Você está na página 1de 5

428 RESENHAS

teóricas que privilegiam a função cog- usual que as entende sob a ótica bipo-
nitiva, mental e representacional da lar do conflito entre familismo e ordem
cultura. Kuper, em particular, parece pública, como remanescente arcaico do
mais preocupado com a banalização e poder privado em face da suposta fra-
vulgarização do conceito, e culpa em gilidade do poder do Estado, Marques
grande medida os estudos culturais e o expõe ao leitor um complexo painel
multiculturalismo por tal efeito perver- formado por fluxos de relações de dife-
so. A cultura por estar em toda parte te- rentes ordens — familiar, política, jurí-
ria perdido seu potencial analítico e ex- dica, moral — que se sobrepõem, cola-
plicativo. Ao mesmo tempo, o próprio boram, opõem. Seguindo com segu-
potencial liberal que se pensa existir no rança o tema épico sertanejo — e obje-
conceito de cultura, em especial se to clássico do nosso pensamento social
comparado ao conceito de raça, não é — das lutas de família, o livro oferece
mais garantido, podendo o conceito, in- uma compreensão abrangente dos
clusive, servir para oprimir e subjugar. meios de produção e reprodução de um
A cultura tal qual a raça, por mecanis- universo social localizado que, no en-
mos distintos, fixa a diferença. Kuper, tanto, se articula com a sociedade na-
na verdade, é fiel à tradição britânica, cional e a operacionalização de suas
privilegiando as relações sociais, o jogo modernas instituições.
de interesses econômicos e políticos. O A pesquisa realizada no sertão de
forte sociologismo de Adam Kuper o Pernambuco resultou em uma etnogra-
faz “jogar fora a criança (cultura) junto fia minuciosa, traçada através da intri-
com a água do banho”. Ao final da lei- cada trama de diferentes episódios, das
tura não temos uma simples genealo- sutis mas significativas variações de in-
gia do conceito, com suas aventuras terpretação dos atos e motivações ex-
acadêmicas e transformações, mas um postas nas narrativas, das ambigüida-
ataque consciente ao movimento pós- des expressas em intervenções inusita-
moderno em favor de uma antropolo- das de agentes estatais e no modo de
gia sociológica, comparativa. apropriação do conflito pelos poderes
do Estado — resultante do recurso que
os próprios intervenientes locais fazem
MARQUES, Ana Cláudia. 2002. Intri- do seu aparato jurídico-administrativo.
gas e questões: vingança de família e Assim, a autora faz uma opção inequí-
tramas sociais no sertão de Pernam- voca pelo deslindamento do fenômeno
buco. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. das “brigas de família” por meio da ló-
352 pp. gica dos atores, o que lhe permite reve-
lar a dinâmica de funcionamento dos
conflitos e, resultado apenas aparente-
Christine de Alencar Chaves mente paradoxal, iluminar as interco-
UFPR nexões com a sociedade abrangente
permanentemente em jogo na consti-
Originalmente uma tese de doutorado tuição de comunidades locais.
defendida no PPGAS/MN/UFRJ, o li- O texto expõe as complexidades do
vro de Ana Cláudia Marques apresen- tema e a labilidade das categorias por
ta um tratamento inovador do fenôme- via de uma sucessão de casos paradig-
no das “brigas de família” no sertão máticos que, no intrincamento concreto
nordestino. Contrariando a perspectiva dos atos e significados, vão paulatina-
RESENHAS 429

mente apresentando aspectos novos minado território ou localidade. Para


das “brigas de família”. Como não po- efeito analítico, a autora amplia, po-
deria deixar de ser, a etnografia é rém, pequenas diferenças de ênfase
acompanhada do domínio da literatura nos sentidos que as categorias nativas
antropológica clássica e recente, trazi- portam para ressaltar aspectos ou mo-
da para iluminar os narrativas e os mentos específicos desse estado de re-
eventos com os quais a autora apresen- lação conflitivo entre as coletividades
ta o seu tema, assim como para escla- envolvidas. A “questão” corresponde-
recer as opções interpretativas com que ria à fase do conflito em que as vingan-
ela vai construindo o texto. Neste as- ças se sucedem, as ameaças são ativas
pecto, duas particularidades merecem e o antagonismo recrudesce; a “intri-
destaque: o rico e nuançado tratamen- ga” enunciaria a relação nascida do
to conferido ao conflito como categoria conflito, sendo tendencialmente eterna
analítica, chave interpretativa das “bri- porquanto a “possibilidade de retalia-
gas de família”, e o cuidado com que, ção e da paz a alimenta”.
recortando-as como objeto de pesqui- Os dois primeiros capítulos do livro
sa, evita sua naturalização. Trata-se de são dedicados a expor e esclarecer os
duplo resultado de um movimento úni- traços fundamentais de caracterização
co: reconhecer o conflito como consti- do fenômeno. Uma dessas tarefas é
tutivo da sociedade, em sua capacida- sem dúvida a elucidação das condições
de de gerar e desintegrar vínculos e que o propiciam e terminam por confi-
fronteiras sociais, permite à autora res- gurar uma de suas regularidades mais
saltar os processos de constituição e surpreendentes. Para Marques, as “in-
desarticulação de grupos, inclusive os trigas” e as “questões” são meios de es-
grupos familiares. Ao enfocar diferen- tabelecer distinção entre parceiros ten-
tes episódios de brigas de família no dencialmente iguais. Segundo a autora,
sertão, Marques pôde acompanhar as uma das condições para que o conflito
fissões mas também o estabelecimento se efetive e perdure, enquanto questão,
e recomposição dos nexos de solidarie- é a equivalência, social e moral, dos an-
dade familiar, realçando seu caráter tagonistas. A tensão entre cumplicida-
contingente e circunstancial. de e antagonismo normalmente impli-
Antes de avançar nesta que é uma cada na relação entre próximos é a am-
das contribuições fundamentais do tra- biência na qual as ações de vingança
balho, convém elucidar o significado nas “brigas de família” surgem. Uma
atribuído às duas categorias que intitu- das muitas qualidades do texto está
lam o livro. “Intrigas” e “questões” são em apresentá-las como um campo de
categorias nativas até certo ponto in- forças marcado pela produção da dife-
tercambiáveis na designação de desen- rença entre iguais, da alteridade por
tendimentos acerbos que implicam na intermédio do conflito, mostrando co-
extrapolação dos limites da agressão fí- mo nessa luta para manter-se igual e ao
sica, resultando em um estado de rela- mesmo tempo diferente, as próprias fa-
ções permanentemente tenso. Não mílias se constituem e reconfiguram.
apenas indivíduos são implicados em Por fim, as questões sertanejas inaugu-
tais relações antagônicas, elas mobili- ram uma disputa entre iguais para es-
zam coletividades cuja insígnia princi- tabelecer, de algum modo, uma supre-
pal é representada pelo nome de famí- macia sobre o oponente — no limite ex-
lia, sobreposto pela remissão a deter- pressa pelo desterro. Os casos exem-
430 RESENHAS

plares trazidos pelo livro confirmam es- conflitos disputas em torno dos “termos
sa constatação, sendo os capítulos or- da relação entre as partes”, que são,
ganizados de modo a mostrar o cres- em última instância, definidos por ava-
cendo de envergadura e implicações liação pública no interior de uma co-
sociais e políticas que os conflitos vão munidade moral. Embora não haja
assumindo com a elevação da escala uma delimitação exclusiva de temas
social das famílias implicadas. Com um nos capítulos do livro, pode-se dizer
texto cuidadosamente elaborado e mi- que no terceiro deles se delineiam os
nucioso na apresentação das múltiplas contornos dessa comunidade moral for-
faces das “intrigas” e “questões”, o li- mada por relações que se fazem e refa-
vro deixa, porém, o leitor curioso quan- zem no contexto de reputações em ne-
to às articulações entre superiores e in- gociação. As brigas de família colocam
feriores sociais que elas possivelmente em jogo a força, o poder, o prestígio das
propiciam, em um universo social de coletividades e, inextricavelmente a
outra parte caracterizado pela “hierar- elas ligados, de indivíduos que se sin-
quia sem segregação”. gularizam pela “fama”. O sentido dos
Ao realçar os processos de fissão e atos, assim como a natureza e pertinên-
recomposição dos grupos nas “brigas de cia das causas que motivam os agentes
família”, Marques revela como o paren- entram em confronto perante um públi-
tesco se constitui também pelo conflito. co que acompanha, ativamente, o de-
Além do parentesco, as questões pare- senrolar dos acontecimentos. Atuando
cem supor e dinamizar alinhamentos de como testemunha e árbitro, o público
diferentes ordens, sejam elas relações participa do processo de negociação de
de vizinhança, amizade, vínculo político valores ativado pelo conflito — deci-
e, quiçá, de dependência. O livro mos- sões e ações são exibidas, mediadas e
tra que elas criam solidariedades e o seu pautadas pela opinião. Assim, o livro
oposto. Mas também se pode inferir dos mostra como as brigas de família são
dados apresentados que se as questões necessariamente públicas e envolvem
são operatórias tanto no plano das famí- redes sociais as mais diversas, criando
lias quanto do território, reconfiguran- um tenso campo de negociação em que
do-os localmente, o desterro que elas as reputações e os próprios valores são
suscitam são um outro modo de recons- objeto de disputa. Ao mesmo tempo
tituição desse universo social para além que orientadores das ações e decisões,
das fronteiras da localidade. É, por ou- os valores comungados são objeto de
tro lado, digno de nota que, enquanto as negociação. Assim, o conflito põe em
“brigas de família” forjam alteridades jogo a delimitação das qualidades acei-
— muitas vezes expulsando-as — pela táveis e as condições em que o são; a
criação de uma supremacia entre equi- definição das regras de conduta e o sig-
valentes sociais e morais, mais de uma nificado dos atos. Ele coloca em nego-
etnografia mostra as festividades serta- ciação o significado social da violência.
nejas reforçando diferenças de status Aqui é importante observar que o
justamente por congregarem inferiores reconhecimento desse estatuto consti-
e superiores sociais e, assim, constituí- tutivo do conflito, que (re)define atores,
rem um plano comum que ritualiza sua identidades, reputações, fronteiras e
igualdade ou equivalência moral. valores sociais, assim como a identifi-
Buscando o sentido social das bri- cação das múltiplas dimensões do pú-
gas de família, Marques reconhece nos blico que ele ativa são traços comuns a
RESENHAS 431

diversos trabalhos publicados na cole- entidades sociais que são as famílias


ção Antropologia da Política. A partir sertanejas são provisórias, ambíguas,
de um projeto comum que valoriza os relativas. As fronteiras grupais estão
recortes etnográficos da política, con- sempre em definição e as pertenças so-
trariando perspectivas normatizadoras, ciais jamais são definitivas.
algumas das etnografias da coleção Como no anterior, no quinto e últi-
têm revelado elementos recorrentes mo capítulo a autora detém-se na des-
que parecem atestar o estatuto próprio crição e análise de brigas de grandes
dos conflitos e a natureza multifaceta- famílias, aqui salientando como o isola-
da do público que ele cria. Além disso, mento de domínios sociais como o fa-
sem incorrerem em visões reducionis- miliar e o político, o doméstico e o pú-
tas sobre equilíbrio ou ruptura, conti- blico perde sentido. Tais domínios são
nuidade ou desagregação, próprias das simples resultado de uma opção analí-
abordagens funcionalistas, elas têm tica: nas relações efetivas é impossível
apontado o conflito como instrumento separá-los. Nas famílias de maior en-
metodológico fundamental de com- vergadura e influência, por exemplo,
preensão da sociedade. os grupos das brigas, das disputas polí-
Exatamente por não isolar o confli- ticas, das esferas de prestígio das insti-
to do campo social de que faz parte, In- tuições — jurídicas, administrativas e
trigas e questões permite reconhecer os políticas —, da solidariedade domésti-
mecanismos pelos quais ele é condição ca sobrepõem-se e entrecruzam-se,
de produção e reprodução da socieda- sem serem idênticos. Os diferentes pa-
de. No quarto capítulo especial ênfase péis desempenhados por indivíduos
é dada justamente em mostrar como as em contextos diversos implicam-se mu-
brigas de família dinamizam fluxos de tuamente: como as fronteiras grupais
relações: desarticulam vínculos, consti- são sujeitas a trânsitos, os papéis so-
tuem grupos — entrelaçando indiví- ciais comportam ambigüidades. O
duos ligados por consangüinidade, ca- mesmo pode ser dito das instâncias ins-
samento, vizinhança ou amizade — e titucionais e do uso que os atores so-
atravessam fronteiras institucionais. ciais fazem de seus dispositivos. Aqui
Marques demonstra que, apesar de a também operam relações de força,
solidariedade familiar ser indispensá- prestígio e poder, assim como tentati-
vel para a existência do sistema de vin- vas de legitimação de seu uso. A pers-
gança, as brigas de família são impor- pectiva de Marques é iluminar — sem
tantes para a compreensão das rela- valoração — exatamente as articula-
ções familiares elas mesmas, ou seja, ções que os episódios das brigas de fa-
dos processos de desintegração e agre- mília comportam. Essa opção analítica
gação de seus segmentos. Vemos que tem por resultado revelar composições
as insígnias representadas pelos nomes entre lógicas próprias do Estado e a
de família nem sempre representam que anima as “questões”: com agentes
grupos que operam como tais nas rela- destas acionando instrumentos moder-
ções sociais. Se razões de prestígio, nos e legais — como a Justiça e a polí-
proximidade, adesão podem implicar a cia — e agentes estatais assumindo,
preferência por dado sobrenome, a por exemplo, um papel de mediação
pertença reconhecida a certa família entre as partes. Se ocupantes de cargos
não necessariamente requer que se lhe públicos são alvos preferenciais nas
envergue verdadeiramente o nome. As “questões” é porque seu prestígio e in-
432 RESENHAS

fluência política pode interferir nos des- MONTOYA, Antonio Ruiz de. 2002.
dobramentos na Justiça e na polícia e, Vocabulario de la lengua guaraní
portanto, nos cálculos dos oponentes. (1640). Transcrição e transliteração
Longe de ser simplesmente o preenchi- por Antonio Caballos. Introdução por
mento pelo “poder privado” de uma Bartomeu Melià. Asunción: CEPAG.
ausência ou deficiência do “poder pú- 407 pp.
blico”, trata-se, de mútuo condiciona- —. 1993. Arte de la lengua guaraní
mento e apropriação, em processos de (1640). Edição fac-similar. Transcrição
negociação e composição. por Antonio Caballos. Introdução por
De tessitura complexa, acompa- Bartomeu Melià. Asunción: CEPAG,
nhando as narrativas, a particularidade 307 pp.
de episódios, com sua seqüência de
atos e disputa de interpretações sobre
o sentido dos mesmos, Intrigas e ques- Francisco Silva Noelli
tões revela as articulações entre famí- Universidade Estadual de Maringá
lia, política e violência. O enfoque es-
colhido por Ana Cláudia Marques mos- A reedição de obras raras sempre é um
tra sua rentabilidade: centrado nos grande acontecimento literário e cien-
agentes, em suas práticas e valores, ele tífico, especialmente pela possibilidade
descortina um campo social tecido por de aquecer o interesse acadêmico nos
feixes de relações, redes de sociabili- seus conteúdos. É o caso do vocabulá-
dade que não são nem homogêneas rio e da gramática guarani, publicados
nem fixas, pertenças dinâmicas em que originalmente como um único livro em
os grupos efetivos são efêmeros e cir- 1640, compostos pelo jesuíta e missio-
cunstanciais, dando inteligibilidade ao nário peruano Antonio Ruiz de Monto-
fenômeno das “brigas de família” em ya no primeiro quartel do século XVII.
toda a sua riqueza de entrelaçamento Depois de vultoso trabalho de pre-
de lógicas privadas e públicas. Com paração, eles foram reeditados em se-
certeza é um livro que se tornará refe- parado em 1993 e 2002. Trata-se de
rência obrigatória. uma edição primorosa, lingüisticamen-
te correta dentro dos melhores padrões
da atualidade. É muito provável que os
próprios Guarani comemorem este fei-
to, que facilita o acesso ao conhecimen-
to sobre os seus antepassados e, ao me-
nos em parte, ao modo como eles fala-
vam no início do século XVII. A Arte foi
publicada como fac-símile, seguida pe-
la transcrição e transliteração por Anto-
nio Caballos. Bartomeu Melià elaborou
uma introdução que apresenta um resu-
mo do processo histórico da redução da
língua guarani para a gramática entre
as décadas de 1570 e 1640, a história
das edições dessas obras e uma breve
mas importante análise da gramática
propriamente dita. O Vocabulário tam-

Você também pode gostar