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Caderno CRH

ISSN: 0103-4979
revcrh@ufba.br
Universidade Federal da Bahia
Brasil

de Souza, Carolina M. B.
SINGLY, François de. Sociologia da família contemporânea. Trad. Clarice Ehlers Peixoto. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007. 208 p. (Família, geração & cultura).
Caderno CRH, vol. 21, núm. 54, septiembre-diciembre, 2008, pp. 623-625
Universidade Federal da Bahia
Salvador, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=347632177014

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Carolina M.B. de Souza

FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE: vido ao surgimento do indivíduo original e autô-


mudanças e permanências

RESENHA
nomo, resultante da imposição dessas sociedades,
as quais fazem vigorar razões tanto ideológicas
SINGLY, François de. Sociologia da família con- quanto objetivas. Salienta que a procura de si não
temporânea. Trad. Clarice Ehlers Peixoto. Rio de traduz, primordialmente, narcisismo; solicita, con-
Janeiro: Editora FGV, 2007. 208 p. (Família, gera- trariamente, destaque do olhar dos outros. Consi-
ção & cultura). dera a dimensão relacional presente no processo
constitutivo da identidade pessoal dos indivídu-
os, em que os outros significativos são, em geral e
prioritariamente, o cônjuge ou o parceiro para um
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homem ou uma mulher, os pais para os filhos e
reciprocamente.
O livro compõe-se de três partes. Singly visa
a elucidar a família contemporânea, demonstrando
Ao longo das últimas décadas o debate so- sua dependência em relação ao Estado (parte I) e
bre a crise da família, no Ocidente, foi propiciado sua independência quanto aos grupos de parentes-
pelos efeitos da generalizada aceitação social do co (parte II) e à família (parte III). Os argumentos
divórcio, do declínio da instituição do casamento apresentados em seu desenrolar examinam algumas
e da baixa taxa de fecundidade. Esses aconteci- características: a família contemporânea é relacional,
mentos tanto indicaram a compreensão de que se é privada e pública, é individualista e precisa de
delineara o enfraquecimento da família, quanto horizonte intergeracional – eixos norteadores atra-
sugeriram a análise do surgimento de novos mo- vés dos quais explicita suas idéias.
delos familiares, caracterizados, por sua vez, pelas A característica referente ao duplo movimen-
mudanças nas relações entre os sexos e as gera- to da família contemporânea de ser privada e, ao
ções, tais como: controle mais intenso da natalida- mesmo tempo, pública, é destacada pelo autor, que
de, autonomia relativa da sexualidade referente à apreende a família como um espaço no qual os
esfera conjugal (posto que o exercício da atividade indivíduos acreditam proteger a sua individuali-
sexual deixa de estar circunscrito à esfera do ma- dade, ao tempo em que sofrem intervenção do Es-
trimônio), inserção massiva da mulher no merca- tado mediante o apoio e a regulação sobre as rela-

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do de trabalho, questionamento da autoridade pa- ções dos seus componentes – como exemplo, refe-
ternal, atenção ao desenvolvimento das necessi- re-se à criação de leis que objetivam limitar o direi-
dades infantis e dos idosos, entre outras. to da punição paternal.
Essa segunda vertente de entendimento é a Os argumentos apresentados no desenvol-
perspectiva condutora das análises de Singly (2007) vimento do livro remetem à idéia central de Singly
em Sociologia da família contemporânea, que abor- – a família contemporânea se define mais pelas
da a individualização das relações familiares, es- relações internas travadas no cerne familiar e me-
pecificamente na França, estabelecendo associações nos como instituição. O ponto em comum exis-
entre as mudanças da modernidade e seus efeitos tente entre a família antiga e a família moderna, na
na família. O autor, que dirige o Centre d’Études compreensão do autor, consiste em contribuir para
sur les Liens Sociaux (Centro de Estudos sobre os a função da reprodução biológica e social da soci-
Laços Sociais), em suas pesquisas, focaliza os com- edade, e ambas procuram manter e melhorar a po-
portamentos interpessoais no âmbito conjugal, sição da família no espaço social de uma geração a
procurando demonstrar que, nas sociedades con- outra. O autor, que formula uma abordagem socio-
temporâneas ocidentais, os indivíduos não se pa- lógica da percepção de como se expressam senti-
recem com aqueles das gerações precedentes, de- mentos e emoções no âmbito da família durante o

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século XX, destaca a predominância, a partir da se- dividual, especialmente as técnicas modernas de
gunda metade desse século, de relações menos controle dos nascimentos.
hierarquizadas, quer entre o casal, quer entre pais e Considera que as transformações da família
filhos – ambas sob o olhar atento dos agentes do têm uma grande coerência, embora deem a impres-
Estado (demógrafos, psicólogos, assistentes sociais e são de certa desordem e de uma incerteza, que
sociólogos). Assinala, todavia, que os conflitos não poderiam preocupar. Singly destaca que a história
deixam de existir no contexto familiar. da família contemporânea pode ser dividida em
“A dependência da família em relação ao dois períodos. Assinala a evidência verificada em
Estado” é o título da Parte I de Sociologia da Famí- todos os meios sociais, durante meio século (1918-
lia Contemporânea, em que Singly examina 1968), do fato de o homem trabalhar fora para ga-
detalhadamente as relações travadas entre Estado, nhar o dinheiro da família e de a mulher ficar em
escola e família. Nesse sentido, reflete sobre análi- casa para se ocupar, o melhor possível, dos filhos.
ses de Parsons, contrapondo-se à sua idéia, pre- Essa tipologia familiar é designada, pelo autor, de
dominante na sociedade norte-americana nos anos família moderna 1, ou da primeira modernidade –
1950, de que toda responsabilidade assumida pela está centrada no grupo, e os adultos estão a servi-
instituição escolar é retirada da família. Na tentati- ço da família e, principalmente, das crianças. A
va de elucidar os elos existentes entre a família e a partir dos anos 1960, quando a modernidade na
escola, Singly ratifica algumas concepções de Àries Europa muda de direção e entra no período deno-
(1981), como aquela de que as preocupações minado por Giddens (1991) de “modernidade avan-
educativas são pilares norteadores da família mo- çada”, a família atribui peso ao processo de
derna, e de Bourdieu (1996), ao salientar a predo- individualização. Singly qualifica essa segunda
minância do capital escolar nas sociedades con- tipologia familiar de família moderna 2.
temporâneas. A diversidade das formas familiares e a me-
Um esboço da tendência geral dos proces- nor estabilidade da vida conjugal não devem indu-
sos de formação familiar pelas novas gerações é zir a um diagnóstico errôneo, na elucidação de Singly,
traçado por Singly na segunda parte da obra, res- que constata, em suas pesquisas, o ideal da vida
saltando o desuso da recorrência aos casamentos conjugal para um grande número de pessoas. Con-
arranjados e questionando se as alianças são sela- trariamente ao celibato ou à vida solitária, a vida
das apenas pelo amor e pelo desinteresse. O autor conjugal é mais atrativa, pois assegura a impressão
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utiliza, então, o conceito de capital cultural formu- de que não se é somente um personagem público
lado por Bourdieu para apreender algumas media- ou um indivíduo que deve viver, sobretudo, segun-
ções que tornam possível o amor desinteressado e do a lógica do interesse e das relações de competi-
a defesa dos interesses sociais – o corpo e o caráter ção que dominam a esfera do trabalho.
revelam os capitais escolares e sociais. O triplo movimento da segunda fase da fa-
Singly demarca que o período contemporâ- mília contemporânea, do ponto de vista das rela-
neo se caracteriza pelo maior domínio do destino ções entre os sexos, é assinalado por Singly: dimi-
individual e familiar, devido a um sistema de va- nuição sensível da dependência objetiva da mu-
lores que aprova a autonomia e a recusa dos indi- lher, manutenção dos investimentos profissionais
víduos em seguirem costumes referentes ao de- e domésticos diferenciados segundo o sexo e fuga
sempenho dos papéis sociais de marido e esposa, dos papéis sexuais que surgiram com o compro-
das gerações passadas. Consequentemente, ocorre misso conjugal.
o duplo movimento – recusar a instituição do ca- No entender do autor, o movimento de
samento e criticar a divisão do trabalho entre os individualização que perpassa as relações conju-
sexos. Menciona, como exemplo, as condições ob- gais encontra-se inacabado, indicando a permanên-
jetivas que permitem o controle desse domínio in- cia das desigualdades do trabalho doméstico, de-

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vido à atribuição desse trabalho às mulheres, bem REFERÊNCIAS


como a exclusão dos homossexuais do casamen-
to. Considera que as sociedades ocidentais não ÀRIES, Philippe. História social da criança e da família.
Rio de Janeiro: LTC, 1981. 234p.
seguem nem seguirão um processo similar de eta- BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação.
pas, o que não significa que elas estejam ao largo Campinas, SP: Papirus, 1996. 224p.
da modernidade – entendida sob a perspectiva da CICHELLI, Vincenzo; PEIXOTO, Clarice Ehlers; SINGLY,
François de. Família e individualização. Rio de Janeiro:
individualização. Editora FGV, 2000. 200p.
Reflete, enfim, que, tal como a modernidade, GIDDENS, Anthony. Conseqüências da modernidade. São
Paulo: Ed. Universidade Federal Paulista, 1991. 177p.
a família se define por um futuro incerto, pois,
embora os entraves e constrangimentos sociais es-
tejam presentes, os indivíduos constroem suas
histórias.

(Recebido para publicação em outubro de 2008)


(Aceito em dezembro de 2008)

Carolina M. B. de Souza. Socióloga, doutoranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós- CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 54, p. 623-625, Set./Dez. 2008
Graduação em Ciências Sociais da UFBA e professora substituta do Departamento de Ciências
Humanas e Filosofia da UEFS. carolinamarback@yahoo.com.br.

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