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Ana Heloise Pereira Vicentini, André Luiz da Silva, Bruna Belo Sales e Jenifer Teixeira da Silva.

Análise sociológica do conto “Maria”, de Conceição Evaristo

O conto “Maria” faz parte do livro Olhos d’água, da autora Conceição Evaristo. Esta
é uma escritora negra, mineira – nascida numa favela de Belo Horizonte – e que se mudou
para o Rio de Janeiro na década de 1970. Formada em Letras pela UFRJ, mestre pela PUC-
Rio e doutora em Literatura Comparada pela UFF, é uma autora brasileira de extrema
importância e que aborda em suas obras temáticas sociais, raciais e de gênero (Literafro,
2023). Em seu livro Olhos d’água, observam-se as vivências de mulheres negras e periféricas
retratadas em seus cotidianos deveras penosos. “Maria” é o quarto conto do livro e foi
escolhido para ser o objeto de uma análise sociológica que visa demonstrar como o contexto
sociorracial, no qual a personagem principal está inserida, é um fator fundamental para o
desfecho que a história apresenta.
Escolhemos utilizar a teoria da análise sociológica, pois a obra literária selecionada
como objeto deste estudo traz uma narrativa bastante representativa do contexto social no
qual se desenvolve. Segundo Costa Lima (2002, p. ?), a análise sociológica é usada na
literatura “[...] frequentemente com propósito de ilustrar, exemplificar ou comprovar uma
interpretação de caráter bem mais abrangente: a interpretação de certa sociedade”. Assim,
pretendemos demonstrar que as situações e os recortes sociais presentes no conto “Maria” são
indicadores de características da sociedade brasileira.
Em primeira análise, a personagem principal, Maria, é apresentada como sendo uma
mulher trabalhadora, à espera do transporte público após o expediente e que aparenta estar
fatigada pelas circunstâncias da rotina: “Maria estava parada há mais de meia hora no ponto
do ônibus. Estava cansada de esperar.” (EVARISTO, 2023, p. 39) e

[a]lém do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido
festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas
que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia
jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço (EVARISTO, 2023, p. 39).

Atrelado ao contexto inicial da narrativa exposto anteriormente, temos o fator


socioeconômico que define a quais vivências a personagem e seus filhos estarão sujeitos.
Maria é uma mulher que trabalha como empregada doméstica, mãe solteira de três filhos e
que luta diariamente para conseguir sustentar sua família:

[a] gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados.
Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir nariz. Daria para
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comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As
crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos iriam gostar de melão?
(EVARISTO, 2023, p. 39-40).

Desse modo, a personagem experiencia uma realidade comum às classes mais desfavorecidas
economicamente, em especial quando falamos das mães solos. Trabalhar muito em mais de
uma jornada e estar sempre preocupada com a questão financeira, com o futuro e com o fato
de muitas vezes não ter uma rede de apoio são realidades que existem no cotidiano de Maria
e de muitas outras mulheres brasileiras.
Apresentados os papéis e as características que a personagem performa, observa-se o
desenvolvimento da narrativa: Maria entra no ônibus cansada após um longo dia de serviço e
depois de adentrar reconhece o homem, pai de seu filho mais velho, que lhe paga a passagem.
Ele senta-se ao lado dela, à frente no ônibus, e os dois trocam algumas palavras a respeito da
vida e do filho em comum. Uma conversa tímida e sem muito entrosamento evidente das
partes: “O homem falava, mas continuava estático, preso, fixo no banco. Cochichava com
Maria as palavras, sem entretanto virar para o lado dela. Ela sabia o que o homem dizia. Ele
estava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte, de despedida.”
(EVARISTO, 2023, p. 41). Logo após a conversa, o homem se levanta sacando uma arma, e
seu comparsa anuncia o assalto em seguida. Os assaltantes recolhem (roubam) os pertences
de todos os passageiros, exceto de Maria, e descem rapidamente do ônibus.
Posteriormente ao ocorrido, uma voz se eleva dentro do ônibus acusando Maria de
conhecer os assaltantes. A partir desse momento outros passageiros também se pronunciam:
alguns acusam e ofendem Maria, e outros tentam apaziguar a situação. Todavia, observamos
que o cenário que se formava no ônibus era uma espécie de julgamento da personagem, cujo
crime era ser considerada cúmplice/comparsa de um assalto simplesmente por ter tido um
breve contato com um dos assaltantes e não ter sido assaltada: “Foi quando uma voz acordou
a coragem dos demais. Alguém gritou que aquela puta safada lá da frente conhecia os
assaltantes.” (EVARISTO, 2023, p. 41) e

[o]uviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois. Outra voz
vinda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma, gente! Se ela estivesse junto com
eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para
disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada.
(EVARISTO, 2023, p. 41-42, grifos da autora)

Cabe ressaltar que a construção da narrativa aponta várias características da


personagem e do seu cotidiano, mas somente nos parágrafos finais, após o assalto, uma
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característica de Maria é apresentada ao leitor: ela é uma mulher negra. Esse fato pode ser
observado nas falas dos passageiros do ônibus que, em tom pejorativo e violento, acusam
Maria de ser comparsa dos ladrões:

A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela


puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da voz levantou e se
encaminhou em direção à Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não
conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda
é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. (EVARISTO,
2023, p. 42, grifos da autora)

O modo como a personagem é apontada pelos demais passageiros, se referindo de


forma depreciativa e preconceituosa, é reflexo do caráter racista da sociedade. A narrativa
traz à tona uma realidade histórica da sociedade brasileira, que estigmatiza corpos negros e
periféricos, resultado do racismo estrutural. Nesse sentido, pessoas negras são vistas como
indivíduos inferiorizados, criminosos e merecedores de condenação e violência. Maria sofre,
além da violência física, os efeitos da estereotipização de corpos negros e do racismo quando
sua condição sociorracial é atrelada à criminalidade e/ou vista como uma ameaça para a
sociedade, como apontam Batalini e Feldiman (apud Rocha, 2023).
Os últimos parágrafos do conto narram uma cena violenta e conturbada. Incitados por
alguém que gritava “[l]incha! Lincha! Lincha!...” (EVARISTO, 2023, p. 42), alguns
passageiros atacaram Maria, enquanto outros desciam do ônibus. Apesar da tentativa do
motorista de defender a passageira que estava sendo brutalmente agredida – o qual a
reconhece como uma mulher que estava “[...] vindo do trabalho, da luta para sustentar os
filhos [...]” (EVARISTO, 2023, p. 42) –, ela continuou sendo linchada pelos demais
passageiros. Ao final, “Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos”
(EVARISTO, 2023, p. 42) e “[q]uando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo
da mulher estava todo dilacerado, todo pisoteado.” (EVARISTO, 2023, p. 42), demonstrando
uma cena característica dos linchamentos e de crime de ódio.
Em relação a essa realidade, segundo a socióloga Ariadne Natal (apud FREITAS,
2016) “[o] linchamento não é algo aleatório. Ele atinge as pessoas que a sociedade já enxerga
como elimináveis”. Assim, pode-se inferir que o desfecho da personagem na narrativa é
consequência da reprodução da violência racial e da discriminação latentes na sociedade, o
que resulta no crime de ódio narrado.
Em última análise, constata-se que Maria é descrita ao longo do conto como uma mãe
zelosa, trabalhadora e sozinha numa constante tarefa de sobreviver e criar os filhos da melhor
maneira que lhe é possível. Já em relação a sua rotina e seu trabalho especificamente, a
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personagem faz parte da classe proletária do país, que é também a realidade da maioria do
povo brasileiro. Diante do exposto, podemos perceber que apesar de Maria ocupar/ performar
papéis comuns dentro da sociedade, sua existência e condição são reduzidas aos estereótipos
de uma mulher pobre e negra, estes, por sua vez, sendo atrelados à criminalidade e à
inferioridade (passíveis de eliminação). Assim, a discriminação e a brutalidade que a
personagem padece, são reflexos de uma sociedade racista que reproduz, historicamente,
violências de variadas formas.

A análise de vocês ficou muito boa. Passaram alguns problemas de revisão (como as
“refrências” abaixo).

4,0
REFERÊNCIAS

COSTA LIMA, Luiz. A análise sociológica da literatura. In: COSTA LIMA, Luiz. Teoria da
Literatura em suas Fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 2 v. p. 659-88.

EVARISTO, Conceição. Maria. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro:
Pallas, 2023. p. 39-42.

EVARISTO, Conceição. [orelha do livro] Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2023. p. 39-
42.

FREITAS, Ana. Justiça com as próprias mãos: uma realidade cotidiana. Nexo Jornal, [s. l.],
15 mar. 2016. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/explicado/2016/03/15/Justi
%C3%A7a-com-as-pr%C3%B3prias-m%C3%A3os-uma-realidade-cotidiana. Acesso em: 4
dez. 2023.

LITERAFRO. Conceição Evaristo. Literafro - portal da literatura afro-brasileira, [s. l.],


23 ago. 2023. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-
evaristo. Acesso em: 4 dez. 2023.

ROCHA, Wesley Henrique Alves da. Maria, de Conceição Evaristo: uma alegoria da
condição social dos corpos negros e dissidentes. Revista Paraguaçu: Estudos Linguísticos e
Literários, Bahia, v. 1, n. 2, p. 52-68, março 2023. Disponível em:
https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/revistaparaguacu/article/view/2046/1849. Acesso
em: 4 dez. 2023.

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