Você está na página 1de 5

QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO CONTO MARIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

MODALIDADE: RESUMO EXPANDIDO

Luciana Bessa Silva1

1 INTRODUÇÃO

É sabido que produzir e ter acesso à Literatura Brasileira tem raça, classe e gênero. A
Lei 9.394, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), publicada em 1996, em sua
versão original pouco abordava as questões étnico-raciais. No entanto, a Lei 10.639 de 2003,
alterou a LDB e tornou obrigatória a inclusão da História e da Cultura afro-brasileira na grade
curricular do Ensino Fundamental e Médio.

As instituições de ensino ficaram responsáveis em incluir a história da África e dos


Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra em solo brasileiro, o papel do negro na
formação da sociedade nacional com o objetivo de dar visibilidade à sua contribuição nas mais
diferentes áreas: Economia, Política, Educação, Música, Literatura, etc.

A proximidade entre Brasil e África é pouco conhecida pelos brasileiros. Mesmo a


relação com os países lusófonos, aqueles que falam a língua portuguesa, Angola, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique, Portugal, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe,
nosso desconhecimento é imperdoável, se levarmos em conta que tais países ajudaram a
sedimentar a cultura brasileira.

Como se não bastasse, existe ainda a crença da democracia racial difundida no século
XX, pelo sociólogo Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala (1933), contribuindo

1
Doutora em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante Grupo de Pesquisa em Direito,
Cidadania e Sustentabilidade – GPDCS.

1
para que nossa matriz curricular reproduza o cânone da mestiçagem, ou seja, da harmonia racial.

Conceição Evaristo, na condição de escritora e pesquisadora, reflete sobre a


problemática das questões étnico-raciais em suas obras. Conhecer a obra literária dessa mulher
negra é relevante, porque se trata de uma das maiores vozes da literatura contemporânea
brasileira, agraciada com o Prêmio Jabuti (2016), por estar atenta às questões de seu tempo,
como: ancestralidade, violência contra mulheres negras, maternidade, preconceitos, racismo,
etc.

Diante dessa realidade, propomo-nos refletir sobre as questões étnico-raciais no conto


“Maria”, da obra Olhos D’água (2016), de Conceição Evaristo.

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Trata-se de um trabalho bibliográfico-descritivo. A princípio escolhemos a temática do


trabalho. Depois, separamos o material de leitura sobre questões étnico-raciais, assim como a obra
literária e textos ensaísticos de Conceição Evaristo. Recorremos aos seguintes autores:
Domício Proença Filho (2001), Regina Dalcastagné (2005), Eduardo de Assis Duarte (2013) e
a própria Conceição Evaristo (2005, 2009).

3 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Conceição Evaristo (2009) afirma que a elite branca reconhece as referências dos negros
na música, na culinária, contudo, cria-se um impasse que vai da dúvida à negação, quando a se
trata da literatura. Nesse sentido, a autora de Insubmissas lágrimas de mulheres (2011),
questiona se a escrita literária brasileira pertence a determinados grupos de sujeitos.

Em sua obra Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea: um território


contestado (2005), Regina Delcastagné, ao estudar obras brasileiras publicas nas três
maiores editoras do Brasil, Companhia das Letras, Record e Rocco, no período de 1990 a
2004, revela que 70% dos autores são do sexo masculino e 90% são brancos. As personagens
por eles criadas também são homens, 60%, brancos, 80% e heterossexuais, 90%. Esses dados
são a prova da exclusão das mulheres (brancas e negras) do cânone literário.

2
Ainda segundo a pesquisadora, quando se trata da homogeneidade racial, os dados
são gritantes: “São brancos 93,9% dos autores e autoras estudados (3,6 não tiveram a cor
identificada e os ‘não brancos’, como categoria coletiva, ficaram com menos de 2,4)”.
(DELCASTAGNÉ, 2008, p. 206). Mesmo diante da pouca representatividade negra na
literatura brasileira em relação à branca, escritores como Lima Barreto, Luís Gama, Maria
Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus não se calaram diante de uma sociedade que
insiste em excluir o negro da literatura.

Quando eles aparecem na literatura, são estigmatizados, como é o caso das personagens
Bertoleza, da obra O Cortiço (1881), um verdadeiro painel social do Segundo Império, ou
Raimundo, do livro O Mulato (1890), ambos de Aluísio de Azevedo. A primeira é uma ex-
escrava que se apaixona por João Romão, trabalha para enriquecê-lo e pratica suicídio, quando
ele a descarta para se casar com uma mulher branca. O segundo; é um advogado, de olhos azuis,
formado na Europa, que sofre preconceito da sociedade maranhense ao se aproximar de uma
mulher também branca, Ana Rosa.

Esse processo de estigmatização do negro na literatura brasileira, levou o crítico


Domício Proença Filho (2004), analisar alguns estereótipos: o negro nobre, o negro vítima, o
negro infantilizado, o negro pervertido e o negro exilado. É verdade que a literatura não criou
imagens negativas do negro, mas produziu sua invisibilidade ao apresentá-los como sujeitos
destituídos de subjetividade em virtude da cor de sua pele.

Quanto à literatura contemporânea, Delcastagné afirma que ela refle “nas suas
ausências, talvez ainda mais do que naquilo que expressa, algumas das características centrais
da sociedade brasileira. É o caso da população negra, que séculos de racismo estrutural afastam
dos espaços de poder e de produção de discurso” (2008, p. 1). Não é à toa que o cânone
brasileiro é, eminentemente, formado por homens brancos.

Eduardo de Assis Duarte (2013), destaca várias vozes potentes dessa literatura, dentre
elas, Conceição Evaristo, criadora de um “brutalismo poético” (p. 151) – termo que o crítico

3
diz ter tentado caracterizar – a função do realismo cru e ternura que marcam as narrativas da
autora.

Ressaltamos, aqui, o conto “Maria”, da obra Olhos D’ Água (2016). Narrado em 3ª


pessoa, somos apresentados a uma mulher negra, que assim como tantas outras, trabalham de
sola sol para criarem seus filhos:

Maria estava parada há mais de uma hora no ponto de ônibus. Estava cansada
de tanto esperar... Os ônibus estavam aumentando tanto.... No dia anterior, no
domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos...
Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia jogar fora. Estava feliz,
apesar do cansaço... (EVARISTO, 2016, p. 39)

Ou seja, Maria é explorada em seu ambiente de trabalho, mas, ainda se sente feliz por ganhar
frutas e ossos para os filhos. A subalternidade da personagem é física e mental.

Já dentro do ônibus ela se encontra com o pai de um de seus três filhos. “Ela, ainda sem
ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho no filho. E logo após,
levantou rápido sacando a arma. Outro lá atrás gritou que era um assalto” (EVARISTO, 2016,
p. 39). Percebemos o duplo sofrimento da personagem: abandonada pelo companheiro, que se
tornou um assaltante. Todos têm seus pertences roubados, exceto Maria.

Quando os ladrões saem do ônibus, Maria se ver ameaçada pelos outros passageiros que
a ofendem gritando: “puta, negra e safada”. Eles acreditavam que ela fazia parte do grupo dos
assaltantes, já que um dos homens se sentou ao seu lado e nenhum de seus bens foi subtraído.
Mulher, negra, pobre, ou seja, Maria reúne as condições necessárias para ser linchada pela
sociedade. Por mais que tentasse explicar ou que o motorista do ônibus procurasse defendê-la,
Maria já tinha sido condenada por uma sociedade que vê na mulher (negra) um agente
infeccioso da sociedade. Dessa forma, ela é morta pelas mãos de uma sociedade que brada que
não existe racismo no Brasil. Ou você acha que se ela fosse branca, cabelos e olhos claros, teria
tido o mesmo fim?

4
Produzir narrativas protagonizadas por sujeitos negros, especialmente mulheres, é uma
forma de transgressão à cultura eurocêntrica da qual somos herdeiros.

4 CONCLUSÃO

As obras da mineira Conceição Evaristo, destaque para os contos presentes na coletânea


Olhos D’Água (2016), trazem à tona o sofrimento de personagens negras, que sofrem os
diferentes tipos de violência, em virtude de seu gênero (feminino), sua raça (negra) e sua classe
social, já que ocupam posições de subalternidade, como é o caso de Maria, uma empregada
doméstica, que trabalha até dia de domingo, leva os restos de comida da casa de sua patroa para
os seus filhos e é linchada dentro de um ônibus, porque, simplesmente, os passageiros, ao
olharem para ela, decidiram que era culpada de um assalto cometido dentro do coletivo em que
estavam. Por fim, é preciso que se diga que literatura de autoria negra, não está condicionada a
abordar as questões étnico-raciais, contudo as experiências vivenciadas por eles, dotados de
lugar de fala, têm um significado maior para aqueles que se sentem representados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996.


BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’, e dá
outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 10 jan. 2003. Disponível em: . Acesso
em: 01 agosto. 2023.
DELCASTAGNÉ, Regina. Quando o preconceito se faz silêncio: relações raciais na literatura
brasileira contemporânea. In: Niterói, n. 24, p. 203-219, 1. sem. 2008.

____________. A personagem no romance brasileiro contemporâneo: 1994-2004. In: Estudos


de literatura brasileira contemporânea, nº 26, Brasília, 2005, p. 17-31.

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016.


____________. Olhos D’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.
PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. In: Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 25, 2004, p. 159-177.

Você também pode gostar