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Pretas-Memórias: o ressoar de vozes femininas dentro e fora literatura afro-

brasileira, uma análise a partir do romance Solitária, de Eliana Alves Cruz.

INTRODUÇÃO

Uma pesquisa realizada pela escritora Regina Dalcastagnè, coordenadora do


Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea na Universidade de Brasília
(UNB), acerca da formação da literatura brasileira contemporânea, aponta que o perfil
de autores brasileiros segue o mesmo padrão desde 1695. De um total de 258 (duzentos
e cinquenta e oito) livros estudados, apenas 7,9% trazia personagens negros, cuja
retratação é associada à pobreza e marginalidade, 73,5% desses personagens eram
pobres e 20,4% bandidos. Dentro desse corpus, somente três obras traziam o
protagonismo feminino negro. O estudo revelou, ainda, o perfil dos escritores
brasileiros: 72,7% homens, dos quais 93,9% são brancos e com, em média, 50 anos de
idade.
Cabe destacar, contudo, que o Brasil é constituído majoritariamente por
mulheres e negros, segundos dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística. Essa amostra paradoxal do cenário da literatura contemporânea, em que a
classe preponderante é silenciada, ou melhor, apagada, reflete, nas suas ausências, e
naquilo que expressa, algumas das características centrais da sociedade brasileira: o
racismo e as relações de poder.
É diante da problemática de um apagamento/silenciamento da autoria negra,
que Miranda (2019) acredita ser “epistêmico, histórico e concreto”, que nasce a
motivação desta pesquisa: 1) discutir e visibilizar autoras negras em diáspora; 2) refletir
sobre a memória afro-brasileira para a construção ou reconstrução da identidade de um
povo; 3) analisar de que maneira essa identidade negra feminina ecoa entre as gerações
de mulheres, dentro e fora da literatura, isto é, entre autoras e personagens.
Para isso, coloca-se em diálogo três escritoras negras diaspóricas, Maria
Firmina dos Reis, Conceição Evaristo e Eliana Alves Cruz, que, nas letras, encontraram
uma arma contra a desigualdade e a opressão, no ato de escre(vi)ver 1encontram a
possibilidade de serem ouvidas, na medida em que são porta-voz das histórias dos
outros e, assim, das suas próprias, em narrativas carregadas de uma memória coletiva e
de ancestralidade.

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Escrevivência de Conceição Evaristo
A fim de evidenciar como essas mulheres, negras, pobres, educadas, de
diferentes gerações, realizam o mesmo – e imprescindível – movimento de
resistência/insurgência epistêmica aos modos de pensar/agir instituídos pelos cânones
literário e historiográfico, e mais que isso, como são importantes para que outros(as)
intelectuais negros(as) mantenham-se firme na luta pelos seus espaços, e que, como
elas, saiam da subalternidade, e tornem-se autores das suas obras e protagonistas das
suas histórias, transgressores da identidade que há muito é delineada à luz dos ideias
coloniais de escravidão do povo negro.
O marco transgressor no que tange a produção literária negra e diaspórica, foi a
publicação do romance Úrsula (1859), por Maria Firmina dos Reis, o qual possui o
seguinte prólogo:
Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher
brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens
ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem; com uma instrução
misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu
cabedal intelectual é quase nulo.
Então por que o publicas? – perguntará o leitor
Como uma tentativa [...]
Deixai pois que a minha Úrsula, tímida e acanhada, sem dotes da natureza,
nem enfeites e louçanias de arte, caminhe entre vós.

As considerações pessimistas – mas reais – da escritora acerca da sua própria


obra são reflexo da compreensão que se tem da arte literária que além de questões
conceituais e discursivas, aborda questões ideológicas e de poder. A literatura afro-
brasileira de autoria feminina rompe com os padrões impostos pelo cânone literário
Conceição Evaristo, nesse sentido, afirma que “nomear o que seria literatura afro-
brasileira e quais seriam seus produtores” (EVARISTO, 2009, p.17) é algo que vem se
abrindo a reflexões.
Há muito, um grupo representativo de escritores(as) afro-brasileiros(as),
assim como algumas vozes críticas acadêmicas, vêm afirmando a existência
de um corpus literário específico na Literatura Brasileira. Esse corpus se
constituiria como uma produção escrita marcada por uma subjetividade
construída, experimentada, vivenciada a partir da condição de homens negros
e de mulheres negras na sociedade brasileira. Contudo, há estudiosos, leitores
e mesmo escritores afrodescendentes que negam a existência de uma
literatura afro-brasileira. Apegam-se à defesa de que a arte é universal, e mais
do que isso, não consideram que a experiência das pessoas negras ou
afrodescendentes possa instituir um modo próprio de produzir e de conceber
um texto literário, com todas as suas implicações estéticas e ideológicas
(EVARISTO, 2009, p. 17)

A fim de viabilizar a discussão de vozes negras, este trabalho, dá destaque a


Maria Firmina como um símbolo inaugural da Literatura Negra Feminina,
imprescindível para a tomada de força de outras mulheres das gerações subsequentes,
dentre elas, Conceição Evaristo e Eliana Alves Cruz, em ordem cronológica de
“surgimento” no campo literário, que como aquela escrevem em busca de um espaço: 1)
na literatura canônica que reproduz o imaginário racista e misógino; 2) na sociedade que
insiste em rejeitá-las e calá-las, marcas essas deixadas pela escravidão e pelo
patriarcado, ainda latentes nos nossos hábitos, costumes e pensamentos.
Maria da Conceição Evaristo de Brito é, na literatura contemporânea, um
grande nome e, mais que isso, uma grande intelectual negra engajada não somente às
questões da arte escrita, como também política, transitando entre espaços de
movimentos sociais e acadêmicos. Hoje aos 76 anos, a professora, poetisa, ensaísta,
romancista, contista e atividades, nascida em Minas Gerais, mora no Rio de Janeiro. A
mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
em 1996, e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense,
teve sua primeira publicação – e estreia – aos 44 anos, em 1990, com seis dos seus
poemas compondo o volume 13 da coletânea Cadernos Negros, publicação literária
periódica que teve início em 1978, com o intuito de veicular a cultura e a produção
escrita afro-brasileira.
Posteriormente a finalista do prêmio Jabuti em 2015 e contemplada, em 2018,
com o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais pelo conjunto do seu trabalho,
publicou algumas obras, dentre elas, Becos da Memória (2006), aqui, objeto de análise.
No sentido de evidenciar, em paralelo, principalmente, com a obra Solitária, que a
importância de ter havido alguém para “ampliar horizontes” não é importante, apenas,
entre as autoras, fora da ficção, mas dentro também, na vida dos personagens. De modo
que a arte é reflexo da vida.
Eliana Alves soma-se a essa nova vertente da literatura brasileira contemporânea,
em que a voz passiva dos “representados” dá lugar à voz ativa da representatividade.
Assim como Evaristo, sua produção literária teve início quando ela já estava mais
madura, aos 50 anos, no ano de 2015 com o romance Água de Barrela, fruto de cinco
anos de pesquisa acerca da história da sua família, desde os tempos da escravidão. O
resultado dessa obra não é difícil prevê, ganhou o primeiro lugar no Prêmio Oliveira
Silveira, concurso promovido pela Fundação Cultural Palmares, que o publicou no ano
seguinte.
Nos dois anos seguinte, ela integrou a edição 39 e 40 da série Cadernos Negros.
Publicou, ainda, o seu segundo romance O crime do cais do Valongo. Em 2020 veio o
romance Nada digo de te que em ti não veja. E no último ano, duas obras nasceram: o
romance Solitária, a ser analisado na presente pesquisa; e um livro de contos, A vestida,
o qual foi Vencedor do Prêmio Jabuti 2022, na categoria Conto.
Aos poucos, Eliana tem conquistado o seu espaço, ao tratar da questão do
escravismo no Brasil, e, com isso, da situação representativa da diáspora mais pungente
de que se tem notícia na História Universal. Com uma linguagem simples e acessível,
que evidencia a sua formação de jornalista, ela estabelece o diálogo entre a ficção a
realidade, ao reproduzir notícias e ao trazer fatos históricos. Em razão do caráter
recente, Eliana é, ainda, pouco investigada e conhecida no âmbito acadêmico, razão pela
qual dar-se-á maior ênfase a ela e a sua obra, no sentido de fortalecer e ampliar as
discussões em torno do romance “Solitária”, e da Eliana Alves Cruz, como escritora
afro-brasileira que precisa integrar o compus acadêmico e, nesse sentido, necessita ser
exploradas. Portanto, propõe-se fortalecer e ampliar as discussões em torno da temática
de produção literária por mulheres negras, e em torno do romance citado, buscando
contribuir com novas categorias análise, na medica em que destacada o cunho social, e é
na escassez de pesquisas acerca desse assunto que justifica-se essa pesquisa.
Na fase de levantamento, ao inserir os termo “solitária – Eliana Alves Cruz” e
“Eliana Alves Cruz” no site do Catálogo e Teses & Dissertações da CAPES, não se
obteve resultados. Ao fazer a mesma pesquisa no Google Acadêmico, apareceram, ao
total, 116 resultados, cujas temáticas estão em volta das obras “O crime do Cia do
Valongo” e “Nada digo de ti, que em ti não veja”.
Diante disso, o objetivo geral é: Investigar as noções de memória e identidade
da mulher negra, a partir de “Solitária” (2022), Eliana Alves Cruz. Para tanto, foram
construídos três objetivos específicos: I) Caracterizar as noções que são basilares para a
construção – e compreensão – deste trabalho: diáspora, identidade e memória; II)
Destacar o movimento transgressor externo à literatura afro brasileira, entre as escritoras
Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo e Eliana Alves Cruz, destacando a
influência que elas exercem entre si e estabelecendo uma aproximação de do viés
temático das suas respectivas produções: Úrsula, Becos de Memórias e Solitária; III)
Analisar o movimento transgressor da personagem Mabel, do romance Solitária, como
símbolo de desenraizamento Cultural, em diálogo com o Poema “Vozes-Mulheres”, de
Conceição Evaristo, que compõe o livro Becos de Memórias, evidenciando os ecos
entre as gerações de mulheres dentro da literatura, com as personagens
Tais análises empreendidas centram-se em responder a seguinte questão: Diante
da baixa representatividade feminina e negra dentro cânone literário, Eliana Alves Cruz
representa uma quebra de paradigmas. Nesse sentido, de que maneira ela representa, em
si e na sua obra, a memória de mulheres negras?
Assim, neste espaço de disputa, conflito e consagração, propõe-se a análise de
textos literários de uma mulher negra, literatura representativa no Brasil e em diálogo
com outras obras e autores nacionais de seu tempo, ao passo que também trazia aspectos
inovadores, em especial voltados para a temática da escravização negra no país.
Para fundamentar este artigo, usamos autores como Duarte (2011); Duarte
(2013); Hall (); Mbembe (); Stoler (); Assmann (). Quanto ao requisito metodológico,
utilizamos uma perspectiva analítica da obra literária Solitária (2022), de Eliana Alves
Cruz. Assim, como do referencial bibliográfico de apoio à leitura estética e
historiográfica, os pontos discutidos neste trabalho vão desde uma breve introdução
acerca do período escravocrata e a representação da mulher na literatura, assim como o
conceito teórico que aborda autores que justificam os assuntos abordados juntamente
com conceitos sobre o ensino da literatura Afro-Brasileira na sala de aula.
desponta a empregada como sucedâneo das antigas mucamas do
período escravista

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia”


(HALL, 2006, p. 13).

“O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos (...) dentro de nós


há identidades contraditórias, empurradas em diferentes direções, de tal modo que
nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.” (HALL, 2006, p. 13)
 profissão de doméstica desempenhada por Maria carrega uma bagagem histórica, já
que essa função é uma das várias heranças deixadas pelo período de escravidão.
Conforme apresentado a seguir:
 
No Brasil, o trabalho doméstico é uma das profissões mais antigas, com 467 anos de
existência marcados pela violência institucional. Desse total, 343 anos foram de
trabalho escravo; o fim da escravidão parcial (Lei Áurea) obrigou os/as negros/as a
trabalhar por mais 48 anos a troco de comida ou por uns trocados [...] (SOUZA,
2013, p. 67). 

Percebe-se, desta forma, que a falta de medidas firmes de governo inviabilizou o


crescimento e o progresso dos negros na sociedade. Aqui se pode relacionar o fato
de, logo após a abolição de 1888, os negros não terem tido espaço de se fazerem e se
criarem numa sociedade, por conta do preconceito. Preconceito que preferiu
importar mão de obra estrangeira a garantir emprego aos ex-escravos; que os
submeteu à condição de marginal pela privação de seus direitos básicos. A seguir,
encontram-se informações complementares ao que já foi dito:

Os fazendeiros – em especial os cafeicultores – ganharam uma compensação: a


importação de força de trabalho europeia, de baixíssimo custo, bancada pelo poder
público. Parte da arrecadação fiscal de todo o País foi desviada para o financiamento
da imigração, destinada especialmente ao Sul e Sudeste. O subsídio estatal
direcionado ao setor mais dinâmico da economia acentuou desequilíbrios regionais
que se tornaram crônicos pelas décadas seguintes. Esta foi a reforma complementar
ao fim do cativeiro que se viabilizou. Quanto aos negros, estes ficaram jogados à
própria sorte. (MARINGONI, Gilberto, 2011).

Sendo, então, o trabalho de Maria o reflexo do que os negros vivem desde o período
da escravidão: a intolerância, a rejeição. Significando que “a eles recai o peso da
marginalização, da criminalidade imposta e/ou insinuada, da dúvida, da decência e
da honestidade. É novamente a estereotipagem.” Azevedo e Melo (2017)
Essa estereotipagem repercute na protagonista para além: por ser negra e pobre, ela
sofre; mas por ser mulher, numa sociedade fundamentada pelo patriarcalismo – que
confere ao homem o privilégio e o poder; enquanto a mulher, a dependência e
desvantagem. Esse sistema de menorização oprime diariamente muitas Marias –
entendidas aqui como representação feminina de outras mulheres – dispostas em um
patamar abaixo, radicalizado pelo preconceito. 
O machismo visto acima, fundamento do patriarcado, é representado no abandono
paterno – o homem, ex-companheiro da Maria, escolheu abandonar sua mulher e seu
filho, fazendo com que a responsabilidade de criar, educar e sustentar a criança
recaísse duplamente à mulher. De modo que, mais uma vez, a mulher seja
compreendida como a única encarregada na criação do filho. Para comprovar que o
abandono é recorrente, tem-se, na ficção, o relato de que Maria teve outros dois
filhos, mas que não estava com ninguém.
Acreditamos que, ao trazer para uma discussão os imaginários individuais e
coletivos que perpassam os discursos destas “vozes mulheres”, possibilitamos o
fortalecimento dos estudos do gênero, das identidades e das alteridades
1. Diáspora
Referências
https://blogs.opovo.com.br/leiturasdabel/2017/11/30/homens-e-brancos-tem-maior-
fatia-no-mercado-editorial-desde-1965/

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2310200508.htm

https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/noticias/sobre-o programa/artigo/2850/a-
voz-e-a-letra-das-mulheres-escritoras

https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-
e-negra/

https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-
e-negra/

DALCASTAGNÈ, Regina. Um território contestado: literatura brasileira


contemporânea e as novas vozes sociais. Revista Iberic@l - Numéro2, ano?
______________________.Literatura Brasileira Contemporânea — Um Território
Contestado . Editora Horizonte/Editora UERJ, 208 páginas.

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