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A autoria feminina na construção literária

do espaço social
Espaço e gênero na literatura obrigatória para o entendimento das com-
posições e embates que forjam o Brasil contem-
brasileira contemporânea. porâneo. Associadas ao espaço geográfico,
DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia cujo solo partilham, coadunam-se as práticas
sociais responsáveis por sua investidura simbólica.
Maria Vasconcelos (orgs.). A modelação do espaço nacional, bem como
o imaginário que nela ativa as potencialidades,
Porto Alegre: Zouk, 2015. 288p. segue, portanto, como matéria passível de dis-
puta, dadas as assimetrias que impedem lógica
de funcionamento equânime e, por isso, exigem
intervenção política no trabalho de atribuição
Categoria multidisciplinar por vocação, o de sentidos. A (re)produção ininterrupta da
espaço, na abrangência de sua complexidade, dominação masculina faz-se, como se sabe,
constitui-se como fenômeno de investigação eixo a cingir tanto o desenho dos espaços físicos

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quanto as estruturas mentais tributárias de um outros abismos; agora, já no interior da própria
aparato ideológico mais ou menos resiliente às autoria literária feminina.
demandas tornadas possíveis. No livro Espaço e Por conseguinte, a escassez de modelos
gênero na literatura brasileira contemporâ- de identificação na tradição literária de autoria
nea, as organizadoras Regina Dalcastagnè e feminina é ainda mais flagrante quando se trata
Virgínia Maria Vasconcelos Leal, que também das populações negras. Atenta a esse traçado
assinam capítulos próprios, oferecem mostras histórico, Regina Dalcastagnè, no capítulo
extensivas e exigentes, a partir da reunião de “Mulheres negras e espaço urbano na narrativa
textos críticos de doze pesquisadoras, de como brasileira contemporânea”, recupera a impor-
a literatura contemporânea de autoria feminina tância da escrita de Carolina Maria de Jesus e,
participa desse cenário no Brasil e, justamente por exemplo, “o impacto da leitura de Quarto
na esfera literária, tão marcada pela exclusão de despejo em outras mulheres, negras e pobres
de gênero,1 vai dispor de modo diverso e sinto- como a autora”.4 Como sugere a crítica:
mático dos ecos discursivos do espaço social. [I]sso não significa a reivindicação de qualquer
Tida como refratária ao consumo rápido e ideia de autenticidade. O que está em questão
irreflexivo, os estudos literários têm feito, em boa é a perspectiva social de quem fala, ou escreve
parte das vezes, no extenso material crítico [...]. Assim, negros e brancos, mulheres e ho-
produzido graças à expansão universitária e à mens, trabalhadores e patrões, velhos e moços,
profissionalização da pesquisa das últimas dé- moradores do campo e da cidade, homos-
cadas, um elogio aberto à literatura em que o sexuais e heterossexuais vão ver e expressar o
objeto de estudo é formulado crítica e teorica- mundo de maneiras diversas. Mesmo que outros
mente de modo a ressaltar a novidade de certo possam ser sensíveis a seus problemas e
repertório insuspeito e indômito. Tal valorização solidários, nunca viverão as mesmas experi-
também está presente em Espaço e gênero na ências de vida e, portanto, enxergarão o
literatura brasileira contemporânea, em que mundo a partir de uma perspectiva diferente.5
a autoria feminina é, muitas vezes, vinculada à No capítulo intitulado “A voz e a letra da
capacidade subversiva de sua visada, interna mulher na literatura marginal periférica: figura-
às questões que quer elaborar. ções e reconfigurações do eu”, a pesquisadora
Surgem, assim, personagens avessas à Lucía Tennina aprofunda o debate a partir de
fixidez dos velhos papéis de gênero e que são, análise extensiva da difícil inserção feminina no
portanto, efeito das conquistas feministas e campo literário marginal da periferia de São
também agentes simbólicos produtores de Paulo. Tennina identifica nas poéticas de Elizandra
diferença tanto no espaço formal das obras, Souza, Raquel Almeida e Dinha reações ao
que tende a balizar tais movimentos, quanto na “lugar relegado” que ocupa a mulher inclusive
“geografia” extraliterária. nos discursos de seus colegas escritores de peri-
No entanto, o mérito crítico do livro en- feria, voltados apenas, na maior parte das vezes
contra-se mais na aguçada percepção das e, portanto, de maneira estreita, à luta contra a
interseccionalidades, estas ainda majoritaria- opressão de classe.6 A perspectiva feminina é
mente estáveis, que vão produzir gênero, geo- responsável, aqui, logo se vê, por complexificar,
gráfica e subjetivamente, a partir de quadros a partir das injunções de gênero, o raciocínio
sociais (específicos) de raça, classe e orientação político contra-hegemônico que, também,
sexual. Desse modo, a “relativa ausência de uma caso não renovado, sofre com a mesma razão
tradição literária de obras de autoria feminina”, inercial tão denunciada nas classes proprietárias.
sublinhada no artigo de Adelaide Calhman de O radical perspectivismo elaborado pela
Miranda,2 ou a ausência de “uma linhagem que crítica feminista da literatura brasileira, que,
tanto faltou às mulheres criadoras ao longo da como indica Tânia Regina Oliveira Ramos no
História”, como afirma Maria Graciete Besse em capítulo “Começar de novo: a escrita feminina
capítulo sobre a obra da escritora Adriana na zona do afeto”, tratar-se-ia de, “sob o signo
Lunardi,3 restam radicalmente contextualizadas da resistência”, operar “a literatura e a escrita
quando referidas à literatura afro-brasileira, à lite- feminina como eixo de todas as leituras”, 7
ratura marginal periférica ou às representações sedimenta-se sob dupla rasura ao esta-
de personagens lésbicas. Sobrepõem-se, nesses blishment masculino quando a temática lésbica
casos, contingenciamentos que desvelam a é trazida para o centro das composições
construção das diversas discriminações de literárias. No texto “De trajetórias e conflitos:
gênero em espaços frontalmente opostos, cuja lesbofobia e espaço em contos de autoria
perversa complementariedade aponta para feminina”, Virgínia Maria Vasconcelos Leal

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enfrenta a questão seguindo lúcida leitura do mesmo afirmativo10 que escolheu para si, tem,
campo literário brasileiro, em que dois selos na “ferida colonial” apontada por Costa,11 a di-
editoriais selecionados pela pesquisadora – mensão do desafio a enfrentar; o que passa,
edições GLS e Nandyala (“ambas marcadas por segundo a teórica, pela descolonização do fe-
um projeto político de visibilidade de grupos minismo e sua necessária “amefricanização”,
marginalizados”) – iluminam em si todo o sistema formas poderosas de, nos termos de Márgara
de relações e posicionamentos do qual são Millan, “diminuir a força fundante que o capitalis-
parte periférica e nicho comercial.8 Em relação mo inflige à nossa cotidianidade”.12
à escrita das três autoras que, nos contos Notas
escolhidos pela crítica, elaboram formalmente 1
Para a regularidade numérica dessa exclusão quando
a experiência lésbica, Leal infere:
se trata de romances publicados nas três casas editoriais
Pode-se perguntar quem são Ana Paula El-Jaick, brasileiras com maior poder de impacto simbólico e
Lúcia Facco ou – um pouco menos – Conceição difusão, ver DALCASTAGNÈ, 2012, p. 147-196, especial-
Evaristo. Seus livros não são encontrados nas mente p. 158.
vitrines das grandes livrarias, terão que ser 2
Cf. “Memória e cidade na narrativa brasileira contempo-
encomendados ou comprados em estandes de rânea de autoria feminina”. In: DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015,
congressos e feiras de livros. Isso tudo, ainda na p. 85-115, especialmente p. 86.
perspectiva de campo literário, determina a 3
Cf. “Espaços e heranças na obra de Adriana Lunardi”.
forma pela qual suas obras são lidas, seu público In: DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 219-237, especialmente
leitor, sua possibilidade de resenhas em jornais, p. 220.
suas possibilidades de tradução, sua perspectiva 4
In: DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 41-55, especialmente
social, entre outros aspectos.9 p. 48.
5
In: DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 42-43.
O volume conta ainda com importante 6
In: DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 57-83, especialmente p.
contribuição de Sandra Regina Goulart Almeida, 60-64. Tennina refere-se ao exemplo de Capão pecado,
cujo artigo “Mobilidades culturais, geografias primeiro romance de Ferréz, cuja representação chapada
afetivas: espaço urbano e gênero na literatura de mulheres da favela (Capão Redondo, em São Paulo)
contemporânea” produz abrangente revisão salta aos olhos. Segundo a pesquisadora: “Nenhum dos
teórica da questão espacial aliada aos trânsitos personagens femininos que aparecem no romance de
geopolíticos atuais. Igualmente importante é o Ferréz mostra a mulher periférica para além do esquema
aporte de Lúcia Osana Zolin no capítulo “Espaços de gênero, e esta característica se pode verificar na maior
(des)interditados: o lugar da mulher na narrativa parte dos textos dos escritores homens da literatura
de autoria feminina paranaense contemporâ- marginal. É evidente que a preocupação maior está na
nea”, em que, a partir de um levantamento esta- dominação de classe e não na dominação de gênero”.
7
tístico, a estudiosa identifica regularidades nada In: DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 185-196, especialmente
animadoras, apontando para persistências ideo- p. 187 [grifo nosso].
8
lógicas na construção literária feminina de repre- In: DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 117-131, especialmente
p.118-119.
sentações de gênero. Já em “Entre muros e abri- 9
In: DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 119.
gos, o lugar de corpos femininos no romance 10
Cf. “Começar de novo: a escrita feminina na zona do
contemporâneo”, Edma Cristina Alencar de Góis afeto”, de Tânia Regina Oliveira Ramos.
traça instigantes paralelos entre a literatura de In: DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 185.
autoria feminina e as artes plásticas, com base 11
In: DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 257-284, especialmente
em obras da portuguesa Ana Vieira e das p. 260-261.
brasileiras Brígida Baltar e Elida Tessler. 12
COSTA, apud DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 266.
Claudia Junqueira de Lima Costa fecha o
Referências
volume com “Feminismos descoloniais e a
construção de ‘saberes próprios’ nas zonas de DALCASTAGNÈ, Regina. “Um mapa de ausências”. In:
contato/tradução”, texto central para Espaço e ______. Literatura brasileira contemporânea:
gênero na literatura brasileira contemporâ- um território contestado. Vinhedo: Horizonte/Rio
nea, capaz de iluminar retrospectivamente todos de Janeiro: UERJ, 2012, p. 147-196.
os capítulos do livro, posto que aprofunda a DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos
perscrutação das interseccionalidades tão caras (orgs.). Espaço e gênero na literatura brasileira
às construções simbólicas empenhadas em contemporânea. Porto Alegre: Zouk, 2015.
revisitar de modo crítico o espaço social. É que (Coleção Estudos de Literaturas Contemporâneas)
a literatura de autoria feminina mais conse-
quente com as razões assimétricas de seu fun- Gabriel Estides Delgado
cionamento, no difícil caminho propositivo, e Universidade de Brasília (UnB)

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