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Paulo Lins

Paulo César de Souza Lins nasceu no Rio de Janeiro em 11 de junho de 1958.


Entre os 6 anos e o início da idade adulta residiu no conjunto Cidade de Deus,
na periferia da cidade, tema e cenário do romance homônimo. Graduado em
Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atuou como
professor da rede pública de ensino do estado, inclusive viajando diariamente
para ministrar suas aulas numa escola da Ilha Grande, na baía de Angra dos
Reis. Na década de 1980, participou do grupo Cooperativa de Poetas, tendo
publicado em 1986 o volume Sob o sol. Entre 1986 e 1993, integrou o grupo de
pesquisadores liderado pela antropóloga Alba Zaluar em trabalho de campo
sobre o perfil da violência na Cidade de Deus. Dessa pesquisa surgem muitos
elementos que mais tarde irão compor cenas, enredos e personagens de seu
consagrado romance. Em 1995, foi selecionado para a bolsa Vitae de Artes, o
que permitiu a conclusão do livro

Em 2002, Cidade de Deus foi adaptado para o cinema, dirigido por Fernando
Meirelles, com grande sucesso de público e de crítica. O filme obteve quatro
indicações para o Oscar – direção, fotografia, montagem e roteiro adaptado –,
tendo sido também indicado para o Globo de Ouro na categoria de melhor filme
estrangeiro.

PUBLICAÇÕES

Obra Individual

Sob o sol. Rio de Janeiro: UFRJ, 1986. (poesia).

Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. (romance).

Desde que o samba é samba. São Paulo: Planeta, 2012. (romance).

Dois amores. Rio de Janeiro: Nós, 2019. (novela).

Narrativa de Paulo Lins

Ao pensar historicamente a arte brasileira e sua relação com a sociedade na


contemporaneidade, nos deparamos com este fenômeno que é Cidade de Deus.
O impacto causado devido ao grau de realismo presente na narrativa de Lins faz
refletir a respeito da brutalidade da violência da sociedade brasileira
contemporânea, como a protagonista, a causa e o efeito. O romance inicia com
a narração de uma cena bucólica e amena, de curtir a natureza na beira do rio,
de fumar um baseado, recuperar memórias de alegrias pueris que passaram e
os possíveis sonhos do futuro. Brutalmente, esse idílico momento é rompido e a
realidade invade a narrativa. Por sua vez, a narrativa cinematográfica invade a
literária visto que, explicitamente, as imagens adentram no imaginário do leitor
com muita materialidade.

Cidade de Deus

Livro

Neste seu romance de estreia, Paulo Lins faz um painel das transformações
sociais pelas quais passou o conjunto habitacional Cidade de Deus: da pequena
criminalidade dos anos 60 à situação de violência generalizada e de domínio do
tráfico de drogas dos anos 90. Para redefinir a situação do lugar onde cresceu,
Lins usa o termo "neofavela", em oposição à favela antiga, aquela das rodas de
samba e da malandragem romântica. O livro se baseia em fatos reais. Grande
parte do material utilizado para escrevê-lo foi coletado durante os oito anos (entre
1986 e 1993) em que o autor trabalhou como assessor de pesquisas
antropológicas sobre a criminalidade e as classes populares do Rio de Janeiro.
Cidade de Deus foi saudado como uma das maiores obras da literatura brasileira
contemporânea. Um dos principais críticos do país, Roberto Schwarz observou
a capacidade do autor de transpor para a literatura uma situação social
deteriorada, aliando em sua narrativa a agilidade da ação cinematográfica e o
lirismo da poesia. Segundo Schwarz, "o interesse explosivo do assunto, o
tamanho da empresa, a sua dificuldade, o ponto de vista interno e diferente, tudo
contribuiu para a aventura artística fora do comum".

Filme

Com estilo inovador, o romance Cidade de Deus (1997) de Paulo Lins trouxe
evidente proximidade com a linguagem cinematográfica. Consequentemente foi
adaptado ao cinema, em filme homônimo com direção de Fernando Meirelles
(2002). Isso, justamente porque a arte cinematográfica é uma espécie de
segunda natureza da literatura, pois traz embutido o processo narrativo literário.
Embora numa lógica contrária, aquilo que na literatura é efeito (a imagem), no
cinema é também elemento da narrativa. O romance, forma literária sempre
propensa ao diálogo com outras linguagens, encontra no cinema um parentesco
originário. Entre as páginas e as telas há laços estreitos. Nas páginas do
romance, são as palavras que acionam os sentidos e se transformam na mente
do leitor em imagens. A tela do cinema abriga imagens em movimento que serão
decodificadas pelo espectador por meio de palavras. Portanto a comparação dos
procedimentos narrativos de Cidade de Deus, nos modos literário e fílmico, pode
ajudar a explicitar aspectos desse diálogo, assim como a relevância do cinema
e da literatura, como capazes de pensar e estabelecer relações com o social e
histórico, ler e traduzir o fenômeno social da pobreza na urbe. Por conseguinte,
de pensar e representar ao mesmo tempo, um sistema de relações concretas
entre suas temáticas e estruturas narrativas da configuração social do próprio
Brasil. Busca-se deste modo abordar a relevância estética, social e histórica da
arte.

Itamar Vieira

Nascido em Salvador, em 1979, Itamar Rangel Vieira Júnior é Graduado e


Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia. Sua ligação com o
estado em que nasceu reflete de forma intensa em seu interesse acadêmico,
como nos demonstra sua monografia intitulada A expansão de Salvador: a
produção do espaço urbano em uma via metropolitana (2005) e sua dissertação
de mestrado denominada A valorização imobiliária empreendida pelo Estado e
mercado formal de imóveis em Salvador: analisando a avenida paralela (2007).

Seu impactante romance Torto arado (2018) conquistou em Portugal o


prestigioso Prêmio LeYa, concedido por unanimidade pelo modo como
representa de forma sólida e realista o universo rural brasileiro. O enredo enfatiza
trabalhadores sem-terra remanescentes do regime escravista, em especial as
personagens femininas duplamente vítimas da violência que impera nos grotões
mais afastados, realidade representada por meio de uma sensível e sofisticada
escrita, como bem notaram os jurados do concurso em sua nota de justificativa:
O Prémio LeYa 2018 é atribuído ao romance “Torto Arado”, de Itamar Vieira
Junior, pela solidez da construção, o equilíbrio da narrativa e a forma como
aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase nas figuras femininas, na
sua liberdade e na violência exercida sobre o corpo

num contexto dominado pela sociedade patriarcal. Sendo um romance que parte
de uma realidade concreta, em que situações de opressão quer social quer do
homem em relação à mulher, a narrativa encontra um plano alegórico, sem entrar
num estilo barroco, que ganha contornos universais. Destaca-se a qualidade
literária de uma escrita em que se reconhece plenamente o escritor. Todos estes
motivos justificam a atribuição por unanimidade deste prémio.

Situando a história em uma região remota e imaginária do nordeste brasileiro,


Itamar Vieira Junior abrange problemáticas que envolvem proporções maiores
ligadas tanto ao modo de funcionamento histórico e social do país quanto à
complexa e intrincada rede de sentimentos e emoções intrínsecas ao ser
humano. Em concomitância, temos um romance que fornece elementos para
debate sobre as desigualdades e violências entre cidade e campo, as
desigualdades de gênero, as formas de resistência das religiões de matriz
africana e indígena, as permanências e continuidades da escravidão
simbolizadas na relação de mando inviolável entre patrão/dono e
trabalhador/agregado, assim como do tríplice espólio sobre o trabalhador: sua
mão de obra, seu produto final e seu tempo. Somada a esses fatores há também
na narrativa uma implícita, mas potente reflexão sobre os sentidos da posse de
terra e de uma necessária reforma agrária no território nacional. Ao mesmo
tempo, portanto, em que há um “Brasil profundo” sendo problematizado, somos
convidados a sentir de maneira pungente o caótico estado emocional de
personagens que, mesmo vivendo sobre constante tensão, manifestam
complexos e contraditórios estados emocionais.

Torto Arado

A história do romance tem como centro a família de Zeca Chapéu e Salustiana,


e suas filhas Bibiana e Belonísia, descendentes de escravizados. O cenário da
obra é a fictícia Fazenda Água Negra, um local que representa a síntese do
sertão brasileiro e suas relações sociais, o latifúndio e o trabalho servil, marcados
pela violência, a seca e também pelas crenças, lendas e religiosidades próprias
da mestiçagem cultural e da ancestralidade africana. “Meu pai havia nascido
quase trinta anos após declararem os negros escravos livres, mas ainda cativo
dos descendentes dos senhores de seus avós”.

Uma obra polifônica, marcada pelas narrativas das irmãs Bibiana e Belonísia, e
de uma entidade encantada, vozes femininas que expressam memórias
coletivas e atribuladas de desigualdades raciais, sociais e de gênero, e também
evocam as resistências ancestrais dos povos quilombolas, suas lutas e ligações
com a terra. “Quando retirei a faca da mala de roupas, embrulhada em um
pedaço de tecido antigo encardido com nódoas escuras e um nó no meio, tinha
pouco mais de sete anos. Minha irmã, Belonísia, que estava comigo, era mais
nova um ano”.

A narrativa se inicia com uma tragédia compartilhada pelas irmãs, a qual deixa
marcas profundas em suas vidas pelas décadas seguintes, criando uma
cumplicidade de gestos e silêncios. Bibiana e Belonísia vocalizam as histórias
dos demais personagens da trama como Zeca Chapéu Grande, Salustiana,
Donana, Maria Cabocla, Severo e os proprietários da fazenda, e apresentam
esse mundo de contradições e injustiças pelos seus olhares infantis, passando
pelos da juventude abreviada pela maternidade e casamentos, e chegando às
visões da vida adulta. “Todas nós, mulheres do campo, éramos maltratadas pelo
sol e pela seca. Pelo trabalho árduo, pelas necessidades que passávamos, pelas
crianças que paríamos muito cedo(..)”.

Conflitos e conciliações coexistem na vida desses personagens, Zeca Chapéu


Grande, pai das meninas, líder místico, referência de trabalho para as demais
famílias agricultoras da fazenda, é exemplo maior desse paradoxo, conduz os
rituais do Jarê e dos encantados e as práticas de curandeira aprendidos com a
mãe Donana. Vê sua condição de trabalho e de vida na fazenda Água Negra,
assim como a dos demais trabalhadores, com certo fatalismo, mas fica indignado
quando tem a terça parte da produção de sua pequena roça subtraída pelo feitor
da fazenda.
Bibiana, a filha mais velha, também se revolta com tal situação e da humilhação
do pai frente à mulher e demais filhos.

Bibiana, professora formada na cidade, junto com o primo-marido Severo,


começam a organizar os demais trabalhadores de Água Negra, reivindicando o
status de território quilombola para aquelas terras nas quais há décadas
trabalhavam aquelas famílias, mas que não tinham a sua posse. Há, porém, um
custo humano para essa luta pela emancipação da exploração e da servidão,
sendo a terra tingida de vermelho. “Tudo foi se tingindo de vermelho e segui o
rastro do rio de sangue que corria, não se sabia de onde”.

Torto Arado, mais que o título desta obra, representa um instrumento agrícola
arcaico e obsoleto, que simboliza as permanências do passado colonial e as
marcas indeléveis e deletérias da escravidão, fundantes da formação da
sociedade e do Estado Brasileiro, de suas mazelas e desigualdades. “Era um
arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil,
destruída, dilacerada”.

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