efetividade do controle em t ermos da intenção srcinal desse ator? fazer as coisas. Como uma mera reação , é frequentemente incompre
Ou, para colocá-lo de out ra forma, como reagimos a controles altamente ensível para aqueles que a manifestam, em bora seja passíve l de infinita
relativizados, quer usados por nós mesmos ou por outros? A resposta é interpretação e racionalização após o fot o. Como forma extrema de res
que a ação (e a intenção) invalida a si própria; ela alinha o foco de con taurar a convenção, como ponto de virada crucial e recorrente da ação,
trole daquele que age ou reage mais com a "resistência" ao controle do reque r atenção especial.
que com o controle srcinal, mais com a coisa que está sendo contrain Quaisq uer que sejam as circunstâncias de sua ocorrência, a percep
ventada do que com sua pretendida transformação. Engendra-se com isso ção da relatividade de um contexto de controle corresponde a um "des
uma reação abrupta, motivada, contra a intenção srcinal. Essa reação é mascaramento" da invenção iminente e a um sentimento de que "algo está
parte da experiência, uma espécie de antipatia ou frustração com a qual sendo feito" àqueles que dela participam. É esse sentimento que dispara
o indivíduo precisa aprender a lidar, as sim como aprende a lidar com a reação negativa, especialmente nos espectadores ou naqueles que parti
os outros aspectos da motivação. Pois essa súbita torrente de motivação cipam da cena com o ator. Eles se sentem vulneráveis e se tornam defen
inversa, tanto quanto qualquer outr a manifestação da motivação, faz parte sivos, deseja m" combater" a influência ofensiva, e o que defendem é um
da necessidade de resolve r a ação de uma manei ra convencional: ela nasce Certo modo convencional de percepção e ação. Como aprendemos que
da percepção de que se está indo contra a nat ureza das coisas . esse modo convencional pode ser reduzido a uma distinção mais ampla,
O melhor exemplo que me vem à mente é a conheci da reaçíW de que identifica ou os contextos convencionais, ou uma soma dos contextos
uma plateia a um trocadilho infeliz ou a uma atuação que parece "falsa" não convencion alizados, como "inatos", consignando o outro ao reino da
e que trai o jogo extremamente ca rregado de realidade e construção que manipulação humana, fica claro que dois tipos de "desmascaramento" são
os espectadores esperam. A reação muitas vezes é tão crua e perturbad ora possíveis no inte rior do nosso próprio universo convencional. Quando os
10 0 O poder da invenção
IO I
.
controles sobre o modo ordinário da atividade séria, o que as pessoas ''forem'', aprendizado das convenções e da proteção das distinções convenci onais.
são relativirados, a invenção resultante parece "falsa ", 'não sén"a ", "pura- A reação em si mesma é uma espécie de deixa, que pode ser aproveitada
mente artificial"; quando os controles sobre o modo de ação inverso, "cria- e transformada em um ímpeto para um controle mais efetivo da situ ação.
tividade ", "arte ", "pesquisa", "ritual ", "represe ntação" ou "recreação" A personalidade humana é um arranjo para a preservação de distinções
são relativirados, a invenção resultante parece "forçada", "comercialirada", convencionais mediante esse tipo de controle, equilibrando a motivação
"sén"a demais " ou 'sacrílega" "Em cada um dos casos a transformação fun contra a compulsão por meio da administração das transições entre elas,
ciona contra a que foi srcinalmente pretendida. e a sociedade é um arranjo entre atores para esse mesmo propósito . Isso
Podemos entender isso melhor, e talvez obter alguma compreen significa que aquilo que chamamos de "autocontr ole" em uma persona
são sobre a extrema relativização de nossa sociedade presente, extraindo lidade (o que Freud chamaria de "conflitos de sublimação"), e d e "f un
alguns exemplos da vida norte-americana moderna . Os americanos par cionamento fluido" ou algo assim, no caso da s ociedade é a sacada de
ticipam de uma orientação convencional que enfatiza a articulação de aprender a responder a controles altamente relativizados invertendo seu
contextos convencionais comO o reino da ação humana e reconhece o modo de ação. Se os controles convencionais de nossa Cultura e nossa
"inat
não o" (inclusive o temporal
convencionalizados. e situacional) como composto de contextos
Mas os americanos reclamam cada vez mais da
tecnologia são relativizado
ao conscientemente enfocars,mos
nós os "recons
o modo de truímos"
objetificação"recarregamos"
ou
diferenciante,
qualidade "forjada" e "artificial" das soluções administrativas e tecno aquele que "normalmente" contrainventamos, e em seu lugar contrain
lógicas, do caráter superficial e não recompensador de grande parte de ventamos a Cultura. Quando descubro que "agir como um marido dev e
seu trabalho, bem como da natureza manipuladora da propaganda, da agir" leva a frustrações e conflitos, inverto meu modo de ação e conscien
comerciali zação dos esportes e do fato de que "as pessoas trabalham temente construo minha identidade como homem e indivíduo, diferen-
tão duro pa ra se divertir que não mais se divertem"" Isso não signifi ca ciando minhas ações e assim contrainventando a "família" (minha inte
que essas reclamações não sejam justificadas, embora a artificialidade, a ração com minha esposa) como uma motivação compulsiv a.
manipulação e a comercialização fossem indubitavelmente tão difundidas Marido e mulher, antropólogo e informante, artista ou profissio nal
nos anos 1870 quanto nos anoS 1970: o que mudou foi nossa percepção do entrete nimento e plateia, "classe média" e classe alta ou baixa, médico
dessas coisas como abusos e nossa reação a elas como abusos. Quere- e paciente, e muitas vezes os componentes conflitantes da personalidade
mos que o governo intervenha e descomercialize o futebol americano de um indivíduo, participam constantemente desse jogo de reconstruir
ou regulamente a propaganda, ou queremos que fiscalizador es inter ve e restaura r a ambiência da ação um do outro. É uma batalha contra a
nham e façam com que o governo recobre a seriedade e a responsabili relativização que tem de ser travada, pois o convencional e seu fundo
dade. Com toda a insistência da motivação inversa, queremos restaurar não convencionalizado não persistem po r si mesmos, mas devem ser
as coisas - nossas próprias utopias são paraísos naturais com ar f resco continuamente inventados um a part ir do outro, e essa invenção inevita
artificial, arranha-céus cobertos de floresta ou terrários socioculturais. velmente leva à relativização dos controles" Nisso consiste a necessidade
E, naturalmente, há sempre aqueles que se contêm e apreciam a reação da invenção, e não é senão isso que está em jogo na interação, quer ela
pela reação, estraçalhando coisas e atacando pessoas. ~" ocorra entre indivíduos, entre outros constructos como classes e insti
Mas mesmo essa resposta serve a uma ilusão naturalista: a reação à tuições ou no inte rior desses.
relativização não é mais "primitiva" ou "básica" do que a ação concer Podemos descrever tudo isso simplesmente em termos de contex
tada para se contra por a essa relatividade - ambas são consequências do tos. Quando usamos contextos no ato da invenção, simultaneamente
uma propriedade da dialética po r meio da qual o significado é e precisa respeito" e de inventar a Cultura duplamente importantes e duplamente
ser continua mente reinventaclo. interessantes, muito embora estejam fadados a fracassar em certos aspec
A tendência da cultura é manter-se a si própria, reinventando-se. tos. Exploremos essa questão .
Mas tenho observado que os controles convencionais da moderna Cul
tura norte-americana são altamen te relativiz ados - como dispos itivos de
ordenação e unificação, são eles próprios desordenados e particular iza A MAGIA DA PROPAGANDA
dos: nossa ciência e nossa tecnologia são altamente especializadas, nOssas
funções administrativas são irremediavelmente burocratizadas, nos Nos Estados Unidos modernos, o problema de atribuir signi ficado a nossa
sos símbolos nacionais são indiscutivelmente ambivalentes. A Cultura Cultura, de inventar suas ideias e instituições , por assim dizer, e de incor
é ambígua (e a antropologia em grande medida existe po r explorar essa porá-las na ambiência de nossa vida cotidiana é enfrentado po r aquilo
ambiguidade). De resto, isso nã o se deve ao roubo de nossos fluidos que chamarei de "cu ltlua interpretativa ". Como o fenômeno tem muitas
vitais pelos comunistas, ao relaxamento da disciplina, aos espoliadores manifestaçõ es e está continuament e crescendo e mudando, esse termo é
que espoliam O Meio Ambiente, aos Jovens Mal-Agradecidos po r Sua sugerido apenas por conveniência. Ele inclui o que o utros têm caracteri
Educação ou ao "tumulto mecânic o po r um pedaço de pão",4 ainda que zado como "cultura popular", " cultura de massa", "a mídia" e "contracul
alguns desses fatores sejam sintomas importantes. Isso decorre direta tura ". Suas manifestações específicas são ubíquas: jornalismo, propaganda ,
mente do fato de que nos agarramos à nossa Cultura - às suas orgulho o "mundo do entreteni mento", certas formas de arte e educação, reli
sas tradições, às suas técnicas poderosas, à sua história e à sua literatura, gião popular e t oda aquela modalidade de interpretação conhecida diver
às suas impressiona ntes fil eiras de Grandes Nomes - acima d e todas as samente como "cultura de protesto", "contracultura", "cultura jovem",
tentativas de reinventá-Ia. Não remodelamos completamente nossa Cul "cultura alternativa ", "a subcultura" e assim po r diante. Todos esses "esti
tura e sua história de tempos em tempos e caímos num limbo de total re los" inventivos baseiam sua relevância e efetividade em uma imitação da
criação porque amamos tanto nossa Cultura. Tentamos refazê-la outra Cultura ortodoxa,5 subsumindo as formas desta como sua "linguagem" e
vez e mais outra, e vejam o que conseguimos! passando assim a depende r da autoridad e dela para causar impacto.
Embora nada vá me fazer deixar de amar Mozart, Beethoven e as O sucesso dessa "imitação da Cultura" (tal como computado pelos
Sinfonias Londrinas de Haydn, essa insistência na Cultura, e a relativiza atuais orçamentos, por exemplo, das indústrias da propagand a e do entre
ção que ela acarreta, força os americanos a viver numa contínua frustra tenimento) pode ser atribuído à sua efetividade em servir às tensões de
ção de soluções que se desfazem em sua s próprias mãos e numa contí nua uma Cu ltura altamente relativ izada. O trabalho de simplificar, interpretar
tensão de "querer fazer algo a respeito" das coisas. Essa tensão e essa ou explicar, seja el e empreen dido por um artista ou po r um cientista, por
frustração impregnam nossas vidas moral, social, política, econômica e razões comerciais ou polêmicas, converte-se em uma reinvenção do tema.
intelectuaL Em muitos aspectos, elas são o que há de mais importante O incremento, o "produto" da propaganda, do jornalismo, do entreteni-
sobre os Estados Unidos. Isso torna nossos esforços de "fazer algo a
5· Assim, definimos "música popular" como aquela que, diferentem ente da "música clássica",
.... i<!
admite mudanças interpretativas conforme o "estilo" do intérprete. Quando uma peça de
4. No srcinal: "The mechanic rioting for a cheap loaf'. Verso de um poema de W. H. Au Beethoven, Rossini ou Rimsky-Korsakov é "interpretada" mediante um reordenamento das
den, "Plains", de 1953 (em W. H. Auden, Collected Poems. Nova York: Modem Library, 2007, palavras ou da orquestração, dizemos que foi "popularizada", "animada", que é agora uma
pp. ;6)-6;). [N.T.] peça "popular".
mento ou mesmo do protesto, é o significado, bem como o poder sobre a tecnologia por meio do efeito pessoal; ela aspira ao tipo de convencionaliza
"realidade" q ue a criação de significado confere. Assim, boa parte da vida ção espúria que chamamos de "popularidade" a fim de vender seus produtos.
comercial, imaginativa, política e mesmo "estética" do país se alimenta De fato, ela consiste num atalho, numa "cultur a instantânea" baseada na
da transformação interpretativa da ideologia "quadrada" ou ortodoxa, e percepção de que um dispositivo, por mais engenhoso que possa ser, por
esta última é sustentada po r essa mesma dialé tica. Assim como a Cultu ra, mais fundamental que seja o avanço tecnológico que ele represen ta, é inútil
na visão ortodoxa, almeja o "domínio" ou a "interpretação" da natureza, e invendável se não tiver uma aplicação significativa na vida das pessoas.
esses esforços s e dedicam ao dom ínio ou interpretação da Cultura, a um A propaganda torna a tecnologia signific ativa na forma de produt os
refazer o impulso e a resposta humanos que po r sua vez afeta os modos especiais com at ributos muito especiais; ela interpreta esses produt os ao
tradicionais de se lidar com o impulso e a resposta. criar para a sua audiência uma vida que os inclui. Ela o faz objetifica ndo
A "cultura interpretativa" fornece um contexto de sentido para o os produtos e suas qualidades po r meio de impulsos, situaçõe s, gostos e
viver da vida cotidiana. Ela gera e alimenta um a audiência particular e antipatias pessoais. As estratégias da propaganda "tomam emprestados"
desenvolve um a aproximação metafórica da Cultura em geral como seu os humores e encontros, os aborrecimentos e pequenos gestos "que são
fundamento lógico. O jornalismo, po r exemplo, dirige-se a seu "público", tão importante s", os episódios costumeiros e frustrantes da vida cotidiana.
como quer que seja concebido, e apresenta a ele uma imagem da história Elas objetificam atributos ou qualidades de um produto em termos de sua
em cursO denominada "as notícias", uma espécie de retrato do mundo imagística situacional, emprestando assim suas associações ao produto
serializado e factual. As notícias obtêm sua autoridade da significância e insinuando-o em uma projeção da vida cotidiana de qualquer um.
que atribuímos à história, mas não são história no sentido ortodoxo, e sim Sob esse aspecto, a propaganda opera comO uma espécie de tecno
um relato de eventos com o se eles foss em vistos da perspectiva de um a logia inversa ou "de trás para a frente": usa os preten didos efeitos de um
história idealizada. O ar de objetividade resultante serve para o jorna- produto nas vidas das pessoas, e as reações humanas a esses efeitos, a fim
lismo e para a indústria de notícias como um esprit de corps. Já o mundo de construir um a identidade significativa para o produto. É possível pro-
do entretenimento, por outro lado, é ainda mais interpretativo, pois a var conclusivamente que qualquer tipo de pílula ou engenhoca "funciona
imagem da vida que ele projeta é um a imagem de fantasia; sua carica melhor" que outras, fazer com que ela "funcione melhor", bastando ape
nua, imitação e dramatizaç ão logram êxito como o exato oposto do "fato" nas reajustar nossos padrões quanto a como ela deveria funcionar. E é
sério. Ele interpreta mediante a licença do ator, cantor ou comediante assim que a própria propaganda funciona; ela redefine sutilmente que
para "ser" o que os outros não podem ser, de tal modo que em sua vida tipo de resultados as pessoas "desejam" ao falar de seus produtos em
cotidiana as suas "personalidades" são cercadas pela aura desse "ser" termos desses desejos. Se ela consegue "vender" esses desejos e a qua
metafórico (às veze s os astros devaneiam que são pessoas comuns). A tr a lidade de vida que eles implicam, "vende" também o produto que esses
dição do "show óusiness" incorpora algo da mesma aura (de modo um desejos e essa vida objetificam.
tanto autoconsciente): a interpretação profissional po r meio da fantasia. O sucesso depende da habilidade para objetificar convincentemente,
A religião popular, com suas "congregações", seus "pecadores" e sua para falar sobre o produto em termos de outras coisas de tal maneira
"Bíblia", e a contracultura, com suas ideologias e comunidades de d ~ ~ 9 - que essas outras coisas pareçam ser qualidades do produto. Desse modo,
tos, oferecem outros exemplos da invenção interpretativa da Cultura. No a propaganda se parece com a "magia" dos povos tribais, que também
entanto, o aspecto que escolhi discutir é o da propaganda , o da fabricação de objetifica a atividade produtiva po r meio de outras imagisticas. Assim
uma "cultura" comercial. A propaganda é de especial interesse porque "cr ia" como o significado dos produtos precisa ser continuamente inventad o
para que as pessoas os comprem, para que os produtos não sejam toma- pela audiência, então o produto se encaixaráem suas vidas como nas
dos simplesmente como detalhes ordinários da vida, também os povos vidas projetadas pelo anúncio. A propaganda vende seus produtos "ven-
tribais , para os quais a produç ão faz parte da vida familiar e de paren- dendo" sua objetifi cação dos produtos, sua imagem de uma vida que
tesco, precisam continuamente criar um significado e direçãoseparados os inclui. Tudo b que temos de fazer é acreditar no anúncio (comono
para sua atividade produtiva,para que ela não se torne meramenteuma encantamento); então nossos atos irão assumir o focodo anunciante e o
maneira de relacionar-se comas pessoas. Se um agricultordaribi contro produto irá "funcionar como se fosse mágica".
lasse Seu trabalho tão somente com a necessidade de se relacionar com Suponhamos, por exemplo, que eu queira vender pneus de automó-
sua esposa e com as tarefas dela, nada o impediria de realizar um trabalh o vel. Do ponto de vista de seu uso convencional, comoparte necessária de
desleixado, improdutivo. Sua efetividade como produtor de alimentos um carro, um pneu é igual a qualquer outro,nadae poderiaser mais pro
depende da criação de significados outros, externos, para seus esforços saico do que mais um velho pneu. Se quero vend er minha marca de pneus
produtivos. Se ele puder controlar sua produção enfocando esses signi- de
específica, preciso inovar sobre essa significância cotidiana dos pneus
ficados, acreditando em sua efetividade, então seu trabalho de cultivar automóvel inventandoum novo significadopara os pneus e associando-o
batatas-docesserá proveitoso (bem como, por conseguinte,suas relações à minha marca. Assim, o foco de meu bordão não recairá sobre os pneus
com seus parentes). de automóvel, do m esmo modo que o foco da magia agricola daribi não
Desse modo, ele frequentemente irá recorrer a "encantamentos" da agriculturaou de suas téc
recai sobre a significância social ordinária
mágicos co m os quais se prete nde - e se acr edita - tornar s eu tr aba nicas; preciso cn"ar o significado do meu pneu apartir de alguma outra
lho mais efetivo. Enquanto ele limpa e empilha o mato em uma roça área da experiência. Se quero que meu pneu "venda", esse significado
recém-derrubada, poderá recitar
um encantamento que identifica suas tem de ser provocativo, e a experiênciana qual se baseia deve ser vívida
mãos com as garras de um francolim, ave que caracteristicamente junta e fascinantepara minha audiência"
fragmentos silvestr es em grandes pilhas a fim de produzir calor para Decido objetificar meu pneu por meio do mundo das corridas auto-
a incubação de seus ovos. O encantamento "funciona" patentemente mobilísticas, para criar e contro lar o significado de meu produ to situando-
da mesma maneira que o francolim funciona, fazendo com que quem o em um contexto que tem um significado muito especial para a minha
o pronuncia se assemelhe ao francolim em sua capacidade de amontoar audiência. Eu poderia ter recorridoà segurança no trânsito eà polícia
mato. Sua efetividade, contudo, depende da crença do usuário nO encan- rodoviária ouao consenso graxento das velhas e boas oficinas mecânicas,
tamento ena significância desua transformação, pois isso dirigirá o foco mas opto po r uma linguagem que irá metaforizar a exci tação do auto-
de sua atividade pa ra um ideal de eficiência à maneira de um francolim mobilismo tanto quan to a segurança e a perícia. O automobilismo é um
na tarefa de limpar o mato;irá criar sua produtividade ao criar seu sig esporte que tem um poder e uma fascinação próprios; é praticado por
nificado, tendoum francolim como sua "marca registrada". homens durões comar de peritos, homensque arriscam o pescoço em seu
U ma das promessas mais frequentes da pr opaga nda é a de um pro- compromisso com a tecnologia, e ademais o fazem pela excitaçã o tanto
duto que "funciona como se fosse mágica". Ele funciona,
em outras quanto pelo dinheiro. Eles devem saber o que fazem. O que essa fronteira
palavr as, como a propaganda, a magia por meio da qual ele é inteq>g- de eixos de transmissão e RPMS tem a dizer sobrepneus? Em meio ao zum-
tado e apresentado ao público. Se essa identidade entre o pr oduto e suas bido dos motores e ao chiado dos freios, ponho dois ou três profissionais
qualidades anunciadas for de fato mantida, se a imagem redefinida dos com capacetes disparando um breve comentário sobre os méritos dos
desejos humanos, o estilo de vida projetado pela propaganda, for aceita meus pneus,que obviamente setornaram parte do mundo das corridas.
tantemente objetifica seu s produto s po r meio dos significados e experiên mesmo intencio nalmente perecíveis, são virtualmente tão comunicáveis
cias que ela cri a. Sua interpr etação da vida freq uentemente se assemelha e convencionalizados quanto as palavras: os outros sabem exatamente
ou se sobrepõe às interpretações propostas po r outras mídias - tem os o que você comprou, provavelmente sabem po r que você comprou e
filmes sobre automobilismo, c omerciais na forma de notícias e de shows podem obter um igualzinho.
de rock. Isso é assim porque todas essas mídias compartilham a mes Empregada dessa maneira, a tecnologia tem pouco a ver com enge
míssima intenção de investir os elementos triviais da vida em contextos nharia ou com leis científicas aplicadas; juntamente com a Cultura que ela
provocativos e inusitados, que conf erem a esses elementos novas e pode- representa, dirige-se a uma "natureza" manipulada de fabrica ção humana.
rosas associaçõ es e recarregam seus significados convencionais. O lucro Não importa que outra coisa ela faça, serve como um a espécie de com
realizado com esse tipo de inves timen to - sob a forma da popularid ade putador analógico para a programação da vida das pessoas. Eu poderia
de um produto ("vendas"), do número de livros, pneus ou ingressos argumentar, paradoxalmente, que os norte-americanos têm tão pouco
vendidos - é um resultado direto do incremento de significado criado. interesse na tecnologia pela tecnologia quanto os mexicanos se interessam
Compensa ser diferente, mas o que compensa nas diferenças é que elas po r touros ou os balineses de Geertz po r galos. 6 Estetas podem comparar
são repletas de significado. um motor automobilístico de alta precisão a um concerto de Mozart e
Os estilos de vida criados e promovido s pela propaganda envolvem entusiastas da alta-fidelidade sonora podem aborrece r seus amigos com
a tecnologia em uma contínua dialética com uma imagem coletiva da vida reproduções indescritivelmente autênticas de locomotivas ou tempesta
popular, com a Cultura do homem comum. Eles precipitam essa Cultura des, mas ambos estão mais apaixonados por um ideal de precisão e efeti
novamente. E a dialética "inflaciona" a vida no processo de publicizá vidade do que pela maquinaria em si. Entretanto, o amor e o sentimento
la: torna as experiências e emoções pessoais comercialmente disponíveis dificilmente poderiam ser experienciados sem o maquinário, que dá a eles
para todos (a um preço) po r meio dos produtos que são vendido,,",was
também tem um efeito sobre esses produtos. Em lugar dos engenhos
6. Ver Clifford Geertz, "Dee p Play: Notes on The Balinese Cockfight", Daedalus _ journal
relativamente simples e "práticos" do século XIX, os produtos se tor-
of the American Academy of Ares and Science, inverno de 1972, número especial: Myth,Sym-
nam adaptações a um "mundo do consumo" de compra e venda, sendo boi and Culture.
uma presença objetiva, um a dimensão de atrib utos altamente específico s e de um saberarcano; o da vida cotidiana norte-americana,
para a maior
que servem ao mesmo tempo comosua realização e como um meio para parte das pessoas, está no uso da tecnologia pa ra resolver seus problemas.
futuras realizações. Indiscutivelmente, e às vezes de modo bastante inconsciente, atri
Máquinas, engenhocas, pílulas e outros produtos "fazem o traba- buímos toda sorte de qualidades "naturais" a substâncias químicas e
é assim
lho" de boa parte da sociedad e norte-americana , ou pelo menos máquinas, e entãoas incorporamos em nossas tarefas de modo afazer
que costumamospensar neles - como conveniênciasou como" serviçais" têm "inteligência":
uso dessas qualidades. Diz-se que os computadores
inteligentes. Eles são "substi tutos" para as capacidades físic as e mentais nós os colocamos para trabalhar resolvendo cálculos e arranjando encon
do homem, para seus dons"naturais" , mais ou menos como as garras do tros amorosos; tanquesde guerra earmas automáticastêm capacidades
francolim são um substituto para as mãos do agricultor daribi. Na medida em grande parte com eles; drogas
destrutivas: travamos nossas guerras
em que a propaganda continuamente redefine e recria o significado da têm poder sobre a terra prometida da constituição física humana: nós as
vida cotidianade modo a incluir seus produtos nessa vida, ela continua utilizamos para aumentar as habilidadesde uma "mente" supostamente
mente investe os produtos de novas possibilidades para ajudar as pessoas fisica. Boa parte de nosso pensament o e nossa ação equivale a uma habi
a levar vidas plenas de significado. O produto torna-se o meio pelo qual
tual objetific ação da capacidade human a - ou da própria "natureza" _ em
a visão mágica da vida proposta pelo anunciante pode se tornar a própria termos tecnológicos. Chegamos mesmo a conceber os ser es vivos meca
vida do consumidor: tudo o que o consumidor tem de fazer é acreditar nicamente como "sistemas" orgânicos, a criatividade como"soluçãode
na magia e comprar o produto. Po r consequência, todas as qualidades problemas" e aprópria vida como um "processo".
e propriedades que o produto assumiu no contexto da apresentação do Contudo,uma Cultura "naturalizada" e particularizada e uma natu
para o contexto da vida pessoal do consu
anunciante serão transferidas reza organizada e sistematizada fazem parte de um mundo altamente relat i
midor. A escova de dente, o pneu ou a pílula que é objetificada em ter vizado,cuja distinçãocrucial entre "o que fazemos" e "o que somos" vem
mos de um estilo de vida humana se torna por sua vez um objetificador sendo substancialmente erodida e desmantelada pela tr oca de característi
da vida das pessoas. Investido com o poder e excitação do exótico ou da cas. As formas convencionaisde nossa Cultura, inclusive a tecnologia, nos
"boa vida" , o produto carrega esse poder e essa excitação
para o cotidiano, diferenciam e separam quase tanto quant o unificam um controle comum
renovando e recriando seus significados. da "natureza"; a "natureza" particular e diferenciante que nos cerca (o Meio
O que a propaganda nos pede (e eventualmente nos compele) a fazer Ambiente) e infunde (o "sistema" comportamental humano) unifica tan to
é viver em um mundo de "magia" tecnológica, onde maravilhas fabrica quanto traça distinções. Em consequência, a objetificação de cada um por
das pelo homem cur am males e fazem da rotina de todos os dias um mila meio do outro é altamente tautológica: sistematizamos sistemas e particula-
gre contínuo - um pouco como o daribi,que vive num mundo mágico rizamos particularidades. A frustração engendrada por tal mundo, que não
onde seres humanos podem adquirir a efetividade de um francolim ou pode nem realizar nem criar seus própri os significado s de forma efetiva,
fazer chover. A propaganda nos convida a tornar nossa a magia que há rapidamente se resolvenuma apatia morivacional quanto à Cultura e à sua
nela. Assim como o agricultor daribi precis a acreditar na efetividade de percepção tradicional do "eu" e numa profunda reação de antipatia diante de
seus encantamentospara que eles refocalizem com sucessosua ativ.~de soluçõestradicionais, numa necessidade de "fazer algo a respeito" das coisas.
e tragam recompensasreais, o consumidor precisa confiarnuma mística Essa é a necessidade que requer e propicia a criação comercial de
para que sua própria "magia" alcance seus
da eficácia química e mecânica necessidades em que consiste a propaganda. Para que seja bem-sucedida,
fins. O foco de poder da vida cotidiana daribi está na força das palavras a propaganda requer tanto um a apatia em relação à Cultura tradicional
nome do qual vivemos, um progresso que precisa constanteme nte inflar, cisam transmiti r em seus atos e maneirismos a impressão de que não estão
exagerar e criar "o velho" como parte da apresentação "do novo". Essa manipulando conscientemente, mas de que estão "jogando". O cientista
é a forma, e o preço, de nOS agarrarmos à Cultura. "explora" ou "experimenta", o profissional do entretenimento "atua", o
A propag anda é apenas uma das maneiras pelas quais os america apresentador de noticiário zomba de si mesmo de um modo seco e joga
noS precisam revitalizar sua Cultura, e seu compromisso com a Cultura, com o "interesse humano", e a propaganda sai po r aí fazendo palhaça
para poder mantê-la de algum modo. Há também "as notícias", o jorna das com "comerciais" afetados e tolos. É um "jogo" que é "real", no
lismo, o entretenimento, a exploração científica e artística, as mensagens sentido de que todo jogo precisa ser "real" para da r certo. 8
de Deus e o mundo "marginal" daqueles que querem viver uma inver Pois a alternativa a "jogar"\! com a recriação da Cult ura é a fabrica
são da Cultura, bem comO suas muitas zonas cinzentas. Todos estes têm ção séria da Cultura, uma fabricação que assume o aspecto de exploração.
sua "magia", todos precip itam a Cultura - pelo menos c omo o pano de Quando o "jogo" se revela, ele se torna coisa séria, e quando o "jogo" dos
fundo de suas esper anças - e todos estão su jeitos às mesmas condições de nossos inovadores é relativizado, ele se converte em cn'ação (em vez de
operação. Até mesmo o govern o tem de entrar em ação. A propaganda é conjectura) de fatos, em fabricação (em vez de solução) de necessidades,
apenas o aspecto "socioeconômico" de um esforço vasto e gradual para em diferenciação (em ve z de entretenimento) de pessoas. O "jogo" sério
7
preservar nossa cultura e ao mesmo tempo consumi-la. é o nosso antídoto para a nossa Cultura relativizada, e se esse jogo é
Todos esses esforços caminham numa corda bamba. Alguns a cha relativizado ficamos realmente em apuros.
mam de "credibilidade" outrOS de "sinceridade" ou "show business", e
outros, piedosamente, nos poupam de seus jargões. O ce rne do problema, 8. Muitas de nossas teorias sobre a representação veem o "fenômeno " ou como seriedade disfar
aquilo que torna o número da corda bamba tão difícil, é que o inovador çada ou como uma frouxidão irresponsável do tipo "vale-tudo". Essa é uma conhecida redução
da problemática a absolutos na qual nossa ciência parece especializar-se. Ver a brilhante d i ~
"'~
são de Helen Beale em Real Pretending: An Ethnographyof Sym!Jolic Pla.y O:m1.munication (Chi
7. No srcinal: "having our Cu/ture and eating ir too", uma referência aO ditado "having the cago: Tese de Doutorado, Departamento de Antropologia da Northwestern University, '973).
cake and eating ir tOa", equivalente ao ditado em português "não se pode ficar com o bolo e 9- O termo "play" em inglês é polissêmic o e sua tradução ao português foi adaptada em
o dinheiro do bolo". [N. T.} cada contexto por "jogo", "brincadei ra", "atuação". [N. T.]
II 6 Opoder da invenção II 7
Consideremos a previsão do tempo. O tempo é, po r definição, entretenimento, da informação ou da redenção, a propaganda fornece
imprevisível. É criado po r nossas expectati vas de regularidades sazo sua pequena contribuição ao trabalho de criar a Cultura criando sua
nais: o fato de os eventos meteorológicos Ocorrerem ou não como espe ambiência, sustentando "a economia" ao renovar nossa credibilidade.
ramos e o grau em que isso se dá - eis o que chamamos de "tempo". Junto com as outras facetas da cultura interpretativa, ela nos salva da
Mas vejam o que o homem do tempo tem de fazer: ele tenta estender apatia e do caos da relativiza ção e da ambiguida de à custa de sua própria
nossas expectativas às mínimas particularidades da vida cotidiana. Ele serieda de - faz da di stinç ão entre o ina to e o artificial uma distinção real
f O{ o tempo tanto quanto qualquer nativo da Nova Guiné, estendendo a ao refestelar-se em sua artificialidade.
coisa que o define. E ao precipitar o tempo, po r assim dizer, ele muitas Assim, nossa ostensiva interação entre Cultura e naturez a é, de fato,
vezes preci pita sua audiênci a - inadverti damente ludibrian do as pesso as um a dialética da convenção continuamente reinterpretada pela inven
ao fazê-las sair sem guarda-chuva porque ele disse que faria um belo dia. ção e da invenção continuamente precipitando a convenção. Mesmo
E, mesmo quando suas previsões funcionam esplendidam ente, tudo o que essa renovação, porém, está constantemente perdendo terreno, pois na
ele consegue é conven cer as pessoas de que tem algum tipo de "informa medida em que os efeitos da interpretação se tornam cada vez mais
ção de primeira mão": elas acreditam nele, levam-no a sério, e se sujei óbvios, a distinção essencial (Cultura versus natureza) que ela precipita
tam a decepções ainda maiores quando suas previsões finalment e falham. sofre uma relativização cada vez maior. Tornamo-nos cada vez mais
Desse modo, o homem do tempo tem de ser um homem engraçado, um a dependentes da interpretação e do entusiasmo pela renovação que a
espécie de humorista do tempo; ele tem de fazer muitas gracinhas, nu m inter-relaç ão gera. A Cultura sucumbe ao culto da Cultura porque tem
constante esforço para que as pessoas não o levem a sério. de fazê-lo. E se os ecologistas, com seu instinto certeiro para ir ao fundo
O apresentador de notícias também precisa "jogar", mas aqui a da moralidade e da seriedade, falam da coisa toda em termos de "vida"
autorridicul arização tem d e ser muito mais sutil, se bem que ter um nome e "sobrevivên cia", deveríamos considerar uma coisa. Um rio ou um
levemente esquisito e um certo maneirismo como ponto forte ajudem. Ele lago poluído (poluição é Cultura do ponto de vista da natureza) fervi
precisa ser capaz de entrar e sair do mundo objeü,:o da crise e da contro lha de vida. Trata-se de "sobrevivência" no máximo de sua efervescên
vérsia, temperando a intensidade dos lashes de notícias factuais com um cia: onde umas poucas células ganhavam a vida com dificuld ade, agor a
ar agradável de severa bondade , e a frequente trivialidade dos "itens de pululam milhões. Um a "cultura de massa" bacteriológica, de fato, mas
interesse humano" com algo de sua objetividade televisi va. Ele precisa uma "vida" que ninguém realmente quer.
ser conscientemente ambíguo para tornar suas notícias ao mesmo tempo
reais e possíveis. E profissionais do entretenimento, publicit ários, artista s,
cientistas, hippies e políticos, todos guardam essa espécie de ambiguidade
em seu esti lo. N ossos presidentes mai s bem-sucedidos foram aqueles que
sabiam como "jogar" enquanto faziam o que tinham de fazer.
A propaganda se redime da acusação de ser excessivamente "séria",
de manipular as necessidades e os desejos das pessoas, sendoeagra
çada. Um comercial engraçado é um bom comercial: ele se safa do
fato embaraçoso de que é "apenas um comercial" fornecendo entrete
nimento (outros fornecem "notícias" ou redenção). Sob a máscara do
Geralmente se supõe que a nossa Cultura, com sua ciência e sua tecnolo
I2 )
....
se as operaçõesda
da ciência fossem completamente efetivas e exaustivas, Mas essa invenção da natureza como"poder" (a energia utilizável
natureza
tecnologia fossem completamente eficientes, então a se tornaria da eletricidade , a energia "desperdiçada" da inércia e da fricção) jamais
ela própria ciência e tecnologia. (É de fato assim que falamos das coisas em ocorreria se os seres humanos
já não tivessem inventado os meios tecno
nosso mundo modernode relatividade contextual:natureza
a é "sistema", lógicos e culturais pelos quais a objetificação pudesse ser efetivada. Sem a
é "biologia" ou "ecologia", enquanto aCultura é "natural", uma "adap- matemática do volume e da velocidade ou a física do calor, da gravitação
tação evolutiva".) A ciência e a tecnologia"produzem" nossas distinções e da eletricidade, o potencial não poderia ser calculado. Sem a tecnologia
Culturais entre o inato e o artificial na medida em que falham em ser com da construção de barragens, das turbinas, dos geradores, dos transforma
pletamenteexatas ou eficientes, precipitando uma imagemdo "desconhe dores e da transmissão de energia, o potencial não poderia ser atualizado.
cido" e de forças naturais incontroláveis.É assim que ciência e tecnologia são resultadoda invençãohumana,
Todas essas técnicas e procedimentos
(por oposição à visã o "interpre tada" que temos delas ) se alinham ao con- que confere à Cultura tecnológica caracteristicas que são transferidas para
servadorismo nos Estados Unidos modernos.Mas se deve enfatizarque a natureza no curso de sua objetific ação. Adquirimos o hábito de enxe rgar
mesmo do ponto de vista tecnológiconossa Cultura "funciona" em termos os fenômenos naturais em termos de potencial energético, como
recursos
nas e dispositivos de medição, seu potencial perman ece desconhecido. Seja os únicos meiosde invençãoque empregamos, ede modo algum osmais
como potencialou como atualização, a energiaprecisa ser criada me~t sutis e difundidos. Toda a nossa Cultura coletiva pode ser vista como um
a seleção dos dispositivos de medição ou conversão Cultural apropriados conjuntode controles ("instrumentos", como se diz) para esse fim, e todo
para que o evento natural se imponha. Esses dispositivos objetifi cam o o universo fenomênico natural, como o objeto e o produto da invenção.
evento como "poder" ou "energia" de uma maneira ou de outra. Exatamente como as "forças" da natureza governamnossa tecnologia eas
124 A invenção do eu UI
"leis" da nature za validam nossas teorias, também os fenômenos naturais com a urgência de um adulto. "Pegar de surpresa" é um atributo que a
são sempre criados como algum tipo de força espontânea ou motivador a. nossa invenção do temporal e do situacional compartilha com todas as
O tempo, co mo a essência dess a espontaneid ade inata e inevitável, coisas que são convencionalmente contrainventadas: a tantas vezes des
é nesse sentido nosso mai s importante produto. Nós fazemos o tempo (e crita "sociedade" ou "estrutura social" dos povos tribais os "apanha de
não só quando estamos "datando"'). Assim como o espaço, o tempo jamais improviso" e surpreende de modo muito semelhante. Nós "fazemos" uma
poderia ser percebido sem as distinções que lhe impomos. Mas nos pro- Cultur a ameaçada, acoss ada e motivada pelo tempo; eles faz em o "tempo"
tegemos com uma ba rafunda de sistemas e distinções temporais capaz de como uma" coisa que lhes pertence" - acossada e motivada pela cul tura.
deixar zonzo um consciencioso sacerdote maia. Nós criamos o ano, acadê Inevitavelmente, porém, nossa objetificação do tempo mediante
mico e fiscal, e o dia, feriado ou útil, em ter mos dos eventos e situações controles de prev isão leva a uma certa relativização. Os dispositivos de
que os tornam significativos e proveitosos, e fazemos isso prevendo-os,e previsão adquirem eles próprios uma certa urgência e uma certa quali
vendo então como os eventos e situações se impõem às nossas expectativas. dade "natural", e os eventos isolados e incidentais que eles "ordenam"
Calendários, agendas, horários, rotinas e expectativas saz onais são todos assumem um caráter sistemático (rítmico) e ordenado. Falamos em "reló
gio biológico", em "ciclos de desenvolvimento" e no "ciclo de vida", e
dispositivos "de previsão" para precipitar o tempo (e fazer com que nos
surpreendamos com ele, e não o tornemos previsível). Eles são um meio para nutrimos teorias da maturidade, da sexualidade e do envelhecimento que
preparar expectativas que, ao ser cumpridas ou não, se tornam "a passa jogam, como um trocadilho infeliz, co m o duplo sentido (bioquímica
gem do tempo", "o tempo" [meteorológico], "bons momentos", "u m ano e biográfico) que atribuímos à palavra "vida". Nosso "ano" é repleto
ruim". Ao estender nossas calibragens e nossas expectativas po r períodos de atitudes, inclinaçõe s, desapontamentos, "espírito festivo" etc. que
de anos, décadas e mesmo milênios, tornamo-nos capazes de precipitar convencionalmente atribuímos à sua natureza cíclica, ao próprio "ano".
(estatisticamente ou de outra maneira) uma "realidade" temporal e muitas Temos uma aceleração do ritmo em setembro e outubro, um "período
vezes cíclica. Temos fases de "hoom" e de "crise" econômica; depressões e de festas", calmarias em janeiro e fevereiro, "resultados" em abril e maio.
recessões; "desenvolvimentos", ciclos e " eras" históricas. E também nosso dia, com sua manhã e sua noite, e nossa semana, com
Conhecemos o tempo (e seuS irmãos "crescimento", "v ida" e "o suas segundas-feiras irremediáveis, suas benditas sextas-fei ras, e po r
tempo" [meteorológico]) po r seu hábito furtivo de nos pega r de surpresa. vezes seus domingos melancólicos, objetificam estados de espírito e ati
Nós fa,emos com que ele nos pegue de surpresa ao supormos que somos tudes em term os de "previ são" cíclica. Temos nossas "canseiras diárias"
capazes de prevê-lo e de nos pr eparar par a ele. Perceb er que nossas prepa e nossas "férias massacrantes".
rações e previsões falharam em alguma medida (" É mais tarde do que você O calendário, o relógio e a agenda, em seus aspe ctos "preditivos" o u
pensa") correspo nde a uma experiência de "passagem do tempo". Minha organizadores, como controles coletivizantes, correspondem a um conhe
filha de três anos, apr endendo a "ver as horas" , resumiu iss o muit o bem cimento deliberadamente artificial e cumulativo, a uma moralidade da dis
em sua concisa e recorrent e expressão "Está tarde em ponto",2 proferida tinção e do discernimento convencionais. Eles dividem nossa labuta de
nosso repouso, nossa vida profissi onal "séria" d e nossos períodos de rela
1. O verbo inglês "to date", gerúndio "dating", significa estabelecer ou atribuir uma data a xamento, sono, alimen tação e "diversão" , e do "espírito festivo" de indi
um objeto ou evento, no sentido transitivo; no sentido intransitiv o, ter srcem erÓ'11i6." mo viduação compulsiva po r meio da distribuição de presentes (a "genero-
mento particular. Informalmente, é usado para referir-se a encontros amorosOS, no sentido
de "sair com alguém". [N.T.]
sidade" que Mauss comparo u com a vida ordinária dos povos tribais de
2. No srcinal: "lt's fale o cloclc". [N. T.] maneira tão perspicaz) e do envio de cartões de Natal. Nós, coletivamente
I26 A invenção do eu 12 7 11
~.A
e muitas vezes po r decreto parlamentar, m anipulamos as agendas, estabe nossos mistérios. É a moralidade do conhecime nto, ou da ciência, e de
lecemos os "horários", "planejamos nossas vidas", e isso (esse misterioso um governo que sente a necessidade de constr uir a sociedade e de desen
"isso" ou "id", o "inato" que compreende o conjunto do nosso ser situa volver e aperfeiçoar o quinhão da humanidade.
cional e idiossincrático) vem nos pegar desprevenidos, surpreendendo Sempre que invocamos essa moralidade e participamos dela, seja
nos - para noss o deleite ou desapontamento, co nforme o caso. É também como cidadãos, votando e "manifestando preocupação", seja como téc
disso que se trata nos "encontrosamorosos" [dating], um a negociação nicos, operando e construindo máquinas, ou como cientistas, criando
do "tempo disponível" (e do dinheiro) que é tradicionalmente iniciada "conhecimento" e formulando definições, criamos seu mistério motiva
e mantida pelo participante masculino. A mulher (com seu papel "natu do r de forma sutil e inadvertida. Criamos nossos problemas, e com eles
ral", sua identificaçã o supostamente "intu itiva" com o rítmico e o inato) nos impulsionamos par a adiante. A confiança pública gera corrupção (na
se encarrega das surpresas. forma de políticos bem-intencionados que querem manter o controle
O que queremos dizer com "tempo", e a coisa que está po r detrás sobre o "mundo sujo da realidade política" por uma boa causa), a integra
de toda essa paisagem de ci clos - o situaciona l, o inatamente humano, ção cria "minorias", as máquinas manufatur am "forças naturais" e a defi
o movimento e a evolução da "força natural" e o mundo fenomênico nição precipita o indefinível. Ademais, nossos controles nessa ação, nosso
é a dialética inventiv a: o aspecto contraditório, paradoxal e propulsor conhecimento, nossa ciênc ia, nossa máquina de governo e nosso governo
da cultura. Nossa Cultura da previsão intencional e da acumulação de da máquina são nOssa responsahilidade. Quanto mais eles se tornam rela
conhecimento precipita esse movimento dialético ao contrainventá-lo, e, tivizados em uma Cultura que "funciona sozinha" e em uma natureza
em razão do inevitável mascaramento que oculta essa forma de objetifi que necessita da intervenção consciente para poder "funcionar", maior
cação, eximimo-nos de assumir responsabilidade po r isso. Dizemos que será o sentimento de necessidade moral de reformar, de restaurar a dis
isso é inato em nós, que "é" o que somos, que é a "realidade", mapeada tinção convencional entre o inato e o artificial. Podemos senti-la como
nos ritmos da natureza e na urgência de nOssO mundo fenomênico. Isso uma necessidade de nos opor ao fascismo, de c ensurar a automação, de
subjaz e serve de fundamento ao nosso profundo e peculiar temor da "retornar" à natureza, de conservar nossos recursos ou preservar o Meio
mortalidade, da doença e da morte que também precipitamos de tantas Ambiente, mas não podemos evitá-la. É claro que, quanto mais respon
maneiras. Não "fazemos" isso, apenas "jogamos" com isso, ou o perce demos a isso concedendo ao governo maior autonomia em nome do povo
bemos, a ponto de que nossas noções mesmas de "invenção", "jogo" e para conservar e refazer a natureza, mais relativizamos nossa distinção.
"metáfora" são relegadas ao baú do "meramente simbólico". O fascismo sempre chega ao poder "em nome do povo".
Nossa Cultura é um estilo de vida que escolheu traçar suas distin Não são apenas essas convenções obviamente coletivas e "feitas",
ções convencionais deliberada e conscientemente, em vez de precipitá-las. como o governo e o conhecimento, que encar nam o nosso mundo moral.
É isso que queremos dizer com "regras", uma moralidade da articulação Tudo o que "fazemos" participa dele. Há um a moralidade das "coisas",
deliberada e arti ficial. E porq ue nós "fazemos" convenção, temos de "ser" dos objetos em seus significados e usos convencionais. Mesmo as ferra
e sofrer as exigências da invenção, sua antítese dialética. A invenção é mentas constituem menos dispositivos utilitários puramente "funcionais"
nossa surpresa, nOSSO mistério, nossa necessidade natural. É o refie o do que uma espécie de propriedade humana ou Cultural comum, relí
"outro lado", mas também a "causa" e a motivação de nossa ação cons quias herdadas que obrigam seus usuários a aprender a usá-las. Pode-se
ciente. Assim, o controle (e o mascaramento) da invenção é para nós mesmo sugerir, como o poeta Rainer Maria Rilke, que as ferramentas
um dever moral, algo que nós devemos fa{er para poder viver e preservar "usam" os seres humanos, os brinquedos "brincam com" as crianças, as
12 9
128 A invenção do eu
armas nos incitam à batalha. Falando das coisas conhecidas na infância, um mundo altamente relativizado, elas se tornam um habitat "natural",
Rilke observou: ao mesmo tempo ambiente e ordem. A cidade é Cultura, e se torna tão
ambígua quanto a própria cultura; ela é um contexto (toda cidade é um
Este objeto, por insignificanteque fosse o seu valor, preparou o vosso rela- contexto, abrangendo seus confins) que foi e é deliberadamente articulado,
cionamento com o mundo, condu{iu-vos paracentro o dos acontecimentos e precipitando uma necessidade que se converte na próp ria necessidade da
para o convívio com as pessoas, e mais ainda: através dele, de sua existência, civilização. Ela é o maior dos no sso s" duplos vínculos" (todos os contextos
sua aparência indefinida, através de sua quehra definitiva ou perda miste- relativizad os são duplos vínculos, e é po r isso e desse modo que eles são
3
riosa, os senhores vivenciaram até oâmago da morte tudo o que é humarw. ftustrant es): ao mesmo tempo a solução e o recipiente de nossos problemas.
Vastas e esfareladas coletividades de argamassa, asfalto, aço e conheci
Em nossa vivência desses brinquedos, ferramentas, artigos e relíquias, mento, nossas cida des estão abarrotadas da "individuação de protesto" do
desejando-os, estimando-os, admitimos em nossa personalidade toclo crime e do sarcasmo (muitas vezes relativizados até os extremos do crime
o conjunto de valores, atitud es e sentimento s - a própria criativi dade - organizado e do sarcasmo politizado). Assim como a Cul tura econômica
daqueles que os inventaram, usaram, conheceram e desejaram ou lega e comercial ("dinhe iro") que constitui sua seiva vital e é su stentada pela
ram a nós. Ao aprender a usar ferramen tas, estamos secretamente apren motivação inventiva da propaganda, a cidade é Cultura a despeito de si
dendo a usar a nós mesmos: como controles, as ferramentas meramente mesma: observe a Cultur a parodiando a si mesma no amontoado de fave
mediam a relação, objetificam nossa s habilidades. O mesmo se aplica aos las e prédios no horizont e. Mesmo aqueles que fogem dela levam consigo a
nossas anseios e prazeres "materialistas". ambiguidade nas acreções suburbanas que criam em seus arredores, como
Objetos e outros fenômenos humanos que nos cercam - na ver- uma cidade além da cidade, uma cidade a despeito de si mesma.
dade, todas as cois as dotadas de valor ou signifi cância cult ural - são E, todavia, a Cultura a despeito de si mesma é ainda Cultura; po r
nesse aspecto "investidos" de vida; fazem parte do eu e também o criam. mais que seja relativi zada, ela constrói para fora e para cima ao aferrar-se
À luz desse fato, a "produção em massa" e seus correlatos comerciais e à sua convenção de empreendimento coletivo e ao caráter inato da natu
tecnológicos só podem levar a uma espécie de inflação do caráter e das reza: ela o faz a fi m de aferrar-se a essa convenção. Mas o próprio fato da
qualidades humanas. Temos emoções descartáveis, ideias que despendem relativização, dos controles ambíguos que não "funcionam" como deve
suas energias em orgias fugaz~s do viver intempestivo, literaturas cujas riam, sublinha muito claramente que o oposto criativo d a Cultu ra não é a
edições passam po r ciclos nupci ais como os dos insetos, hibernação, ree imagem da "natureza" e do Meio Ambiente que nos assombra como um
mergência, metamorfose etc., e po r fim, ai de mim, pessoas descar táveis. fantasma de florestas virgens e córregos imaculados. A naturez a, infeliz
E estes artefatos máximos, nossas cidades, constituem igualmente mente, é "sistema" a despeito de si mesma, e tão ambígua quanto a Cul
controles para a precipitação da "vida ", de uma vida social e Cultural que tura. Remete ndo-nos a uma natureza relativizad a, nós obviamos a Cultura
não pode ser produzid a sem a ordem e a ambiência delas. Elas são aqu ilo e vice-versa. A articulação coletiva das distinções convencionais em que
em que a Cultura se acumulou, e são indispensáveis para os "eus" e os consistem o conhecimento e a Cultura precisa sempre operar mediante
ciclos, para os "sentimentos ", que dependem daquela ordem. E as~em uma dialética com a individuação e a invenção para que possa operar de
alguma forma, e assim, precisa precipitar a individuação e a convenção
3. Rainer Maria Rilke, Auguste Rodin, trad. Marion Fleisher. São Paulo: Nova Alexandria,
como sua motivação e seu mistério. É para essa invenção, em suas formas
[1903] 2003,pp. 83-84.
mais pessoais e individuais, que nos voltarem os agora.
I)
130 A invenção do eu
.
APRENDENDO A PERSONALIDADE recorrem e "us am" uns aos outros. A dificuldad e é extrair a invenç ão a par
tir da relação com a convenção, e a cur a é uma questã o de alinhar essas duas
Normalmente, não pensamos no eu como produto da ação humana, e coisas desenvolvendo uma relação controlada e administráve l entre elas.
menos ainda da sua própria ação. Quer dizer, algum a coisa precisa repre- Criamos o eu a partir do mundo da ação e o mundo da ação a partir
sentar um a espécie de "input", um "dado" para além de todas as "influên do eu. Um a vez que ambos es ses rein os - não importa qual de les tome
cias" da educação e da socialização que se impõem à Cultura e a afetam. mos como domínio da conven ção - são igualmente produtos da invenção
Mas se aceitamos esse pressuposto em seu sentid o ortodoxo, "cotidiano", dialética, nenhum deles pode ser descrito de forma inequívo ca como a
negamos toda a significância de nossa discussão sobre a invenção. Pois fonte de nossas dificuldades pessoais e emocionais. As crises e atribu
assim deixamos a porta aberta para aqueles que nos dizem que o homem lações da "psique" individual são experienciadas e criadas (e portanto
é em última instância motivado po r impulsos naturais, tais como "ins "mascaradas") mediante concepções de "propensões" e motivações inat as
tintos", "propensões" e um a "necessidade de gratificação". E mesmo se e compulsões externas ou "espíritos-guia", produtos do compromisso do
rejeitarmos o pressuposto, recordando o quão facilmente "necessida ator com uma orientação convencional particular. Eu e espírito, id, ego
des" são criadas pela propaganda, e decidirmos que as motivações de e superego são ilusões culturais nascidas de um ponto de vista cultural
uma pessoa são amplamente determinadas po r influências sociais e pel a particular ; o verdadeiro problema é o da relação entre elas. A formação e
educação formal, iremos passar ao largo da significância da invenção. a administração dessa relação constitu em assim o fator crucial no desen
Pois o popular clichê de que "o indivíduo é produto de sua sociedade" volvimento do indivíduo. Trata-se de um a luta contra a relativização da
transforma o homem em um autômato social em lugar de naturaL Nossa convenção que equivale à neurose ou histeria, e seus "perdedores" não
única alternativa é considerar as ações do próprio indivíduocomo o "input" são vítimas de forças demoníacas internas ou externas ("anseios natu
significativo na determinação do eu. E essa ênfase na invenção põe em rais", "sociedade", uma "alma possuída"), mas de um a orientação inven
jogo a questão da convenção. tiva destrutiva, que coloca os esforços pesso ais contra eles próprios. Para
Antes de mais nada, aquilo que ancora todo ator em seu mundo de todos os povos, a criação de uma relação efetiva implica adquirir uma
invenção dialé tica é seu comprometimento com uma convenção que iden certa perícia em manipular o "inato"; para indivíduos "criativos", isso
tifica um modo de objetifica ção como pertinente a seu eu "inato" e o out ro leva a uma inversão da identificação convencional daquilo que se "é" em
com ações externas e impostas. Como essa convenção só pode ser sus oposição àquilo que se "faz". Para a moderna ideologia norte-americana,
tentada e levada adiante po r atos de invenção, e como a invenção sÓ pode dada a Sua identificaçã o da objetificação particularizante c om o "inato",
resultar em expressões efetivas e dotadas de significado quando sujeita às esse é um problema ao administrar a invenção - um problema que cha
orientações da convenção, nem uma nem outra podem ser consideradas mamos de "personalidade".
como um determinante. Ambas estão igualmente envolvidas nos sucessi A "personalidade" é uma preocupação da Cultura da classe média
vos atos de combinar e distinguir os contextos culturais que constituem a urbana que Schneider descreveu e analisou em seus estudos do paren-
vida social e individual do homem, e são igualmente produt os desses ato s. tesco norte-americano, e que ele distingue dos mundos interpretati vos do
Quando o compromisso de um ator com alg uma identificação pa~r parentesco das class es alta e baixa.' A Cul tura fornece para todos os nOrte-
de um "eu" cultural se torna significativamente ambígua e relativizada, ele
se vê capturado em um turbilhão cíclic o de intenções indeterminadas, em 4· David M. Schneider & Raymond T. Smith, Class DifJerences and Sex Roles in Amedcan
uma neurose ou histeria de compromissos "pessoais " e "externos" que Kinship and Family Structure. Eaglewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1973,
132 A invenção do eu
133
,
americanos um conjunto comum de formas simbólicas e acionais, para humano que constituem nossa Cult ura coletiva são uma vasta coleção
além daquelas de suas orientações particulares (de classe, "étnicas" ou de controles para a criação do eu natural. O artista ou escritor precipita
individuais), e sustenta o arcabouço da vida p ública - tribunais, escol as, um "talento" motivador, o artesão ou administrador cria suas "habilida
produção e adminis tração. Aqueles que participam das correntes domi des", o cientista ou engenheiro inventa sua "engenhosidade", e mesmo
nantes de nossa civili zação, os "trabalhadores de colarinho branco ", as aquele que se submete a um "teste" de inteligência us a o questionário
classes profissionais e comerciais e suas famílias, que aderem à realidade para produzir uma impressão de sua "inteligência inata".
da natureza e à importância da ciê~a e de um a boa educação, todos eles A invenção, assim como o "e u natural", é interna e misteriosa para
constro em suas vidas em torno disso e objetificam suas ações em termos de nós precisamente porque consideramos a convenção, sob a forma de
seus controles. Outro s, as classes baixas "étnicas" e "religiosas", os insa Cultura coletiva, como artificial e externa. Quanto mais buscamos usar
tisfeitos e os marginalizados, as classes altas "criativas", precisam se haver e desenvolver art ifício s culturais - teorias, tecn ologias, programas de
com isso po r meio da confrontação dia lética - algo que assume uma des ação - em um esforço de decifrar o mistério e de cont rolar e aplicar
concertante variedade de formas, desde a "interpretação" da propagan da, suas propriedades, com mais firmeza e segurança inventamos seu carát er
do governo, do entretenim ento e o protesto até a "exploração" e o crime. inato e seus mistérios. O mundo dos fenômenos sempre irá escapar ao
O "eu" precipitado po r essa Cultura (o "id" freudiano) é individual, fisico (como nos mostrou Heisenberg), a cognição irá sempre se furtar
particularista, e não obstante espontâneo e motivador. Ele é experimen ao dedicado etnocientista, a engenhosa traquinice das crianças se esqui
tado como um aspecto aparentemente pessoal e "interno" do mundo vará eternamente das disciplinas e dos programas moralizantes de seus
natural, como um amálgama de forças naturais, impulsos e anseios. "desenvolvedores". A participação em uma Cultura artificial do empre
Geralmente identificado com a forma e o funcionamento da constituição endimento coleti vo precipita a invenção como sua antítese.
"física" do homem, com hormônio s, química e cognição, el e é na verdade Contudo, aprendemos que a invenção precisa continuamente
invenção disfarçada de "vida". O "eu" cresce, nos "pega desprevenidos" "invert er" a si mesma a fim de que a convenção seja preservada. Assim, a
como o tempo e o clima, e é frequentemente representado em termos própria constituição motivacional do norte-americano de classe média
cíclicos - "ritmo s" corporais, períodos e sensibili dades femininos. Assim o obriga a "usar" seu "eu" inato e individual, a articulá-lo deliberada e
como o tempo, as situações e o clima, o eu é criado mediante a articula conscientemente de quando em quando no decorrer de suas atividades.
ção consciente dos controles convencionais da Cult ura, mediante a tenta Quando usamos a imagem do eu individual dessa maneira, como um
tiva de prevê-lo, controlá-l o e coagi-lo. O "eu" nasce como "resistência" controle diferenciante, chamamos iss o de "personalidade" (o "ego " freu
motivadora dessas tentativas. Os "impulsos" sexuais, po r exemplo, não diano). T rata-se de uma invenção consciente: é aquilo que o artista, o pes
são apenas direcionados ou canalizado s, mas efetivament e inventados quisador, o profissional do entreten imento e o publicitário transformam
mediante nossas tentativas para antecipá-los e controlá-los; a traquinice em uma profissão, e também aquela espécie de objetificação di ficil e mui
de uma criança traquinas nasce de nossas expectativas e sanções ao dis tas vezes frustrante que temos em vista quando tentamos "ser nós mes
cipliná-la. Co m efeito, todos os nossos procedimentos de treinamento e mos". Enquanto um papel diferenciante, a personalidade precipita uma
educação, nos sas teorias do "desenvol vimento infantil" e as expctai",~s motivação coletivizante (o "superego" freudiano), uma contrainvenção
que eles despertam não passam de "máscaras" para a invenção coletiva de da ordem moral convencional sob a forma de uma "consciência" com
um eu "natural". Essa invenção não se limita de modo algum à infância pulsiva. A personalidade é um "eu" atuante, uma individual idade deli
ou à educação: os horários, ocupações e programas para o desempenho berada incitada e motivada po r uma Cultura precipitada. A "resistência"
134 A invençãodo eu
135
..
motivadora experienciada e criada dessa forma, pelas maneiras pelas que se mantenha a distinção convencionalentre o que se é e o que se faz.
quais nossas ações deixamde se conformarà imagem do controle,assume É a arte da invenção em um mundo cuja atividade séria é a articulação
a forma de culpa. A culpa é a crítica da "personalidade". da convenção; como na propaganda, na previsão do tempo, no entrete
Todas as atividades "criativas", "recreativas" e restaurativas dos norte nimento e em outros aspectosda cultura interpretativa, é preciso"jogar"
americanos de classe média, todas as coisas que fazem para renovar, revi e sacrificar a própria seriedade para que a convenção ( Cultura) possa ser
gorar e reavaliar suas vidas, são assombradas por uma motivaçãoculpada. levada a sério. Uma personalidade saudável e efetiva é aquela que, mani
Comemos, fumamos, escovamos os dentes, arrumamos casa
a e tiramos pulando a individualidade de modo hipotético, exploratório e "engraçado",
férias compulsivame nte, acossados pelas alternativa s calamitosas de um mantém seu senso do"eu" claro e distinto;ao fazê-lo, ela precipitauma
ou outro tipo de excesso - desnutrição versus glutonaria; germes, sujeira e distinção convencional claramente definida. Um a personalidade que se
insalubridade versus rituais vazios esem sentido; tensão nervosa versus medo leva demasiadamente a sério, por outro lado, joga com a convenção;
ela
do câncer ou da perda de tempo. A personalidade precipita a convençã o e falsifica a Cult ura e a convenção cultural, fabricando a culpa como meio
responde aela em sua forma mais essencial: com a distinçãoentre o inato para a ação. É isso oque entendemospor neurose obsessiva oucompulsiva:
consciência
e o artificial.A culpa consiste em última instânciana de uma "rituais" neuróticos permitemao indivíduo agir com sucesso(manipular
invençãoinadequada (isto é, "relativizante") - assim como a vergonha,seu o eu com muita seriedade) precipitandouma "convenção" motivadora e
oposto, é a demonstração de uma consciência inadequada- ; sentimo-nos justificadora,mas altamente idiossincrática.
culpados porque transgredimos a distinção moral entre aquilo que somos Aprender a personalidade é sempre um flerte com a neurose, por
e aquilo que azemos, manipulando o primeiro e negligenciando o últim o. que é muito difícilao mesmo tempo "fazer" ou manipular oeu como um
Assim como o fenômeno da motivação não é de modo algum controle diferenciante e não levar esse controle a sério. A tentação, e a
"interno", mas se estende externamente para as pessoas e coisas que nos inclinação, é sempre acabar reformando o eu segundo uma imagem prefe
cercam, a inversão pela qual noS tornamos conscientes da personalidade rida, e assim precipitar convenções queirão justificar (e mesmo motivar)
está sujeita à manipulação das relações interpessoais. Fazemos com que a ação. Esse é o proble ma das crianças, adolescentes e especialmente adul
os outros se sintam culpados ao projetar essa consciência, assumindo o tos que querem ser profissionalmente criativos. O ator
só pode sustentar,
papel da consciência Cultural e forçando os outros a ter consciência de experienciar e lidar com a totalidade de seu universo mediante contínua
seus eus inve ntivos. A culpa motiva a reparação de um desequilíbrio con invenção, mas como a invenção só pode sustentar sua orientação e sua
vencional; aliás, existem papéis sociais formais e informais,até
e mesmo comunicação significativaprecipitandoO tipo corretode convenção, o ator,
indústrias inteiras (a propaganda e o governo não menos que as institui na cultura ocidental moderna, precis a aprender a projetar e experienciar
ções de caridade), fundadas no simples artifício de redefinir a convenção sua personalidade como espontânea e inata. Ele pode "jogar" com ela,
de maneira a fazer com que as pessoas se sintam culpadas. Trata-se do discipliná-la ou procurar canaispara seu enriquecimento e crescimento,
principal esteio de nossa vida cultuaI (oficial e nã o oficial), e portanto, mas só pode assumir a responsabilidade última pelo que ele "é " ao custo
indiretamente, de nossa Cultura. Mas também se trata praticamentede de precipitar um mundo privado de compulsão neurótica. Ele precisa
uma neurose institucionalizada. ~ .-.... aprender a inventarsua personalidade, sua invenção, como inata.
O truque de aprender a personalidade consiste em aprender a não se Justamente porque aprendemos fazendo, e porque esse tipo de "fazer"
levar (não levar a próp ria personalidade) a sério, em dom inar a técnica de é dificil de dominar, a neurose éuma experiência comumpara todos nós.
criar e de responder à culpa (em nós mesmos e nos outros) de tal modo Aprender a controlá-la é aprender a inventar o mundo corretamente;é
136 A invenção do eu
IJ7
'.'
aprender um "senso de responsabilidade". São em particular aqueles que e Chapeuzinho Vermelho, frequentemente faziam po r ela coisas que ela
estão aprendendo a"lidar com" (a criar) o mundo apartir de uma nova não queria fazer, e Chapeuzi nho só foi adicionada ao panteão depois que
posição - uma criança, um adulto comocriador ou administrador -que ela própria deixou de assumir esse papel regularmente.
enfrentam o problema de inventar uma "responsabilidade" convencio Sem dúvida, essas criações nascem em parte da observação (bastante
nal (o "período de latência" freudiano é simplesment e a quietude de uma perceptiva) e da emulação dos adultos pela criança, pois seguem todas as
criança que aprendeu a agir como criança, a reconhecer seu jogo
como "regras" pelas quais os adultos manifestam e desculpam seus atos e incli
"brincadeira"). O começo disso pode ser observado bem cedo na vida de nações po r meio de fofocas e anedotas sobre outras pessoas. Elas pare
uma criança. Ao tentar fazer coisascontra as quais fora severamenteadver- cem transparentes e "divertidas" (e para alguns levianas) porque lidam
se empenhava
tida (às vezes com punições), mi nha filha de quase dois anos um tanto frivolamente com os padrões de legitimidade que sustentam e
com grande zelo, murmurando para si mesma: "Não, não, não". Certa ou certificamas invenções dos adultos- embora, é claro, essa legitimação
errada, uma invenção é uma invenção, e carrega consigosua própria motiva raramenteseja declarada em conversas. Na verdade, elas representam
ção. Mas o exemplo ilustra com clareza o modo como a disciplina pode pro um a adaptação da ordem convencional à própria invenção do eu pela
se
duzir uma percepção da convenção. Não poderia de fato argumentar que criança, um mund o de faz de conta que lhe permite ser o tipo de eu que
minha filha não entendia o significado da negativa, uma vez que ela a empre ela deseja ser ao se deparar com uma "responsabilidade" intrusiva. Ainda
gava com perfeição. Ela estava aprendendo (ao fazer) a perceber a negação que mundos de faz de conta possam dissolver-se, proliferar ou passar por
de uma ação "correta" como um impulso. E, no entanto, esse impulso, o transformações, comoum fenômeno geral, eles nunca são superados:
"não, não, não", permanecia inteiramente englobadoem seu mundo da brin- as pessoas simplesmente aprendem a torná-losmais convincentes, ade
cadeira; quando eu invertia os papéis efingia ser seu "bebê", a única coisa quando suas invenções às exigências da responsabilidade convencional.
que eu podia fazer para induzi-la a me dar palmadas era começar a chorar. O mundo do adolescente, do jovem que está aprendendo a criar
A prioridade da invenção (e portanto a tendência à neurose) no desejos e necessidades adultos, apresenta um dilema similar. Para desen
aprendizado da personalidade po r um a criança é admiravelmente ilus volver o tipo de criatividade que pode ser moldada em uma personalidade
trada pela criação de " amigos imaginários". Estes são, com efeito, modos mais ou menos convencional, é preciso cometer os"erros" necessários,
de interpretação por meio
da invenção de ordens sociais artificiais - ami inventarum eu com muita seriedade, sob forma
a de desejos, anseios e
guinhos cujas aventuras, exigências, opiniões e travessuras relatadas aspirações - precipitandoassim espasmos obsessivosde "apaixonamento"
motivam e desculpam as intenções e ações da criança. Ao lado de seus e de "culto do herói". O que é um a personalidade dita "saudável" ou
"amigos"mais ortodoxos e sociáveis comoGambá [Possum],Fran, Esfre "normal", senãouma neurose prévia, uma contrafaçãoda Cultura,que
gão [Wiper] e Farkel, meu sobrinh o de dois anos e meio era perseguido foi moderadaem uma relação com a convenção?
po r seu inimigo, de nome Goppy. Goppy ficava o tempo todo derra- Aprender a não leva r a personalidade a sério signif ica aprender a
mando, quebrando e derruba ndo coisas , pelo que o pobre menino sem levar muito a sério oque se "deve fazer", a convençãoCultural e a culpa
pre levava a culpa, e ainda por cima enchia suafralda traiçoeiramente que a acompanha. Isso equivale a aprender a Jater a moralidade enquanto
uma ou duas vezes po r dia. O próprio "eu" da criança, que está 'I/i~al se está sendo um eu e aprender a ser a moralidade ("ser bom") enquanto se
se "fazendo" por intermédio dessas caracterizações, pode entrarsair e está fatendo o eu. Nisso consiste o dilema da pessoa que está aprendendo
de seus papéis: os amigos de minha filha, Getty, Jamil, Ciumento [Jea a ser criativa em relação à sua sociedade, a objetificar deliberada e cons
lous] (que apareceu pouco depois do nascimento do irmãozinho dela), cientemente o inato de maneira a precipitaruma imagem inovadora e
provocativa do convencional- o mais dificil dilema qu e há. Assim como a credibilidade, tomando-se assim esquiwfrênica. Bateson argumentou bri
a criança e o adolescente, a pessoa criativa precisa criar e depois moderar lhantemente que o esquizofrênico é alguém qu e aprendeu, sob o impacto
seus sintomas neuróticos. Mas diferentemente da criança e do adolescente, de condições familiares, a evitar esse tipo de comunicação:
que precisam aprender a "faz er" a personalidade e todavia não levar a sério
esse fazer, ela precisa, em nome da "responsabilidade", recuperar-se de o esqui{ofrênico geralmente elimina de sua mensagem tudo que se re-
sua neurose de modo a ser capaz de manipular sua personalidade e inven fira explícita ou implicitamente à relação entr~ ele e a pessoa à qual
ção com muita seriedade sem deixar transparecer que está fazendo isso , e está se dingindo. Os esqui{ofrênicos comumente evitam os pronomes
prestar suas homenagens às convenções da "responsabilidade" enquanto de primeira e segunda pes soas. Eles evitam dizer a você que tipo de
vive em um mundo criativo formado po r suas próprias convenções. Sua mensagem estão transmitindo. 5
própria criatividade, sua habilidade de se impor ao mundo convencional,
depende disso. Um esquizofrênico, em outras palavras, perdeu ou não considera impor
Desse modo, o indivíduo criativo vê-se em uma espécie de "duplo tantes aqueles pontos de contato que traduzem suas afirmações e ideias
vínculo". Em vez de retific ar o desequilíbrio neurótic o entre invenção e em potência e significados culturais viáveis. Ele aprendeu a criar o mundo
convenção, alinhando-o com a distinção convencional entre o inato e o arti sem inventar o eu, e sem a ajuda dos outros.
ficial, ele precisa aprender uma inversãopessoal dessa convenção, sem deixar Esse foi, em última instância, o refUgio de Nietzsche, que, no prin
transparecerque estáfatendo isso. Ele precisa levar sua neurose "até o fim", cípio de sua insanidade, escreveu a J cob Burckhardt, seu ex-colega na
a ponto de viver em seu próprio mundo, e usar a mesma articulação entre Basileia: "Por fim, eu preferiria ser professor na Basileia a ser Deus; mas
personalidade e invenção pela qual esse mundo é precipitado como uma não ousei levar tão longe o me u egoísmo privado e, po r causa dele, deixar
6
"ponte", a fim de construir a relação entre seu próprio mundo e o mundo da de criar o mundo". Isso caracteriza com lucidez tipicamente nietzschiana
convenção cultural. A personalidade, então, é a coisa mais séria do mundo o drama de alguém que deseja "criar o mundo" sem o estorvo do eu ou de
para ele, e, entretanto, ele precisa depreciá-Ia e reduzi-Ia às dimensões da outros. Qualquer que tenha sido a "causa" da insanidade de Nietzsche (há
não seriedade para manter sua credibilid ade ao lidar com outras pessoas. muitas teorias), sua reação intelectual a ela f oi singularmente apropria da
Pela mesma razão, o reino da "responsabilidade" convencional muitas vezes para alguém que se esforçou co m tanto brilhantismo, mas com resultados
lhe parecerá excêntr ico e arbitrário (pens e em Beethove n!), pois sua perso incertos, para transmitir a ideia da "transvaloração de todos os valores" .
nalidade inventiva é motivada por um conjunto muito diferente de conven A insanidade de Nietzsche tinha a ver co m tornar-se sério, um desen
ções; não obstante, ele precisa dirigir seus esforços criativos a essa Cultura lace infeliz para o autor da Gaia ciência, que tão be m usufruía a arte de
mais ampla para qu e estes tenham significado e sejam efetivos para outros. jogar com a imagem do eu, com a personalidade. Observa-se com fre
A personalidade criativa traça uma estreita linha entre a "credibilidade" quência entre os grandes criadores um a facilidade, um a projeção do
que a conecta ao mundo cotidiano da convenção responsável e a motiva eu cômica e grotescamente "não séria" numa caricatura da convenção.
ção de seus próprios impulsos criativos. A pessoa sempre se sente ten tada a
ceder a estes e a deslizar para um mundo convencional criado por ela m"'Jila,
5. Gregory Bateson, Steps to anEcology 01 Mind. Nova York: Chandler Publishing, 1972,
co m o risco de perder "credibilid ade" e ser decretada insana . Co m efeito,
p.2);.
um dos grandes riscos da inversão convencional que uma pessoa criativa 6. Friedrich W. Nietzsche, The Portahle M"eqsche, org. e trad. de Walter Kaufmann. Nova York:
enfrenta é o de perder o desejo ou a capacidade de "relacionar-se" e manter Viking, 19i4, p. 685
a modelo dele, uma "musa da história" um tanto frívola segurando um inata, motivadora e "sorrateira" (portanto inexplicável) entre o que é
livro e um instrumento parecido com um trombon e, numa pose ridícula e inato e o que é artificial. Esse "conhecimento", como o chamamos, não
autoconsciente. Eis o "artista anônimo", surpreendido em seu ato dema pode ser para eles objeto de "aprendiz ado" e discussão no nosso sentido
siadamente sério de capturar a "Fama" na tela, mas também um a "Fama" convencional; antes, ele participa da essência imanente de todas as coi
que é ela própria "fabricada" e autoconscie nte! sas, sendo acessível apenas aos maiores videntes e xamãs e compelido
Também o antropólogo, em suas manipul ações da personalidade para e precipitado, como um refulgente clarão de percepção, no decorrer da
agir de acordo com as expectativas deum modo de vida estranho, suscitando adivinhação, da inspiração religiosa e da introspecção.
esse estilo de vida com o um a "convenção" pessoal, passa po r uma inver Um mundo fenomênico que manifesta uma ordem convencio
são criativa. Q uer ele faça uso ou não desse papel estratégico - dessa criação nal e social humana implícita é um mundo antropomórfico. Po r trás de
do eu como uma relação inte lectual - para carica turar sua s próprias con cada evento fenomênico, quer ele faça parte da socialidade humana ou
venções (e numa Cultura relativizada a tentação de fazê-lo é muito grande), do ambiente circundante, vivente e não vivente, esconde-se a possibi
sua siruação torna urgente a questão das convenções comparativas. Ele vê lidade enigmática de um a explica ção antropomórfica ou sociomórfica.
essa questão como o problema da Culrura - mas será sempre esse o caso? Em outras pala:vras, há uma certeza convencional de que a causalidade
última das coisas é constituída em termos da ordem convencional parti
cular (e necessariamente inata) da pessoa. As próprias concepções podem
SOBRE "FAZER DO SEU JEITO"; O MUNDO DA HUMANIDADE IMANENTE ser explícitas, tais como divindades nomeada s consideradas "força s" ou
predisposições do universo, ou uma "criação", como a paisagem mitica
Precipitamos o aspecto incidental e inventivo (ou evolutivo) das coisas mente potente dos aborígi nes australianos; ou podem ser difusas, como a
como o nosso grande mistério motivador - quer o chamemos de tempo, noção daribi de que os movimentos do sol e da água prefiguram o curso
crescimento, invenção, personalidade ou, na linguagem taquigráfica da da mortalidade humana. Mais um a vez, o antropomorfismo pode assu
mir um a forma diferente e um a significância diferente sob a marca de
7. Lawrence Gowing,jan Vermeer. Nova York: Barnes & Noble, 1962, p. 73. diversos procedimentos cerimoniais, mitológicos e divinatórios voltados
142 A invenção do eu
143
a compelir e descobrir o inat o. Mas ess a humanidade imanente - seja lá são pensadospara ser "executados"ou seguidos comoum "código",mas
qual for a forma qu e as maquinações humanas confiram a ela - apre- O truquepara sua
para ser usados como a hase da improvisação inventiva.
senta ao homem a urgência contínua de controlar, compelir e determi utilização é o exagero e a improvisação, e pode envolver, como muitas
nar sua natureza. Sendo a "ordem" das coisas e das pessoas, ela não é vezes envolve, um certo grau de caricatura e bufonaria. A pessoaque é
"poder" no sentido do nosso mundo natural (embora se manifeste po r capaz de fazer isso bem - a ponto mesmo de inventar controles comple
meio do poder), mas antes a chave para o poder, o conhecimento que tamente novos - é admirada e muitas vezes imitada. Os controles são
confere poder e que O poder ajuda a conquistar. temas para interpretação e variação - um pouco ao modo do jazz, que
criam o mundo inciden
Enquanto os americanos e outros ocidentais tema.
vive da constante improvisação de seu
tal ao tentar constantemente prevê-lo, racionalizá-lo e ordená-lo, os povos E assim podemos falar dessa forma de ação como uma aventura con
tribais, religiosos e camponesescriam seu universode convençãoinata ten tínua de "imprevisão" do mundo. Ao tentar consciente e deliberadament e
tando mudá-lo, reajustá-lo e impor-se a ele. Nossa preocupação é inserir afirmar sua singularidade e independênciaem relação aos outros, oator
as coisasem uma relação ordenada e consistente -seja esta uma relação de invariavelmentefracassa em alguma medida, traindo inadvertidamente
de modo lógicoou de "aplicação" organizada
"conhecimento" organizado sua essencial"humanidade" e sua similaridade com os outros. E essefra-
de modo prático -, e chamamos a soma de nossoS esforços de Cultura. casso, comouma contrainvençãodo mundo deveras convencionalque
A preocupação deles pode ser pensada como um esforço para "desestabi de motivação. Isso equivaleao
ele está tentando "imprever", serve-lhe
lizar o convencional" eassim tornar-se poderosos e únicos em relação a modo de objetificaçã o subliminar e involuntário, à coletivização de seu
este. Se entendemosque "poder" representa invenção,uma força ou um controle diferenciante - a uma invenção sorrateira da ordem moral e
elemento individual que se impõe às coletividades da sociedade, então o social a despeito de suas intenções. Como o exato opostoda nossa inven
ocidental urbano "é " poder (no sentido de sua individualidade "inata" e ção da "natureza" por meio das consistênciasde maquinarias, horários,
de seus dons e talentos es peciais) e "faz" moralidade (seu "desempenho "), livros e razões, esse empreendimentonão pode deixar de ser ao mesmo
ao passo que a pessoa tribal ou religiosa "faz" ou "segue" o poder (papéis tempo estranho e provocativo para nós.
especiais, magia orientadora
ou auxiliares espirituais) "é"
e moral. Essas pessoas vivemquase que exclusivamentepor intermédio de seus
As tarefas convencional mente pre scritas d a vida cotidiana - o que cultos eenrusiasmos, de modo que a vida éuma sucessãode expectativas
se "deve" fazer emtal sociedade - são orientadas por um vasto con e aventuras altamentecarregadas. É "metafórica" e paradoxal,um com
junto de controles diferenciantesem contínuamudança e constante cres prometimentocom uma coisa em nome de outra, e portanto sua intenção e
cimento, todos eles mantidos e "condicionados" pela "sociedade" con impacto essenciaissão totalmente perdidos se tomados literalmente. O curso
vencionai que o uso deles precipita. Esses controles incluem todos os da vida é algo como nossa propaganda: continuamente "redime" a sociedade
tipos de papéis produtivos e de parentesco, de técnicas mágicas e práticas , ao vivê-Ia mediante algum tipo de controle inusitado ou mágico. As ima
de possíveis modos de conduta par a o comport amento pessoal. E se é difí gisticas ordinárias que ele segue, seus "poderes" (como o poder da "magia
cil para o etnógrafo padronizar esses controles, ouapanhar um "nativo" do francolim" na agricultura), são e precisam ser slogans ferinos,ideais em
no ato de explicitamente" executar" um deles, isso acontece porque a que se deve acreditar (pois é isso o que os faz "funcionar"), mas que não
própria natureza e intenção desses controles desafia o tipo de liter'à1idade convém tomar muito literalmente. Pois ao tomá-losdemasiado explícita ou
que a "padronização" ou o "desempenho"(bem como a ética profissional literalmentenós os confundimoscom os fins a que se destinam, o "conhe
de coerência do próprio etnógrafo) implicam. Eles não são Cultura; não cimento" preciso e aordem convencionalque constituem anatureza das
coisas. Assim, pode haver muitos "tipos" de magia, muitos "papéis" ou "inata" e nossas "forças" naturais são previstas, compreendidas ou apli
procedimentos alternativ os, muitas "caminhos para o conhecimento" cuja cadas) pela ação humana, mas não geradas por essa ação. É a ordem dada
medida de aceitação e utilidade não é seu conteúdo literal, mas o quanto das coisas que é ludibriada, e não o ator. A percepção de que se está ludi
eles "funcionam" ou não (isto é, o quanto é possível acreditar neles). Entre briando a si mesmo obviaria o ato, "desmascararia" a transformação que
os Daribi, cujos nomes pessoais compartilham desse aspecto diferenciante, o ator acredita estar ele mesmo efetivando. Os controles diferenciantes,
muitas pessoas têm nomes como merawai("boca suja", "imundo" ) e dinaho quer se aproximem da nossa noção de "magia", quer tenham a ver com
("come excremento"), que ninguém considera pejorat ivos. "tecnologia" ou "parentesco" ou com a influência de um "poder " ou um
A vida coma sequência inventiva tem um caráter particular, um a santo guia, são valorizados como dispositivos engenhosos para a coerção
certa qualidade de radiância que não tem nenhuma comparação com o da ordem "dada " das coisas em prol da pessoa. Assi m, os Daribi me expli
nosso atarefadíssimo mundo da responsabi lidade e do desempenho. Era cavam a operação de seus encantamentos em termos de "ardis " delibera
isso, e não a "nutrição" ou a "sobrevivência", que animava os remotos dos, induzindo e conjurando o resultado pretendido. Mas a habilidade para
acampamentos que os nossOS arqueólogos estudam em seus diagramas abrir roças do francolim era "dren ada" ou compelida pelo encanta mento,
as
de carbono; é isso, e não o "primitivismo" ou a "mentalidade da idade da não simplesmente criada (se pessoas pudessem criá-la, diriam os Daribi,
pedra", que torna contraditórios e paradoxais os encontros de pessoas então o francolim, e a menção ao francolim, não seriam necessários).
da "classe média" com povos tribais, camponeses e da "classe baixa"; e é A ideia de que operações "mágicas" criam O inato é antitética com
isso que "falta" em um acampamento ou aldeia esvaziados de sua popula respeito ao empreendimento bem-sucedido da magia (embora seja cen
ção pelo recrutamento de mão de obra e assim po r diante. A monotonia tral para a minha análise de como as pessoas criam suas realidades); ela
que encontramos em escolas de missão, em campos de refugiados e às não é mais aceitável para o usuário da magia do que a proposição de
vezes em aldeias "aculturadas" é sintomática não da ausência de "Cul- que criamos forças naturais seria par a os nossos técnicos e engenheiros.
tura" mas da ausência de sua própria antítes e - aquela "magia" aquela Chuva, morte, fertilidade e os outros fins visados po r um feiticeiro ou
imagem insolente de ousadia e invenção que fa, cultura, precipitando mago não são menos "inatos" em razão do fato de que são concebidos e
suas regularidades na medida em que falha em superá-las po r completo. elicitados antropomo mcame nte. A magia não os cr ia nem pode criá-los:
A natureza não literal dos controles diferenciantes permite que eles tão somente os "ajuda" ou compele. Desse modo, ainda que possamos
sejam compreendidos, de certa forma, comO procedimentos indiretos e entender lamentos funerários como controles para a criação do sofrimento
"ardilosos", embora essa consciência nunca chegue ao ponto de admitir como um estado social convencional,
o nativo precisa vê-los como um dis
que o artifício cna o inato. As propriedad es inatas das coisas são ludibria positivo para aju dar a canalizar a expressã o de um sentim ento de caráter
das, compelidas, aduladas, elicitadas' (assim como nossa temporalidade inato; ainda que possamos analisar o pai-nosso como um dispositivo para
criar uma experiência do divino, o crente precisa aceitá-lo como um guia
8. "Elicitar" e "elicitação" são adaptações de palavras inglesas: o verbo (to) elicit, "extrair, útil para as tendências inatas de sua alma.
fazer sair; obter; desencadear, provocar; deduzir; descobrir; esclarecer"; e o substantivo eli- As modalidades interpretativas da ação individua l levam todas à
citation, "obtenção gradual; dedução" (ver Dicionário Inglês-Português da PortO Editora).
criação de estados e relações convencionais aparentemente "inatos" ao
Estas formas inglesas provêm do latim elicitus,particípio passado de elicere, "tirar para.igp.",
de ex, "fora", e -licere, forma de lacere, "atra ir com engano, enredar" . As formas elicitar e "suscitá-los", "responder" a eles antecipadamen te, po r assim dizer, ope
elicitação são de uso comum em portug uês em certos campos científicos (linguístic a, biolo rando de maneira a elicitar a resposta de outrOs e assim tornar socialmente
gia, informática), indicando a atividade de extrair ou obter ativamente informações, respos
fatual o estado ou a resposta. No entanto, como o estado ou a relação
tas, dados, por meio de métodos e procedimentos específicos. [N. T.]
147
146 A invenção do eu
são compreendidos como algo inato, como uma ocorrência motivadora, a de agir: na medida em que ambos os participantes conspiram para man
ação nunca é vista ou conceituada dessa maneira pelo s participantes. Para ter essa evitação, e portanto a adequação desse modo de interação, eles
eles, ela é "dada", e portanto anterior; ela somente começa a se atualizar se colocam "na relação"; eles a criam. A situação não é em nada dife
nas motivações daquele que a inicia - como uma tendência de sua alma. rente para aqueles cujas relações exigem evitação parcial ou completa:
O estado ou relação estão ali; eles são simplesmente "reconhecidos" por eles tornam sua relação adequada ao não ter nada a ver um com o outro
meio de uma resposta apropriada por parte do ator que os inicia. O conse sob certas circunstâncias ou ao não ter nada a ver um com o outrO de
lheiro da aldeia no Lago Tebera "rec onheceu" um a relação de identidade modo algum.
onomástica ent re mim e seu filho de pele clara quando deixei que a criança Esses" estilos" de interação familiar e de parentesco diferem daque
puxasse meu cabelo e especialme nte quando perguntei po r seu nome. Ele les dos americanos de classe média pelo fato de qu e fazem da família e
não mencionou o fato na ocasião, mas quando a criança e a mãe retornaram da relação o contexto invisível da ação individual explícita, em vez de
de canoa, à tarde, ele simpl esmente anunciou: "Seu xará está chegando". fazerem do indivíduo o contexto invisível de uma existência familiar
A qualidade do inato entre os povos tribais, religiosos e campo neses intencional. A família (e na verdade a "sociedade" como um todo) não é
fica
é um discernimento motivador, uma convencionalidade ou socialidade "planejada": é precipitada. Onde isso mais aparente é na diferenciação
(conjunto de relações) implícita que aparentemente "selec iona" sua pró sexual. Homens e mulheres criam sua interação como tais agindo um con-
pria precipitação. Ele é precipitado ou elicitado mediante a articulação tra O outro, atuando como "homem" para alguém que atua como "mulher"
deliberada (inventiva ou improvisatória) de contro les diferenciantes. As e elieitando uma resposta, "pondo à prova" o outro sexo, tomando os sig
necessidades que esse modo de ação coloca para o ator - "ajudar" ou nificados da masculinidade e transform ando-os em feminilidade ou vice
compelir os poderes a atuar a seu favor, reconhecer e tornar explícitos versa. O fato de que homens e mulheres em grupos tribais, camponeses e
elou evitar estados e relações ocult os, atrair outros para uma rela ção, de "classes baixas" se mantêm separados uns dos outros, desenvolvendo
provocando -os ou "pondo-os à prova" - são máscaras para a criação clubes e estilos de vida próprio s e interagindo apenas em disputas, debo
efetiva do social e do convencional. Consideremos as relações "jocosa s" ches e relações sexuais, não é um problema "psicológico" superficial a ser
e de "evitação" dos povos tribais mundo afora, que tanto cativaram a sumariamente explicado po r teorias referentes a biologia, função ou pri
imaginação dos etnógrafos. As próprias pessoas dizem que "precisam" vação. É algo central em sua modalidade de criação da realidade social- é
agir de modo jocoso, respeitoso ou totalmente anônimo com certos indi o meio pel o qual essa realidade é criada. Cada sexo se diferencia do outro
víduos porque estão relacionadas a eles de um certo modo. A relacão, em de maneiras inventivas, improvisatórias e muitas vezes simplesmente
outras palavras, é anterior. Mas na verdade sua ação confo rme a maneira peculiares. Ao reconhecer de forma implícita o caráter e as qualidades
prescrita [a'{ o relacionamento, relaciona as pessoas da maneira apro do outro, provocando-o à existência, po r assim dizer, cada qual cria a
priada. Relações "jocosas" exigem a paródia de certos comportamentos complementarida de sexual em que a vida social se baseia.
"inapropriados" (isto é, sexuais ou agressivos) po r parte de um dos par A "reciprocid ade" que tem se mostrado tão popular em recentes
ticipantes ou de ambos. Na medida em que os participantes " encaram investigações sobre povos tribais fornece ainda outro exemplo de inven
isso como brincadeira" , reconhecendo implicitamente a inadequç~o ção explícita. A riqueza nessas sociedades corresp onde a um val or dife-
comportamento (e po r conseguinte a adequação de sua relação), eles renciante que suplementa seu aspecto coletivizante . Essa riqueza não é
efetivamente criam a própria relação como contexto de sua interação. "dinheiro" porque sua signiflcância como "dádiva" - como algo em si
O "respeito" igualmente requer a evitação de certos assuntos e mo dos mesmo - sempre predomina sobre seu valor de troc a. Nas trocas sociais
não se "compram" mulheres e crianças: o que se faz é "dar" e "receber", pessoa que não é pranteada (um a morte que não é diferenciada como tal)
ou no máximo "substituir". A valoração coletiva é elicitada pelo ato corre o risco de se generalizar, de insinuar-se furtivamente sob a forma
de dar muito ou pouco, dar O que é precioso ou o que é menosprezado, objetificada de um surto de falecimentos, principalmente de crianças. (O
conforme o caso. Cria-se a adequação do relacionamento entre doador fantasma, para dizê-lo em termos nativos, não foi posto em u ma relação
e receptor, e isso se dá mediante o "reconhecimento" de sua imanência. adequada com os vivos; ele está zangado com eles.) Quando isso acon
Mas não se cria o relacionamento per se apelando-se a um valor explícito, tece, os vivos são obri gados a encetar um a ação coletiva: eles se diferen
e é isso o que distingue a dádiva do dinheiro, a "reciprocidade" tribal de ciam entre "gente da casa" e ha6udi6i,"acompanhante s" para o fantasma,
um a economia mercanti l. Como uma questão de princípio moral,o ofere e realizam um rito de inclusão, "trazendo o fantasma para casa", depois
cimento de dons não é "econômico';, e a elicitação de relações de paren- do que, apaziguado, ele parte para a terra dos mortos.
tesco não é "parentesco". O fantasma é um ser espiritual individualizado e particular, uma parte
A diferenciação tanto precipita o coletivo quanto é motivada po r do inato, cuja relação com os vivos é controlada e "preparada" po r atos
ele. E esse coletivo inclui todo o entendimento comum da vida social do coletivos de luto e ritual. Ele é projetado e contrainventado por uma res
homem, identificado como uma tendência inata no home m e no universo posta coletiva ao senso de relativização (ambiguidade e confusão entre os
circundante. Se a urgência de uma tradição coletivizante é controlar um reinos dos mortos e dos vivos, entre a ação humana e o inato) engendrado
universo sobejamente incidental racionalizand o e construindo conheci pela ocorrência da morte. U ma vez que a morte, como parte do inato, é
mento, então a de um a tradição diferenciante é a necessidade premente compelida pela ação humana, as pessoas se sentem comprometidas po r
e muitas vezes terrível de evitar um a coletivização adversa - um estado sua incapacidade de evitá-la, e assim recorrem à ação coletiva ("ritual").
indesejável, um destino funesto comum. É isso que significa a "salvação Nessas sociedades, "fazer" o inato e o coletivo, traçar a crucial dis
da alma" e é isso que visa a adivinhação das influências atemorizantes tinção que é a essência do convencional, é um ato desesperado e atemo
que pairam sobre um a comunidade. rizante, quer a pessoa "represente" um fantasma ou um espírito para
Trata-se de um problema de relativização, de controles diferencian outros, quer diga a Deus, de mãos juntas, qu e Ele é grandioso e ela é
tes ambíguos que inadvertidamente coletivi zam de maneiras ne m sem- indigna. Isso invoca os poderes assombrosos da criatividade universal
pre pretendidas. O problema vem à tona com o fracasso em distinguir no contexto da vida ordinária do homem, e coloca o problema de contê
adequadamente entre os reinos da ação humana e do inato, um fracasso los e controlá-los: o problema da alma em perigo.
que frequentemente é "sorrateiro", assim como a própria distinção. Aos
olhos dos povos tribais e religiosos, isso corresponde ao problema da
profanação e do pecado. As práticas de luto de muitos povos tribais pre APRENDENDO A HUMANIDADE
tendem invocar e universalizar o sofrimento da morte individual. Elas
"inventam" a morte como morte, po r assim dizer. Mas a necessidade sob Assim como as nossas noções de Cultura e empreendim ento coletivo são
a qual operam é a de diferenciaros mortos dos vivos, inventando a morte um ponto de referência precário para a compreen são de povos que veem
explicitamen te para que ela não seja contrainventada implctaen(~o suas convenções como inatas, também os conceitos de personalidade e eu
seu próprio estado existencial.("Se não pranteássemos os mortos, podería individual, o id, o ego e o superego freudianos, são de pouca ajuda para
mos ver os fantasmas" , dizem os Daribi. Mas eles também dizem que só entender sua invenção do eu. Trata-se de um mundo de ação e motiva
os mortos podem ver uns aos outros.) Entre os Daribi, a morte de uma ção que em todos os aspectos é um a inversão completa do nosso. Nas
tradições "diferenciantes" tribais, camponesas e étnicas, o sentido deter espiritual) para dar-lhe ímpeto e energia (e assim também precipitá-la).
minante do "eu" é precipitado como uma fagulha inata de discernimento Sua motivação se dá pela escolha de sua forma de ativação. Aquele que
convencional, de humanidade ou "retidão" moral, chamada "alma". Esta vive como uma alma o faz em um mundo de "caminhos" alternativos,
é experienciada como uma manifestação aparentemente "interna", maleá de "vias para o esclarec imento" - numerosos controles dif erenci antes
vel e altamente vulnerável da ordem convencional implícita em todas as como meios de satisfação ( e criação) do eu. Trata -se mais de um mundo
coisas: um a essência antropomórfica pessoal (a forma dada ao homem de culto, nã o tanto de moralidades alternativas quanto de caminhos
quando foi feito "à imagem de Deus"). Para dizê-lo de forma simples, ou meios alternativos para a moralidade; seus eventos importantes são
a alma resume os aspectos em que seu possuidor é similar aos outros, antes escolhas e percepções do que feitos.
para além dos aspectos em que ele difere deles. Ela emerge como um Contudo, entre os cursos de ativação dentre os quais a alma deve
resultado inadvertido dos esforços do ator para diferenciar-se, como uma escolher, e ncontram-se aqueles que envolvem a articulação deliberada do
"resistência" motivadora a esses esforços sentida po r ele, um a coisa que convencional, como uma contramedida diante da ameaça de relativiza
norteia e inspira sua individuação deliberada. ção. A alma, em última instância, é a distinção entre o inato e o artificial
Assim como se dá com os estados e relações sociais e existenciais - pois is so cons titui o verdadeiro cerne de seu dis cernimento de modo
-,
que essas pessoas "reconhecem" e aos quais "respondem" em seus atos que "inverte" o modo de objetificação a fim de defen der sua essênci a e a
diferencian tes - nas suas relaçõe s jocosas ou de evitação, ao "fazer" a ordem moral que ela própria representa. Quando a imagem do eu cole
masculinidade ou a feminilidade ou na nominação -, a alma é percebida tivo é usada dessa maneira, como um controle coletivizante, é conhecida
como algo que prec ede esses atos - emhora seja de fato inventada no curso como "honra", "cortesia", "humanidade". Os aborígines australianos
deles. A alma é precipitada no processo de reconhecer as coisas e res falam da "trilha" ou caminho do homem, e os mitos daribi vers am sobre o
ponder a elas, e é experienciada como aquilo que reconhece e responde. Ela "homem verdadeiro" (hidi mu) ou o "sujeito correto" (saregwa). Trata-se
conhece a si mesma. Os Daribi dizem que a alma (a sede da consciência de convenção consciente: a via "reta e estreita" da restauração e emulação
e da linguagem dó homem e também de suas funções vitais, que reside moral, o papel do líder ou legislador social e religioso, do chefe, sacer
no coração e funciona por meio dos pulmões e do fígado) cresce em uma dote, santo, xamã, vidente ou curador. Trata-se também do "caminho"
criança e pode ser reconhecida quando esta começa a falar e dar mostras da cortesia e da ação ritual correta trilhado pela pessoa comum quando
explícitas de discernimento. É então, vê-se, que a cri ança é capaz de pre confundida e confrontada pela ameaça de ambiguidade.
cipitar sua similaridade com os outros, sua capacidade de interpretação Ao exercer um papel coletivizante, essa "honra" ou "humanidade"
cultural, de maneira reconhecível e significativa. precipita um a motivação diferencian te, um a contrainvenção de forças
A alma é convenção precipitada como o eu. Enquanto tal, ela é pas inventivas, dinâmicas, que podem ser identificadas com um aspecto
siva, um a espécie de "consciência" elementar e a priori, e sua motivação impulsivo da constiruição pessoal (uma "alma do corpo", desejos "d a
assume a forma de um a escolha entre soluções ou cursos de ação alter carne" ou "mundanos") ou com alguma agência espiritual. "Honra" ou
nativos, e não de um a iniciativa de ação. É antes da ordem do conhe "humanidade" é um eu moral atuante, um a demonstração da "alma",
cimento do que da ordem do poder. Assim como o eu ocidental.,* o respondendo à sua antítese motivadora e reconhecendo-a (e, é claro,
"id" - depende das restrições e dos conhecimentos da Cultura para dire criando-a). Enquanto experiênc ia, essa "resistência" motivadora - as
cioná-lo e orientá-lo (isto é, precipitá-lo), a alma conta com "poderes" maneiras pelas quais as ações de uma pessoa não conseguem se conformar
e influências determinantes (o que inclui tipos de magia, "orientação" com a imagem do contr ole - assume a fo rma de vergonha. A vergonha
1) 2 A inyenção do eu '53
é um a manifestação de consciência moral inadequada, um embaraço Ao ser confrontada por um antagonista que está "fora de
si" de raiva,
público ou privado da humanidade inata da pessoa, tal como demons em geral brandind o uma vara, a pessoa muitas vez es adota o papel de
trada na ação coletivizante. "vítima virtuosa". Enquanto o protagonista seatira sobre ela, gritando,
As relações sociais de povos tribais, camponeses e religiosos, na vergastando-a eàs vezes chutando-a, a vítima virtuosamantém sua com
medida em que são deliberadamente desempenhadas à cons
ou trazidas postura, sustenta sua posição sem revidar e "encoraja" seu oponente,
ciência, estão sujeitas uma
a motivação vexatória.A sexualidade e o inter dizendo: "V á em frente, me bata de novo (podemos ver perfeitamente
curso sexual,quando colocados no contextode relações de afinidadeou outras que tipo de pessoa você é )". Isso, é claro, faz o protagoni sta ficar ainda
relações sociais, são inerentemente vexatórios para os Daribi e muitos mais furioso (e porta nto moralmente indefeso): ele redobra seus esforço s
outro s povos como eles : são descobertos (sejam legítimos ou não) e então (e portanto sua vergonha), tentando incansavelmente desfechar o golpe
os participantes ficam envergonhados, ou são evocados (quando se usa que convencerá a todosda seriedadede sua raiva. Caso o consiga, uma
linguagem obscena) com o intuito de envergonh ar. Nessas sociedades, o "vítima" sagaz se tornará ainda mais "virtuosa" deixando-se tombar e
medo da vergonha e a onipresença de situações potencialmente vexat ó simulando morteou ferimento grave, buscando mostrar a todos que a
rias parecemser fatores de permanente indução à ação moral: põem as raivado protagonistaera, com efeito, demasiadoséria.
pessoas "à prova", porassim dizer, e desencadeiam a inversão
no sentido O tr uque de apre nder a humanidade, de ser capaz de "fazer" a alma
de uma postura moral, defensiva. como cortesia, honra, piedade, é o truque de aprender a levá-la - a levar
Assim como a culpa entre os americanos de classe média, a vergo se - extremamente a sério. Isso significaaprender, sob as devidascircuns-
nha é um dispositivo ou e stratagema universal das relações interpessoais tâncias, a não levar a vergonhanem um pouco asério, a ser capaz de usar a
nessas sociedades. As pessoas envergonhamumas às outras para incitá vergonha (fazendo-se o vergonhoso ou elicitando-o nos outros) para fins
las a responder, fazer, da r e receber. A elicitação de papéis masculinos morais. Significa aprender a pecar, pois sem pecado não há salvação. Isso
po r meio de papéis femininos (e vice-versa), a iniciativa de um empre explica porque e como pessoasque são instruídas a conferirum valor tão
endimento ou tarefa coletiva, o oferecimento e a aceitação ou rejeição alto à moralidadesão capazes de atuar como bufões epraticar outros atos
de riquezasem "trocas recíprocas" são todos atos vexatórios explícitos de imodéstia aparent emente ultrajantes; explica como os Enga e os Huli da
ou implícitos, ou desafio e resposta morais."Você é um homem (uma Nova Guiné,que vivem sob um assombrosotemor da impureza feminina,
mulher) de verdade? Você é um autêntico ser humano? Então responda são capazes, afinal, de se reproduzir. Por estranhoque possaparecer aos
moralmente a essa situação mora!!" Os estilos pessoais de compostura indivíduos de classe média , sempre fugindo d a culpa de um mau desem
afável e de bufonaria qu e reconheci logo no início de meu trabalho entre penho evidente e adeptos do "jogo limpo", trata-se da destreza em compe
os Daribi (e que Bateson caracterizou como "racional" e "emocional" lir uma "humanidade" moral e virtuosa,uma "honra'" ou "piedade", por
entre os debatedor es iatmul) consistem na realidade em estratégias vexa quaisquer meios, honestos ou infames (isso pode soar mais familiar para
um papel "de cortesia", põe os outros à
tórias arraigadas. O primeiro, políticos e outros que aceitam a corrupção e toda sorte de abusos em nome
prova e elicitauma resposta emulativa; o segundo provoca os outros
com do "bem maior " ou da "seguranç a nacional"). Essa é a arte de "jogar com a
uma sem-vergonhiceafetada e infectanteque ameaça contamiá-I~ vergonha",de modo que o moral possa ser real e sério, uma arte que conta
não respondam moralmente . com suas escolasinformais e conspiratórias em toda tr~dição diferenciante.
O me lhor exemplo de estratég ia vexatória talvez seja o dos papéis Aprender a ousar, a assumir os constrangimentosmorais sobre a inven-
que os Daribi frequentemente assumem
em ferozes combates individuais. ção com suficiente indiferençapara permitir o tipode ação improvisatória
1) 4 A invenção do eu
155
inconseq uente que propi cia uma criação firme, mas flexível, da convenção, de uma questão de crise (das "crises de vida"), e essa qualidade crítica
é tão imperativo nessa s tradições quanto o aprendizado da personalidade é tem a ver com a natureza da "alma".
na nossa. O moral e o convencional precisam ser provocados, ameaça Tem a ve r especificame nte com a vu lnerabilidade da alma. Pois
dos e adulados, precisam ser inventados, pois é somente assim que podem a alma é ao mesmo tempo o grande mistério da cultura, a coisa que
persistir. Mas se a liberdade da invenção é levada ao extremo de não mais ela realça, busca, nutre e compele, e também a própria convenção
se levar a convenção a sério, de usar a convenção par a seus próprios fins, que ancora o ator a seu mundo de invenção dialética. Ela é não apenas
então sobrevém a ameaça da relativização, da "contrafação" da convenção. o eu, mas a moralidade, não apenas a "pessoa", mas também uma relaç ão
Vimos que em tradições como a nossa, onde a moralidade é uma questão de pessoa l com o mundo. Enquant o o erro e o excesso são tendências pre
ação deliberada e explícita, essa" contrafação" assume a forma da neurose, visíveis em um eu individual, a serem "corri gidas" pela disciplina e edu
da construção de "convenções" privadas que per mitem (e exigem) ao neu cação, a alma, como uma qualidade de di scernimento comparativamente
rótico satisfazer uma imagem desejada do eu. Seu equivalente em tradições "passiva", pode ser tão somente "pe rdida". E, qu ando a alma é perdida ,
onde o pensamento e a ação são uma questão de diferenciação deliberada o único recurso que resta é restaurá-la, "encontrá-la", do mesmo modo
e explícita, onde a moralidade é inata e implícita, é a histeria. O histérico que uma perspectiva ou insight é "encontrado", e não coagi-la ou educá
"faz" ou ousa além dos limites toleráveis da ação ordinária, fabricando arti la. Não se disciplina uma a lma. Consis tindo na "si ntonia " e na conexão
ficialmente poderes "i natos " que irão lhe possibilitar (e em última instância de seu possuidor com os outros e com a sociedade, a coisa percebida
exigir) que viva em um determinado "estado" social . Aqui o sentido do eu como "alma" é constantemente transformada no decurso da ação inven
como "alma" se torna ambíguo - um joguete dos poderes in dividuais que tiva, na "rep resentação" implícita e explí cita que o ator e os outros fazem
a vítima luta para invocar ou controlar. Ele ca i em um estado de "doença" , dela. Caso uma convençã o inadequada seja realizada e internalizad a no
"possessão", transe ou "perda da alma", que também pode ser interpre curso dessa objetif1cação, uma orientação inventiva sem relação com a
tado como uma espécie de comunhão ou contato com espíritos, com Deus convenç ão, então os problemas da "possessão" ou "perda da alma" se
ou com o diabo, ou simplesmente como uma sucumbência a "influências" tornarão muito reais para o ator.
malignas e sorrateiras. Da í a séria preocupação com a representação entre aqueles que
O aprendizado da humanidade é portanto uma luta contínua con vivem como "almas" em um mundo de poder espiritual . Técnicas de
tr a a histeria, intensificada em certos estágios" críticos" ou transicionais, feitiçaria têm po r objeto a representação da essência pessoal mediante
ainda que, é claro, raramente seja concebido dessa forma. Ele coloca o o uso de resíduos corporais, comida, imagens e outros meios, de modo
indivíduo em um "duplo vínculo" no qual simultaneamente deve res que a alma da vítima possa ser "tom ada" ou reconstituída em um estado
peitar o pecado, a vergonha ou a poluição, po r suas óbvias implicações desfavorável. Representações do divino ou de outros poderes espi
morais, e fazer certas coisas pecaminosas, vergonhosas ou poluentes. rituais podem ser igualmente usadas para conjurar ou compelir suas
Assim como o aprendizado da personalidade, o aprendizado da huma essênc ias - uma capacidade que cerca mu itas formas de arte religiosa
nidade obriga a pessoa a tornar-se ambígua, a passar pela histeria em com toda sorte de tabus.
Os movimentos puritanos que tão frequen
certos estágios de desenvolvimento de modo que possa escapar dela.,]Wis, temente têm emergido em face da secularização iminente levam essa
porqu e a modalidade de pensamento e ação nessas tradições é o inverso noção ao ponto da iconoclastia: a renúnci a à figuração explícita (d o
da nossa, esse desenvolvimento não é tratado ou conceitualizado como divino e mesmo de seu mundo criado) po r receio de uma representa
um cíclico "crescer " ou "adaptar-se" a um determinado papel. Trata-se ção sacrílega ou ofensiva.
1)6 A invenção do eu
li 7
'
Em uma tradição diferenciante, também a vida é um a questão de Os poderes dinâmic os contra os quais um a alma defensiva e relativi
representação correta na forma de ação, resposta e compostura, uma zada luta, e qu e a iniciação e outras formas de ritu al se esforçam para Co n
questão de respeitar a alma, reconhecer os estados existe nciais em que ter, são manifestações de histeria. Sejam ou não concebidos em termos
ela entra e respon der a eles. Os Daribi dizem que a alma de um a criança explicitamente antropomórficos, esse s "pode res" e "forças" ou "espíritos"
pequena é extremamente vulnerável, sendo facilmente "tomada" por constituem as máscaras, as formas sob as quais a relativização é expe
fantasmas ou desalojada po r ruídos altos. Eles tratam as crianças co m rienci ada, apreendida, conjurada e exorciza da. Subprodutos implícitos
cuidado nessa idade, e encorajam respostas racionais po r parte delas, de uma coletivização defensiva, eles aparecem na forma de uma indivi
embora ocasionais acesso s de raiva e tentativas de pun ição frequente duação ofensiva e altamente energética. Uma vez que a relativização, a
mente reduzam uma criança pequena a um a fúria impotente e histérica. perda da "alma" e do equilíbrio moral entre invenção e convenção que
Dá-se às crianças mais velhas um grau de liberdade que espantaria os compreende a alma e a moralidade, coloca a necessidade central de sua
americanos, e os meninos muitas vezes são veladamente encorajados a existência inventiva, a vida das pessoas e comunidades nessas tradições
manter relações homossexuais com rapazes, ou seduzidos po r mulheres são vistas como uma contínua interação com tais poderes.
adultas em cabanas no mato. Eles aprendem a invenção, e a vergonha, Talvez o exemplo etnográfico mais familiar desses poderes dinâmi
po r imitação e "por conta própria" e se espera que o façam. cos seja a noção polinésia de mana, O poder gerado po r meio de riruais
Um a vez que a infância é uma época em que a alma é "fraca" e as e atos criativos que põe em risco aqueles que não são po r eles qualifi
influências consequentemente são fortes - um aprendizado da vida imita cados ou envolvidos. Poder-se-ia citar exemplos de conceitos similares
tivo e espontâneo, como invenção que muitas vezes testa os limites da con na literarura sobre povos tribai s de praticamente todas as outras partes
venção - , a inculcação da "human idade" ocorre sob a forma de um a crise do mundo. Entre os Papua da ilha de Kiwai na Nova Guiné, pensava
que marca a transição para a vid a adulta. Quer essa crise assuma a forma se qu e a construção da grande casa comunaI, ou dárimo, consumiria
de iniciação, de aquisição de uma visão ou de u ma modificação ou combi toda a força vital das duas pessoas idosas selecionadas como "pais" dela.
nação dessas coisas, ela consiste em uma experiência de discernimento ou E mesmo depois de concluída a construção, segundo o etnógrafo Gunnar
iluminação, de ser capaz de controlar os poderes e as influências que até Landtman, achava-se que a casa clamar ia perperuamente pela morte de
então (necessariamente) se impus eram à pessoa. Assim como os demais atos seus inim igos, chegando a acordar seus moradores à noite. Ela "é um efi
"rituais" e "cerimoniais" das tradições diferenciantes, trata-se de um reajuste ciente a liado dos membros da tribo quando eles saem em um a expedição
crítico da tensão entre invenção e convenção, de uma restauração afirmativa guerreira, pois os auxilia à distância". 9 Em sua construção, a casa kiwai
desta última em face da relativização. Nesse sentido, "crescer" ou "to rnar -se aSSume um a força e um a motivação próprias, consumindo as energias
adulto" equivale a uma cura ou co ntrole da histeria, das próprias deficiências de outros e mesmo clamando po r mais mortes.
na invenç ão do eu e do mundo, do mesmo mod o que nosso "desenvolvi Um mundo em que o eu assume a forma de um discernimento pas
mento da personalidade" (que é individual) é uma cura ou controle da neu sivo, cercado e ameaçado po r poderes e influênci as dinâmicos, virtu al
rose. O "crescimento" pode ser ajudado pela confissão (diferenciação do eu mente clama pelo domínio humano de suas forças. O bem-estar pes
em relaçãoao pecado), pela orientação moral ou pela magia especial de [l1jtos soal e comunal exige que alguém mantenha eSSas forças sob contro le e
morais que "compelem " e cristalizam a moralidade inata do ouvinte, mas
tudo isso será inútil e vão se o indivíduo já não tiver aprendido a invenção, 9- Gunnar Landtman, The Kiwai Papuans o f Bn-tish New Guinea. Londres: Macmillan, 19 2 7,
que é aquilo que sua moralidade constrange, na moderad a histeria da infància. p_ 21_
I) 8 A invenção do eu
'59
.,.
efeme uma "repres entação" delas que seja moral, e não catas trófica. Para Yabo em Return to Laughter. lO É também o dilema do xamã siberiano e
os melanésios, há poder na morte, nos sonhos, nos espíritos da floresta norte-americano, que pode ser obrigado a eliminar seus próprios paren
periférica e no misterioso reino dos segredos cultuais e dos encantamen tes como prova de fidelidade para com seu "p oder " ou espírito familiar.
tos. Para muitos povo s norte-america nos, as espécies e os fenômenos do É o drama do sacerdote, monge ou freira, que precisa renunciar a seus
mundo que os cercava eram poderes. Muitas vezes, os mamíferos, insetos, laços de parentesco e com O "mundo". E frequentemente é uma fonte
pássaros e plantas fa miliares representavam apenas uma amostra parcial de grande ansiedade para os outros que vivem nessas sociedades, cujas
do leque de "poder es" que se acreditava presentes no universo. Cada um vidas e cujo bem-estar dependem absolutamente de uma invocação e
deles era um a manifestação específica de um "poder" generalizado, com aplicação moral desses poderes. Os Daribi, qu e consideram seus xamãs ,
seus próprios segredos, hábitos, traços , cantos e assim por diante, e esse ou sogoye,ibidi, co m grande honra, dizem que um fantasma escolherá
poder seria cap az de ser drenado pelo ser humano que lograsse entrar alguém de bo m discernimento para uma vocação desse tipo, pois caso
em conexão com ele (o que freque ntemente se iniciava com uma visão). contrário o sogoyezihidi poderá "sair por aí fazendo as pessoas adoecer".
Havia também um leque potencia lmente ilimitado de possibilidades para A situação de tais "fazedor es do coletivo", cujas próprias almas são
o engrandecimento pessoal acarretado pela associaçã o de um devot o com articuladas como relação, uma espécie de "ponte" entre o mundo dos
seu "poder", e os procedimentos envolvidos na busca e manutenção da poderes inatos e aquele da vida humana, não é menos uma situação de
conexão propiciavam um guia (e um controle) pa ra esse empreendimento . "duplo vínculo" do que a do indivíduo criativo na sociedade ocidental.
Entre muitos grupos, como os Atapasc anos do Sudoeste ou os Sioux e Eles precisam tratar o convencional casualmente, mas sem transparec er
numerosas outras tribos "históricas" das pradarias, esse tipo de poder que o estão fazendo. Ainda que a pessoa comum faça isso em alguma
era essencial para o sucesso do homem ambicioso - um pouco como o é medida no aprendizado do pecado ou da vergonha que precisa acom
a "educação" para seu congênere ocidental. panhar seu aprendizado da humanidade, a carreira do chefe, sacerdote
O indivíduo que deseja aprender a compelir e controlar esse poder ou xamã bem-sucedido precisa levar isso até o ponto de uma completa
sobre o coletivo - o chefe, o sacerdote, o especi alista rimal, o monge, o inversão. Ele precisa aprender a viver uma ordem de motivação e expe
curador ou o xamã - precisa aprender a "fazer" os at os coletiv izantes riênci a completamente invertida, fazendo o que os out ros consideram
pelos quais ess e pode r é precipitado sem invocar a inconveniência da ver inato e ao mesmo tempo mantendo suas relações sociais e morais com
gonha ou o terror paralisante da possessão ou vitimização por esses pode eles. Em suma, ele é obrigado, à maneira de seus congêneres ocidentais,
res. Ele precisa aprender uma inversão da ação convencional, transferindo a continuamente enganar os outros do mesmo modo que estes, se m o
a seriedade que ordinariamente se concede ao convencional e ao moral saber, aprendera m a enganar a si mesmos - a viver uma vida de obviação
para as demanda s de seu "poder ", mas sem transparecer que está fazendo que é o caminho para a iluminação.
isso. Ele precisa levar as tendências de sua histeria "até o fim", a pont o de Nessas sociedades, assim como o curso normal do desenvolvimento,
ser seu poder (de atingir uma conexão completa ou união com ele), mas do "aprendendo a humanidade", envolve a criação e a superação de sin
precisa também esforçar-se para manter a imagem de humanidade. Pois tomas histéricos, o caminho para o po der ou para a iluminação envolve
o problema aqui não é o de pe rder conta to efetivo e desaparec er e!",JIm sucumbir à histeria completamente, de modo a superar suas limitações.
mundo próprio; é antes o de perder a própria motivação moral. Essa é uma histeria ma is severa, que atinge o noviço em idade madura ou
Esse é o clássic o dilema do chefe africano, que precisa ser pode roso
e também moral, exemplificado de maneira tão pungente pela figura de 10. Elenore Smith Bowen, Return to Laughter. Nova York: Doubleday, I9 64.
I 60 A invenção do eu 16 1
pós-adolescente, frequentemente sob a forma de doenças, acessos, pos CAPÍTULO 5
sessão, um "chamado" ou vocação. Viver isso até o final acarreta doen
ças contínuas, ataques frequentes - um a luta contra a própria doença,
vocação ou espírito possuidor até qu e algum controle sobre isso seja
obtido: a pess oa "morre" e "nasce novamente", "cura-se", "casa-s e com
Cristo" ou atinge a união com alg um ser espiritual. A "cura" é uma luta
para restabelecer um equilíbrio entre invenção e convenção - nesse caso,
mediante reversão do equilíbrio ortodoxo.
A "doença" ou "possessão" é concebida como uma vitimização do
eu convencional- a alma - pelo espíri to ou poder. Os Daribi dizem que
um fantasma descontrolado "come o fígado" de sua vítima, a fim de
"abrir espaço para si mesmo". Enquanto o noviço continuar a identificar
se com esse eu convencional, ao mesmo tempo que fabrica a representa
ção de um "espírito" (como invenção descontrolada) que lhe demanda
viver em um certo" estado" , os sintomas irão permanecer ou recrudescer.
Ele está inventando "contra a convenção", contrafazendo um estado de
ser que conflita com sua alm a, sua motivação moral . (As mul heres daribi
que perderam um marido ou um filho muitas vezes se tornam médiuns
noviças dessa maneira; elas querem manter suas almas e ao mesmo tempo
manter uma relação com o morto, cuja representação como fantasma
assume precedênc ia sobre sua pr ópria vontade). No entanto, à medida
que o noviço se ap roxima cada vez mais de uma situação de "conexão",
à medida que passa a identificar-se com o poder e o estado que está
"contrafazendo ", os sintomas histéricos começam a desapare cer, o fan
tasma ou espírito se torna mais "controlado", menos desregrado. Po r
fim, quando a identificação plena é alcançada, o antigo noviço se torna
capaz de precipitar a motivação do fantasma ou espírito como sua própria,
e assim a tentar produzir os atos coletivizantes po r meio dos quais ela é
precipitada sem temor de vitimização. Suas ações, a moralidade que ele
162 A invençãodo eu
~
A invenção da sociedade
mais amplas, da "evolução" cultural, équivale ao que chamarei aqui de próprias, da invenção para que tenham continuidade. De, modo implícito
ou explícito, a convençãoé reinventada continuamenteno curso da ação.
a questão da "invenção da sociedade".
O problema não é "evolutivo"no sentido antropológicoou sociobioló Uma vez que essa continuidade supõe a invenção, ela pode ser, é claro,
gico corrente, poisnão há nada necessariamente"primitivo" numa "ideo muitas vezes reinventada de maneiras que de algum modo se desviam
logia" diferenciante, e nada necessariamente "avançado" numa "ideologia" parte desses desvios, quer sejam
de representações anteriores. A maior
coletivizante. Para além do fato de que todas a s pesso as - a despe ito de graduaisou abruptos, coletivos ou individuais, equivalem m a eras alte
sua classe social ou de seu status supostamente "civilizado" - empreen rações de imagística, como as ideologias dos cul tos dos povos tribais ou
dem, de tempos em tempos, ambos os modos de ação, a probabilidade de os estilos de vestuário nos Estados Unidos. Quando, porém, ocorrem
que os antepassados do homem urbano tenham todos vivido em regimes mudanças que servempara alterar a distinção entre o queé inato e o
diferenciantes é um sinal de sua prioridade ou "primitividade" evolu
não que é artificial, podemos falar de uma mudança convencional sign ifi
tiva. Pelo contrário, todas as civilizações mais "maduras" e estabelecidas cativa. Em casos individuais, isso corresponde a uma" contr
afação" da
há muito tempo que conhecemos enfatizam modos de pensamento e ação convençãoque é parte do processo de "tentativa eerro" do crescimento,
diferenciantes ou dialéticos. Esse fato tor na problemát ica nossa tradicional ou mesmo da neurose ou histeria deum adulto. E pode culminar
numa
obsessão com a"evolução" - com a invenção disfarçada de "progresso"- total inversão da convenção cultural po r parte de um líder ou de uma
e confere uma oportuna urgência à questão da invenção da sociedade. pessoa criativa, oude um esquizofrênicoou paranoico.
É por isso que escolhi assentar mi nha discussão sobre a simbolização As alteraçõesmais impactantes da convençãosão, no entanto, sociais,
humana nos term os mais amplos p ossíveis. Qu ando os aspectos contradi e envolvemum grande númerode pessoas por meiodas próprias bases de
tórios e muitas vezes inimagináveisda "diferençacultural" emergem no sua intercomunicação.Elas são, na verdade, inevitáveis, devido à troca de
decorrer de estudos muito mais sensíveis e particulares de mundos con caracteristi cas que invariavelmente deve acompanhar a objetificação. As
ceituais específicos, como os de Ru th Benedict e Oswa ld Spengler (para línguas literalmente"falam a si mesmas" em outras línguas, eas socieda
mencionar apenas dois exemplos, bastante controversos), são frequen des vivem asi mesmas em novas formas sociais.Se compreendermos esses
temente varridospara o limbo do '~merant simbólico" ou tratados sintomas como consequênciasdo uso de controles ambíguosou relativi
com condescendênciapor meio de platitudes acerca de"ver" e "classifi zados, em lugar de vê-los como condiçõesda "mente" ou "psique" indi
car" o mundo diferentemente. Modos de ação diferenciantes e coletivi vidual, poderemoscaracterizar o comportamentode movimentos sociais
zantes e, é claro, todo pensamentoação
e humanos, são invariavelmente inteiros e mesmo de sociedades em termos de "neurose","histeria" ou
contingências de contextos específicos, idiomas específicos e símbolos inversão convencional. Pois convençõesmantidas coletivamentenão são
específicos. A tendência do analista, e do leito r igualmente, é perd er-se menos dependentes da invenção do que convenções pessoai s, e quando as
nessa especificidade, deixar-se encantar de tal man eira pela força de idio pessoasaderem coletivamente auma determinada distinção
entre o inato
mas exóticos que sua perspectiva global se perde em meio a um senso e o artificial, aplicando no entanto controles relativizados que obviam essa
geral de ambiguidade relativista,ou em uma certeza sobreas "culturas distinção dos Estados Uni dos modernos, elas precipitam uma crise coletiva.
orgânicasque cumprem seus destinos". "Diferenciação" "coletivz~ e Essa situação é tipica dos Estados Unidos modernos, onde o reino
16 7
166 A invenção da sociedade
...
I
r
medicação e assim po r diante). A relativização também ocorre entre os um a relação intrínseca com as coisas que convencionalmente "repre-
povos tribais e religiosos, aparecendo sob a forma de "impotência" das senta" de modo que ao se proferir um encantamento verbal se exerce
formas rituais de ação em face de distúr bios espirituais, de deuses e espí uma espécie de controle sobre as coisas referidas no encantamento (assim,
ritos fora de controle. E, na medida em que toda ação humana é motivada o agricultor daribi de nosso exemplo podia acreditar que de fato assumia
pela necessidade de contrapo r-se à relativização, essa mais extrema e uni- características do francolim). Em tradições nas quais os contextos conven
versal manifestação da relativização coloca para o ator a mais urgente cionalizados definem o domínio da ação humana, como a nossa, tem-se
de todas as necessida des - a de inverter seu modo de ação e restaurar o a linguagem como um produto arbitrário do desenvolvimento histórico,
equilíbrio convencional. Quanto mais uma restauração completa e efetiva algo que as pessoas podem efetivamente "fabricar" . Assim, falamo s com
é retardada ou postergada po r medidas "paliativas" (como a propaganda frequência das línguas como" códigos" e, de forma coerente, subestima
e outras atividades "interpretativas", programas de "conservação" ou mos a dificuldade de se "traduzi r" de uma língua para outra.
reorganização parcial), mais urgente se torna essa necessidade. Quer sejam percebidos como "dados" e imutáveis ou como adota
As pessoas literalmente se inventam a partir de suas orientações con dos e manipuláveis, gramáticas, vocabulários, sintaxes e usos retóricos
vencionais, e a maneira como essa tendência é contraposta e enfrentada da linguagem servem de base coletiva para a comunicação . São contextos
constitui a chave para a sua automanipulação social e histórica, para a sua convencionalizados para a expressão de significado: as pessoas precisam
invenção da sociedade. Mas , antes de tra tarmos das implicações de longo se ajustar a eles, dentro de certos limites de tolerância, se quiserem ser
alcance dessa invenção, seria proveitoso obter alguma compreensão da compreendidas. Mas, ainda que os elementos e as distinções formais
convenção cultural como uma espécie de movimento ou fluxo inventivo, sejam necessários à expressão verbal, não são suficientes em si mesmos.
uma base "comunicacional" inteiramente sustentada pelo esforço inven Afinal, é preciso haver algo sobre o que falar. Os elementos e distinções
tivo. Consideremos o exemplo da linguagem. da linguagem não são intrinsecamente significativos, embora possam
ser usados para elicitar significado, ou possam se r elicitados pela expres
são deste. As convenções da linguagem somente adquirem significado
A INVENÇÃO DA LINGUAGEM quando entram em relações de objetificaç ão com algum contexto obser
vado ou imaginado (quando o objetificam ou são objetificad as po r ele).
o conjunto de convenções mediante as quais certos sons ou grupos de Quando um linguista elabora uma sentença como" O menino mordeu o
sons são compreendidos como "representando" certas experiências e coi cachorro", está elicitando um contexto imaginário para ilustrar o "uso"
sas culturalmente reconhecidas, e mediante as quais esses sons são orde- dotado de significado da linguagem. Mas se ele, absorvido nessa bizarra
nados e transformados para articular uma expressão significativa - esse situação, exclamasse "Veja, veja, ele está mordendo O pobre vira-lata!",
corpo de "concordâncias" a que chamamos "linguagem" -, é sempre estaria objetificando a linguagem po r meio do contexto de sua aplicação.
parte do aspecto coletivo da cultura. Co m suas distinções lexicais, gra- O envolvimento da linguagem na expressão dotada de significado,
maticais e retóricas, a linguagem é sempre part e do moral e pertence aos que os estruturalistas e linguistas estruturais chamam de "fala" (parole),
contextos (relativamente) convencionalizados de uma cultura. Em U;;jlli- equivale pois a uma objetificação. Para produzir significado, as conven
ções nas quais se sente que esses contextos convencionais representam a ções da linguagem precisam ser "metaforizadas" mediante alguma inter
natureza" dada" de ser humano, a linguagem também é considerada parte relação com fenômenos situacionais (o contexto da fala, o "mundo").
dessa humanidade inata. O som de uma palavra é pensado como tendo Como vimos, essa metaforização pode ocorrer de duas maneiras: a
I 68 A invenção da sociedade 16 9
linguagem pode servir como o objeti/icador (o controle) ou como a coisa sejam satisfeitas;não é tanto a linguagem que é "usada", mas sobretudo
objeti/icada (o contexto que é controlado). (Na terminologia dos que os temasem pauta. Esses controles não convencionalizados são empre
lidam com metáfora, a linguagem pode ser ou o veículo, o controle, ou gados como objetificadores, conferindo suas características díspares às
O teor, aquilo que é controlado.) Ainda que ambos os tipos de metafori distinções e aos elementos da linguagem comumente aceitos de modo a
zação sejam encontrados em todas as tradições, nã o devemos nos sur metaforizá-los e trans formá-los em significado.
preender ao descobrir que ociden tais urbanos enfatizam o uso da lingua Essa orientação"inversa" quanto à expressãoverbal confere à fala
gem como controle, enquanto povos tribais, camponeses e urbanos de corrente O caráter colorido e conscientemente metafórico que associa
classe baixa controlam a linguagem mediante formulações expressivas mos ao "estilo" dos índios norte-americanos, a gíria
coclcney e a imagís
(mediante seu uso do mundo, poderíamos dizer). tica dos negros norte-americanos. A fala torna-se antes uma questão
Se a linguagem é sentida como uma questão de regras e de desem de diferenciação consciente que de perfor mance literal. Esse uso cor
penho (o "uso" da linguagem) conscientes, como em nossa sociedade, responde a uma visão do mundo como fenomenicamente incipiente e
os temas do discurso são objetificados diretamente mediante os elemen sujeito às construções que as pessoas impõem sobre ele. Ele tem suas
tos e distinções da linguagem. Eles ganham associações coletivamente regularidades, certamente, mas estas porsua vez dependem (nasformas
compreendidas por meio das palavras e formas articulatórias usadas pelo particulares que assumem) das maneiras escolhidas pelas pessoas para
falante. Inventamosuma "realidade" situacionalou incidental e histórica articulá-las e colocá-las em relação com o coletivo.As característicasdo
mediante o emprego consciente da linguagem, um emprego que demanda mundo são" ocultas" e precisamser reveladas por meio de metáforas de
o "uso correto" por parte do falante. Se para nós a linguagem é arbitrá modo a se transformaremnas convenções comumente compreensíveis
ria e passível de correção e mudança, o mundo do
"fato" e do "evento" e comunicáveis da linguagem. As metaforizações utilizadas com mais
é definitivamentenão arbitrário: nossas investigações científicas, legais frequênciairão conferir ao mundo uma aparência de estrutura feorma
e históricas constituem esforços (inventivos) para descobrir "quais são convencional, mas isso está sempre sujeito a revisão, na medida em que
os fatos" e "o que realmente aconteceu". Assim comoas metodologias novas construções assumam proeminência ou tomem o lugar das mais
racionais dessas disciplinas, exigimos que nossa linguagem
seja um ins antigas.É um "mundo como hipótese", que nunca se submeteàs exigên
trumento de precisão (ainda que fabricado por nós mesmos) para a des cias rigorosas da "prova" ou legitimação final, um mundo não científico.
crição e a representação de um mundo obstinadamente factual, e nossa É por isso que os povos tribais podem reconhecer e validar relatos míticos
visão da linguagem e m geral com frequência reflete essa tendência. mutuamente contraditórios sobre a srcem e a estrutura do mundo com
Se a linguagem é sentida comouma realidade"dada" em si mesma, perfeita equanimidade.
algo (como a mor alidade) que se manifesta nas ações de uma pessoa, mas Assim como outros componentesda nossa Cultura coletiva, a lin
não é conscientemente"usado" ou "corrigido", deparamo-nos com uma guagem é um meio de racionalizar o mundo, de inventá-lo comoum
orientação diferente da comunicação e expressão. Aqui o significado é contz"nuum causal de fatos e eventos. N assa linguagemé um controle con
produzido pela objeti/icação (e invenção) da linguagem, como uma coleti vencionalizado postoem uma relação determinada com outros controles
vidade, por meio dos temas em pauta. Os problemas e as ocasiões do,::..pis- desse tipo. Para as tradições tribais, camponesas e outras tradições
não
curso" assumem precedência sobre aquelesda "linguagem",que emerge racionalistas, a linguagem se situa em meio aos contextos coletivosque
como resultado da expressão. As pessoas elicitam os temas do discurso são controlado s e inventados, objeti/icados por meio dos controles alter
metaforicamente de tal modo que as convenções gerais da linguagem nativos do mundo experiencial. No pri meiro caso, a linguagem confere
seu status convencional. tos exteriores àqueles de sua expressão srcinal, quando tornamos sua
Desse modo, a natureza absolutamente convencional (ou" correta") imagística uma parte da nossa imagística para dizer coisas em geral, ele
das distinções lex icais e gramaticais, bem como a natureza absolutamente se torna uma "maneira de dizer algo" convencionalmente reconhecida.
não determinad a e voluntária das construções expressivas (como metáfo O uso de um constructo figurativo para facilitar a formação de
ras, figuras de linguagem e as orações que as contêm), sempre tem algo de outros constructos figurativos, a despeito de quão raros ou esporádi
ilusório. As convenções da linguagem sempre são, em alguma medida, rela cos sejam, equivale à convencionalização linguística de algo que ante
tivas, pois como um elemento da contínua invenção do mundo a própria riormente era um controle não convencionalizado. O que consistia pre
linguagem está sempre no processo de ser inventada. Geralmente, existem viamente em uma parte do conteúdo da fala foi introduzido no leque
mais manei ras" corretas" alternativas de se fazer distinções linguístic as, e de formas relativamente convencionalizadas que se distribuem em uma
menos maneiras dotadas de significado, ainda que diferentes, de se descre escala entre os constructos expressivos e as ordens sistêmicas da sintaxe
ver uma situação ou fenômeno, do que tem consciência qualquer falante de e gramática. É difícil determ inar o quan to clichês como "d o meu ponto
uma língua. Isso porque qualq uer falante ou comunidade de falantes dados de vista" ou "até segunda ordem" devem ser vistos como pertencentes
precisa manter uma imagem e uma prática daquilo q ue é convencional e à "língua" ou não. Eles são convencionalizados a ponto de que a maio
daquilo que é não convencionalizado no que diz respeito ao uso da língua, ria dos falantes sabe o que significam ou mesmo conta com que sejam
assim como precisa fazê-lo com respeito aos out ros contextos da cultura. usados, e, no entanto, retêm um caráter alternativo, na medida em que
Em vez de ser um conjunto delimitado de convenções (sintáticas , outros arranjos de palavras pode m substituí-los livremente, sem prejuízo
gramaticais e lex icais) que po dem ser rearranjadas em várias combina da "corr eção" o u da aceitabilidade linguís tica. Sua relação analógica COm
ções para descrever o mundo e suas situações, toda língua constitui um os contextos srcinais no domínio do discurso é também visível, pois lan
espectro de formas sonor as mais ou menos convencionalizadas, que.~o çamos mão de ssa "imagís tica" ao usá-l os - "ponto de vista" evoca uma
desde distinções puramente sistemáticas (como as da sintaxe e gramática) imagem de mudanças relativas na aparência de um objeto quando visto
até construções analógicas evocativas que "descrevem" (e inventam) o de ângulos diferentes. Mas ess a imagística é comumente tã o desgastada
mundo da fala. N um extremo está o conjunt o de distinções e precedentes pelo uso Constante (convencionalização) que acaba sendo "tomada po r
tura" só se torna aparente na similaridade dessa palavra com as formas Em paralelo ao processo de convencionalização linguística em todos
do verbo "cultivar", enquanto palavras como "casa" [house] e "dona" os níveis de convencionalidade relativa está sempre em operação um con
[wiJe, "esposa"] há muito ultrapassaram os limites de qualquer reconhe traprocesso de diferenciação ou particularização das convenções da lin
cimento analógico. Muitas veze s, abreviações e acrônimos (com o "nazi" guagem. Sejam os elementos da linguagem usados ativamente como con
ou "PM", OVNI ou DVD) ou combinações de palavras tomadas de outras trole ou sirvam eles como um contexto para outros controles, os encontros
línguas (como "laptop", "pick-up" ou "telecinese") são usados para faci com os contextos particulares de fala têm o efeito de objetificá-I os e con
litar a convencionalização de novos constructos, obscurecendo suas bases ferir-lhes caracteristica s altamente especí ficas. Quando uma de terminada
analógicas ou tornando-as comparativamente inacessíveis. E todavia, a palavra, expressão ou elemento gramatical ocorre com frequên cia em
convencionalização de palavras, como a de outros tipos de constructos, um contexto em detrim ento de outros , adquire as associaç ões peculiares
é compreensível como parte de um processo gradual de convencion ali daquele contexto, a ponto de perder seu status convencional. Podemos
zação dos controles usados de modo alternativo (qualquer que seja seu dizer que os elementos linguísticos gerais se tornam dessa maneira" espe
status convencional na cultura em geral) para criar o "conteúdo" da cializados" - eles são "selecionados", consciente ou inconscientemente,
fala. É tão difícil determinar as fronteiras do vocabulário de uma língua para ser usados em certos contextos, de modo que a maior parte de suas
quanto definir seus outros elementos formais. associações dotadas de significado acaba po r vir desses contextos.
A convencionalização continua a operar sobre os constructos semia Por vezes essa seleç ão constitui uma tendência geral entre os falan
nalógicos que formam a fluida e vaga "fronteira" da linguagem, mas de tes de um a língua, e então as palavras, formas gramaticais ou retóri
uma maneira seletiva, de modo que os de uso mais comum acabam po r cas sofrem uma mudança no que se refere à sua significação linguística
perder totalmente sua natureza figurativ a e se tornam parte da ordem global. Em outros casos a seleção corresponde a preferências e hábitos
sistêmica da sintaxe , da gramát ica ou do léxico. N osso uso dos auxilia:us de um certo contexto social, educacional ou ocupacional particular, ou
"have" e "will"para formar o passado e o futuro dos verbos [em inglês ] é
um exemplo disso . Esses verbos praticamente perde ram seus respectivos 1. Edward Sapir, A linguagem: introduçãoao estudo da fala. São Paulo: Perspectiva, [I92 1 J
sentidos de "possuir" e "querer" (volição) nesses contextos gramaticais, 19 80.
de processa
"padronizados" , linguagens artificiais, códigos e sistemas o nosso tabaco, e você saberá nossa língua", diziam-me os Daribi.Mas
mento de dados, tudo em prol da "comunicação". essa mesma transformação "automática" do mundo em homogeneidade
Quando os recursOS linguísticos habituais de uma pessoa falham, convencional motiva o falante indivi dual a distingui r sua identidade e sua
seja porque ela está ainda "aprend endo" a lí ngua e não consegue faze r ação efetiva das de outros. Com isso eleirá conscientementediferenciar
justiça a uma dete rminad a situação de fala, ou porque as formas disponí sua fala, enfatizando o poder expressivo e a peculiaridade daquilo que
veis estão tão convencionalizaclas que se tornam "banais", ela é forçada tem a dizer ao construi r sua qualidade figurativa por meio do uso de toda
a inverter os controles e "inventar a linguagem" mediante a articula sorte de controles bizarros e exóticos.O resultado podeser "magia" ou
ção deliberada de construções "discursivas" (metafóricas). Essa inver poesia, ou simplesmente aquela tortuosidade do discurso que alternada
são, o equivalente linguísticoda "invenção consciente"que chamamos mente encanta e mistifica aqueles ocidentais que presumem interpretá-lo
de "personalidade", é tão importante no aprendizado da fala quanto nO como "comunicação" deliberada.
aprendizado do eu. Ela é especialmente característi ca da fala de crianças Quando esse modo de falar deixa de comunicar em algum sen
pequenas (que podemos escolher chamar de "brincadei ra linguística"), tido significativo, quando cessa de ser inteligível, o falante é obrigado
e correspon de àquele aspecto do falar form almente invisível que N oam a inverter sua objetificação da linguagem e voltar-se para uma "compe
Chomsky caracterizou como "performance" em contraste com a "com tência" linguística consciente.Ele torna explícitas distinções linguísticas,
petência"da construção sintática e gramatical deliberada. "Performance" apontando e "denot ando" objetos para definir p alavras ou clarificando
é simplesmente a capacidadede articular o "mundo", a imagística dos usos gramaticaisou sintáticos. Assim como a "performance" em nossa
constructoSde fala diferenciantes; é a "poesia" que os românticos imagi própria sociedade, essa "competência" constitui uma parte imprescin
naram ser a forma srcinal da linguagem. Ela é inventada como "inata" e dível do aprendizado da fala para os membros de uma tradição diferen '
como um mistério fascinante (assim comoa "personalidade" ou a "evó- ciante, sendo portanto particularmente característica das crianças (embora
~
lução") por meioda concentração obstinada dos linguistas nos aspectos ((denotar" frequentementeseja um traço importante dos ritos de iniciação).
formais e convencionaisda fala (sua "linguigem" ["linguage": linguis- Daribi adultos muitas vezes riam-seao ver uma criança pequena listar
ties + language, linguística + linguagem], como achamo, em seus muitos nomes de plantas comestíveis para mim metódica e incansavelmente, ou
apontar pa ra objetos e me ensinar os nomes deles. Mas esses mesmos que é dito, po r mais que possam se sobrepor. Pa ra toma r emprestado um
adultos achariam neces sário, em outros momentos, ajudar o forasteiro exemplo feliz de Christian Morgenstern, não se pode na realidade conju
explicando-lhe contrações verbais, ou apontando par a ações e objetos gar werewolf("lobisomem":literalmente, passado e subjuntivo do verbo
significativos e me contando seus nomes locais. "ser" + "lobo"] em "willwolf', "wouldwolf', "shouldwolf' e assim por
Desse modo, "performance" e "competênc ia" - o uso de controles diante [com outros verbos auxiliares do inglês].
diferenciantes e coletivizantes, respectivamente -, bem como as inver A linguagem é um aspecto da cultur a que pode ser usado para
sões envolvidas em mudar de um modo para o outro, são portanto neces representar praticamente todo o conjunto da vida cultural, ainda que
sárias para o aprendizado da fal a em qualquer cultura. Evidentemente, nesse processo as suas formas convenciona is devam permanecer distin
podem ter "pesos" diferentes em tradições diferentes, dependendo das tas. Mito, arte, matemática, ~congrafi e mesmo a "linguigem" espe
respectivas convenções quanto ao que é inato e ao que é artificial. Apren cializada dos linguistas são aspectos análogos, vivendo na tensão e na
der a falar em uma língua significa aprender a man ter a fronteir a entre interação entre forma convencional e extensão representacional. Assim
as formas da fala e seus conteúdos po r meio de atos contínuos de arti era a música para Rich ard Strauss, qu e se gabava de ser capaz de fazer o
culação; é uma luta constante contra a relativização da linguagem, de ouvinte saber se o protagonista de um de seus poemas sinfônicos estaria
um lado, e dos constructos da fala, de outro. Os atos de objetificação, usando um garfo ou uma faca.
mediante os quais essa relatividade é mascarada e as fronteiras entre
forma linguística e conteúdo são mantidas, só podem levar a mais rela
tivização. A fala, em outr as palavras, gera a mudança cont ínua da lín A INVENÇÃO DA SOCIEDADE
gua mediante os próprios meios pelos quais uma ilusão de estabilidade é
mantida, e a forma linguística vive em um flux o inventivo t anto quanto Há duas maneiras possíveis de se manter a relação entre as conven
a imagística dos constructos discursivos. ções da cultura e a dialética da invenção. Ou a dialética pode ser usada
Essa siruação tem implicações significativas para a invenção da socie conscientemente para mediar as formas convencionais, ou a articula
dade em geral, e visto que essa discussão sobre a linguagem pretendeu ção de contextos convencionalizados em uma unidade consciente pode
em grande medida fornecer uma ilustração da convenção culrural como ser usada para mediar a dialética. Cada um desses modos corresponde
"fluxo" inventivo, vamos acompanhar essas implicações retornando a a um tipo particular de continuidade cultural, a uma concepção parti
nosso assunto principal. Mas antes de abandonar o tema da linguagem é cular do eu, da sociedade e do mundo, e a um conjunto particular de
importante recordar que usamos a língua e a fala meramente como exem- problemas que confronta Ce motiva) os inventores. O pensamento e a
plos dos fenômenos mais amplos da objetificação e do controle. Quando ação dialéticos se voltam conscientemente para a mecânica da diferen-
falo em convencionalização ou diferenciaçãode formas linguísticas, quero ciação contra um fundo de similaridade; as abordagens coletivizantes
dizer que essas formas se tornam convencionais ou particularizadas com ou racionalistas enfatizam a integração e o elemento de similaridade
respeitoà questão da fala e da articulação verbal.Embora desse modo com contra um fundo de diferenças. Uma vez que a dialét ica incorpora os
partilhem dos significados sociais, políticos e emocionais que a lingu~ meios de mudança e de continuidade cultural, as culturas que usam a
tem para nós, essas transformações nã o são necessariamenteequivalentes dialética para mediar suas formas convencionais irão m anter uma esta
àquelas que a fala representa. A imagística da linguagem, ou do dizer coi bilidade iner ente de um tipo inacessível àquelas que medeiam a dialética
sas em geral, tem u ma função ou intenção di ferente da imagística daquilo po r meio de f ormas convencionais.
o que entendo por "mediar" e como isso se relaciona com a estabi antitética à emoção e à motivação, o termo "lógica" poderia se mostrar
lidade e a continuidade? A mediação se refere ao uso de um a coisa, ou de perigoso e enganador, como na caracterização de Lévy-Bruhl do pensa
um tipo de coi sa, como meio para fa zer outra coisa - o uso de um con mento dialétic o como " pré-lógico" ou "mágico". O efeito dessa hipér
texto para controlar um outro é um exemplo de med iação. Mas aqui estou bole (bem como dos ainda menos palatáveis idiomas da "primitividade"
falando em maneiras abstratas de administrar a interação de controles - e do "homem da idade da pedra") é tornar o problema do pensar um
no uso de um tipo de controle (convencionalizado ou não convenciona aspecto supremo da nossa abordagem da cultura. Uma vez que o pens a
lizado, conforme ocaso) como base de orientação para a autoinvenção mento é inseparável da ação e da motivação, não estamos lidando tan to
de um povo ou uma tradição com o um todo. O proble ma da invenção da com diferentes "lógicas" ou racionalidades quant o com modos totais de
sociedade envolve a manutenção ou a mudança dessa orientação. Cul ser, de inventar o eu e a sociedade. Um modo de invenção consciente
turas que medeiam o convencional de modo dialético fazem da diferen mente dialético é característico de algumas das mais sofisticadas tradições
ciação (o que inclui as qualidades do paradoxo, da contr adição e da inte que conhecemos, e abordag ens lineares, racional istas, também foram
ração recíproca) a base de seu pensamento e de sua ação. Elas encenam amplamente disseminadas nas gr andes civilizações.
as contradições dialéticas e motivacionais de modo consciente em sua A natureza dialética do pensamento e da ação em sociedades tribais
administração dos papéis, rituais e situações, e assim reconstituem con há muito tempo constitui uma experiência dos etnógrafos, não importa
tinuamente o convencional. Culturas que medeiam a dialética por meio o que eles escolham fazer teoricamente com ela. Apreendido s seja como
do convencional, por ou tro lado, padronizam seu pensamento e sua ação sabedoria extraordinária (um daribi certa vez me disse: "U m homem
segundo um modelo de articulação coerente, racional e sistemá tico, enfa é pequeno; quando você fala o nome dele, ele é grande"), seja como
tizando a evitação do paradoxo e da contradição. Lançando mão de um observação perspicaz (como no caso daquele esquimó "ecológico" que
familiar idioma fr eudiano, podemos dizer que essas culturas "rep rimem " diz que "o lobo mantém a rena forte e a rena mantém forte o lobo"), os
a dialética, embora ao fazê-lo passem a incorporá-la em suas próprias comentários dos sujeitos estudados pelo antropólo go muitas vezes apon
histórias - são "usa das" por ela. tam precisamente para as dependências que ele está tentando capturar.
Os acadêmicos modernos talvez prefiram ver esse contraste como Autores como Lévi-Strauss reuniram volumes de exemplos da natureza
um contraste entre diferentes "lógicas": um a lógica dialéti ca e tempo dialética do cerimonial nessas sociedades. Talvez a melhor caracteriza
ral (isto é, que enfatiza o valor cambiante das proposições no tempo) ção geral do fen6meno possa ser encontrada nas observações de Bateson
2
versus uma lógica linear e não temporal. E no entanto, como muitos de sobre a "dualidade" entre os latmul da Nova Guiné:
nós fomos ensinados a considerar a lógica como sendo de algum modo
Devemos ver o desenvolvimentode sistemas alternadosna cultura iat-
2. Aqueles interessados em explorar essa distinção do ponto de vista da lógica deveriam mu i e sua ausência em nossa própn'a culturacomo uma funçãodó fato de,
consultar o livro Laws of Form, de G. Spencer Brown (Londres: Allen and Unwin, 1969), entre os latmul, amóos os padrões, complement
ar eassimém'co, serem
discussão brilhante similar à que se encontra num ensaio inédito de J. David Cole intitu pensadosem termos duais, ao passo que na Europa, emóora entendamos
lado "An Introduction to Psycho-Serial Systems and Systematics" (1968). Cole com~.wa
os padrões complementares como duais ou dispostos em hierarquias, não
que "não é necessário que os atos tenham ideias por trás de si: eles assumem seu lugar
em qualquer cadeia de eventos psicosseriais como partes de um processo racional. Quando pensamos nos padrões de rivalidade e ou competiçãocomo necessaria-
procuramos a ideia por trás de uma ação estamos meramente procurando elaborar seu mente duais. Em nossas comunidades, rivalidade competição
e são con-
significado" (p. 1). cebidas como algo que se dá entre qualquer número de pessoas, e não há
'.-
4· Johannes Fabian,jamaa: A Charismatic Moyement in Katanga. Evanston: Northwestern
3. Gregory Bateson, Nayen: Um exame dos problemas sugen·dos por um retrato compósito da Universiry Press, 197', p. 149·jamaa significa "família", e a doutrina do movimento em ,[:I
cultura de uma tn'ho da NOYa Guiné, desenhado a partir de três perspectivas, trad. Magda Lopes. prega conscientemente o conceito dialético de "geração mútua" (leu.-sala, cf. pp. 132, 149)
São Paulo: Edusp,[1958] 2008, pp. 3°4-0,. implicito na relação marido/mulher para caracterizar sua unidade. I'1
I 86 A invenção da sociedade
187
mutuamente opostas, po r assim dizer - uma dialé tica entre o sagrado e entra em reclusão e comunga com fantasmas malignos no mato durante
o profano, ou entre a alma e o "poder" antropomórfico, cuja expressão a cerimônia do habu passa igualmente po r uma transformação de uma
e rediferenciação contínuas equivalem a nada mais nada menos que a fase de motivação e ação "cotidiana" para uma fase "criativa", carac
invenção permanente da sociedade. Ao continuamente diferenciar cada teristica mente cercada de precauções contra a profanação dos homens
conjunto de oposições do outro, ao isolá-lo e protegê-lo da profanação do habu pelo contato com as mulheres e contra a doença do habu que o
ou da contaminação, ao ativá-lo deliberadamente para negar o outro, os fantasma inflige aos que fazem mau uso da cerimônia.
povos tribais objetificam sua orientação convencional do eu em relação Ao observar essas precauções e distinções, a sociedade se cria sequen
ao mundo. Eles medeiam o convencion al por meio da dialética. cial e episodi camente como harmonia cosmológica, produzindo um poder
É po r isso que insistem tanto sobre as distinções e fronteiras entre administrável bem como as instiruições e situações sociais nas quais esse
essas modalidades, pois tal diferenciação constitui o próprio âmago de poder é aplicado. Essa criatividade é cíclica po r natureza, produzindo um
sua autoinvenção social. Exatamente como o eu colet ivo é inventado po r aspecto da totalidade e depois o outro, em turnos, e geralmente acaba
meio das atividades conscientemente diferenciantes do indivíduo, uma caindo em um ritmo frouxo, que pode ser mais ou menos regular (sazo
orientação convencional de um eu desse tipo em relação a um mundo nal, anual, instigado pela narureza cumulativa das ações culturais "or di
de "poderes " é inventada e sustentada pela diferenciação entre contextos nárias"), embora também possa ser quebrado po r crises ou catástrofes.
"sagrados" e "profanos" po r parte da sociedade mai s ampla. Ao inven Quando ele é sazonal, anual, ou ligado de outro modo a ciclos fenomê
tar as relações das atividades rituais e cotidianas umas contra as outras, nicos, como nas cerimônias periódicas de "renovação do mundo" dos
eles contrainventam a totalidade, o quadr o de referência conceitual, que índios norte-americanos ou na "estação cerimonial" do inverno na Costa
inclui ambas. Os tabus, precauções e outras práticas e elementos que Noroeste [dos Estados Unidos], podemos dizer que a sociedade objetifica a
distinguem o "sagrado" do "profano" ou do "secular" situam-se bem regularidade dos fenômenos naturais po r meio de sua própria ordem. Em
no centro da vida porque constituem os meios da autoinvenção social , outr os casos, como os banquetes de carne de porc o e os ciclos de troca nas
e não porque os povos tribais são obcecados pelo temor do incesto, po r terras alt as da Nova Guiné, a qualida de "autoequilibrante" e "aut omo
exemplo, ou são presa de ansiedades pairantes. tivadora" da autocriação se destaca ; essas cerimônias são motivadas po r
A sociedade, nesse caso, é concebida e operada (a partir de "den- consequências cumulativas da vida ordinária, tais como a proliferação de
tro") como um conjunto de dispositivos (diferenciantes) para elicitar porcos, que invadem as roças, ou o acúmulo de jovens que "precisam ser
coerência e similaridade, e suas distinções mais básicas são aquelas que iniciados". Mas em ambos os casos o modo de ação ritual ou "criativo" é
"juntam as peças do mundo". Muitas vez es os mesmos indivíduos são assumido a fim de que se mantenha controle sobre o que ameaça tornar
obrigados a desempenhar tanto os papéis" cotidiano s" quanto os "criati se um poder descontrolado e levar o mundo, ou as roças dos homens, ou
vos" como papéis explícitos, ainda que em ocasiõ es diferentes. O ho mem a sociedade como um todo, à destruiçã o.
aranda, que habitualmente vive diferenciando seu papel contra o de sua Ciclos, distinções e precauções rituais definem e objetificam as con
esposa e família, precisa, em certas ocasiões "rituais ", diferenciar a si venções da própria sociedade. Aqueles indivíduos que obteri am poder e
mesmo contra a socied ade transformando-se em uma criatura inapelJJfa, assumiram um papel criativo em relação à sociedade precisa m aprende r a
um ser criativo que compartilha características tanto humanas como natu subordinar essa tendência autoequilibrante da sociedade à vontade e aos
rais, com o que propicia ao ritualista tanto fazer proli ferar cada espécie desejos de um "poder". Eles preci sam, em outras palavra s, aprender a
animal quanto reconstituir sua própria sociedade. O homem daribi que mediar a dialéti ca po r meio da articulação do coletivo, e dessa forma
das tensões internas, transf ormando a dialética interna em um a dialética As implicações disso são decisivas e de longo alcance. A mediação da
externa entre o indivíduo e a sociedade. mudança dialética por via da ação coletivizante introduz uma desarmonia
Exceto em ocasiões cerimoniais ou alianças interpessoais, esses profu nda en tre a conceitualização da ação e seus efeitos" Emb ora os COntro-
indivíduos raramente agem de comum acordo e muito menos se asso les (diferenciantes versus coletivizantes) usados respectivamente pelas duas
ciam numa guilda ou trans mitem suas técnicas de um modo que não seja "classes" ou subdivisões da sociedade se enCOntrem em uma relação dialética
pessoal. Cada um deles se encontra em uma relação dialética pessoal entre si, essa relação (e a correspondente interação entre as classes) é Con-
com a sociedade, estabelecida po r seus próprios esforços e amplamente tinuamente expressa e reinventada de forma não dialética. Ela é percebida
definida pela idiossincrasia de suas próprias técnicas. Se eles de fato vies e constituída como a organização linear da sociedade como um todo em
sem a se associar no âmbito de algum quadro institucional ou conven relação a Deus ou à natureza. E, ao ignorar dessa maneira sua própria dia
cional, o resultado seri a a transformaçã o da dialética episódica e cícl ica lética interna, a sociedade perde a capacidade de manter sua orientação Con-
da criação social em um contraponto criativo de classes sociais distintas. vencional do eu perante o mundo e daquilo que é "dado " e inato perante
Quando uma tal "divisão do trabalho criativo" socialmente constituída aquilo que resulta da ação humana. Não há nada que possa conter a pro
emerge (como várias vez es Ocorr eu no curso da história humana), ela gressiva diferenciação dos controles convencionalizados ou a progressiva
equivale a um a inovação sobre as formas da cultura tribal, uma inven coletivização dos controles não convencionalizad os. Uma "relativização"
ção da sociedade diferent e e distinta. As classes componentes desse tipo contínua dessa ordem se torn a parte inevitável da ação socia l. Em lugar
de dialétic a encontram-se em uma relação de mútua e simultânea cria de motivar-se dialeticamente,a sociedade o faz histon"camente. Em vez de
tividade; elas dividem entre si os mundos da invenção e da convenção. propiciar uma solução, sua dinâmica interna suscita o problema principal.
Contudo, as condições sob as quais tal divisão de classes emerge U ma sociedade que se dedica a mediar a m udança dialética po r
eliminam efetivamente qualq uer consciência dessa relação dialéticawa meio da articulação de Contextos convencionalizados condena-se a per
aqueles que estão envolvidos na invenção da sociedade. Pois a mudança ceber e a tenta r solucionar problemas que são basicamente sociai s em
de uma criatividade alternante e episódica para uma relação estát ica entre termos não sociais" A "solução" ideológica e prática invariavelmente
classes sociais atribui a responsabilidade de criar e sustentar o aspecto gera problemas incontornáveis, e esses problemas invariavelmente dizem
tal uso) e assimilados a uma "Cultura" comum. Por fim, o "dado" perde da identificação como um estágio necessário no desenvolvimento de uma
sua natureza coletiva e antropomórfica e é diferenciado em um mundo dialética social. Em uma escala cultural, esse processo gera motivações de
de fenômenos naturais, aO passo qu e as atividades do homem se conver massa disseminadas e esforços de expansão: as Cruzadas, a Reforma, as
tem no centro coletivo de sua vida. A culturagradualmente se seculariza guerras mundiais e o colonialismo são exemplos. Isso equivale ao fenô
e se democratiza, invertendo seu conceito do eu e sua orientação do eu meno que pensamos como a ascensão da civili zação urban a.
perante o mundo; a tentativa de inventar a sociedade como relação do
homem com a divindade leva à ascensão da burguesia.
Isso não é solução. Pois a tentativa de inventar a sociedade como A ASCENSÃO DAS CIVILIZAÇÕES
relação racional e científica do homem com a natureza é meramente
um a outra maneira de mediar a dialética po r meio do convencional. U ma vez qu e começamos nossa discussão sobre a invenção cultural
Os controles convencionalizados de uma Cultura do empreendimento com uma exploração da criação dialética de significado, faz-se necessá
coletivo são gradualmente diferenciados em especializações e estilos ri o agora perguntar o que acontece quando essa dialética é "mediada".
de vida separados e distintos: os trabalhadores organizam-se em sindi Isso signif ica que a dialética deixa de operar? Dificilmente, pois vimos
catos e o populacho se converte num punhado de "minorias". Simul que as relações necessárias ao próprio significado são dialéticas quanto à
taneamente, os contextos díspares do mundo da natureza passam a se r forma, opondo o coletivo ao individual e particular. A mediação da dialé
ordenados e coletivizados, de modo que a natureza assume uma forma tica simplesmente torna sua expressão e operação dependentes de meios
crescentemente sociom órfica - e mesmO antropomórfica. Exatamente não dialéticos. Um a tradição cultural que medeia a dialética po r meio
como a diferenciação cumulativa do divino e a coletivização do secu de relações e expressões coletiviza ntes aprende a criar e a compreender
lar motivaram os líderes dos tempos medievais a restaurar a col$vi um mundo fundamentalmente dialético em termos lineares e racionais.
dade do sagrado insistindo em distinções sociais, os homens e mulheres Ela constrói um mundo ideológico a partir de conexões causais de "mão
do mundo moderno são levados a fazer justiça à distintividade natural única" denegando e desenfatizando os aspectos contraditórios, parado
(individual, racial etc.) integrando e organizando a sociedade. Mas seus xais e recíprocos do pensamento e da cultura humanos.
marca quanto tornar seu nome e suas características familiares - parte da civilizações diferentes .
tecnologia coletiva e da vida da cultura. O candidato políti co, da mesma Nã o é improvável qu e os conteúdos conceituais dessas várias altas
maneira, desenvolve sua "imagem" e sua plataforma contra aquelas de culturas contrastem conforme a descrição de Spengler. No entanto, a
seus oponentes porque quer transformar suas próprias visões na s visões tendência de Spengler é identificar-se tão completamente com o protos-
do "governo". Os americanos diferenciam com o intuito de coletivi{ar. símbolo e sua articulação que ele vê seu término, o fim de uma fase de
É isso o que queremos dizer com "competição". A diferenciação ea desenvolvim ento, co mo uma espécie de negação. Da í o título de seu livro
contradição são racionalizadas e "inseridas no sistema" como "meios" e o profundo desconforto que causou entre historiadores racionalistas e
para um "fim" único, monolítico - um a vida melhor, um governo mais discípulos do "progresso" nos últimos cinquenta anos [desde a década
democrático, um a espécie humana mais forte e assim por diante. de 1920). De fato, a ideia mais comum de qu e o "alto" desenvolvimento
A dialética está sempre "lá" . Está apenas sendo "usada" de maneira cultural tem uma morfologia" cíclica" também colocou essas pessoas na
diferente nesse tipo de situação. As contradiçõe s e paradoxos inerentes que defensiva, embora eu tenha tentado mostrar que ela pode ser derivada de
ela incorpora são "mascarados" nas objetifi cações coleti vizantes usa das par a uma abordagem muito diferente da de Spengler. Sugeri qu e aquilo que
mediá-la. É por isso que a propaganda, o entretenimento, a "mídia" e a reli chamamos de desenvolvimento de uma civilização é um a transição auto
gião popular não admitem seu próprio status como "cultur a interpretativa": motivadora de uma relação de poder episódi ca para uma relação de poder
precisam "mascarar" a natureza criativa e contraditória de seus esforços social, a despeito do conteúdo simbólico de seus controles. O que está
justificando-os como contribuições a um todo coletivo. Fazem parte de uma em pauta nessa discussão é como as pessoas criam suas próprias realida
tradição que inventa a si mesma com O relação do homem com a natureza, des e como criam a si mesmas e suas sociedades por meio destas, mais do
mais do que como relação criativa de uma parte da sociedade com a outra. qu e a questão de saber o qu e são essas realidades, como se srcinaram
A história dessa tradição está abarrotada de exemplos de contradição dia ou como se relacionam co m aquilo que "realmente" está ali.
lética: bispos e papas que têm amantes e famílias, executivos e políticos Toda vez que uma sociedade composta de classes ou segmentos
maquinando para "fazer as coisas parecer corretas", cientistas que "trapa postos em relação dialética entre si - comO quer que isso tenha se pro
ceiam" em suas metodologias - todos possuem racionalizações para jus duzido - tenta mediar essa relação po r meio de uma ideologia linear,
tificar suas ações. Esse é um modo de ação cultural que usa a dialética em nã o dialética, instala-se uma desarmonia qu e opera de modo a resol
lugar de incoporá-Ia, se bem que ao usá-Ia seja por sua vez usado por.#a, ver-se a si mesma. A resolução é automotivadora, tome ela a forma de
detenha a relativização progressiva dos controles. cobrança de impostos e da arregimentação que tal coletivização implicava,
Consideremos a situação na Europa medieval. O clero e a nobreza construindo "novas cidades" ou tentando obter concessões para consti
criaram suas individualidades pessoais e seu caráter distintivo como clas tuir "cidades livres", mais propiciavam a coletivização de seus controles.
ses hierárquicas po r meio da objetificação da sociedade como relação A diferenciação conduziu a uma ruptura entre nobreza e clero, ele
coletiva do homem com Deus. Nesse empreendimento, seus contro- mentos do aspecto "coletivizante" da sociedade cujo poder e cuja s aspi
les eram os controles convencionalizados da doutrina e das fórmulas rações tinham coincidido sob os imperadores Carlos Magno e Ot o I.
religiosas, aharcando igualmente outros códigos, tais como a lei feudal. Ao mesmo tempo, fragmentou e particularizou as esferas de ambos os ele
O campesinato criou a comunalidade do homem em substância e em mentos. O vínculo feudal fora srcinalmente um penhor de total compro
espírito por meio da vivência de deter minados estilos de vida e especiali misso e apoio entre senhor e vassalo, basead o na honra. 7 Gradualmente,
dades ocupacionais. Seus controles eram os controles diferenciantes dos contudo, com a extensão das formas feudais a fim de ahranger situações
trabalhos masculino e feminino, de técnicas artesanais partic ulares, ou cada vez mais diversas, os feudos e os serviços trocados se tornaram
de funções especializadas. Cada segmento da sociedade "fazia" o eu, e crescentemente particularizados: po r exemplo, uma taça de vinho pela
encarnava o trabalho, do outro, e uma vez que os interesses fundamentais vigilância noturna na véspera de Natal. Além disso , os vassalos passaram
eram opostos cada um motivava o outro a uma aplicaçã o e reaplicação a ter mais de um senhor, de modo qu e o vínculo perdeu seu caráter de
mais ou menos contínua de seus controles. compromisso total. O conceito de fidelidade ao suserano [liege homage 1
Os "eus" individuais da nobreza e do clero estavam continuamente foi desenvolvido para corrigir isso, o suserano sendo o senhor a quem
sujeitos à ameaça da profanaçã o e da perda de status hierárquico em vir o vassalo devia maior obrigação. Contudo, como observa Bloch, "pre-
tude da emulação da "mundanidade" camponesa. Mas o eu coletivo do cisamente porque a fidelidade ao suserano era apenas a ressurreição da
camponês ou do artesão estava igualmente sujeito à aregimntçã~ forma primitiva de fidelidade, estava condenada po r sua vez a ser afetada
manipulação em nome de sua própria salvação, que ameaçava sua livre
ação. Assim, cada segmento da sociedade era motivado a usar seus con
7· Ver Max Weber, Economia e sociedade, vol. 1. Brasília: UnB, 1994; François-LouisGanshof,
troles coletivizantes ou diferenciantes para contrabalançar a resistência Que é o eudalismo?, trad. Jorge Borges Macedo. Lisboa: Europa-America, [1944] 1959,
a Teutônica, as dos Hospitaleiros e Templários e as dos Franciscanos e prolon gada inversão dos cont roles culturais, que se pode identificar nos
Dominican os) e em bispados e abadias proprietári os de terras e suhsidia- fenômenos históricos da Reforma, das guerra s religiosas e do nascimento
dos, em direitos e privilégios. e ascensão da ciência empírica. Os controles outrora coletivizantes e
As tarefas e os papéis da vida secular se tornaram cada vez mais unificadores da cristandade latina tornaram-se personalizantes e dife
interdependentes, de modo que, confo rme os controles convencionali- renciantes, e o que havia antes servido para diferenciar os sexos e os
zados da vida medieval perdiam gradualmente sua coerência em meio a papéis da vida secular tornou-se uma Cultura conscientemente coletivi
uma relativização crescente, as instituições sociais começaram a depen zante. A fragmentação da religião em "denominações", a proclamação
de r cada vez mais das formas coletivizantes da vida secular. A conces- por Lutero de uma fé baseada na consciência, a comunidade religiosa de
são de feudos foi substituída por um pagamento em dinheiro (fie rente ) Calvino em Ge nebra e a doutri na da predestinação pessoal de seus s egui-
e os serviços dos vassalos foram comutados por um contrapagamento dores, a formação por Henrique VIII da Igreja Anglicana e a aparição de
(scutage) para financiar as guerras e assuntos domésticos do senhor ou monarquias nacionais foram todos eventos catalisadores dessa inversão.
rei. Os comerciantes e artesãos das cidades começaram a se apropriar das Seria um equívo co limitar o processo de inversão a esses eventos, pois, em
formas coletivizantes dos governantes, fundando guildas (cada uma com um aspecto importante, o processo começou com a ascensão da burguesia
seu santo padroeiro), organizações citadinas e por fim ligas de cidades, na Lombardi a e na Renânia no século XI I e persistiu até o julgamento de
como a Liga Lo mbarda na I tália e a das cidades da Renânia. Scopes em nosso século.' Sob quase todos os aspectos, porém, a Cu ltura
Muitas vezes, e co m frequência cada vez maior à medida que avan do empreendimento coletivo que constitui a base de nossa sociedade e
çamos do século XIV para o século XVI, a motivação mútua dos dois de nossa ciência ganhou forma na Eur opa dos séculos xv, XVI e XVII.
20 0 A invenção da sociedade 20 I
da "ilegitimidade" cultural, a seus próprios olhos assim como aos de outros. CAPÍTULO 6
A única solução reside na legitimação e aceitação geral de formas de pen
samento e ação conscientemente dialéticas. A existência
de tradições civi
lizadas com padrões de integração social dialética há muito estabelecidos
sugere que a transição para essas formas inerentemente estáveis
se realizou
muitas vezes na história humana. Os mestres "iluminados" das sociedades
chinesa, hindu,judaica e islâmica - sábios, brâmanes, rabinos e mulás - e
de muitas sociedades e seitas budistas vivem em um equilíbrio dialético
(por vezes muito complexo, como na Índia) com outros elementos do todo
social. Issonão significaque essas sociedadessejam "perfeitas" ou "sem
história",ou que estejam de posse de alguma "verdade" sobrenatural ou
absoluta. Significa simplesmenteque têm uma estrutura estável, que não
funcionacontra si mesma.
Seria interessante e proveitoso explorar o potencial desse tipo de
solução para a sociedade ocidentaldo presente. Mas nosso interesse é a
antropologia e sua relação peculiar e automotivadora com seu objeto. Ao
delinear a invençãoda sociedade no Ocidente moderno, retornamos uma
vez mais à questão colocada no iníciode nossa investigação,em torno
do "museude cera", pois nossa antropologiaé necessariamenteparte de
nossa autoinvenção. É porque nossa tradiçãode pensamento enfatiza o
"mascaramento"das relações dialéticas por meioda ação coletivizante
qu e nossa autoimagem da Cultura veio a ser aplicad a indiscriminada
mente aos modos de vida dos outros.Há uma certa necessidade moti
vada em nossa tendência a amontoar todasas culturashumanas como um
único esforço evolutivo. Trata-se de um ato de justificação para nossa
própria invenção da sociedade como relação do homem co m a natu-
reza. Enquanto a antropologia se empe nhar em mediar sua relação com
os povos que são seu objeto como parte de alguma outra coisa, como
parte de sua invenção cultural da "real idade", e não dialeticamente, terá
necessidadedo "primitivo". Permanecerá fascinada comque o considera
como "natural" e elementar einterpretará equivocadamenteas inten...çQes
e expressões de outras formas de existência humana nos termos de seus
próprios valores, comouma "alegoria do homem".
20 2 A invenção da sociedade
A invenção da antropologia
A ALEGORIA 00 HOMEM
2°5
compreendida como uma fonte e manancial de energia e substância a dar-se conta de que esse conceito pode ser aplicado a praticamente tudo-
priori, situada no interior do indivíduo (ao modo de um "id" ou força e portant o não explica nada.
libidinal) tanto quanto fora dele. A consecução da "humanidade" é O homem sempre foi cultural, assim como sempre foi natural.
compreendida como o refinamento e a aplicação desse "dado" supremo, É altamente improvável que ele tenha um dia sido tosco, bruto, deslei
mediante a criação da ordem, a fim de produzir os fenômenos da per- xado ou não sofisticado. Animais toscos, não sofisticados, não so brevivem
sonalidade "moderada" e da ação cultural "ar tificial ". A "humanidad e" muito bem. Com efeito, é a própria competência e sofistic ação que todas
é pois natureza refinada e filtrada po r um desígnio e uma ordem cons as formas ancestrais do homem certamente devem te r possuído (para
cientes, um a disciplina que é ela mesma objetificada como algo que que pudessem ser ancestrais de quem quer que fosse) que coloca em
pode ser aprendido, ensinado, preservado, registrado e estendid o. Essa dúvida as habitua is explicações utilitárias do desenvolvimento cultural
ordem é o "estado" de filóso fos como Locke e Rousseau, a "cultura" do homem. O princípio da seleção natural exige que uma forte pressão
de antropólogos evolucionistas posteriores e o "progresso" dos sim adaptativa se exerça sobre qualquer espécie dada ao longo de sua história
plific adores modernos . evolutiva: não há lugar para o luxo da rudimentariedade ou para a pre
Se a alegoria do homem que "se torna humano" deve realiza r-se servaçã o de uma raça inepta que um dia poderia vir a realizar grandes
como uma sequência evolutiva, ela precisa ter um começo. Daí nasce o feitos. Não é muito difíc il imaginar como uma mudança genética "favo
mito do "homem natural": um homem, por assim dizer, sem refinamento, rável" pode prover uma cabeça de ponte evolutiva, mas é virtualmente
todo "instin to" e impulso. Hoje em dia, a noção do homem "sem cultura" impossível compreender po r que os membr os de uma cultura sofis ti
é em ger al rejeitada - e mesmo Rouss eau indubitavelmente concebeu cada, "bem ad aptada" , desejari am tro car seus Costumes bem testados po r
seu "bom selvagem" como um constructo heurístico -, mas o "homem alguma melhoria "pr ática" cujos "benefícios" contr adigam seus valore s.
natural" (ou equivalentes ligeiramente disfarçados) volta e meia se insi Uma "melhoria" social ou tecnológica, afinal , só alcança seu óbvio valor
nua nas discussões com uma resiliência que sugere alguma necessidade utilitário depois de estabelecida há tempo suficiente e bem o bastante para
profunda do nosso modo de pensar. Com efeito, somos todos levados a que se tenha "necessidade" dela.
"sentir" o homem natural dentro de nós, sob a forma do "animal" impul É claro que as vantagens (ou desvantagens!) utilitárias de tais
sivo que carrega instintos assombrosos como fome, sexo e agressividade. mudanças um dia virão à luz, embora seja tolo atribuir essas consequên
Todavia, para uma era que foi ensinada, por Wynne-Edwards e outros, das aos motivos dos inventores srcinais, que certamente devem t er valo
a perceber a essência significativamente "cultural" da maioria dos esti rizado suas criações por seu impacto em um con junto de circunstâncias
los de vida animais, o Zocus genealógico - e de fato a própria possib ili anterior e diferente. Assim como todas as outras inovações, elas conjuram
dade - de um ta l "homem-animal" intuitivo s e torna uma questão ca da poder por meio das maneiras srcinais e estratégicas com que se impõem
vez mais dúbia. Se não podemos encontrar um animal não culturado, em sobre o "dado", e os efeitos que podem ter tido para a humanidade são
outras palavras, se os lobos tratam uns aos outros com o decoro afetado contingentes e secundários, quer tenham ocor rido aos inventores ou não.
de cortesãos rococós e os tigres matam pelos filhotes abandonados de
outros carnívoros, por que isolar os antepassados do homem COffiQ,faS 1. A questão que opõe o instintivo ao aprendido (natureza versus educação) desemboca
únicas feras autênticas do zoológico? Rousseau, pelo menos, considerava no mesmo beco sem saída da questão que opõe doença "natural" a doença "psicossomá
tica". Para uma esplêndida discussão a respeito, ver Gregory Bateson, "Metalogue: What
a natureza benigna, e gerações posteriores podiam se contentar com o
Is an Instinct?", in Thomas A. Sebeok e Alexandra Ramsay (orgs.), Approaches to Animal
termo genérico "instinto", mas nossa própria geração está começando a Communication. Haia: Mouton, 1969.
20 6 A invenção da antropologia
20
Quer a invenção se dê po r "acidente" e interpretação ou por planeja de nossas conjecturas sobre o passado do homem. Ademais, visto que a
mento, ela tem o efeito inicial (e a significân cia inequívoca) de pr oduzir ideologia precisa forçosamente mascarar suas operações em termos da
poder. A tentativa de a~ribu motivos morais e antevisão utilitária aos eficácia "mágica" dos deuses, dos rituais ou das própria s tecnologias, os
conjurador es desse poder, de explicar eventos e justifica r ações com base surgimentos de seus principais componentes são sempre representados
naquilo que pa ra eles constituía um futuro incognoscível, é um exemplo como fenômenos suigeneris. Eles são "acidentais", "rai os caídos do céu
de pensamento alegórico tanto quanto a ilusão do "homem natural". Ela azul", inexplicáveis realizações de um grande gênio, dádivas de um deus
projeta o nosso conceito de "Cultura" como uma ordem moral pública , que apareceu em um a visão, mais do que manifestações particular mente
dotada de propósito e criada externamente sobre atos e incidentes cujo notáveis daquele ser maravilhosamente inventiva e imaginativo cujas
único denominador comum pode ter sido uma certa força inovadora; divagações criativas mantêm nossos psiquiatras ocupados, fazem trans
seus interesses morais e sociais reduzem a criatividade a questões práticas. bordar as prateleiras de nossa inflacionada indústria da ficção, e inundam
Se queremos entender as srcens do homem e sua existência feno os escritórios de patentes c om a prole ba starda da Mãe Necessidade.
mênica, precisamos examinar sua criatividade tal com o se manifesta em A insistência sobre a aleatoriedadeda invenção é meramente o Outro
todos os pontos de sua vida cultural corrente, e não apenas em retros lado da moed a do interesse social; uma ideologia que alegoriza suas pró
pecto. É certo que muitas das inovações de ontem se tornam parte da prias srcens por meio de objetivos e inter-relações presentes ten'a de repre
"cultura" transmitida de amanhã, quer isso envolva a assimilaçã"o delas sentar suas primeiras descobertas como ocorrências sui generis, já que os
aos papéis sociais supostamente "inatos" das sociedade tribais e campo aspectos relacionais que ela enfatizaria (as "necessidades" po r meio das
nesas ou as Culturas conscientemente fabricadas das civilizaçõe s urbanas. quais justifica a adoção e a retenção delas) não existiam no momento da
E todavia, po r mais que reconheç amos esse fato, é duplamente importante descoberta. Uma vez domesticado o f ogo, não import a po r qual motivo
que tenhamos em mente que ao serem assimilado s a uma tradição perm a insano, não importa po r qual inventor deveras engenhoso ("deveras talen
nente esses elementos se tornam a base para inovações posteriores. Seus toso", "deveras sortudo"), não importa com que efeitos estratégicos ou
efeitos comportamentais, demográficos, ecológicos e sociais estão eles profundas revelações espirituais, alguém iria por fim (quem sabe quanto
próprios inextricavelmente ligados ao constante exercício da criatividade, tempo depois?) usá-lo para iluminar, aquecer, cremar ou fazer torradas e
da inovação contínua, em que consiste a cultura; sua "transmissão" e assim fazê-lo desempenhar seu papel "apropriado". (Nós não usamos tanto
"recepção" são elas próprias em grande medida uma espécie de "indução" o fogo para a convivência pessoal ou como centro de sociabilidade, e assim
inventiva. Um a grande invenção é "reinventada" diversas vez es e em tendemos a ign orar essas funçõ es que seriam perfeitamente "adaptativas"
diversas circunstâncias na medida em que é ensinada, aprendida, usada e "práticas"). Nosso hábito de alegorizar nos impele a imaginar que o fogo
e aperfeiçoada, frequentemente em combinação com outras invenções. significava para todos os seres humanos, inclusive para aqueles que pri
Po r serem agora propriedade da socie dade - de fato, elas são pro- meiro o domesticaram, a mesma coisa que significa para nós,
priedades da ordem social e moral-, a ideologia nos faria apreender e Desse modo, em todos os seus pormenores, a alegoria do homem
apreciar essas invenções assimilad as (e suas srcens) no devido contexto. representa um a filogenia racial em termos da ontogenia ideali zada da
Ela enfatiza a necessár ia relação das invenções com a existência socialp re nossa cultura, Assim como o indivíduo desenvolve e refina seus dons e
sente e com suas metas, e quando necessário pode elaborar uma "srce m" talentos "naturais", sua "inteligência inata", po r meio da ordem moral
provável para qualquer uma delas objetificando essa relação em termos artificial da sociedade, passível de aprendizado e aperfeiçoamento, o
de situações primevas. Da í a natureza utilitária e teleológica de muitas "homem natural" animalesco adapta e aperfeiçoa a si mesmo, evolui,
frenologi a de supercílio s protubera ntes, testas e abóbadas cranianas, num incorpora tanto os controles conscientes quanto os inconscientes sobre
fetichismo do "primitivo" e "animalesco" po r oposição aos detalhes sua autoinvenção. Não são apenas ferr amentas, tipos de habitação, pin
"progressivos" e "humanoides". turas, vestimenta e cerimonial, mas também medo, raiva, agressividade
O homem, é claro, não é menos "natural" agora, não é menos animal e desejo - e estes últimos são tão "artifici ais" Ce tão "naturais") quanto
do que já foi. Ele não é mais "cultural" em seu estado presente do que o os primeiros. A constituição física não é separável daquilo que chama
foram seus antepassados. As evidências físicas que possuímos de sua evo mos de "cultura", mesmo como parte de uma dialética; ela pode antes
lução indicam uma variedade de formas (cujas respectivas capacidades ser distinguida como um "nível" arbitrário de descrição de fenômenos.
"culturais" são, para dizer o mínimo, difí ceis de determinar) que parecem Se o homem "mudou" ao longo das últimas centenas de milênios, se
ter diminuído de númerO e a subsequente preponderância de tipos com sua invenção e sua posse do ('eu" aumentaram em controle po r meio do
aparência moderna (Embora, até onde sabemos, o Homo erectus - con ganho em controle sobre sua criatividade externa (e vice-versa), então
temporâneo do Homo sapiens durante bo a parte de seu período de exis a própria natureza mudou tanto quanto o homem: não (, divergimos" da
tênci a - fosse tão capa z de "portar" a cultura humana quanto seu colega natureza de modo algum.
mais ilustre). Se descartamos as alegorias dos animais que viram homens, a homem é um mediador de coisas , uma espécie de catalisador uni
dos (( elos perdidos" e dos primatas promissores, resta-nos a conclusão de versal. Em sua imaginação ele é um construtor, um ator e um modela
que a evolução humana consiste na intensi ficação de certas pro pensões dor da natureza imbuído de propósito, ou então um parceiro e colaborador
do homem como forma de vida e numa expressão dessa intensif icação solidári o dos '(poderes" do mundo. Mas ele também é capaz, nO sentido
em todas as particularidades da vida do homem. mais elementar, de se fazer permeável às coisas, de, em seus pensamentos,
Há boas razões para se fazer essa sugestão . Antes de mais nada, identificações e fantasias, "transformar-se" nas coisas em seu entorno, de
como Geertz e outros observaram nos últimos anos, a constituição f~a integrá-las ao seu conhecimento, ação e ser. A modalidade de intenção e
do homem e seus atributos ((cultu rais" evoluíram juntos, evoluíra m um ação signifi cativa que temos chamado de '(controle" somente é efetiva na
por meio do outro, po r assim dizer. Suas ferramentas o modelavam ao medida em que o ator aceite essa permeabilidade, esse "transformar-s e",
mesmo tempo que ele modelava suas ferramentas. No entanto, mais como algo '(real". a homem vive po r meio das coisas em seu entorno,
2I I
210 A inyenção da antropologia
vive em um mu ndo no qual essas coi sas e suas qualidades são reai s. Ele linha argumentativa. E no entanto tudo o que ele é ele também não é,
é, como Rilke sugeriu certa vez, a forma da transformaçã o delas, e toda pois sua mais constante natureza não é a de ser, mas a de devir. Mesmo
sua fé, esperança, paciência, expectativa e crença na vida, bem como o a noção de que ele deve se r um exímio mascarado só é verdadeira nesse
propósito de sua ação, estão todas investidas na compreensão de que essas sentido, pois o ato r ou mascarado só pode ter êxito em sua performance
transformações são verdadeiras realiza ções - de que a verificação da ciên negando que se trata de um mero "ato", de modo que um mascarado
cia é absoluta, de que o vinho e a hóstia se tornam Cristo. E no entanto, bem-sucedido é aquele capa z de "s er" o q ue ele não é sendo o que ele é.
possuído com o ele é por essas personificações, por essas coisas sob a forma O que to rna o homem tão interessante como fenômeno é o fato de
de pensamentos e esses pensamentos sob a forma de coisas, o homem só que ele precisamente não é nada daqui lo que os simplificadores fi zeram
pode realizar seu próprio eu individual e social mediante seu fracasso parecer que fosse. Ele não é nem um carnívoro nem um herbívoro, nem
em estar à altura delas. Sua "humanidade" é sempre acidental, um incre macaco assassino nem macaco nu; ele é fabricado po r ferramentas tanto
mento do viver por meio de Outras pessoas e coisas e do deixá-las viver quanto as fabrica, é a ferramenta da linguagem tanto quanto a lingua
po r meio dele. gem é sua ferramenta. Ele é todas essas coisas e portanto nenh uma delas;
Ou, para expressá-lo de forma talvez mais precisa, o homem vive a metáfora do seu extraordinário modo de ser, do seu metafórico modo
po r meio de ideias, pessoas e coisas à custa de deixá-las viver po r meio de ser, eludiu tanto o cientista quant o o intérprete. Se ele fosse simples
dele. Toda inovação signifi cativa no estilo de vida do homem teve o mente um assassino ou um cordeiro, se fosse simplesmente um computa
efeito de aumentar sua dependência, bem como a "energia" e o grau do r ou um "estado de equilíbrio", não teria sido necessári o escrever este
de "alavancagem" técnica ou social à sua disposição. Esse é o preço do (ou qualquer outro) livro sobre ele - com efeito, nes se caso, o homem
envolvimento, e a adaptação peculiar do homem, a de um mediador, não dificilmente acharia necessário escrever livros, ou lê-los.
é senão um programa de envolvimento crescentemente intensivo: a sus Como alegorias de uma humanidade emergente, as metáforas sele
tentação materia l e espiritual do homem equivale ao tipo de ganho obtido cionadas para articular nossas expectat ivas quanto à evolução do homem
por um organismo que faz parte de uma simbiose. De fato, a humanidade ("homem-macaco" , "primata ereto, social", "fabricante de ferramentas")
multiplica esse fator básico de interdependência mediante todo o leque apresentam os mesmos componente s ideológicos de nossos modelos psi
de suas operações. A mente é constrangida po r suas "linguagen s" pela cológicos e morais: o inato ("natural") e o artificial ("cultural"). Elas
imagística dos controles po r meio dos quais ela se conhece e expressa a exploram uma determinada posição ideológi ca, aquela do autoaperfei
si mesma; o pastor nômade é um escravo do rebanho que o alimenta, o çoamento e autocontrole do homem po r meio da criação de uma ordem
campesinato está "enraizado" no solo e a geração atual está começando "racional" artificial, como uma fonte de ideias sobre suas srcens e sua
a dar-se conta das trágicas implicaç ões desta consequência altamente essência. Contudo, o que é arbitrário e imposto não é apenas a cultura
significativa da Cult ura como acumulação: a cidade. do homem - a qual, como seu ser f ísico, é tanto natural quanto cria da
O problema de definir o homem como um fenômeno, de decidir o que conscientemente -, mas a distinção entre natureza e cultura. Essa distin
ele "é", é o problema de revelar a personalidade essencia l de um artista da ção é o artefato (e a essência) de nossa ideologia, e po r essa razão apti
máscara e do disfarce, muito esperto e esquivo, sob a aparência de u~e siona qualquer empreendimento intelectual que a subscreva dentro dos
suas máscaras. O homem é tantas coisas que se fica tentado a apresentá-lo limites de nossa maneira de pensar autoimposta. Não existe, nem nunca
em trajes particularmente bizarros, só para mos trar o que ele é capaz de existiu, um homem exclusivamente "natural" ou uma cultura excl usiva
fazer, ou pelo menos a escolher um disfarce que reforce uma determinada mente "artificial".
o problema ao qual se dirige a antropologia evolutiva torna-se uma Eu havia argumentado, porém, que todo esse vasto complexo equi
tautologia: "Comouma ordem natural concebível em termOS culturais vale aum conjuntode controles altamente articuladosempre
e cambiante
se transformou em uma humanidade conceitualizacla em termos natu para a invenção da natureza por meio de atos de objetificação. Dado, con
rais?". "Evoluçãocultural" refere-se à maneira pela qual as tendências tudo, que uma crençana "realidade" do que está sendo inventadoé parte
sociomórficasque acreditamosestar "imp lícitas" na natureza (e que nós necessáriada objetmcação, segue-se que os efeitos desses controlessão
colocamosna natureza por meiode nossOS atos de explicação) se conver "mascarados" e ocultos para aqueles que os utilizam. Assim, a ideologia
tem em "regras" explícitas de uma sociedade em funcionamento. Ela é da cultura americana baseia-sena existência de uma ordem fenomênica
a história da legitimação (o contra to social, no qual as inclinaçõe s do e inata chamada "natureza" como algo distinto daquela coisaartificial e
"homem natural" se tornam Cultura) ou da "cognição" humana (a exis aperfeiçoávelque chamamos de "cultura". Não se diz que inventamos
tência do homem como uma descoberta científica ou científico-popular a natureza, masque a compreendemos, aproveitamos, aplicamos,que
é
do mundo fenom ênico). Mas na verdade esse ponto de vista evolutivo deixamosque tome seu curso. Todasas nossas transaçõescom o mundo
simplesmenteuma inversão - como um filme rodado ao contrário - da fenomênico, práticas ou especulativas, respeitam primazia
a e o caráter
invenção subliminar do eu e da inclinação natural que acompa nha nOssa inatoda natureza e das forças naturais.
vida cotidiana. Criamos a natureza e contamos a nósmesmOS histórias Isso confere um tremendo poder e vantagem àqueles cujo trabalho
21<
214 A in en ão da antro olo ia
no esforço de "controlar" ou disciplinar o eu; como a força da "lei natu autoinvenção. Toda vez que um "aspecto" ou parte de um tod o dialético
ral" (combustão, eletricidade, compressão) que opera em um motor de e autocriado é usado como um controle consciente dessa maneira, seu
automóvel ou eletrodoméstico; ou como o comportamento e as reações uso inevitavelmente resulta na invenção da outra parte. Quando usa
do objeto em um experim ento científico. E a criatividade do invent or ou mos os controles não convencionalizados e diferenciantes da natureza
daquele que planeja um experimento científico consiste em orquestrar dessa maneira, objetifica mos e recriamos nossa Cul tura coletiva com sua
um arranjo de controles culturais (dispositivos tecnológicos, situações ideologia central do "natural" versus O "cultural" e artificial. Quando
experimentais) que facultará alguma nova maneira de "usar" ou "expe usamos esses controles no estudo de outr os povos, inventamos suas cul
rienciar" (isto é, inventar) a natureza. No ato de aplicar ou "interrogar" turas como análogas não de todo o nosso esquema cultural e conceitual,
a natureza, inventando-a, trazemos à existência novos controles culturais mas apenas de parte dele. Nós as inventamos como análogas da Cultura
que podem se r usados por out ros para recriar a experiência di versas vezes. (como "regras", "normas", "gramáticas", "tecnologias"), a parte co ns
Objetificamos a Cult ura po r meio da interpretação consciente da natureza. ciente, coletiva e "artificial" do nosso mundo, em relação a uma realidade
Nossa Cultura consciente é uma acumulação bem articulada desses con única, universal e natural. Assim, mais do que oferecer um contraste com
troles criados e objetificados, os quais podem ser usa dos repetidas vezes a nossa cultura, ou contraexemplos para ela, como um sistema total de
para recriar a experiência srcinal da natureza. conceitualizaç ão, elas convidam a uma comparação com "ou tros modo s"
O empirismo naturalista - o apelo a os "fatos" naturais e a expe de lidar com nossa própria realidade. Nós as incorporamos no interior
riência da natureza como um meio de "prova" e certeza científica - é da nossa realidade, e dessa forma incorporamos seus modos de vida no
então essencialmente um apelo à efetividade de nossos próprios con- interior da nossa própria autoinvenção. O que pode mos perceber das
troles culturais. Ele usa a experiência da natureza que é produzida po r realidades que eles aprenderam a inventar e viver é relegado ao "sobre
meio da aplicação desses controles como um meio para justificá-los e natural" ou descartado como "meramente simbólico".
estendê-los. E desse modo consti tui o alicerce da ciênci a "convencio nal" Falar da natureza no contexto da cultura, então, é uma maneira de
ou ideologicamente aceitável, o uso criativo da parte "dada" ou "inata" controlar a cultura. Trata-se de uma técnica frequentemente empregada
de nossa concepção total das coisas para a corroboração e extensão da po r publicitários , mas mais conhecidamente de um traço do " movimento
parte "artificial" e humanamente ajustável. Uma vez que ele se baseia ecológico" nos Estados Unidos mo dernos. D iscutir os abusos soci ais, os
em nossa distinção ideológica que especific a quais coisas, e quais tipos de excessos da indústria corporativa e outras insuficiê ncias de nossa Cultura
coisas, são "dadas", in atas e imutáveis e quais coisas não são, como um coletiva diretamente em ter mos sociais tem o efei to de pô r em questão a
incontestável artigo de fé , suas regras, procedim entos, técnicas e metodo totalidade de nosso sistema conceitua l (ou seja, nossos meios de inventar
logias são dispositivos para a reafirmação e a reinvenção dessa distinção nossa própria "realidade"). Para uma civilização que se inventa como
e da ideologia que corresp onde a ela. E uma vez que a ciênci a naturalista relação do homem com a natureza, é mais conveniente e ideologica
sempre é, po r conseguinte, um modo de reforçar e reaplicar essa distin mente coerente (bem como muito mais "seguro") lidar com essas inade
ção, sua aplicaçã o sempre faz parte da invenção da nossaprópria cultura. quações como abusos contra "o meio ambiente", como "crise de energia"
Quando esse tipo de abordagem é direc ionado para os usos da Uwes ou "poluição". O movimento ecológico é portanto um esforço para con
tigação antropológica, ela torna a nossa compreensão e a nossa inven trolar a cultura po r meio da natureza, para criticar e restringir a invenção
ção de outras culturas dependentes da nossa própria orientação diante maciça e impensada da força natural como "produto" e "energia" em
da "realidade", e faz da antropologia um instrumento da nossa própria termos d a exaustão e espoliaçã o de sua base de recursos. É uma inversão
mente com formas ancestrais, tais como o funcionalismo de Malinowski ou mos da nossa própria criatividade, transformando a coisa que apreende
a "culturolog ia" de Leslie White, elas se constituem sob a forma de uma mos como a cultura deles em uma metáfora estranha e acidental da racio
ciência "convencional", objetificando a cultura ao enfocar a natureza, a nalidade - na expressão de Lévi-Strauss, em uma "ciência do concreto".
"necessidade" natural e o aproveitamento de energia. A antropologi a eco Toda vez que impomos nossa concepção e nossa invenção da rea
lógica presume que a cultura é uma "adaptação" a uma realidade natural lidade sobre uma outra cultura, seja no curso do trabalho antropoló
preexistente e universal. Nessa visão, culturas diferentes constituem adap gico, missionár io, gove rnamental ou em prol do "desenvolvimento",
tações diferent es, frequentemente a diferentes manifestações da natureza transformamos sua criatividade nativa em algo arbitrário e questioná
("meios ambientes" diferentes). E ainda que muitos antropólogos ecoló vel, em um mero jogo de palavras simbólico. Ela se torna "uma outra
gicos sejam sensív eis ao fato de que as culturas desempenham um papel Cultura ", um análogo do nosso empreendimento coletivo, racionalmente
importante na conformação de seus meios ambientes , a própria natureza concebido, de aproveitament o e interpretação da realidade natural, nossa
da sua investigação os impede de dar o próximo passo lógico: a conclu Cultura "sala de ópe ra", que também concebemos como arbitrária e sim
são de que o h omem cria suas próprias realidades. Pois, como cientistas bólica nesse sentido. Mas visto que toda a força da criatividade humana
eles estão comprometidos com o estudo da natureza e com uma visão da reside na capacidade de objetificar, de identificar elementos simbólicos
realidade que os cientistas precisam compartilha r entre si e com os leigos como realidad e (de confundi-los com a realidade, poderíamos dizer) e
para poder comunicar suas descobertas. Da mesma maneira que a natureza "mascarar" seus efeitos, o que "estendemos" às culturas que estudamos
lhes serve como controle para a invenção de culturas individuais, a uni juntamente com nossa concepção da realidade é o nosso próprio "masca
dade de nOssa concepção da lei e da regularidade natural lhes serve como ramento" da criatividade cultur al. A cultura é reconhecida , po r certo, mas
um "denominador comum" e um critério de comparação das culturas . à custa de sua criat ividade. Temos o hábito corriqueiro de trat ar as orien
Para eles, sem a natureza não haveria" ciência" nem critério de avaliaçiW, tações culturais levianamente como uns tantos "mitos", "interpretações
tanto em te rmos teóricos com o profissionais. da realidade", ou mesmo "metáforas", como tantas ilusões "mentalísticas"
Ao usar nossa própria realidade como um controle para a invenção de coletivas, ao mesmo tempo em que implicitamente negamos ou ignora
culturas, inventando culturas que contrastam com parte do nosso esquema mos seu alcance e poder criativo.
21 8 A myençãoda antropologia 21 9
A maioria dos antropólogos está disposta a incluir a nossa Cultura CONTROLANDO A NATUREZA
quer dizer que o antropólogo é obrigado a "acredi tar" nas realidades dos dente do contrato social de Rousseau. Os racionalistas mais modernos
povos que ele estuda, ou que é obrigado a abdicar de viv er e participar em traçam sua ascendência cultural seguindo o desenvolvimento evolutivo
sua própria cultura. Implica, antes, que o i ndivíduo capaz de apreender do homem, o progresso da ciência e da tecnologia, a evolução da juris
o funcionamento da invenção e da "crença" será capaz de lidar com os prudência e do Estado.
significados sem ser "usa do" por eles. Ele será um antropólogo melhor, O fiador desse empreendimento, a razão ostensiva de sua existência
um cidadão melhor e, por isso, um ecologista melhor. e o padrão com que se mede seu progresso e autoaperfeiçoamento é uma
A noção de "mero símbolo", do significado como uma construção ordem "inata" de fatos naturais e leis naturais. O Estado racional se funda
arbitrária, uma percepção pós-fato da realidade, é um artefato do nosso nos "direitos naturais" de seus cidadãos, a tecnologia serve às "necessi
comprometimento semântico com a realidade natural. Nesta seção, exa dades naturais" do homem, e a ciênc ia e a filosofia natural se esforçam
minamos a maneira como essa Cultura de símbolos arbitrários é obje para aperfeiçoar suas técnicas, metodol ogia s e aparato conceitual par a a
tificada por uma série de abordagens ("naturalísticas") mediante o uso compreensão e representação do "fato natural" e da "realidade". Se reco
da "realidade natural" como controle. Es se modo de inventar a cultura nhecemos esse empreendimento como uma invenção diversa e múltipla
corresponde à atividade que normalmente pensamos como" ciência" , a da realidade natural mediant e todos os meios pelos quais ela é protegida,
inversão criativa da nossa habitual objetificação da natur eza, que "recar assegurada , aproveitada e compreendida, então a perfectibi lidade Cul
rega" seus símbolos e provê seuS meios e facilidades. Mas a outra metade tural é a roupagem sob a qual se dá a ver essa necessidade de invenção
do nosso mundo conceitual, a articulação de contextos convencionaliza (e sua motivação) . "Prog resso", "democracia" e "certeza cien tífica" são
dos que identificamos com "lógica" e "pensamento racional", também as máscaras portad as por nossa invenção coletiv a da natureza_
pode ser usada como um controle sobre a invenção antropológica. Vol As atividades, padrões , procedimentos, técnicas e dispositivos de
temos pois nossa atenção para as abordagens "lógicas" que fazem dj~ nossa Cultura "oficial"- e cotidiana são todo s eles con troles para a inven
seu objetivo. ção da parte "inata" e "natural"do nosso mundo conceitual. Quando os
invocamos, não apenas mascaramos a essência criativa de nossas ações
por trás das "realidades" que criamos e das necessidades que elas nos
22 0 A invenção da antropologia
22 1
apresentam, mas também reafirmamos a distinção ideológica entre o controla e produz "natureza" por mei os culturais, na medida em que uma
"natural" e o "artificial".Ao inventar o "natural" como tal, nó s valida- natureza universal é a única base fenomênica para a exatidão das defini-
mo s a distinção entre "natural" e "Cultural" e o fundamento lógico que ções e a única base fenomênica para elicitar defini ções" equivalentes" _
se apoia nessa distinção . As sim, na tentativa de representar e compreen- traduções - de seus obj etos de est udo.
der uma ordem que contrasta diretamente co m nosso esquema concei- Definições denotativas, exat as, do tipo postulado e requerido pelos
tual total, a objetifica ção da natureza é tão inefica z quant o a objetificação antropólogos "etnossemânticos", só são possíveis na medida em que as
da cultura. Quando usamos os controles convencionalizados e coleti "coisas" definidasjá existam como entidades discretas. Se admitimos o fato
vo s de nossa Cultura dessa maneira, o efeito é a recriação de nossas pró- de que a linguagem e o significado criam realidade, em lugar do contrário,
prias noções do "natural" e do "inato" sob forma cultural. então a prioridade da denotação (a derivação evolutiva ou "cognitiva" da
Se o empirismo naturalista é basicamente um apelo à efetividade de categoria cultural a partir da ordem natural) é posta em questão. O tipo
nossos controles culturais na invenção da natureza, as abordagens que se de "tradução" de que dependem os procediment os da etnossemântica só é
valem do determi nismo ló gico o u "semântico" apelam para a nossa noção possível na medida em que a mesma "realidade" geral de "coisas" discre-
da derivação evolut iva ou "cognitiva" da cultura a partir de uma ordem tas seja compartilhada pelos falantes das duas línguas em jogo, pois de que
natural inata e preexistente. Elas usam metodologias complexas e si ste- outra maneira definições denotativas poderiam ser "traduzidas" de uma
máticas para investigar e determinar (isto é, inventar) não a "cultura" - para a outra? Uma vez que se reconheça que essa realidade universal pos-
no sentido de pessoas que lidam umas com as outras e com aquilo que tulada existe, as tendências e conformações peculiares das respostas dos
as cerca - , mas a natureza (nossa natureza) em sua forma culturalmente informantes (o delineamento de suas "categorias") podem ser explica
"percebida" e "interpretada". Elas aceitam, praticamente como um artigo das e descartadas como diferentes classificações do mundo das coisas reais.
de fé, o dogma de que as analogias, divisões e distinções arbitrárias que Todo o esforço da antropologia semântica emerge como um exercí-
impusemos ao mundo fenomênico na qualidade de "natureza" lhe são de cio de verificaç ão (e assim de criação) da existência da realidade univer
algum modo inatas e básicas. Elas acreditam que plantas, animais, cores, sal que ela postula. Ela objetifica a "natureza" po r meio da manipulação
parentesco e doenças de pele são de certa forma coisas "reais" e autoevi- consciente da cultura, inventando uma "realidade" única, universal, por
dentes, e não modos de falar sobre coisas. meio da "elicitação" tradutória de "categorias cognitivas". Suas técnicas
Isso pode parecer um a estranha espécie de fé para pessoas que gos de elicitação de respostas e determinação de "domínios" e "paradigmas"
tam de se identificar como linguistas, mas na verdade deriva diretamente são na verdade disposit ivos para demolir enunciados significativos em
de nossos pressupostos.ideológicos sobre a natureza da linguagem. Pois definições denotativas que se supõe dotadas de prioridade cognitiva, para
a linguagem faz parte da Cultura, e, por conseguinte, é vista como arbi- forçar o fluxo da invenção na camisa de força da definição. Elas são meto
trária, artificial, perfectível e dependente de definição e uso preciso na dologias para transformar as respostas de outros povos na objetificação
descrição daquilo que é "real" e concreto. A antropologia semântica ("cognição", "categorização", "classificação") da realidade natural, que é
apoia-se em uma crença comum na possibilidade e perfectibilidade das por conseguint e inventada por meio da manipulação dos control es "cultu-
definições - definições fundamentadas em pressupostos coletivos s ~ rais" de outros povos e não dos nossos. É esse interesse na prioridade da
o inato e a existência absoluta de um único mundo fenomênico "real" - e ordem natural, levando a uma "epistemologia" da natureza que reconhece
confere à denotação verbal uma prioridade determinística sobre a exten a si mesma por via da "cognição", que fornece o pretexto e o estímulo
são do significado, de modo a afirmar a primazia da ordem "natural". Ela para a "etnograf ia", para a exploração da cognição em escala mundia l.
22 2 A invenção da antropologia
22 3
É claro qu e os antropólogos semânticos não pensam que estão povos em um conjunto de "regras", "leis" e "gramáticas" conscientes-
inventando ou objetif1.cando a natureza, pois seus controles metodoló em análogos da nossa Cultura - cor res pon de a um uso de controles cul
gicos se fundam na pressuposição ~ o caráter natural do inato. Sua auto turais, e, portanto, a um "empréstimo" das formas de outras culturas (seja
confirmação da realidade postulada é mascarada como uma busca pela qual for sua significação srcinal) para aplicação em nossa invenção da
"certeza cientí fica", um a necessidade de aperfeiçoar a articulação dos con- natureza. Isso explic a em grande parte po r que meSmo os antropólog os
troles, elaborar metodologias, afiar definições e consolidar mais dados. mais ecléticos e tradicionalistas mantêm uma fé implícita na base "natu-
Qualquer tentativa de crítica da sua abordagem é diretamente remetida ral" e evolutiva da cultura do homem e no caráter inato dos fenômenos
aos interesses desse esforço coletivo, e não às suas pressuposições subja "naturais". Isso éo que eles inventam e aquilo que sua antropologia os
centes. Eles acham que a crítica deveria ser formulada de modo a ajudar ensinou a inventar.
a criar metodologias melhores, aperfeiçoar definições e operacionalizar a a melhor exemplo dessa invenção e controle antropológicos da
consolidação de dados. A sugestão de que essas metodologias confirmam realidade natural quase universal talvez seja encontrado no estudo do
seus dados po r pressupor a realidade na qual se baseiam seria considerada "parentesco". Em sua abrangente revisão do s estudos de parentesco
subversiva com respeito aos esforços honestos de profissionais dedicados. desde os primórdios da investigação antropológica, David Schneider
Sintetizemos nossas observações sob a forma de um a sugestão metodo- demonstra que a suposta existência e o contín uo reconhecimento de um
lógica: a metodologia mais eficaz para a antropologia semântica é aquela domínio discreto do "parentes co" se apoiam em uma crença na natureza
que analisa a maneira como o homem cria suas próprias realidades, a inata e autoevidente - bem como na prioridade - do "fato" biológico e
começar pelos procedimentos da própria "etnossemântica". genealógico. É a própria "facticidade" desse "fato natural" que permite
Argumentei que o homem cria suas próprias realidades po r meio da a definição do domínio, delimitando suas fronteiras e demarcando seus
objetificação, conferindo a seus pensamentos, atos e produtos as carac componentes ao longo de linhas supostamente "naturais" ou "factuais".
terísticas de certos contextos selecionados como "controles". A antro- Nas palavras de Schneider:
pologia semântica é interessante porque usa a objetificação para negar a
existência da objetificação. Mediante uma espécie de "convencionalização Os dois lados do )arentesco", o modelo biológico (seja real ou presu
artificial", ela reduz expressões dotadas de significado à linguagem, a um mido, suposto ou fictíci o) e o relacionamento social (os direitos, deveres,
conjunto de definições elicit adas, o que po r sua vez serve como um meio privilégios, papéis e status) encontram-se em uma relação hierárquica
de objetificar o mundo natural. Os esforços e técnicas da etnossemântica, entre si, pois o biológico define o sistema ao qual o social é ligado, e é
e, como último recurso, as "categorias" dos próprios nativos, proveem o portanto logicamente anterior a este último. 2
mascaramento para essa objet ificaçã o. Desse modo, o controle da natu-
reza po r meio da cultura reafirma a primazia e o caráter inato do natural Ele mostra que essa relação hierárquica, com seu compromisso CO m a
bem como a "artificial idade" e a "arbitrariedade" do cultural, reforçando prioridade do fato natural, foi aceita po r praticamente todas as teorias
a ideologia que corre sponde a isso. e os teóricos do parentesco desde os dias de Louis Henry Morgan _
As abordagens conhecidas geralmente como "etnociê~Jm po r Rivers e Radcliffe-Brown, po r Kroeber e pelos adeptos da análise
"etnossemântica" representam versões altamente elaboradas e especia
lizadas de um a tendência bem mais antiga e mais disseminada na antro-
2. David M. Schneider, "What Is Kinship All About?", in Priscilla Reining (ed.), Kin.rhip Stu
pologia. A "tradução" de expressões verbais, usos e costumes de outros Jies in the Morgan Centenm·a/ Year. Washington De: Washington Anthropological Society, 197 2.
22 4 A invenção da antropologia
2 2;
..
componencial, bem como po r pensadores inovadores tais como Leach culturais igualmente sofist icados de que o homem "interpreta" ou "com
e Lévi-Strauss. preende" seu entorno po r intermédio de suas próprias categorias, está a
Po r que essa incrível tenacidade, poderíamos perguntar, po r que um pequen o passo da conclusão de que o hom em cria suas realidad es. Mas
esse um século ou mais de manobras, missões de reconhecimento e adap para pessoas com convicções não questionadas e não analisadas do tipo
tação às circunstâncias, nos limites de um único "paradigma"? Só pode que venho discutindo trata-se de um passo realmente gigantesco. E, ainda
haver um a única resposta e um único motivo: a necessidade de uma cul assim, eu argumentaria que esse é um passo necessário e inevitável.
tura, ou de seus membro s, de validar e ratifica r, de inventar, uma deter Os escritos de Claude Lévi-Strauss e de seus seguidores e anta
minada realidade. Para fazer isso, é necessário acreditar na própria capa gonistas entre os "estruturalistas", de Louis Dumont, Edmund Leach
cidade de fazê-lo. O "fato" do "parentesco natural" torna possível a e outros inovadores da moderna antropologia cultural, tiveram um
definição de "parentesco". Ao sancionarmos o "parentesco" como con papel fundamental ao preparar a antropologia para o tipo de auto
ceito de pesquisa, um meio de operação, um controle, ao procedermos consciência que uma teoria baseada na invenção implica. E, todavia,
como se existisse um paradigma definível mediante um conjunto limitado também esses autores se esquivaram em geral de conclusões completa
e derivável de termos discretos, ao elicitarmos os termos definidores e mente relativistas - em bo a medida, podemos supor, com o intuito de
criarmos as definições, objetificamos a coisa definida. O impulso mais preservar e "proteger" as perspectiva s culturais e científicas que permi
forte nos estudos tradicionais de parentesc o foi a validação e a recriação tem que suas teorias sejam comunicadas. Deixo ao leitor a questão de
da "realidade" de nossa cultura. Isso tornou os estudos de parentesco determinar até que ponto é recomendável essa estratégia de "proteger
(bem como a "antr opologia social" à qual pertencem) uma parte de nossa a antropologia de si mesma". Lévi-Strauss, po r exemplo, embarcou
autoinvenção cultural, mais do que uma crítica dessa invenção ou um a em seu fascinante e brilhante estudo da mitologia sul-americana com
investigação geral sobre a auto nvenção do homem. a convicção de que
A antropologia do controle da natureza está tão próxima - e tão
distante - da conclusão de que o homem inventa suas próprias reali A mitologia não tem função prática evidnt~' ao contráriodos fenôme-
dades quanto a antropologia do controle da cultura. Também aqui, é a nos anteriormente examinados, ela não está diretamente vinculada a
nossa "Cultura", com suas pressuposições não questionadas e não ana uma realidade diferente, dotadade uma objetividade maior do que a
lisadas sobre o que é "real" e sobre como se deve estudá-lo, que atrapa sua~ cujas ordens transmitiria a um espírito que parece ter totall iber-
lha as coisas. As teorias e a identidade profissional de um antropólogo 3
dade para se entregar à própn·a criatividade espontânea.
ecológico derivam de uma fé na primazia e no caráter inato do "natu
ral", mascarando um comprometimen to com a efetividade última dos N O entanto, essa expedição intelectual para rastrear a imaginação até
controles científicos e "Culturais" po r meio dos quais descrevemos e sua toca põe-se a caminho com algumas pressuposições muito ociden
analisamos (inventamos) a natureza. As teorias e a identidade profis tais sobre a natureza do "mito" em relação à "realidade" e sobre a uni
sional de um antropólogo "cultural" tradicional derivam de uma fé na versalidade dos fenômenos naturais. Ela começa pela afirmação de que
importância da cultura que mascara um a fé implícita no caráter inat~e
um a realidade natural como aquilo que abona a cultura. A descoberta
po r muitos ecologistas sensíveis e inteligentes de que o homem ajuda a
3· Claude Lévi-Strauss, O cru e o cOlido, trad. de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac
moldar seu ambiente, bem como a consciência de muitos antropólogos Naify, 2004, p. 29.
22 6 A inyenção da antropologia 22 7
•
o ohjetivodeste livro é mostrar de que modo categon"as empíricas, como as sujeitasao "mascaramento"que aprisionasuas operações numa espécie
de cru e de co,ido, de fesco e de podre, de molhado e de queimado etc., de- de etnocentrismo subliminar . Uma antropologia que inventa cultu ra em
.finíYe~ com precisão pelamera ohservação etnográfica, esempre a partir vez de "a nossa Cultura" mediante a aplicaçãonão qualificada e universal
do ponto de vista de uma cultura particular, podem servir
como ferramen de conceitos como dialética, objetificação e mediação implica a autoaná
em proposições. 4
tas conceituais para isolar noções abstratas e encadeá-las lise como parte necessáriada análise dos outros, e vice-versa.
metáfora de Robert Fr ost, poderíamos dizer que ele joga o tênis etnosse dos sobre um castelo de cartas acadêmico com estampas como "quí
mântico "com a rede arriada", isto é, sem o benefício de metodologias de mica", "biologia", "psicologi a", "ciência po lítica"? Em todos os senti
elicitação (embora seja justo recordar a réplica de Carl Sa ndberg à crítica dos, trata-se de uma contemporânea análoga e valorosa da propaganda,
de Frost ao verso livre: pode-se jogar tênis melhor com a rede arriada). um culto da cultura que precipita seu fundamento lógico máximo por
Não pretendo criar a impressão de que todos os antropólogos estão meio da busca zelosa po r "marcas" teóricas particulares. É uma maneira
presos na armadilha da objetificação da natureza po r meio da cultura de ao mesmo tempo afirmar e negar a relatividade cultural, um "jogar"
ou vice-versa. Pioneiros como Lévi-Strauss, Dumont e Leach mere- livremente com a invenção e a experiência de maneira que o nosso compr o
cem todo o crédito por forjar um aparato conceitual que introduziu uma misso com a Cult ura e o empree ndimento coletivo seja sempre justificado.
antropologia autoanalítica no leque de possibilida des. Muitos antropó A relatividade sempre foi vital para a antropologia, que passou por
logos mais novos seguiram o exemplo de David Schneider e Clifford muitas de suas crises e transformações formativas concomitantemente
Geertz ao levar suas investigações e conclusões além dos limites pos- ao desenvolvimento da relatividade na física. A era que compreendeu o
tos po r uma antropol ogia tradicionalista e um academicismo empeder autoescrutínio dos físicos, desde Mach e Einstein a Heisenberg, e o exame
nido. Estudos antropológicos qu e objetificam culturas como análogos dos conceitos antropológicos desde Tylor até Lévi-Strauss e Schneider,
autocriativos do nosso sistema conceitual total, e não da nossa
Cultura passando por Boas, Kroeber e Goldenweiser, constituiu uma fase na
racionalista em seu sentido estrito, que não caem na armadilha de usar um crescente autoconsciência de uma Cultura cada vez mais relativizante
dos conjuntos de nossos controles culturais para implicitamente inven e auto-obviante. Seus avanços são de uma preciosidade incalculável, e
tar o outro, situam-se em uma relação de inovação e avaliação peran te destrutivos ao extremo. Eles ameaçam o próprio tecido de nossa ordem
nosso sistema conceitual como um todo. El es não são uma parte da nossa social acadêmica e secular, mas também sustentam essa mesma ordem for
invenção da realidade, da nossa derivação da Cultur a a partir da natu~ necendo a ela um desafio e uma pertinênc ia, algo sobre o que folar . Eles a
ou vice-versa, de modo que suas conclusões não estão necessariamente revivificam, assim como a absurda chateação da propaganda revivifica
nossa vida econômica. A introspecção séria na an tropologia conduz ine
4. Id., ibid., p. 19· vitavelmente ao desmascaramento de suas teorias e problemas. E ainda
22 8 A invençM da antropologia 22 9
assim, quando administrado em pequenas doses, esse tipo de insightfor em paradigmas constituintes. O evolucionismode Tylor ede Morgan, entre
nece a motivação e o estí mulo que mantém viva a ciência. outros, obviou asi mesmo entre 1870 e 1895 e preparou o palco para a for
Toclo avanço no perigoso reino do insight relativo precipita uma mulação do difusionism o histórico-geográfi co por Frobenius, nos anos ,890,
"literatura" eum "conhecimento" acadêmicos como sua antítese. Cada e da Kulturkreislehre [teoria dos círculos culturais] por Graebner, em '904-
grão de introspecção é "aplicado" e desenvolvido por atarefadas indús- Mas por volta da Primeira Guerra Mundial Grae bner tinha identificado sua
trias científicas. Sob esse aspecto, nossas bibliotecas entulhadas de teoria "cultura melanésia doarco" em todos os cinco continentes, Frobenius
já
e etnografia são reverberações cultas de terremotos críticos vitais. Com havia abandonado sua criação anterior e Malinowsk i começava seu trabalho
efeito, é grande a tentação de falar de uma sequência de "paradigmas" no de campo. O que se seguiu foi um insight critico arrebatador, que deu por
sentido da teoria das revoluções científi cas de Thomas Kuhn; nã o fosse resolvidasas questõeshistóricas e por problemáticas as questõessistêmicas,
pelo fato de que os "paradigmas" estão essencialmente contidos
em matri do mesmo modo como a antropologia anterior invertera essa ordem. O fun
zes cada vez maiores de desenvolvimento e mudança, que também podem cionalismo via as "culturas" como mecanismos sociais e o configuracio
ser vistas como paradigmas. A antropologia como um todo, em seu um nismo (Frobenius, Spengler, Kroeber, Sapir, Benedict e mais tarde Redfield),
século de carreira acadêmica, encaixa-se na sequência de desenvolvimen como "padrões" sociopsicológicos:ambos enfatizavam a integração delas.
tOS mais amplos, alinhando-se co m a concepção hobbesiana da sociedade Mas a cultura como um sistema integradoera vulnerávelà crítica de etno
como "um Deus mortal", com Rousseau, Kant, Hegel e com as teorias centricidade - para demonstrar o "funcionamento" ou "padronização" sis
da evolução e da degeneração humanas. E há tantos cruzamentos entre têmicos, tomava aconceitualização das coisas culturais como dadas. E assim,
as "disciplinas", e entre os teclados acadêmicos em que os paradigmas a começar com As estruturas elementaresdo parentesco (1949) de Lévi-Strauss
são executados, quanto no interior delas. A teoria de
Kuhn faz mais sen e em seguidacom seus escritos posteriores os e dos etnocientistas, cultura
a
tido comO uma apreciação geral da mudança do que como uma descrição foi explicada como um sistema lógi co e coere nte (em vez de funcional e
fenomênica. Caberia reescrevê-la do ponto de vista da invenção. eficiente). Ao passo que o funcionalismo e o configuracionismo
tomavam
Consideremos os delineamentos mais amplos da história antropoló como dada a ordem conceitual das coisas eproblematizavam a integração,
gica. A antropologia "diacrônica" ou "histórica" de Tylor, de Morgan e dos o estruturalismo e a etnociênciatomaram como dada a integração (sob a
difusionistasalemães, britânicos e norte-americanos levouuma a espéciede forma da "reciproc idade") e problematizavam a conceitual ização.
exaustão teórica que tornou urgentes e importantes as preocupações" sincrô Nenhuma dessas épocas e transformações foi independente de outros
nicas" e sistêmicas. Essa fase posterior, a do "funcionalismo" de Malinowski eventos. A antr opologia histórica espelhava a ideologia dos impérios colo
e Radcliffe-Brown, do "estruturalismo" de Lévi-Strauss e da antropologia niais e supraétnicos tardios da Grã-Bretanha, da França, de países da Europa
cognitiva,ensejou por sua vez uma falência teórica moderna m uito concreta. Central e outros (esses impérios quase que literalmente "fizeram" a evolu
Esses dois "tipos" de antropologia - o que tratava as "culturas" como partes ção e a difusão Culturais com o política pública). A antropologia sistêmica
de um "sistema" histórico-geográfico e queo tratava "culturas" individuais refletia a urgênci a racional da mobilização de guerra e o Estado-nação eco
como sistemas em si mesmos - podem ser considerados um paradigma único nômico. Acuriosa "evolução" através da qual cada um dos sucessivos epi
ou comoparadigmas separad os. Cada um deles pode ser ainda decomPQ~ sódios paradigmáticos conduziu a si mesmo no sentido da obviação e con
tradição de seus pressupostos srcinais fornece a evidência mais convincente
da natureza da antropologia como disciplina acadêmica. Trata-se de uma
5. Thomas S. Kuhn) A estrutura das revoluções cientÍficas, trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira.São Paulo: Perspectiva,[1962] 197;· ação de contenção contra a relatividade, uma espécie de fixativo teórico que
se resolve na polaridade entre o inato e o artificial. O "fato" emerge como a compreensão que essa relativização supõe e nos traz. A cultura é aquilo
máscara de todo um reino de contradições teóricas: cada operação engloba que se faz dela, ainda que para aqueles que a considerem "real" reserve o
o aspecto dialético e contraditório da inter-relação de "níveis" e então o mesmo tipo de armadilha posto por qualquer outro conceito. Como um
abole e desintegra na derivação do "fato". Assim, as "ordens" ou "níveis" dispositivo messiânico, como um caminho rumo à "liberdade" para os
representam uma série de "reduções" repetitivas e tautológicas de uma que buscam o entusiasmo por meio do qual trazer sua Cultura à vida mais
única potencialidade inventiva por meio das objetificações de nossas várias uma vez, suas futuras potencialidades são mais extensivas que intensivas.
técnicas teóricas ("met odolog ias" e assim por diante) de produç ão de fatos. Ela irá se expandir e proliferar pujantemente como uma frente de onda
O m undo sintético da ciênci a é um mund o de coerência remendada. de sofisticação incipiente, atraindo estudantes e leigos para o excitante
Não importa se apreendemos as várias "abordagens" da antropolo jogo de construir e reafirmar a Cultura a part ir de sua própria contradição
gia (ou o espectro mais amplo, que compreen de aquelas da própria ciên arriscada sob a forma de experiência e xótica. O passo à frente é o p onto
cia) como uma sequência de desenvolvimento de "contribuições" s uces a partir do qual o jogo e a contradição se tornam mais importantes que a
sivas em direção a um arsenal abrangente de teoria, ou se as concebemos afirmação da Cult ura.
como de com os
"sincronicamente", tentativas lidar vários "níveis" de Essa contradição é essencialmente a maneira pela qual a antropo
realidade. Não importa, em outras palavras, se preferimos racionalizar a logia inventou a si mesma no processo de desenvolvimento que esbocei,
dialética em termos históricos, como um desfile de realizações humanas, embora essa perspectiva seja e tenha de ser negada pela máscara que a
ou em termos "naturais", como uma ordem de níveis fenomênicos. Tudo antropolog ia veste na qualidade de uma disciplina sintéti ca. A antropo lo
se resume à mesma coisa: um banimento intelectual da invenção e da gia como parte da Cultura é uma acumulação de grandes ideias, insights
relatividade da convenção e m prol da ratificação de nosso próprio mundo e obras, e sua imagem profissional apresenta essa "literatura" como um
convencional- a metamorfose da criação da realidade pelo homem nas conjunto de possibilidades teóricas com viabilidade mais ou menos equi
nossas ordens convencionais de "conhecimento" e "fato". valente. É possível adquirir manuais que dispõem essas" contribuições"
A er a que a antropologia está agora ultrapassando é a do "sin exatamente desse modo, minimizando e subestimando suas contradi
tesismo", em sua manifestação diacrônica ou histórico-difusionista ções e obliterando sua continuidade dialética. "V á garimpar a literatura" ,
([87[-[922) e em sua manifestação sincrônico-sistêmica ([922-72). A base dizem os estadistas mais velhos e os editores de " eaders" [coletâneas]
da antropologia sintética era a ideia de que os "níveis" fenomênicos cor cada vez mais abrangentes, "e você achará o que está procurando: tudo
respondem aos ram os de estudo acadêmico (ciências fís icas, biológicas e já foi dito antes". E, é claro, quase tudo foi. Essa amnésia acadêmica,
sociais). Seus grandes triunfos foram o "superorgânico" de Kroeber, os essa obliteração da invenção po r via da página impressa, equivale mera
"níveis" de W hite e Steward e as grandiosas sínteses de Talcott Parsons. mente a um teatro mais sério e institucionalizado na batalha contra a
Quando ela se superou, como o fez tantas vezes nos escritos de Benedict, relativização cultural e a consciência da relatividade cultural que ela traz.
Bateson, Sapi r, Lévi-Strauss e depois nos de Schne ider e seus alunos, A antropologia dos manuais é um catálogo dos dispositivos que essa
atraiu fogo pesado daqueles que se perguntavam se os outros "níveis", teoria empregou para controlar e superar a relatividade: ela reúne nova
os "fatos" naturais e econôm icos, não estavam sendo neglicados.~ mente todo o mundo sintético da ciênc ia de meados do século, com seus
Desse modo, a antropologia e seu conceito-mote - a "cultura" - não níveis e reducionismos. Definições restauram a "clareza" e a segurança
consistem tanto numa investigação sobre o mundo fenomênico quanto da realidade secular ordinária; grandes hom ens e suas auras místicas, ane
numa etapa da nossa própria relativ ização Cultural e do despertar da dóticas, restauram a confiança na estafante progressividade da "tradição",
comprometidos com a invenção de nossa realidade secular. reside em sua capacidade de exorciza r a "diferença" e torná-la consciente
Até agora, pressupostos desse tipo permaneceram intocados po r e explícita, tanto no que diz respeito à sua temática quanto no que toca a
antropólogos receosos de comp rometer a base de suas inves tigações, o si mesma. Especialmente nos Estados Unidos,1 temos uma "antropolo
alicerce de consistência sobre o qual se assenta o racionalismo da ciên gia de fato e facção" , que se volta explicitamente para a consistência, o
cia. A preeminência da Cultura, em suma, nunca foi seriamente desafiada. conhecimento e a f raternidade profissional dos fatos, mas é cheia de dife
Contudo, a progressiva relativização que emerge do próprio conser vado renças implícitas e furtivas, rivalidades, invejas e ambições bem pouco
rismo que essa postura tipifica tem obviado nossa Cu ltura e suas soluções e profissionais, que são as mais destrutivas (e politicamente perniciosas)
instituições a ponto de que o estudo da cultura se vê diretamente envolvido po r não serem admitidas como tais. É uma "indústria" da produção de
em uma crítica que transcende O puramente acadêmico . Nã o é que os tem fatos que sofre a dialética como história, polêmica e picui nhas faccionais
pos tenham se tornado mais dificeis, ou que as pessoas tenham se tornado e vive uma sucessão de cultos a jargões, tendências, "necessidades" do
mais honestas - nem mesmo, infelizmente, que a "verdade" esteja vagaro departamento ou da disciplina, "armando" suas próprias revoluções e
samente vindo à tona (como sempre esteve). É que uma Cultura progres cataclismos sub-reptícios mediante a projeção de "program as" otimistas
sivamente relativizant e obvia progressivamente seus própr ios interesses e e irrealistas para ação concertada.
atividades, e suas operações se torn am cada vez mais óbvias no processo. Nossa tão celebrada "história ocidental" é na verdade a invenção
N essa situação, a antropologia não pode permitir-se o papel de situada "f ora da consciência"; é a dialética experimentada como evento,
Grande Inquisidor mais do que os interesses comerciais ou adminis como natureza. Quer chamemos essa dialét ica de " luta de classes" (o que
trativos, ocultando das pessoas, "para seu próprio bem", o funciona frequentemente ela é), "ascensão e queda de organismos culturais supe
mento da invenção. Por mais destrutivo qu e isso possa ser para um a riores" (o que ela imita com perspicácia), "luta do homem contra a
certa ordem social conservador a e defendi da de forma conserv a4Q,ra,
toda a anatomia da invenção, as impli cações que a cercam e a re spon
7. Sou grato a Laura Bohannan e a Pedro Armillas por apontarem que os órgãos acadêmi
sabilidade qu e ela acarreta precisam ser articuladas aberta e publica cos e profissionais mais estáveis da Inglaterra e da Alemanha fazem da deliberada afirmação
mente. Esse é um dever social e político, e nossa única alternativa é das diferenças teóricas uma questão de procedimento tradicional.
comunidade profissional implíc ita. A ética e as metodologias do trabalho ção da culturado ponto de vista de meus conhecimentos atuais (em 2010),
de campo devem se tornar "transparentes" para a criatividade sob estudo . este seguiria mais ou menos assim: o argumento de A invenção da cultu-
Devemos subordinar pressupostos e preconcepções à inventividade dos ra se baseia na articulação entre dois domínios universalmente reconhe
"povos estudados", de modo a não esvatiar sua criatividade de antemão no ciclos da experiência: o reino do inato, ou "dado", daquilo que é ineren
interiorda nossa própria invenção.E a apresentação da "literatura" antro te à natureza das coisas, e o reino dos assuntos sobre os quais os seres
pológica como "fato", "dados" ou "conhecimento" precisa ser moderada humanos podem exercer controle ou assumir responsabilidade. Estes
pelo tipo de interpretação (a exemplo da "hermenêutica" defendida po r não são necessariamente os mesmos de uma cultura para outra, nem são
Johannes Fabian, Jürgen Habermas e outros) que traga à tona a fasci necessariamente verdadeiros tal como representados, mas são as manei
nante e mútua invenção tanto do antropólogo quanto do "nativo". ras como eles são representados - no indivíduo como personalida de e
Voltaire observou que se Deus não existisse teria sido necessário na ordem social enquanto classe ou unidade cole tivi zante - e as manei
inventá-Lo. E eu acrescentaria, à maneira dos teólogos do Mu'tazila islâ ras pelas quais são transcendidos ou subvertidos, que constituem o que
mico, que se Deus existe isso torna ainda mais necessário inventá-Lo, pois chamei de "invenção da cultura". Assim, todos os fenômenos sociais
a invenção é a forma da nossa experiência e de nosso entendimento. Se ou culturais podem ser vistos como uma série de interações dialéticas
temos algo a aprender com esses "iluminados " pe nsadores e filos ofias do entre esses dois domínios ou categorias. Necessariamente, compor um
passado (que eram tão "ilusórios" quanto tudo ornais), é que o homem índice de acordo com esses parâmetros seria uma tarefa de interpretação,
não deveria tergiversar sobre a existência ou não existência de tais ilusões, já que a glosa ou tradução desses conceitos com respeito às definições
mas antes exercer seu direito categórico de escolher entre elas. E assim o
leitor deve sentir-se livre para se entre gar a sua própria fé na inexorável
existência de Deus, ou da natureza, ou da lei natural, para além de Q.~sa I. Roy Wagner escreveu esse breve texto especialmente para esta edição brasileira. Per
guntado sobre as particularidades do índice, Wagner lembrou da discussão que ele gerara
invenção deles e para além de qualquer coisa que possamos descobrir
entre seu orientador David Schneider, o editor e o autor na época da primeira edição do
sobre essa invenção. Trata-se, afinal, de um a atitude muito humana. Na
livro. Chegaram juntos à conclusão de que o índice deveria seguir o espírito da ob ra e "criar
expressão de Nietzsche, "demasiado humana". sua própria audiência". [N.E.J
das ciências s ociais corresponde ao trab alho do corpo principal do texto. Índice remissivo
O próprio texto é o índice; o índice é um texto à parte.
cado,
por rotação em ironiasdaquilo que haviam, de outro modo, signifi
tem-senão tendo out ra transitividade. Isso, po r sua vez, pode ser mais bem Alma 92, 43-44,
Alegoria 99, 133,202, 2°5-06,
147-48, 209 155-)7;
150-)3, e mascaramento,
Antropólogos: 219-20
culturais, 226-27; difusio
caráter da, 156-57; efeitos descritos, nistas, 230; ecológico, 218; evolucio
compreendido em termos do contraste entre relações de causa e efeito -
IP ; perda da, 155-59 nistas, 206; semânticos, 223-24, 228;
uma ficção (pois se a causa e o efeito em qualquer circunstância dadanão Ambiguidade 53-62, 66, 69, 72,106,131- tradicionais, 22')-26, 228
fossem uma única e mesmacoisa, a relação seria inútil e todo o argume nto 32, I)I, 205 Antropomorfismo 143, 147, Ip , 159,
da lógica, desprovido de sentido), mas ainda assim um fato - e a estra América, ver Estados Unidos 186-88, 192
Amigos imaginários 138 Apresentador de notícias 118
tégia ilusionista inversa de apresentar o efeito primeiro e então trazer a Amor 57-58 Aranda 187-88
revelação subsequente de uma causa problemática em relação a ele, como Analogia 36, 40, 43-44, 59, 61, 72, Arqueólogo 30, 146
na "montagem" inicial do cenário de um a piada e em seu consequente Antropologia como mensagem evan- Artificial (em oposição a inato) 9'),
"desfecho". "A causa do efeito é o efeitoda causa" resume em uma frase o gélica, 38; o trabalho de Bruegel 97- 9 8 , lO2, 104, 119, 123-24, 127-29,
como, 42-44; e auto-conheci mento, 135-36,138,140,143,1)3,165,167,178,
que de outro modo consiste em um longo e elaborado discurso sobre a 45-46; literatura antropológica, 53, ;6; 180,191,206,2°9,211,213,215-18,
relação entre convenção e invenção. Um a variante convenientemente alte social, 65, 226, 232; reversa, 67, 71; 221-22,224,23 2,234
rada dessa sentença, como" a insanidade do controle humano sohre o inato como exploradora de ambiguidade, Artista 40-45. 49,103,107, I18, 135, 142, 212
106; e objeto, 202; ecológica, 218- 9;
I Associações convencionais 76, 79-81, 96
é a insanidade inerente ao próprio controle"poderia ser usada para resumir
semântica, 222-24; tradicional, 224, Associações: objetivas, 84-85, 104; sim-
todo o argum ento deste livro . 228; e relatividade, 229; histórica, bólicas, 83, 76-82
230-31; sistêmica, 231; como discipli
na acadêmica, 231; sintética, 234-3;; BARTHES, Roland 191
de manual, 235; futuro da, 237 BATESON, 18, 141, 154,
Antropólogo, definição 27-28; e 207,234 Gregory 183-86,
."" significado, 29; como "missionário BEETHOVEN, Ludwig van 98, lO6, 107,
cultural", 35; como inventor, 35-37; 14°,14 2
como "estra ngeiro profissional ", 39; BENEDICT, Ruth 166,231,234
como trabalhador, 49-53; como intér BLOCH, Marc 197-98
prete, 64; a criatividade do, 75; como BOAS, Franz 15,229
24°
24 I
Bom selvagem 206 relativização de, 98-107; provocati experiência, 38; como idioma, 39; 185-94,197,199; ideologia da, 166,
Brincadeira 117, 138, q8 , 178 vos, 112; cidade como, 130; na fala, como controle, 39-41; como media 179,181
BRUEGEL, Pieter, 42-44 168-7°, 17 2-74 dor, 46, 62, 66; derivação da palavra, Dinheiro, 57-59, 111, II6, 128, 131, 149,
Budismo 9, 21, 202 Contracultura 62, 107-08 53-55, )7,62-63,174; sala de ópera, l'jO, 192, 197, 198,200
BUGOTU, Francis 58, 60, 65 Contrainvenção 88, 92-93, 135, 145, 153 )4-;6,62-66, 69, 75-76, 79, 93-94, "Direcionados para dentro" 201
Burguesia 192-93, 199-200 Contrato social 54, 2q , 221 101,1°3,105-08,112-119,123-37, qo , "Direcionados para o outro" 201
BURRIDGE, Kenelm 68 Controle 34-35, 38, 4°-42, 82- 94, 97- 143-44,15 1,1 7 1,19 2,199,201-02, Distinção convencional 86, 93-1°7, 129,
107, II5, 124-29, 135-37, 145, 153, 158- 212,214-36; associações da palavra, 135-53, 21 3- 17
Carga (culto da) 67-72, 76,196 59,160,162, 16 5,168-73,175,177- 82 , 54-56,62-63,66-67,205; como auto Dualidade, 183-84
Casamento 59, 65, 89, 91-92, 184 189,196-200,211-26 imagem, 58-59, 66, 76, 8r, 202; como DUMONT, Louis 16, 18, 227, 228
Causalidade 143 Controle convencional 1°3-°4, 106, 123- sistema, 64-66, 81-82, 23°-31; con Duplo vínculo 140, 142, 156, 161, 202
CÉZANNE, Paul 23 24, 134, 174 trapartes interpretativas da, 67-72; DURKHEIM, Émile 81, 82
CHOMSKY, Noam 178 Convenção: 75-76, 87, 127-31, 156-89; e como força motivadora inata, 93-94;
Choque cultural 34-35, 37, 40, 50, 67, 75 não-conv encional, 8'), 88-96, 98, 101 - convenções da, 94-95; relativização Ecologia 124, 208; movimento, 1I9, 183,
Ciclos 126-30, 134, 156, 189-9°, 195 °4,171-73,191,215,217; como oposto da norte-americana, rOO-07; como 21 7- 18 ,220,226
Cidades 13°-31, 192, 197-199,212,214 a invenção, 94-107,119, I35-42, oposta a "natureza", 10); "instan Economia 150
Cismogênese 18, 185 q4-45, 158-67, 181; como "crítica", tânea", 109; culto da, 68, 113, 119; Ego 133, 135, l'jl
Civilização 22, 55-56,67,97,131,134, 97-98; essencial para a motivação, 99; "alta", 19;; conceito de, 220; como EINSTEIN. Albert 229
191,193,19')-96,217; urbana, 191, 193 como "artificial", 135; "contrafação" "nível", 230; como "mote", 234 Empirismo naturalist a 216-22
Classe média 91, 93, 103, 133, 146, 15), da, 20, 139, 156, 162, 16;, 167; pessoal Cultura de massa, 107, 119, q2 , 201 Energia 124-2;
200; none americana 91, 93,133,135- em oposição a social, 167; como Enga 1'j5
36, 149, 154, 17 8 fluxo inventivo, 168, 180; linguística, Daribi 49-53, ;9, 84, 93, 97, 98, IIO-12, Entre tenime nto 101-03, 107-08, 1I6-19,
Classificação 223, 232-33 168-80; mediação dialética da, 181-82, 114,143,14 6-47,15°-54,15 8,161-62, 134-35,137,194, 21 5
Código 145, 197 190-95; relatividade da, 234- 179,183-85,187-88 Espírito 133, 151, 156, 159-62, 168, 196,
Cognição I34-35, 2q , 223 Convencionalização (em oposição a di Definição 129,222-26,236; efeitos 22 7
Coletivização 84-104, 135, 145, 149-50, ferenciação) 80-81, 104, 109, 173-80, descritos, 80 Esquizofrenia 37,141,167
153-54,159-60 ,162,16')-66,177-7 8, 224; artificial, 224 Democracia 105, 194, 201,221 Estado 206, 221; Estado-nação 200
180-81,184,186,19°-94,196-202; Cosmologia religiosa 79, 81 Denotação 80 Estados Unidos)2, 106-°7. 124, 167, 189,
efeitos descritos, 88-89; ideologia da, Costa Noroeste 189 Dialética 96,100,1°5, II2, Il9, 128, 1)2- r99, 217, 237
166-67, 181-82, 193-96,200-01 Credibil idade 116-17, II9 , 14°-41 33,166, 18r-83, 185-9°, 229, 234; uso Estrutura 59, 98
Colonialis mo 193, 200 Criatividade 46, 49, 51, 53-57, 59-61, 63, da palavra, 96; da natureza e cultura, Estruturalismo 23°-31
Competência (linguística) 178-80 65-67,69,7 1,75,77,99,102,115,12;, 105; motivadora, 128; entre classes Estruturalistas 169, 227
Compulsã o 65, 88, 92, 94,103,137 13°-31,139-42,151,161,167,18;-91, sociais, I34, 190-93, 200-02, 237; e Estrutura social 59, 127
Comunicação 76-81,169-70,178 -79 194,208, 2II, 216, 218-21, 227, 2)2, ideologia dife renciante, 166, 181-86; Ethos 185
Configuracionismo 231 2) 8 mediada pela convenção, 181 -82, Etnociência 135, 224, 231-)2
Confúcio 24 Culpa 136-39, 154-55 185-86,188-93,201; COmo mediadora Etnossemân tica 223-24, 22 8
Conservação 167-68 Cultos 68-70,104, II6, 145, 148, 167 da convenção, 181-82; consciente, 193, Eu: 77, 86, 92, 112, 130, 132-3S, 137-
Contexto: uso de palavras, 77-78; cons Cultura e o fenômeno do homem 27-29, 202,237; e reducionismo acadêmi- 62,192,196,200,211-12,214-16; da
trução de, 77-94, 103-04 ; conven 75; uso da palavr a, 27, 37, 53-66; co, 234; e teoria antropológica, 235; personalidade criativa, 45, 1I2; na
cionai, 78-79, 81, 88-102, 165, 168; como noção antropológica, 27, 8"r';'f forma assumida pela, 238 ideologia ocidental, 1)2-42; invenção
troca de característic as, 82-94, 104 , implicações da, 29, 37, 40, 53-66, Dialeto 176-77 infantil do, 138-39; em tradi ções
114,171-72; de controle, 82-94, 101, 76; como tema de estudo, 30, 35, 39, Difere nciação 84-106, 1I7, 135-)2, 155- religosas tribais 1)2-62, 187-8 8; na
182,224; implícito, 81, 87, q8 , 165; 76,219; como "coisa", 36; como 56,158,165-66,171,175-77,180-82, sociedade medieva l 196-98, 200
Fidelidade ao suserano [Liege homage] 108, 109, 1)2-34,138, 140,206, 210, 227; e paradigmas, 230-31; resolução Mana 159
197-98 2II, 215, 226; sexual, 9°-91 da, em polos artificiais, 232; ocul Mascaramento 87-94, 98,10'),118,123,
Fief-rente 198 Inato 18, 82-83, 87-88, 93, 95, 97-98, tamento da, 236-38; consciência da; 128,133-34,14 8,159,180,194,202,
Força natural 97, 10~, 123-26, 128-29, 101-02,1°4,117,119,123-26,128-58, humanidade da, 237-38. 2°9,215,219-21,224,226,234-3;
134, 21 7 161,165,I67-68,178-80,191,208-1I, Ishi 63-64 convencional 95; desmascaramento,
FREUD, Sigmund 65,103,134-35,138, I)I, 213,215-16,218,221-22,224-26,234 94,101,147,229
182,201 Incesto 6'),187,188 JAKOBSON, Roman 191 Mediação 65, 181-82, 191-95, 200-02,
FROBENIUS, Leo 231 Índios norte-americanos 63, 64,171,189 Jamaa 185 211; uso da palavra, 182
Funcionalismo 218, 230-32 Individuação 127, 152, 159, 185, 200; "de Jazz 14') Medieval (período) , 196-98, imaginação
protesto", 131 Jogo 39, 62, 100, 103, 105, JI7, 128, 132, do, 200
GEERTZ, Clifford 17, 113,210,228 Indivídu o 89, 97, 206; criativo , 161 138, 1)), 21 9- 20 ,223,233,235 Meio ambiente 106, 115, 129-31, 178,
GOLDENWEISER, Alexander 229 Instinto 99, 119, 132,206-07 Jornalismo 107-08, 116, 177,201 21 7- 18
GRAEBNER, Fritz 231 Inteligência 115, 13), 209, 210 JOSHUA DE NAZARÉ 71 Melanésios 59, 68-70, 160
Gramática 2o, 23, 65, 94, 143, 168-69, Intenção 39-40, 86-92, 97-100,112,132, Metades 184-8;
172-76,178-79,217,225 13 8,144,145,180, 18 7,202,2U KANT, Immanuel22, 23, 230 Metáfora 17, 19, 21, 54,63- 66, 83- 85,
Grupo corporado 2 J2 Invenção: do antropó logo, 31-46, 53, KROEBER, Alfred 225, 229, 231, 234 128, 169-70,213,219, 228; uso da
61-62,67,75-7 6,82- 83,216- 17,229; KROEBER, Theodora 63 palavra, 84
HABERMAS, Jürgen 238 cultura como "muleta" na, 36, 83; do KUHN, Thomas 13, 230 Metodologia 170, 194, 216, 221-24, 228,
Habu (cerimônia) 17, 19,84,151,185, artista, 40-45; tecnológica, 55-58, 102- Ku/turkreislehre231 234,23 8
18 7, 18 9 °3,105,109,114-1'); modos da, 61-62; Mídia de massa 107, II2, 194
HAYDN, Franz r06 do passado, 63, 75; tema da repre Lago Tebera 148 Minorias 129, 192,201
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich 96, sentação, 65-6 6; uso d a palavra, 77; LANDTMAN, Gunnar 159 Missionário, trabalho ')0, 146
2) 0 inovação como, 77, 80, 83, II6-17; de LAWRENCE, Peter 69, 70 Missionários 35, 50, 52; linguistas, ')0
HEISENBERG, Werner 13~, 229 contextos, 83; metáfora como, 83':~; LEACH, Edmund R. 226-28 Mito 1')3, 181, 219-2°, 227
Hermenêutica 238 como articuladora do convencional LÊNIN, Vladimir 23 Moralidade 17, 42, 67, 69, 82, 87- 90, 94,
Histeria 132-33, 156, 158-61, 16 e não-convencional, 84-99, 103-05; LÉVI-STRAUSS, Claude 17,96,183,191, 106,119, 12 7-29,135-36,139,144-45,15°,
HOBBES, Thomas 230 controlada, 94-94; necessidade da, 21 9,226-32,234 1)2-62,168,170,200,205,208-09,214
107; aprendizado da, 100; e histeria; 144,147,149-5°,161,187,222,225-26, REDFIELD, Robert 231 Semântica 62, 220-24
133; como id, 133, 151-)2; como a lma, 231; relações jocosas, de eviução e de Reforma 192, 218 Semiótica 83-8;
151-53,159-62; e linguag em, 177-79; respeito no, 148, 1)2; natural, 226 Regras 7;, 81, 83, 89, 91,128,139,168- Sexualidade 154
de invenlião cíclica, 189-9°, 19;, Pecado 150, 1;;-;6, 158, 161, 198 79,214,216- 17,22; SHAKESPEARE, William 44, 176
'9 8-99 Performance (e desempenho) 144-46, Relação 88,133,186,187-95,218; de Show-business u6
Movimentos milenaristas 67 178-80,187,213,215-16 poder, 195; de parentesco, 79, 105, Significado 36-37, 76-82, Ill, 114, 140,
MOZART, Wolfgang Amadeus 23,106,113 Personalidade 18, 30, 54,91,1°3,13°, 143,1;0 168-72,193,220; literalização do, 66-
MUNN, Nancy 86 133,13;-42,151,156 ,1;8,17 8,201,206, Relacionamento 32-33,51,99-100,1°;, 69; "primário", 79-80
Museu I;, 55,60-64,7°,202 212; criativa, 14°-42 148; (in)apropriação do, 1;0-;1; Simbiose 212
Mu'tazila 9,238 Pessoa 165 jocosas, de evitação e de respeito no, Simbólico (elemento) 77-78, 83, 219
Pintura flamenga 42-45 148, 1)2 Simbolização 40, 166
Natureza 93, 98, 10h 108, 113, 11), II9, Pode r 124-25, 144-4;, 147-48, 1;1-)2, Relatividad e contextual124; da lin Símbolos 65, 68-69, 83, lO;' 184, 219;
123-29,131,134,144-45,191-92,194, 1;6-62,186-9°,192,195, 197, 207-08, guagem, 174, 177-80; na física, 229; "meros", 128, 166, 217, 219-20
202,20;-07, 2II, 213-28, 238-39 2lI, 214-15; efeitos descritos, 144-45 cultural, 10, 14, 15, 29, 220, 229, 235 Sintagmáticos 77,191
Naven, cerimônia do 18, 184-8; Políticos II8, 129, 155, 194, 201 Relativização 86, 98-1°4,106-07,115, Sintaxe 169, 172-74
Neurose 132-H, 136-40, 1;6, 1;8, 167, 201 Poluição 119, 155-;6, 217 r17, 119, 127, 129, 131-H, 136, 142, Sistema 19, 21, 37, 64, 81-82, II), 124-25,
N1ETZSCHE, Friedrich Wilhelm 141, 238 Polinésia 1;9 150-;1,153,156,158-59,167-68,180, 131,173-75,217,228,23°-31
Nomes 146-48, 1)2 Possessão 156-;7, 160-62 19 1,1 9 6,1 9 8,229,234-3 6 Sociedade ocidental 16, 24, 35, 68-69,
Normas 82,143,217 Povos tribais 60, 62, 64-6;, 67, 69, 76, Religião 42-43, 7°-71, 79,104,107-08, 76,137,144,160-61,170 ,18;,201-02,
Norte-americanos (Índios) 171, 189 98,104,1°9,127,144,146,148-;°,1;4, 1I6, 134, 144, 186, 194-99; popular, 221,237
Notícias 108, 112, 116, 1I8, 233 1;9,167-68,170-71,184-88 107,194; revivalismo 116 SPENGLER, Oswald 166, 194, 195, 231
Nova Guiné 49, 60, 67, 69-7°, 94, Il 8, Pragmática 83 Rembrandt van Rijn 4;,142 STRAUSS, Richard 181
155,159,183,187,189 Previsão (adivinhação) II8, 123-28, 143 Representação em tradições diferencian Subcultura 62, 1°7
Primitivos 53, 63,14 6, 18 3,166,202,210 tes 1;1, 1;8 Superego IH, 135, 151
Objetiflcação 35, 61, 86, 88-94, 98,103- Produção 50, 53, 59,60,67-69,76, 1I0, Responsabilidade 19, 67,102,128-29, Superorgânico 98, 229, 234
04,111, li;, 124-25, 127-28, 131-33, 130, 134 137-4°,14 6
135,14;, In, 157, 167, 169-70, 173, Profano 43,188,191 Revolução Americana 200 Tabu 6;,157,186,188
176-80,196,215,220,222-24,228-29; Progresso 54, 93, II6, 166, 19;, 206, 210, Revolução Francesa 200, 221 Tabuleiro gema 185
do controle, 90; e convenção, 92-93; 21 4,221 RIESMAN, David 201 Tautologia 80, 83, 214, 233
na fala, 168-70, 176-80; da sociedade, Propaganda 16, 102, 107-19, 1 3 1 - 3 1 ~ i ' f 4 - RILKE, Rainer Maria 129-3°, 212 Tecnologia 55, ;7, 67, 103, 105-06,109,
196; uso do termo, 86; usado para 37,145,168,194,201,215-17;efeitos Ritual 102, 136-37, 151, 153, 158-;9, 160, III-I3, II5, 123-25, 147, 178, 194,210,
negar a si mesma, 224 descritos, 1°9-10 168,184,186-89; neurótico, 137 214, 221
Objetivar 86 Psicanálise 35, 201 RIVERS, William H.R. 225 Tempo 126-28, 134, 142-46,
Veículo (na metáfora), 170 Vali 69-72, 76, 93 ROY WAGNER nasceu em Cleveland, Ohio, em 1938. Estudou astronomi a,
Vergonha 136, 1)3-58, 160-61 literatura inglesa e história entre 1957 e 1961 na Universidade de Harvard,
VERMEER, Johannes 45, [4 2 ZORBA, o Grego 61 recebendo um B. A. em História Medieval em 1961. Ingressou em seguida
na pós-graduação
po r
em antropologia
David M. Schneider. Iniciou na Universidade
seu trabalho de Chicago,
de campo entre osorientado
Daribi
no monte Karimui, na Nova Guiné, no final de 1963, onde permaneceu
até o começo de 1965. Em 1966 recebeu o título de Ph D em antropologia,
publicando um ano mais tarde a monografia The Curse o f Souw, dedicada
aos princípios da ribi de definição de clã e aliança, e, em 1972, Habu, sobre
a inovação de significado na religião daribi, resultado de mais uma estadia
em campo, de julho de 1968 a maio d e 1969.
A partir da etnografi a daribi, Wagner desenvolveu uma teoria geral
sobre a invenção de significado e sobre a noção de cultura, publicada
em A invenção da cultura em 1975, obra que ganhou nova edição revista
e ampliada em 1981. Entre 1979 e 1983, retomou a pesquisa de campo,
dessa vez entre os U sen Barok, na província da Nova Irlanda, na Papua
Nova Guiné, totalizando uma estadia de dez meses. Em voltou a
2000
LIVROS
"Are There Social Groups in the New Guinea Highlands?", in M. Leaf Ced.),
Prontiers of Anthropology.Nova York: D. Van Nostrand Company, 1974.
The Curse 01 Souw: Pn'nciples 01 DaribiClan Definition and Al/iancein New Guinea. "Scientific and Indigenous Papuan Conceptualizations af the Innate: a Semiotic
Chicago: Universi ty of Chicago Press, 1967. Critique of the Ecological Perspective", in T. Bayliss-Smith & R. G. Fea
Hahu: The /nnovation 01 Meaningin Darihi Religion.Chicago: U niversity of Chicago chem (eds.). Subsistence and Survival: Rural Ecology in lhe Pacifico Londres:
Press, 1972. Academic Press, 1977.
The Invention Df Cu!ture. Chicago: University ofChicago Press, [1971] 1981. "Speaking for Others: Power and Identityas Factorsin Daribi Mediumistic Hyste
Lethal Speech: Darihi Myth as Symholic Ohviation. Symhol.Myth and Ritual Series. ria" .journal de la Société des Océanistes, Folie, Possession et Chamanisme en
Ithaca: Corne U University Press, 1978. Nouvelle-Guiné, vaI. 33, n. ,6-57, 1977.
Symbols That Standfor Themselves.Chicago: University of Chicago Press, 1986. "Analogic Kinship : A Daribi Example". American Ethnologist,
voI. 4, n. 4, 1977.
Asiwinarong: Ethos, lmage, and SocialPower amongthe Usen Barolc o[ New Ireland. "Ideology and Theory: Th e Problem of Reification in Anthropology", in E.
Princeton: Princeton University Press, 1986. Londres: C.
Schwimmer (ed.), The Yearhoolc o f Symho/ic Anthropology.
Death Rituais andLf e in the Societies 01the Kula Ring. Illinois: Northern Illinois Hurst and Company, 1978.
University Press, 1989, [com Frederick H. Damon (eds.)] "The Talk of Koriki: A Daribi Contact Cult ". Social Research, Beyond Charisma: Reli
An Anthropology 01 the Suhject: Holographic
Worldview in New Guinea and its Mea gious Movements as Discourse, Johannes Fabian (editor convidado), n. 46,1979'
ning and Significance for the World 01Anthropology. Berkeley: Universit y of "Daribi Kinship", in E. A. Cook & D. O'Brien (eds.), Blood and Semen:Kinship
California Press, 2001. Systems 01 Highland NewGuinea. Studies in Pacific Ethnology Series. Ann
Coyote Anthropology.Lincoln: University of Nebraska Press, 2010. Arbor: University of Michigan Press, 1980.
"Cultural Artifacts at Ornara and Kistobu Caves, New Ireland". Oral History, 7
ARTIGOS E ENSAIOS (8). Port Moresby: Th e Institute of Papua New Guinea Studies, 1980.
"The Ends of Innocence: Conception and Seduction among the Daribi of Karimui
"Marriage among the Daribi", in R. M. Glasse & M. J. Meggitt (eds.), Pigs, Pearl-
and the Barokof New Ireland".Manlcind, 14 (I), 1983,
shells, and Women: Marriagein the New Guinea Highlands~' a symposium.
"Visible Ideas: Toward an Anthropol ogy of Perceptive Values". South Asian
Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1969.
Anthropologist,Special Issue Essays in Honour of Victor Turner, 4 (1),1983.
"Pigs, Pearlshells, and Women". American Anthropologist,
n. s., voI. 72, n. 3, jun.,
"Ritual as Communication: O rder, Meaning, and Secrecy i n Melanesian Initiation
1970 .
Rites". Annual Review 01 Anthropology, voI. 13, 1984.
"Daribi and Foraba Cross-Cousin Terminologies: A Structural Comparison".
"Figure-Ground Reversal among the Barok", in Louise Lincoln, Assemhlage 01
Journalo[ Polynesian Society,79 (I).
Spinú: /dea and Image in New Ireland. Nova York: G. Braziller/Minneapolis
"Pigs, Proteins, and People-Eaters". Amen'can Anthropologist,
n. s., voI. 73, n. I,
Institute of Arts, 1987.
feb., 1971. [com Stanley Walens]
"Mathematical Prediction of Polygyny Rares among the Daribi of Karimui ParroI
"Initiation as E>,:.:perience", in L. L. Langness & Terence E. Hays (eds.), Anthro
pology in the High Valleys: Essays on the New Guinea Highlands in Honor 01
Post, Territory af Papua and New Guinea". Oceania, XLII (3). ."" Kenneth E. Read. Novato: Chandler & Sharp Publishers, 1987.
"Incest and Identity: A Critique and Theory on the Subject af Exogamy and
"Visible Sociality: The Daribi Community", in J. F. Weiner (ed.), Mountain
Incest Prohibition". Man, n. S., val. 7, n. 4, 1972.
Papuans. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1988.
Washington: Srnimsonian Institution Press, 1992. cago: University of Chicago Press, 1977·
"If You Have the Advertisement You Don't Need the Product", in D. Battaglia
"The Theater of Fact and Its Critics", resenha de J. Clifford & J. Marcus (eds.),
WnOting Culture: The Poeticsand Politics o f Anthropology. Anthropologi-
(ed.), Rhetorics o f self-making. Berkeley: University of California Press,
ca! Quarterly, voI. 59, n. 2, Ethnographic Realities/ Authorial Ambiguities,
'994-
"Hazarding Intent: Why Sogo Left Hweabi", in L. Rosen (ed.), Other Intentions: '9 86 .
"Afterword", in J. Mirnica, Intimations o f Infinity. The mythopoeia o f the Iqwaye
Cultura! Contexts and the Attrihution o f Inner States. Santa Fé: SAR Press,
counting rystem and numher. Oxford/Nova York: Berg, 1988.
'995·
"Fighting over Pigshit: A New Ireland Pragmatic". Anthropology and Humanism
Quarterly, 20 (3), 1995·
"Mysteries of Origin: Early Traders and Heroes in me Trans-Fly", in P. Swadling
& B. Laba (eds.), Plumes fromparadise: trade cycles in outer Southeast Asia
and their impact on New Guinea and nearby islands untill920. Honolulu: