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OLHOS

DE AZEVICHE
dez escritoras negras que estão
renovando a literatura brasileira
Contos e cronicas

Ana Paula LisboaT Cidinha da Silva


Conceição Evaristo Cristiane Sobral
Esmeralda Ribeiro 1 Fátima Trinchão
I Lia Vieira
Geni Guimarães
Miriam Alves 1 Taís Espírito Santo

tale
OLHOS
DE A Z E V I C H E

estão
escritoras negras que
dez brasileira
literatura
renovando a

Contos e crönicas

Ana Paula Lisboa 1 Cidinha da Silva


Conceição Evaristo I Cristiane Sobral1
Esmeralda Ríbeiro I Fátima Trinchão
Geni Guimarães Lia Vieira
Miriam Alves I Taís Espírito Santo

male
Copyright © 2017by Editora Mal
Todos os direitos reservados.
ISBN 978-85-92736-07-1

Projeto gráfico: BR75


Capa: Júlia Vidal
Seleção e organização: Vagner Amaro
Apresentação: Fernanda Felisberto
Texto (quarta capa): Giovana Xavier
Revisão: Francisco Jorge

Os textos
apresentados nesta coletânea foram cedidos pelas suas autoras
à Editora Malê
para uso exclusivo na composição desta obra.

Dados internacionais de
catalogação na publicação (CIP)
Vagner Amaro CRB-7/5224
045 Olhos de azeviche: dez escritoras
rabrasileira- contos e crónicas/ negras que estão renovando a literatu-
Ana Paula
de
ção Vagner Amaro Rio de Lisboa._ et al|; organiza-
160 p; 21 cm. Janeiro: Mal, 2017.

ISBN 978-85-92736-07-1

Apresentação: Fernanda Felisberto


.Conto brasileiro L. Lisboa, Paula. II.
Ana
Evaristo, Conceição. IV. Sobral, Cristiane. Silva, Cidinha da. II,
V.
Trinchão, Fátima. VII. Guimares, Geni. VIl.Ribeiro, Esmeralda. V
Miriam. X. Espirito Santo, Tais. XI. Vieira, Lia. IX. Alves.
Titulo es,

CDD- B869.301
Indice para catálogo sistemático:
I.Conto: ILiteratura brasileira B869.301

2017
Todos os direitos reservados à Malè Editorae Produtora
Cultural Ltda
www.editoramale.com.br | contato@editoramale.com.br
Sumário
Apresentação 1
FERNANDA FELISBERTO

Selfhe: eu mulher negra escritora

ANA PAULA LISBOAA 13


Preta 15
Trutas 19
CIDINHA DA SILVA 23
Os meninos do Morro da Lagartixa 25
Sobre os que juntam vintèns 29
na microeconomia do carnaval

CONCEIÇÃO EVARISTO 33
Di Lixão 35
Os amores de Kimbá 39
CRISTIANE SOBRAL 47
Das águas 49
O outro lado da moeda 53
ESMERALDA RIBEIRO 61
Guarde segredo 63
Mulheres dos espelhos 71

FÁTIMA TRINCH 77
Lembranças 79
Arlinda 85
GENI GUIMARÁES 95
Primeiras lembranças 97
Metamorfose 105
Selfie
eu mulher negra escritora

Fernanda Felisberto

Sempre tento entender o porquê, de uma literatura nacional ter


orgulho de ser uma literatura para poucos, quase uma socieda-
de secreta, deixando de fora a
pluralidade de vozes e da diversi-
dade cultural que
compõe o mosaico brasileiro. E bem verdade
gue um dos motivos é manutenção das castas brasileiras, onde

poder econômico e habilidade literária se fundem, formando o


"brinquedo" literatura brasileira, que já sai do forno como "clás-
sico, como bem sinalizou Flávio Khote em sua trilogia sobree o
Cânone Literário Brasileiro.
Mas a insurgência de homens e mulheres negras frente a todas
as adversidades que foram impostas, também se dáno campo literá-
rio, e rasurando os padrões estéticos, linguísticos e semânticos auto
rizados, pela elite letrada, que um conjunto de escritoras e escritores
negros vêm, desde o século, XVIl, criando espaços e construindo
frestas, na tentativa de deixar sua experiência autoral registrada, em
uma sociedadearrumadae estruturadapatctr presa no papel, hie-
rarquizando toda as outras manifestações culturais que possuem o
binomio oralidade/memória como meio de difusão.
A literatura negro-brasileira hoje é um campo, que vem forta-
lecendo cada dia mais a cadeia autoria, editora e público leitor e
ganhando cada dia mais espaço dentro da academia e das escolas

Profa. Fernanda Felisberto é doutora em Literatura Comparada pela UERJ, e professora do


Departamento de Letras do lnstituto Multidisciplinar campus Nova Iguaçu, da Universidade
Federal Rural do Rio deJaneira.
brasileiras, fruto de uma identidade
é
dupla, quase indissociável,
que o lugar autoria e ativisnmo, caminhando de
da
nada, seja para pautar temas comuns forma coorde-
a
sil, assim como experiëncia negra no Bra-
recuperar
autoras e autores, que foram sistemati
camente, rasurados ou
embranquecidos, e
compromisso de este
(re elaborar outras representações se
intensitica, quando pensa-
mos no
lugar ocupado pelas mulheres negras na
Por muito tempo prosa brasileira.
quando refletía sobre mulheres negras e es-
paço literário, o que emergia eram
puros objetos análise, presente
nos romances
nacionais, tais Como Esméria e Lucinda
(Vítimas
Algozes),
Bertoleza e Rita Baiana(O Cortiço Tia Anastácia nas
obras de Monteiro Lobato, as várias mulheres de
entre outras. Os
Jorge Amado,
corpos destas mulheres não eram seus, serviram
a outros, todas tratadas como objetos, nenhum sujeito, nenhum
afeto, nenhuma maternidade, nenhuma
familia, espelhando a
pouca diversidade no cânone literário brasileiro e sua
mofada, de
ideologia
conjunto de autores brancos, heterossexuais,
um

católicos e que tinham a


região sudeste, como ponto de partida, e
muita das vezes como destino de seus
imaginários.
Resignihcar narrativas anti-sexistas, antidiscriminatórias está
diretamente relacionado ao fazer literário de mulheres
negras, que
desde o século XVIIl vêm de maneira
insurgente construindo
mecanismos de eliminar as(os)
mediadoras(es) de sua vozes, que
insistem em continuas formas de representações
equivocadas, que
não foram construídas pelas próprias escritoras
negras, mas se cris
talizou imaginário nacional como uma verdade totalizadorae
no

inquestionável, queé lugar dado à subserviència, a uma trajetórna


de vida pouco interessante, seu modo de dizer náo serve, sua ex
periéncia tampouco tenm algum valor"(DALGASTAGNE, 2002)
diante de um quadro deste como pens.ar em ser escritora
negtra:

8 Olhos de Azeviche
Certa vez bell hooks, feminista negra, estadunidense, problema-
tizou o lugar da intelectualidade feminina negra, e que neste caso

chamo atenção para As escritoras negras, numa sociedade arruma-

da e projetada para as questões materiais, como assimilar que seu

fazer ativista, refletido na sua escrita também é mais uma forma de

enfrentamento ao racismo.
As possibilidades de respostas são inúmeras, entre elas devolver
ahumanidade a todos nós negros e negras, começando por nossos

corpos, como bem sinalizou Conceição Evaristo:


as escritoras negras buscam inscrever no corpus literá-

rio brasileiro imagens de autorrepresentação. Criam,


então, unma literatura em queo corpo-mulher-negra
deixa de ser o corpo do "outro como objeto a ser
descrito, para se impor como sujeito-mulher-negra
que se descreve, a partir de uma subjetividade própria
experimentada como mulher negra na sociedade bra
sileira. (EVARISTO, 200S, p. 54)

Assim como nos devolver representações de afeto, solidariedade,


enfrentamento às imposições sexistas e racistas do cotidiano, pelo
direito a vida, revelando alegrias e dramas das mulheres negras, que o
cánone literário brasileiro, desconhece e ignora, cabendo as mulheres

negras escritoras esta incumbência.


Esta autoria feminina negra, desloca bruscamente, e a intenção é
esta mesma, o desconfortável lugar de objeto, para um empoderado
lugar de protagonismo, tanto na representação de suas personagens,
assim como, na at1rmação de um lugar de produtoras de conheci

mento, construindo a partir do combate a discriminação interseccio-


nal, que recobre mulheres negras no Brasil e na diáspora africana, uma
sociedade mais plural, transpondo inclusive a utilização desta língua,
incorporar, usos e sentidos, de matriz
que diariamente é moldada a

Fernanda Felisberto
memória,
léxicoe da nossa
foranm removidos do nosso
africana, que
destas escritoras
vao sendo incorporados ao tazer literário
datam do século
Os primeiros registros da
autoria negra
estudos,
XVIll, com Rosa Egipcíaca, que ainda possui poucos
nos-
século XIX temos publicado
sobre sua biografia e obra, no dos
romance, Ursula, da maranhense Maria Firmina
so primeiro numa tra-
não revelou
reis, em 1859, porém esta publicação se

reduzido
consolidada no século XX, ainda é
dição romanesca

fenòmeno que n a o
o número de romancistas negras brasileiras,
nesta modalidade
literária en-
Ocorre c o m o genero conto, pois
contramos um número signihcativo de escritoras.
Esta formanarrativa concisa, de revelar atetos e dramas negros,

produção de desta nossa


tem se tornadocampo etervescente
um
literatura negro-brasileira, além do formato atrair, também é pre-

destas mulheres contistas aparece naa


cisoregistrar que presença a

forma de antologia, pois o mercado editorial brasileiro, que já


re-

termos de acolhimento destes textos, ainda


gistra mudanças, em

estas mulheres
estálonge do ideal, o que de certa maneira conduz
a publicações coletivas, as antologias, como forma de se fortalecer
e visibilizar sua obra, além de uma brecha de driblar as questões
economicas, que demandam uma publicação individual.
Este compromisso se revela dentro desta nova antologia Olhos
de azeviche: dez escritoras negras que estão renovando a literatura

brasileira-contosecrònicas ,
que a editora Mal de forma sen-
sível e conmprometida, uma vez mais, se debruça em torno dos 20

contos, mergulhando no universo de 10 mulheres negras, ativista.


contistas e cronistas: Ana Paula Lisboa, Cidinha da Silva, Conce
çao Evaristo, Cristiane Sobral, Esmeralda Ribeiro, Fátnma Trinchão,
Geni Ciuinmaräes, Iia Vieira, Mirian Alvese Tais Espirito Santo,con
VIdam vocé leitora
a e a vocè leitor a participar deste selfeliterario
disseminando estas vozes, para outros territórios.

10 Olhos de Azeviche
Odesafio destas autoras negras, de diferentes gerações é que a pro

dução escrita, de sua auto-representação, assim como suas leituras de


mundo a partir de suas singularidades de mulheres negras, possam a
cançar mais leitoras e leitores, através de imagens positivas, ampliando
Sua etetiva participação, nos circuitos literários, nos espaços escolares, e

no
imaginário de seu público.

Boa leitura

Referências
DALCASTAGNE, Regina- "Uma voz ao sol: representação e legiti-
midade na narrativa brasileira contemporânea'. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, no 20. Brasilia, julho/agosto de 2002, Pp
33-87, disponível https://dialnetunirioja.es/descarga/articulo/4846244pdf
EVARISTO, Conceição. Fêmea fênix. In: Maria Mulher --Infor-
mativo, ano 2, n. 13, 25 jul. 2005.

SILVA, Ana Rita Santiago da, "Literatura de autoria feminina negra:


(Des)Silenciamentos e ressignificações. Vertentes & Interfaces 1: Es-
tudos Literários e Comparados. Fólio --Revista de Letras Vitória da
Conquista v 2, n. 1 p. 20-37 jan./jun. 2010. Disponível em http://
periodicosuesbbr/index.php/folio/article/viewFile/38/276

SILVA, Fernanda Felisberto da, et al. Escrevivências Na Diáspora:


Escritoras Negras, Produção Editorial E Suas Escolhas Afetivas, Uma
Leitura De Carolina Maria De Jesus, Conceição Evaristo, Maya Ange
lou E Zora Neale Hurston. Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro, 2011. Disponível em http://bdtd.ibict.br/vutind/Record/
UERJ c9307f5alcóe52f79d0ad4bbf2853677

Fernanda Felisberto
Di Lixão
Di Lixão abriu os olhos sob a madrugada clara que já se tornava
dia. Apalpou um lado do rosto, sentindo a diferença. mesmo sem
tocar o outro. O dente latejou espalhando a dor por todo o céu da
boca. P'assou lentamente a lingua no canto da gengiva. Sentiu que
a bola de pus estava inteira
O companheiro de quarto-marquise levantou um pouco o cor
po e entre o sono olhou espantado, meio adormecido, para ele. Di
Lixão encheu rápido a boca de salivae deu uma cusparada no ros
to do menino O outro, num sobressalto, acordou de seu sono todo
instinto de detesa Pulou inesperadamente, acabando de se levantar
Di Lixão acompanhou o gesto raivoso do menino, levantando tam-
bém. Numa fração de segundos recebeu um pontapé nas suas partes
baixas. Abaixou desesperado, segurando os ovos-vida. E foi se enco-
hendo, se enroscando até ganhar a posição de feto. Pela primeiravez
depois de tudo, se lembrou da mae. Ainda bem que aquela puta tinha
morrido! Ele sabia quem havia matado a mulher. Tinha visto tudo
direitinho. Na policia negou que estivesse por perto, que suspeitasse
de alguém. Depois de très ou quatro idas à delegacia, os policiais aca-
baram por deixálo em paz. Ele sabia quem. Pouco importava. Que
deixassemo homem solto. Não gostava mesmo da mae. Nenhuma
falta ela fazia. Näo aguentava a falação dela. Di, vai para a escola! Di
nào fala com meus homens! Di, eu nasci aqui, vocè nasceu aqui, nas
dá um jeito de mudar o seu caminho! Puta safada que vivia querendo
ensinar a vida para ele. IDepois, pouco adintav.a. Zona por zona, hea
Va ali mesmo. Lá fora, o outro mundo também era uma zona Sabia
quem unha matado a mae. E dai? O que eletinhacom isso?
As partes de baixo de Di Lix.ao doim C dente contuuaaa
Jatejar. Será que ele ia morer? Seri que a dor de cuma ia se enon
trar com a dor de baixo? Ser que o encontro seia umm doOr so:
havia sido
menino
quarto-marquise.
O
O u n0 colega de mundo Jä
tinha bas
Ganhara o

esperto do que ele.


Fugira.
hals LDe dia
o. De
aa peram-
peram-
os dois dividiam aquele espaço. ali no
tante tenmpe que Encontravam-Se

no seu
anho.
bulavam pela rua, cada qual muito.
Falavam de tudo. Até
conversavam

meio da noite. As vezes a história


da m e
achava que
måe. Di Lixão
de um pai, m e n o s da m e. Ele nao sabia
se gos-
com a da sua
do outro devia parecer idade. O meni-
mesma
Tinham quase a
tava ou não do menino. ms anterior,
anos. Ele, no
de tinha quatorze
no, apesar pequeno,
feito quinze.
num dia qualquer, tinha
compassadamente. Ele
era uma

O dente de Di Lixão latejava


encontrado. Dofa o dente. Doíam as
haviam se
dor só. As dores

partes de baixo Doía o ódio.


Quando ele era pequeno mijava nas
Sentiu vontade de mijar.
numa crise
batia por isso. Um dia, ela,
calças. Sua m e Ihe sempre
a bim-
de raiva, ao ver o menino
todo ensopado de mijo, puxou
berros que
dele até arrebentar. E dizia para ele aos
binha quase
mijar...
aquilo era para mijar, para mijar, mijar,
Di Lixão sentiu naquele dia voltava agora. O que
A dor que
bimbinha dele.
dia a mae havia puxado a
era aquilo? Naquele

na vida. Tinha
levado um
Agora ele era grande, experimentado
chute no saco, nos ovos. E doía para cacete. A vontade de mijar
bimbinna
se confundia com a dor. Naquela época, pensava que a
a
não! Tinha crescido,
sO servia
para mijar, mijar, mijar. Agora
havha
bimbinha se transformado em pau, cacete. Há muito tempo
outro fazer. Tinha
descoberto que bimbinha grande, em pé, tinha
experimentado isto nos quartos daquelas putas.
Foi também no quarto ao lado do de sua mãe, com uma n

na da idade dele, que como ele havia nascido ali, que expe
orreu
tou o primeiro prazer a dois. Quando acabou tudo, quasein

Olhos de Azeviche
de vergonha. Estava na cama aindae não conseguia parar. Nao

conseguia parar o mijo. Mijou-se todo.


Di Lixão estava com vontade de mijar. Queria levantar e não
podia. la soltar nas calças. Não podia fazer. A mäe, aquela puta,
era bem capaz de viver de novo e vir castigá-lo. Apalpou, meio
sem jeito e envergornhado, as partes doídas. O dente latejou fun-
do no profundo da boca. Dor de dente matava? Não sabia. Sabia,
porém, que ia morrer. Mas isto também, como a morte da me,
pouca importância tinha. Onde estava o desgraçado do outro? Só
não queria morrer tão sozinho.
Os primeiros trabalhadores passavam apressados. Di Lixão
teve vontade de chamar um deles, mas silenciou o desejo na
garganta. O sol anunciava o dia quente. Ele, entretanto, tremia
de frio. Sentia um vazio na cabeça, no peito e no estômago. Ti-
nha pouco de fome. Havia umas duas semanas que aquele
um

tumorzinho na boca, junto ao dente, doía que ele não podia co-
mer quase nada.
Fez um esforço. Sentou. Pegou a bimbinha dolorida e fez xixi.
Assustou-se. Estava urinando sangue. Passou a lingua no canto da
boca. O carocinho latejou. Num gesto coragem-desespero levou
o dedo em cima da bola de pus e apertou-a contra a gengiva. Cus-
pu pus e sangue. Tudo doía. A boca, a bimbinha, a vida.. Deitou
novamente, retomando a posição de feto. Já eram sete horas da
manh. Um transeunte passou e teve a
impressão de que o garoto
estava morto. Um filete de sangue escorria de sua boca entrea-
berta. As nove horas o rabecão da polícia veio recolher o cadáver.
O menino era conhecido ali na área. Tinha a mania de chutar os
latoes de lixo e por isso ganhara o apelido. Sim! Aquele era o Di
Lixão. Di Lixão havia morrido.

Conceição Evaristo 37

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