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Família em situação de vulnerabilidade social:


uma questão de políticas públicas

Socially vulnerable families: a public issue

Mônica Araújo Gomes 1


Maria Lúcia Duarte Pereira 1

Abstract The gravity situation of poverty and Resumo A gravidade do quadro de pobreza e
misery in Brazil is part of the constant worry and miséria, no Brasil, constitui permanente preocu-
make to think about its social influence and, spe- pação e obriga a refletir sobre suas influências no
cially, on the family area, where the public poli- social e, principalmente, na área de atuação jun-
tics still resent a more expressive action. To the to da família, na qual as políticas públicas ainda
poor family, designated by hunger and misery, se ressentem de uma ação mais expressiva. Para a
home represents a place of privation, instability família pobre, marcada pela fome e pela miséria,
and family’s links break and solidarity. This study a casa representa um espaço de privação, de ins-
aims to point out the vulnerability of the poor tabilidade e de esgarçamento dos laços afetivos e
family that is not assisted by public politics being de solidariedade. Este estudo tem como objetivo
impeached to attend the basic necessities of their apontar a vulnerabilidade da família pobre que,
members, and support the profundity of the dis- desassistida pelas políticas públicas, se vê impos-
cussing about the construction of alternatives to sibilitada de responder às necessidades básicas de
the family empowerment. It is a field study, ex- seus membros, e de favorecer o aprofundamento
ploratory, based on the Social Representations do debate acerca da construção de alternativas
Theory. The instruments used for the collection of para o fortalecimento da família. Trata-se de um
data were: Free Association of Words test and se- estudo de campo, exploratório, fundamentado na
mi-structured interview. The results showed that Teoria das Representações Sociais. Os instrumen-
family represents ambiguous feelings, of unity tos utilizados na coleta de dados foram: teste de
and disunity, associated with the image of lived Associação Livre de Palavras, e entrevista semi-
up family and desired family constructed from estruturada. Os resultados mostraram que “famí-
the individuals’ daily interaction; influencing and lia” representa sentimentos ambivalentes, agrega-
being influenced by the conflicting family rela- dor/desagregador, associada à imagem de família
tionships, conceived due to poverty that the fami- real e sonhada construída a partir da interação
lies are submitted. dos sujeitos no seu cotidiano, influenciando e sen-
Key words Social exclusion, Family, Poverty, do influenciada por relações familiares conflituo-
1 Universidade Estadual Public politics sas, geradas a partir da pobreza a que estão sujei-
do Ceará. tas as famílias.
Rua Monsenhor Bruno Palavras-chave Exclusão social, Família, Po-
810/702, Meireles,
60115-190, Fortaleza CE. breza, Políticas públicas
monicagomes@secrel.com.br
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A nova realidade não é saturada de possibilida- cial. Sua importância não é funcional, seu valor
des. Ao contrário. É saturada de carência. não é meramente instrumental, mas se refere à
José de Souza Martins sua identidade de ser social e constitui o parâme-
tro simbólico que estrutura sua explicação do
mundo.
Introduzindo a questão Petrini (2003) acrescenta que no decorrer da
evolução histórica, a família permanece como
Nos últimos vinte anos, várias mudanças ocor- matriz do processo civilizatório, como condição
ridas no plano socioeconômico-culturais, pau- para a humanização e para a socialização das
tadas no processo de globalização da economia pessoas. A educação bem-sucedida da criança na
capitalista, vêm interferindo na dinâmica e es- família é que vai servir de apoio à sua criativi-
trutura familiar e possibilitando alterações em dade e ao seu comportamento produtivo quan-
seu padrão tradicional de organização. do for adulto. A família tem sido, é, e será a in-
Assim, não se pode falar de família, mas de fluência mais poderosa para o desenvolvimento
famílias, para que se possa tentar contemplar a da personalidade e do caráter das pessoas.
diversidade de relações que convivem na socie- A família faz parte do universo de experiên-
dade. No imaginário social, a família seria um cias (real e/ou simbólica) dos seres humanos no
grupo de indivíduos ligados por laços de san- decorrer de sua história, do qual todos têm algo
gue e que habitam a mesma casa. Pode-se con- a dizer. Esta proximidade com a realidade de-
siderar a família um grupo social composto de fronta as pessoas com suas próprias questões fa-
indivíduos que se relacionam cotidianamente miliares; toca em assuntos particularmente pró-
gerando uma complexa trama de emoções. En- ximos à experiência pessoal de cada indivíduo
tretanto, há dificuldade de se definir família, e, por isso, são assuntos cheios de significados
cujo aspecto vai depender do contexto socio- afetivos, além dos cognitivos. Família remete a
cultural em que a mesma está inserida. lembranças, emoções, sentimentos, identidade,
A família é, portanto, uma construção social amor, ódio, enfim, um significado único para
que varia segundo as épocas, permanecendo, no cada indivíduo, que, como ser biopsicossocial,
entanto, aquilo que se chama de “sentimento de está inserido no seu meio ambiente, integrando
família” (Amaral, 2001), que se forma a partir a cultura e o seu grupo social de pertença, o que
de um emaranhado de emoções e ações pes- leva a se estudar a família de modo contextuali-
soais, familiares e culturais, compondo o uni- zado, considerando a subjetividade de cada ser.
verso do mundo familiar. Esse universo do Cada pessoa tem sua própria representação
mundo familiar é único para cada família, mas de família – da família real e da família sonha-
circula na sociedade nas interações com o meio da, da sua família e da do outro –, representa-
social em que vivem. ção esta ligada a concepções e opiniões, senti-
Para Kaloustian & Ferrari (1994), a família mentos e emoções, expectativas correspondidas
é o espaço indispensável para a garantia da so- ou não correspondidas. A família não é algo
brevivência e da proteção integral dos filhos e concreto, mas algo que se constrói a partir de
demais membros, independentemente do ar- elementos da realidade. Segundo Petrini (2003),
ranjo familiar ou da forma como vêm se estru- a família encontra novas formas de estruturação
turando. É a família que propicia os aportes que, de alguma maneira, a reconstituem, sendo
afetivos e, sobretudo, materiais necessários ao reconhecida como estrutura básica permanente
desenvolvimento e bem-estar dos seus compo- da experiência humana. Afirma ainda o autor
nentes. Ela desempenha um papel decisivo na que apesar da variedade de formas que assume
educação formal e informal; é em seu espaço ao longo do tempo, a família é identificada co-
que são absorvidos os valores éticos e morais, e mo o fundamento da sociedade.
onde se aprofundam os laços de solidariedade. Uma das provas mais evidentes da existên-
É também em seu interior que se constroem as cia de uma família é o viver juntos sob o mes-
marcas entre as gerações e são observados va- mo teto. Isto significa que a noção de casa im-
lores culturais. O que se afina com Sarti (1996) plica compartilhar um determinado modo de
quando afirma que: A família não é apenas o elo vida, constituindo o que pode ser denominado
afetivo mais forte dos pobres, o núcleo da sua so- de convivência familiar. Como afirma Sarti
brevivência material e espiritual, o instrumento (1996), a família compreende a casa; a casa está,
através do qual viabilizam seu modo de vida, portanto, contida na família. Viver sob o mesmo
mas é o próprio substrato de sua identidade so- teto, ao limitar o espaço da família, traz tam-
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bém em seu bojo a dimensão de sua complexi- os pobres, o que amplia, ainda mais, a concen-
dade, de seus encontros e desencontros; o fato tração de renda no Brasil.
de a família ser um espaço privilegiado de convi- Pobreza não pode ser definida de forma úni-
vência não significa que não haja conflitos nesta ca, mas ela se evidencia quando parte da popu-
esfera (Vicente, 1994). lação não é capaz de gerar renda suficiente para
O estabelecimento de vínculos é próprio do ter acesso sustentável aos recursos básicos que
ser humano, e a família, como grupo primário, garantam uma qualidade de vida digna. Estes re-
é o locus para a concretização desta experiência. cursos são água, saúde, educação, alimentação,
A confiança que o indivíduo tem de que pode moradia, renda e cidadania. De acordo com Yas-
estar no mundo e estar bem entre os outros lhe bek (2003), são pobres aqueles que, de modo tem-
é transmitida pela sua aceitação dentro do gru- porário ou permanente, não têm acesso a um mí-
po familiar. O sentir-se pertencente a um grupo, nimo de bens e recursos sendo, portanto, excluídos
no caso, à família, possibilita-lhe no decorrer de em graus diferenciados da riqueza social.
sua vida pertencer a outros grupos. O termo exclusão social tem sentido tempo-
Para a família pobre, marcada pela fome e ral e espacial: um grupo social está excluído se-
pela miséria, a casa representa um espaço de gundo determinado espaço geográfico ou em
privação, de instabilidade e de esgarçamento relação à estrutura e conjuntura econômica e
dos laços afetivos e de solidariedade. Segundo social do país a que pertence. No Brasil, esse ter-
Gomes (2003), quando a casa deixa de ser um mo está relacionado principalmente à situação
espaço de proteção para ser um espaço de conflito, de pobreza, uma vez que as pessoas nessa condi-
a superação desta situação se dá de forma muito ção constituem grupos em exclusão social, por-
fragmentada, uma vez que esta família não dis- que se encontram em risco pessoal e social, ou
põe de redes de apoio para o enfrentamento das seja, excluídas das políticas sociais básicas (tra-
adversidades, resultando, assim, na sua desestru- balho, educação, saúde, habitação, alimentação).
turação. A realidade das famílias pobres não traz Um país tem pobreza quando existe escas-
no seu seio familiar a harmonia para que ela pos- sez de recursos ou quando, apesar de haver um
sa ser a propulsora do desenvolvimento saudável volume aceitável de riquezas, elas estão mal dis-
de seus membros, uma vez que seus direitos estão tribuídas. O Brasil não é um país pobre, e sim
sendo negados. um país desigual. De acordo com estudo do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada –
Ipea (Barros et al., 2000a), que analisa a pobre-
Pobreza e miséria no Brasil za, o Brasil ocupa o 9o lugar em renda per capi-
ta, dentre os países em desenvolvimento, mas
A gravidade do quadro de pobreza e miséria, no cai para o 25o lugar quando se fala em propor-
Brasil, constitui permanente preocupação e ção de pobres. Isto coloca o Brasil entre os paí-
obriga a refletir sobre suas influências no social ses de alta renda e alta pobreza. Ao mesmo tem-
e, principalmente, na área de atuação junto da po em que está entre os 10% mais ricos, integra
família, na qual as políticas públicas ainda se a metade mais pobre dos países em desenvolvi-
ressentem de uma ação mais expressiva. O Esta- mento, sendo um dos primeiros do mundo em
do deve assegurar direitos e propiciar condições desigualdade social. Aqui, 1% dos mais ricos se
para a efetiva participação da família no desen- apropria do mesmo valor que os 50% mais po-
volvimento de seus filhos, porém os investi- bres. Há no País 56,9 milhões de pessoas abaixo
mentos públicos brasileiros, na área social, es- da linha de pobreza e destas, 24,7 milhões vi-
tão cada vez mais vinculados ao desempenho vem em extrema pobreza (IBGE, 2003).
da economia. Os elevados níveis de pobreza que afligem a
O Brasil nas últimas décadas vem impondo sociedade encontram seu principal determi-
uma enorme desigualdade na distribuição de nante na estrutura da desigualdade brasileira –
renda e elevados níveis de pobreza que exclui uma perversa desigualdade na distribuição da
parte significativa de sua população do acesso a renda e das oportunidades de inclusão econô-
condições mínimas de dignidade e cidadania. mica e social. A renda média brasileira é seis ve-
Estudo apresentado pelo economista Dedecca zes maior que o valor definido como linha de
(2003) mostrou que, de 1992 a 1999, os 25% indigência, ou seja, se a renda brasileira fosse
mais pobres perderam 20% da renda e os 5% igualmente distribuída, estaria garantido a cada
mais ricos perderam 10%. Estes dados levam a pessoa seis vezes aquilo de que necessita para se
constatar que a defasagem salarial é maior para alimentar (Barros et al, 2000a).
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Vive-se no país, atualmente, um verdadeiro família, repercutindo diretamente e de forma


apartheid social (Véras, 2003), em que a estru- vil nos mais vulneráveis desse grupo: os filhos,
tura de poder vigente é centrada em um mode- vítimas da injustiça social, se vêem ameaçados e
lo econômico que gera crescente riqueza para violados em seus direitos fundamentais. A po-
poucos e pobreza para muitos, e que garante e breza, a miséria, a falta de perspectiva de um
privilegia o crescimento da economia, sem uma projeto existencial que vislumbre a melhoria da
política de renda justa e de atendimento às ne- qualidade de vida, impõe a toda a família uma
cessidades básicas da maioria da população. luta desigual e desumana pela sobrevivência.
As transformações ocorridas na política As conseqüências da crise econômica a que
econômica do Brasil produziram profundas está sujeita a família pobre precipitam a ida de
mudanças na vida econômica, social e cultural seus filhos para a rua e, na maioria das vezes, o
da população, gerando altos índices de desi- abandono da escola, a fim de ajudar no orça-
gualdade social. Como reflexo dessa estrutura mento familiar. Essa situação, inicialmente tem-
de poder, acentuam-se as desigualdades sociais porária, pode se estabelecer à medida que as ar-
e de renda das famílias, afetando as suas condi- ticulações na rua vão se fortalecendo, ficando o
ções de sobrevivência e minando as expectati- retorno dessas crianças ao convívio sócio-fami-
vas de superação desse estado de pobreza, refor- liar cada vez mais distante.
çando sua submissão aos serviços públicos exis- Percebe-se que para essa família, a perda ou
tentes. As desigualdades de renda impõem sa- rompimento dos vínculos produz sofrimento e
crifícios e renúncias para toda a família. leva o individuo à descrença de si mesmo, tor-
A situação de vulnerabilidade social da fa- nando-o frágil e com baixa auto-estima. Esta
mília pobre se encontra diretamente ligada à descrença conduz ainda o indivíduo a se desfa-
miséria estrutural, agravada pela crise econô- zer do que pode haver de mais significativo pa-
mica que lança o homem ou a mulher ao de- ra o ser humano: a capacidade de amar e de se
semprego ou subemprego. Para Kaloustian e sentir amado, incorporando um sentimento de-
Ferrari (1994), por detrás da criança excluída da sagregador. A questão da família pobre aparece
escola, nas favelas, no trabalho precoce urbano e como a face mais cruel da disparidade econô-
rural e em situação de risco, está a família desas- mica e da desigualdade social. Esse estado de
sistida ou inatingida pela política oficial. Corro- privação de direitos atinge a todos de forma
borando com este autor, Martins (1993) afirma muito profunda, à medida que produz a banali-
que a criança abandonada é apenas a contrapar- zação de sentimentos, dos afetos e dos vínculos,
tida do adulto abandonado, da família abando- conforme ressalta Vicente (1994): O ser huma-
nada, da sociedade abandonada. no é complexo e contraditório, ambivalente em
A proteção integral à criança e ao adoles- seus sentimentos e condutas, capaz de construir e
cente, garantida pelo Estatuto da Criança e do de destruir. Em condições sociais de escassez, de
Adolescente – ECA (Brasil, 1990) em seu art. 4o, privação e de falta de perspectivas, as possibilida-
que tem a família, além da comunidade, da so- des de amar, de construir e de respeitar o outro fi-
ciedade e do Poder Público, como uma das res- cam bastante ameaçadas. Na medida em que a
ponsáveis pela proteção da sua prole, se vê, no vida à qual está submetido não o trata enquanto
entanto, no rumo inverso, uma vez que, alijada homem, suas respostas tendem à rudeza da sua
das mínimas condições socioeconômicas, sofre mera defesa da sobrevivência.
o processo da exclusão social. A injustiça social Ao aprofundar a discussão sobre família,
dificulta o convívio saudável da família, favore- pôde-se fazer um retrato vivo dos reflexos que a
cendo o desequilíbrio das relações e a desagre- crise econômica impõe sobre as famílias pobres.
gação familiar. Diante das reflexões apresentadas é possível
Petrini (2003) afirma que à medida que a afirmar que a situação de esgarçamento dos
família encontra dificuldades para cumprir sa- vínculos familiares resulta da miserabilidade a
tisfatoriamente suas tarefas básicas de socializa- que estão sujeitas as famílias, sendo esta a mola
ção e de amparo/serviços aos seus membros, propulsora para a sua desestruturação.
criam-se situações de vulnerabilidade. A vida Faz-se necessário ressaltar a urgência da
familiar para ser efetiva e eficaz depende de mudança de paradigma em relação à imple-
condições para sua sustentação e manutenção mentação de programas sociais mais conse-
de seus vínculos. qüentes e que visualizem sempre a família co-
A situação socioeconômica é o fator que mo alvo, não descontextualizando seus mem-
mais tem contribuído para a desestruturação da bros. Não dá para falar em políticas públicas
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eficazes sem se dar destaque à família como po- Delineando caminhos


tencializadora destas ações. Ajudar a família para o fortalecimento da família
mostra-se a única possibilidade de a se socieda-
de desenvolver dignamente. É fato, na sociedade brasileira, a crise do Estado
resultante da dificuldade do País de acompa-
nhar o desenvolvimento do novo cenário eco-
Material e método nômico internacional, tornando-se incapaz de
garantir o crescimento econômico e solucionar
Trata-se de um estudo de campo, exploratório, questões sociais.
fundamentado na Teoria das Representações So- Essa crise materializa-se na vida de grande
ciais (TRS). Basear este estudo nas TRS impli- parte da população que é atingida diretamente
cou aceitar que o sentido atribuído a um deter- pela ineficácia ou inexistência de políticas pú-
minado objeto é uma construção psicossocial blicas: são hospitais sem condições de atendi-
do indivíduo (Moscovici, 2003) e leva em sua mento; são escolas públicas funcionando em
bagagem, além de sua história pessoal, a história condições precárias, com professores mal re-
do grupo ao qual pertence. Compreender a sig- munerados; são famílias desassistidas, morando
nificação de família, a partir das representações em favelas sem saneamento básico e tampouco
sociais salientadas nas falas dos sujeitos, signifi- o mínimo de condições de uma vida humana-
ca avançar com um olhar mais abrangente; é ne- mente decente; são milhares de crianças e ado-
cessário ir além dos limites que o problema apa- lescentes que buscam, nas ruas, sua sobrevivên-
renta impor, situando-o no seu contexto social. cia, como resultado da inexistência de progra-
• Campo de estudo: a pesquisa foi desenvol- mas de assistência social eficazes e contínuos,
vida no Albergue, vinculado ao Pólo Central de que permitam uma estabilidade social a essa
Atendimento, unidade da Secretaria da Ação população carente.
Social, localizado no centro da cidade de Forta- Para Guareschi (2000): Pobreza, fome, misé-
leza-Ceará que acolhe adolescentes em situação ria, violência e exploração ainda são significantes
de rua. poderosos a construir nossas sociedades. Enquan-
• Sujeitos: adolescentes na faixa etária de 12 a to tais, eles resistem e perpetuam uma ordem so-
18 anos incompletos, do sexo masculino e femi- cial que deve ser radicalmente questionada.
nino, freqüentadores do Albergue no período Questionada quanto às suas condições históricas
de julho/2001 a julho/2002, e suas famílias (pai de produção e reprodução, quanto aos efeitos ca-
ou mãe consangüíneo). tastróficos que produz na vida de centenas de mi-
• Amostra: para o teste de Associação Livre de lhares de pessoas e também quanto aos seus efei-
Palavras a amostra foi composta por 20 adoles- tos simbólicos.
centes e 20 famílias totalizando em 40 sujeitos, É imprescindível ter em mente que esse sis-
já para a entrevista semi-estruturada, a amostra tema de desigualdade e má distribuição de ren-
foi definida por saturação teórica, ficando com- da destrói não só as famílias, mas toda a socie-
posta por 15 adolescentes e 16 famílias, totali- dade. Percebe-se, na verdade, que a questão
zando em 31 sujeitos. fundamental é a necessidade de promoção e
• Instrumentos e procedimentos de coleta dos apoio às famílias vulneráveis através de políti-
dados: foi aplicado o teste de Associação Livre cas sociais bem articuladas e focalizadas. O re-
de Palavras, tendo como estímulo a solicitação: conhecimento das mesmas, como objeto de po-
“diga quatro palavras que lhe lembre família”. líticas públicas, constitui fator decisivo para
Em seguida foi realizada uma entrevista semi- atingir objetivos prioritários do desenvolvi-
estruturada, tendo como pergunta de partida: o mento humano, tais como a minimização da
que é família para você? pobreza, o acesso à educação, saúde, alimenta-
• Análise e tratamento dos dados: para os da- ção, moradia e proteção integral às suas crian-
dos apreendidos no teste de Associação Livre de ças e adolescentes.
Palavras foi utilizada a Análise Fatorial de Cor- Barros et al (2000b) ressalta que o Brasil, no
respondência (AFC) com base no programa limiar do século 21, não é um país pobre, mas
Tri-Deux-Mots (versão 2.2), (Cibois, 1998). Pa- um país extremamente injusto e desigual, com
ra as informações levantadas a partir das entre- muitos pobres. A desigualdade encontra-se na
vistas lançou-se mão da Análise de Conteúdo origem da pobreza e combatê-la torna-se um
(AC) temática apoiada nos pressupostos de imperativo. Imperativo de um projeto de socie-
Bardin (1977). dade que deve enfrentar o desafio de combinar
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democracia com eficiência econômica e justiça mente em decorrência da constante queda na


social. renda das famílias e aumento do desemprego.
Diante da ausência de políticas de proteção Diante dos dados apresentados é possível
social à população pauperizada, em conseqüên- afirmar que a situação de esgarçamento dos
cia do retraimento do Estado, a família é cha- vínculos familiares resulta da miserabilidade a
mada a responder por esta deficiência sem rece- que estão sujeitas as famílias. Esses dados tam-
ber condições para tanto. O Estado reduz suas bém podem auxiliar na reflexão sobre a impor-
intervenções na área social e deposita na família tância do debate acerca da família pobre e nos
uma sobrecarrega que ela não consegue supor- desafios que as políticas públicas têm para o en-
tar tendo em vista sua situação de vulnerabili- frentamento desta problemática. O Estado deve
dade socioeconômica. pensar em políticas públicas de caráter univer-
O poder público precisa pautar suas políti- salistas, que assegurem proteção social e que re-
cas públicas na idéia de erradicação da pobreza, conheça a família como sujeito de direitos, ca-
pois se percebe que as atenções, hoje voltadas à paz de potencializar as ações propostas.
família, são extremamente conservadoras, iner- As políticas sociais muito pouco têm con-
ciais, só justificáveis no contexto da cultura tute- tribuído para amenizar as condições de vulne-
lar dominante (Carvalho, 1995). rabilidade da família pobre, no entanto, há de
Uma visão aproximada da situação de po- se fazer referência ao Programa Saúde da Fa-
breza, embora parcial e localizada, pode ser ob- mília – PSF, do Ministério da Saúde (Brasil,
tida através da mensuração da desigualdade de 2002) como estratégia em termos de política
renda e riqueza entre os indivíduos, que dá uma pública que centrou seu foco na família. O PSF
idéia do apartheid social existente no país onde tem como unidade de atendimento a família
milhões de brasileiros são mantidos fora da em seu habitat e prevê ações que levem em
produção, consumo e cidadania. conta a possibilidade de detectar no domicílio
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domi- as necessidades de suporte e incrementar estra-
cílio – PNAD/2002 (IBGE, 2003) revelou que o tégias comunitárias, no sentido de ampliar re-
País melhorou em seus indicadores sociais, mas des de apoio social. Com atenção contínua e
que, na média, empobreceu por conta da con- ativa, desenvolve ações de promoção, proteção
juntura econômica. Desde 1998 a renda média e recuperação da saúde dos indivíduos e da fa-
do brasileiro está em queda. Ela despencou de mília de forma integral e contínua, objetivando
R$ 714,00 (setecentos e catorze reais) para R$ com isso melhorar a qualidade de vida dos in-
668,00 (seiscentos e sessenta e oito reais) em divíduos.
1999, R$ 656,00 (seiscentos e cinqüenta e seis Espera-se, portanto, que a família seja enfo-
reais) em 2001 e chegou a R$ 635,00 (seiscentos cada de forma concreta na agenda política dos
e trinta e cinco reais) em 2002. Neste último governos para que ela possa prover sua autono-
ano, a renda dos mais pobres caiu mais rapida- mia e para que seus direitos sejam respeitados.
mente do que a dos mais ricos e isso levou ao É necessário que as políticas públicas venham
aumento da desigualdade. A remuneração mé- em apoio à família pobre não apenas em rela-
dia real das pessoas com rendimento de traba- ção à renda, mas também em relação ao acesso
lho apresentou baixa de 2,5% de 2001 para a bens e serviços sociais.
2002. Este rendimento de 2002 teve queda de Alguns princípios precisam ser considera-
12,3% em relação ao de 1996, ano em que al- dos ao se propor políticas de atendimento à fa-
cançou seu ponto máximo no período de 1992 mília, tais como:
a 2002. • Romper com a idéia de família sonhada e
Além da distribuição de renda, outro fator ter a família real como alvo. A família pode ser
de desigualdade é a educação. A educação tem o fonte de afeto e também de conflito, o que sig-
impacto de perpetuação do ciclo de pobreza en- nifica considerá-la um sistema aberto, vivo, em
tre gerações, uma vez que os pais com baixa es- constante transformação.
colaridade têm dificuldade em garantir um • Olhar a família no seu movimento, sua vul-
maior nível de escolaridade para seus filhos. Se- nerabilidade e sua fragilidade, ampliando o fo-
gundo dados da PNAD/2002 (IBGE, 2003), a co sobre a mesma.
taxa de analfabetismo das pessoas de 10 anos ou • Trabalhar com a escuta da família, reconhe-
mais de idade no ano de 2002 foi de 10,9%. cendo sua heterogeneidade.
Complementando este “ciclo maldito” ressalta- • Não olhar a família de forma fragmentada,
se o aumento do trabalho infantil, provavel- mas trabalhar com o conjunto de seus mem-
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bros; se um membro está precisando de assis-


tência, sua família estará também.
• Centrar as políticas públicas na família, re-
conhecendo-a como potencializadora dessas
ações e como sujeito capaz de maximizar recur-
sos.
• O Estado não pode substituir a família; por-
tanto a família tem de ser ajudada.
• Não dá para falar de políticas públicas sem
falar em parceria com a família.
Sabe-se, enfim, que há muito ainda o que se
refletir sobre a situação da família no contexto
sociopolítico atual e o caminho é longo, mas es-
te pode ser o primeiro passo...

Colaboradores

M Gomes foi a responsável pela redação do texto, con-


dução e análise da pesquisa; e ML Duarte, pela orientação
do referencial teórico e revisão do texto.

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