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De Cidade de Deus a Nordestina: tratamento fílmico da literatura brasileira no

cinema do Brasil no começo do século XXI


Dirceu Martins Alves
dirceumalvez@gmail.com
Prof. Dr. Adjunto da Universidade Estadual
de Santa Cruz – UESC – Ilhéus – Bahia –
Brasil

A presente comunicação é resultado parcial de uma pesquisa que está sendo desenvolvida
na linha da poética da tradução intersemiótica entre literatura e cinema no Brasil. O
corpus da pesquisa está composto de cinco filmes brasileiros, lançados nos seis primeiros
anos do século XXI: Lavoura arcaica (2001), Sonhos tropicais (2001/2002), Cidade de
Deus (2002), A máquina (2005), e O cheiro do ralo (2006). Coincidentemente, todos os
filmes foram adaptados de romances homônimos, publicados entre o final do século XX
e o começo do século XXI. É interessante revelar como a produção do período traz obras
que trabalham de forma singular a realidade e a ficção. Temas como imigração,
mestiçagem, desigualdade e injustiça social, violência e preconceito racial, presentes na
obras literárias são trabalhados de forma cuidadosa na tradução da sintaxe, a fim de que
possam encontrar equivalência discursiva em planos e contra planos, luz e sombra, em
contraste barroco. A abordagem histórica, desenvolvida em Sonhos tropicais, que é
ambientado no Brasil do século XIX, e os conflitos, também históricos, dos moradores
negros do bairro Cidade de Deus, são narrados com recursos de flashbacks, congelamento
de cenas, e giros panorâmicos de câmeras, como se fossem narradores caminhando em
volta de seus personagens, a fim de escrutar o ambiente para os inserir nos dramas dos
personagens. A máquina, uma fantasia, tem o poder de jogar com o tempo, avançando e
recuando, no melhor estilo das ficções cientificas, apesar de a fictícia cidade de
Nordestina estar no sertão brasileiro, mais próxima de Lavoura arcaica, que da
tecnologia. As obras revelam um Brasil moderno e arcaico ao mesmo tempo, metáfora
atual do pais que André Gide chamou de terra dos contrastes.

Palavras-chave: Literatura Brasileira. Cinema Brasileiro. Realidade. Ficção.


Introdução

A cinematográfica brasileira sofreu uma injeção de ânimo por volta dos anos de 1995,
1996, com a produção de filmes nacionais de longa duração, que marcaram uma nova
época na história do nosso cinema, chamada pela historiografia de “cinema da retomada”.
Contamos já com estudos críticos e acadêmicos que analisam essa produção durante uma
década inteira, de 1995 a 2005. Há nesse processo de produção e de recepção uma série
de veredas que podemos recorrer para ligar os inúmeros vasos comunicantes que vieram
se estabelecendo nos últimos anos. Vou referenciar alguns como forma de ir me
aprofundando no tema do artigo. Um deles, que não foge ao apelo emotivo dos brasileiros,
é o fato de que antes dessa data, eleita como “marco da retomada”, o nosso cinema estava
morto. A produção fílmica (falo do cinema sensível, de arte) estava estagnada havia anos,
ou décadas. O público jovem no Brasil não gostava de filmes nacionais. Não tinham
referências positivas, porque nasceram num momento de queda e estagnação na
realização cinematográfica. Perderam o bom momento do “cinema novo brasileiro”.
Herdaram a produção chamada pornochanchada, um cinema brasileiro, de filmes eróticos
e baratos, beirando o pornográfico, que perdurou durante os anos da década de 1980. E
que se tornou uma referência de cinema nacional para quem está na faixa dos 40 anos de
idade hoje. Outro fator importante para a formação de um imaginário negativo sobre o
cinema nacional é a invasão e o domínio do cinema norte-americano nas principais, ou
na maioria, das salas de cinema do Brasil. E a conjuntura econômica desfavorável para a
realização de filmes nacionais não foi a única barreira. Também contamos com fatores
sócio-políticos como empecilhos. Um deles foi a proibição da importação de
equipamentos de captação de som e imagem para cinema durante o regime de ditadura
militar. A parte sonora dos filmes brasileiros foi a que mais sofreu durante este período.
Muitos dos filmes brasileiros do período militar têm áudio ruim, não por falta de
capacidade técnica dos realizadores, mas pela proibição do governo para a importação de
tecnologia de captação e tratamento de som disponíveis nos mercados estrangeiros. O
cinema da retomada leva o público de volta ao cinema para ver filmes nacionais, é um
motivo de orgulho, não apenas pela boa ficção fílmica que se vê nas telas, mas também
porque é um cinema que luta contra muitas adversidades para se restabelecer.

Interessante seria abordar, dentro desse renascimento do cinema nacional, os dez


primeiros anos do século XXI, período de uma pesquisa maior que estou desenvolvendo
com o auxílio de estudantes interessados em investigar sobre literatura e cinema. Mas por
delimitação de tempo e de espaço, me limitarei aos cinco filmes selecionados, produzidos
a partir da transposição de obras literárias. A escolha do corpus é o primeiro passo da
crítica, no caso, inclui também os cinco romances dos quais se fizeram os filmes. A
seleção não está isenta de arbitrariedade, contudo, obedece a um propósito argumentativo
sobre os significados simbólicos que pretendo estabelecer: com eles, entre eles, e com o
leitor. A relação da literatura com o cinema é antiga e bem conhecida, pelo menos de
todos que se dedicam a estudar o tema, portanto, vou me isentar de fazer essa
historiografia aqui. Entretanto, no Brasil, é fundamental incluir o estudo dos medias para
melhor discutir a produção e a recepção literária. Uma das asseverações mais
emblemáticas nos deu o crítico e professor Antonio Cândido, ao estabelecer um sistema
semiótico entre produção literária, rede de distribuição e público leitor como requisitos
necessários para que um pais tivesse literatura. 1 O Brasil não teria tido literatura, segundo
Cândido, nos seus primórdios porque não contava com essa tríade. Se tínhamos poucos
escritores no pais, poucos editores, e quase nenhum sistema organizado de distribuição
de livros não tínhamos literatura nacional, por este modo de ver. Nessa concepção, em
que a existência da literatura depende também da existência de meios como livros
impressos, resenhas e críticas nos jornais, uma quantidade de críticos atuantes, e outra de
leitores, a nossa experiência literária é comparada de forma quantitativa com a europeia.
As conclusões são tiradas dessa comparação. Logo depois evoluímos para uma
concepção, que embora não seja a única, se tornou hegemônica no pais. A de que os meios
de comunicação audiovisuais como rádio, cinema e televisão chegaram ao Brasil num
momento que ainda não havíamos desenvolvimento o gosto pela leitura, como os
europeus. Estávamos, como latino-americanos, sujeitos à dominação e manipulação dos
medias. Algo explicável pela dialética do subdesenvolvimento. Desse modo, começamos
a pensar sobre a relação da literatura vs. cinema com uma epistemologia iluminista.

Não podemos negar que os meios de comunicação desempenham papeis polifônicos


em relação à literatura nacional. A televisão, por exemplo, faz a mediação de grande
quantidade de obras literárias que se convertem em seriados, telenovelas e filmes todos
os anos. O cinema traduz em linguagens do audiovisual alguns romances, e biografias
nacionais, que depois chegam à TV aberta, fazendo com que tais obras entrem

1
. CANDIDO, Antônio. Ver A formação da literatura brasileira (momentos Decisivos), no qual o crítico
estabelece as comparações e argumenta sobre as obras que formam a literatura brasileira.
definitivamente no domínio do imaginário coletivo nacional. Contudo, não há como negar
uma acusação que se faz sobre o fato de a literatura no Brasil ser produto de muito
marketing, em várias instâncias. Grandes editoras editam enorme quantidade de nomes
importantes, como artistas, músicos, cantores, jornalistas, políticos, celebridades, que
produzem algo que sequer poderia ser chamado de literatura. Mas que recebem
publicidade como literatura e chegam ao grande público nas livrarias. Constata-se
também uma tendência na literatura brasileira, o lançamento de filmes, resultado da
transposição para o cinema de obras literárias que o público nem chegou ainda a conhecer
direito enquanto livro. É o caso dos livros O cheiro do ralo, e A máquina, primeiros
romances de seus respectivos autores, que analisamos.

Desenvolvimento

Seguirei a ordem cronológica de lançamento dos filmes, porque a dos livros é mais
arbitrária, apesar de todos pertencerem ao período que compreende o final do século XX
e começo do XXI. Lavoura arcaica, filme lançado em 2001, foi adaptado do romance
homônimo, lançado em 1975, o mais velho de todos os cinco selecionados. De autoria de
Raduan Nassar, um brasileiro filho de imigrantes libaneses, faz da sua experiência de
emigrado matéria para a ficção literária. Numa fazenda localizada no interior do Estado
de São Paulo, a família brasileira, mestiça, vive sobre a régia do patriarcado. Na cabeceira
da mesa o pai, na outra ponta a mãe, com os filhos sentados por ordem cronológica de
idade, fazem as refeições, enquanto o patriarca exerce seu poder de pai de família. Todos
precisam repetir e acreditar que são felizes e vivem em harmonia. Em tese, as severas leis
de comportamento social trazidas do Líbano funcionam bem nessa transposição para o
ambiente tropical. O modo de vida na fazendo é tão arcaico como as leis e os códigos do
Oriente. Mas André, um dos filhos menores, deu para ser a ovelha negra da família. Entra
em contato sensual com as folhas e os humos da terra. Ademais de sensível, o menino
sofre de epilepsia. A doença funciona como uma metáfora de um membro desintegrador
do corpo saudável, que deveria ser a família. Não bastasse as ameaças físicas e espirituais
que este filho representa para a família, vem também a degradação moral, quando ele já
passado a puberdade se apaixona pela irmã, e com ela vive uma situação de incesto.
Sentindo-se frágil e deprimido diante da opressão familiar, o jovem decide fugir de casa.
Outro golpe para a família que se diz perfeita, onde todos se amam. Como pode algum
deles fugir daquele ambiente de felicidade. Temos, então, o primeiro deslocamento da
cenário da fazenda, André vai viver num quarto sujo de uma pensão, próximo a uma
estação de trem de uma cidadezinha. O irmão mais velho é encarregado de viajar para
trazer de volta o irmão fugitivo, que não é o caçula, o qual regressa como se representasse
a parábola invertida do filho pródigo. Essa leitura invertida do texto bíblico, trabalhada
no romance, conecta a obra com uma tradição da literatura brasileira que é a paródia.
Temos a visão do filho que regressa:

“...e quanto mais engrossam a casca, mais se torturam com o peso da carapaça,
pensam que estão em segurança mas se consomem de medo, escondem-se dos
outros sem saber que atrofiam os próprios olhos, fazem-se prisioneiros de si
mesmos e nem sequer suspeitam, trazem na mão a chave mas se esquecem que
ela abre, e, obsessivos, afligem-se com seus problemas pessoais sem chegar à
cura, pois recusam o remédio”. (NASSAR, 2015, p. 145). (Grifos do autor).

Regressado, outra vez André se insere nos ambientes da fazenda e da família, que nunca
serão visto por ele da mesma forma que seus familiares. As palavras do pai ao abraçá-lo
são representativas:

– Abençoado o dia da tua volta! Nossa casa agonizava, meu filho, mas agora já
se enche de novo de alegria! ((NASSAR, 2015, p. 145).

A direção do filme é de Luiz Fernando Carvalho, que embora estivesse realizando seu
primeiro filme de longa-metragem, contava com a experiência audiovisual como diretor
de telenovelas. Walter Carvalho, experiente fotografo de cinema e televisão, deu à obra
um valor simbólico, ao apostar numa fotografia barroca, contraste entre luz e sobra, criou
algo condizente com os contrastes entre arcaísmo e modernidade que vivemos na nossa
cultura, que bem retrata o romance. As ações do filme não seguem toda a ordem
cronológica do livro. São inseridos vários flashbacks, nos quais o personagem, narrador,
volta às suas lembranças de infância. E isso é explorado com performances corporais, nas
quais o ator mirim se relaciona com as folhas secas, com a relva, e com todo o ambiente
de fazenda. Apesar de predominar uma linha narrativa que vai alterando as sequências
entre as fases do personagem adulto e criança, interpretado por dois autores, não há
radicalização narrativa porque foi mantido o foco narrativo de primeiro pessoa do livro,
que encontrou seu equivalente na narração em voz over, para o audiovisual. Nesse
aspecto, podemos ver como se opera o processo de tradução interssemiótica.2

O filme Sonhos tropicais (2001/2002), proponho que seja visto em comparação com
o filme Cidade de Deus (2002). Lançados quase que simultaneamente, um recebeu
diversas indicações ao Oscar, e ficou conhecido no mundo como City of God, o outro,
contou com um pequeno público, ligado ao circuito dos cinemas de arte, mostras e
festivais. Em pesquisa recente descobri que grande parte dos brasileiros não apenas não
viram o filme Sonhos tropicais, como desconhecem sua existência. Interessante notar que
ambos os filmes têm como cenário a cidade do Rio de Janeiro, e tratam de problemas
sociais como desgoverno, falta de garantias aos direitos de cidadania para todos, racismo,
desigualdade social, e violência, entre outros. A primeira diferença é que Sonhos
tropicais, transposto do romance histórico de Moacyr Scliar, publicado em 1992, retrata
o Rio de Janeiro e o Brasil do final do século XIX e comecinho do século XX, enquanto
Cidade de Deus, adaptado do romance de Paulo Lins, publicado em 1997, retrata
exatamente as favelas no final do século XX, situação muito próxima do que temos hoje,
quinze anos depois.

Em Sonhos tropicais Moacyr Scliar trabalhou a realidade brasileira com um


tratamento polifônico. Pesquisou os dados da vida do sanitarista Oswaldo Cruz, e sua luta
para criar a vacina para todos nos primeiros governos da República. Mesclou a vida do
médico e sanitarista com a dos políticos, sindicalistas, e a vida de prostitutas de bordel.
Na figura da personagem Esther (Polaquinha), mostrou como as moças de família judia,
vinham da Polônia até o Rio de Janeiro para casar com homens jovens e trabalhadores.
Casamentos acertados através de cartas por seus pais. Mas ao chegarem no Rio seus
destinos eram os bordeis de prostituição, de onde não conseguiam fugir, pois os
contraventores contavam com o apoio das autoridades policiais. Moacyr Scliar trabalha
com uma mescla de gêneros como biografia, história, romance, memórias, autobiografia
etc.3 Mas como colocar Oswaldo Cruz dentro desse ambiente carioca de convulsão social,
de lutas entre negros, pobres favelados, e elite branca e autoritária? Um ambiente assolado
pela febre amarela, e depois pela chegada da peste, varíola. Que resultou no episódio

2
. Para o conceito de “tradução intersemiótica”, nos valemos de PLAZA, Júlio, para quem o conceito
“consiste na tradução de um sistema de linguagem para outro, como a transposição de uma peça de
teatro ou um romance para um filme”, por exemplo.
3
. MACHADO, Ivete Bellomo, na sua Dissertação de Mestrado: Entre o real e o fictício, discute essas
questões da confluência dos tempos, história e ficção, e mescla de gêneros em Sonhos tropicais.
histórico da “Revolta da vacina”. A solução foi colocar um médico norte-americano que
vai narrando a vida e os feitos de Oswaldo Cruz, enquanto espera a chegada deste. No
filme não há tanto a necessidade de um narrador para inserir Oswaldo Cruz no cenário.
Um ator vive o personagem, que vai se relacionar diretamente com o governo, com o
povo, com os militantes do sindicato da causa operaria, e a pesquisa para criação da vacina
que deverá combater as epidemias. O combate que Oswaldo Cruz trava contra a peste
bubônica em Santos, por exemplo, aconteceu no final do século XIX, mas foi mesclado
com os episódios do começo do século XX. Há um trabalho de mescla com o tempo. Um
grupo de senhores esnobes da alta sociedade, bebendo num bar, vão comentando e
criticando os acontecimentos do país. Suas sequências aparecem em montagem paralela
às de outros acontecimentos. A montagem paralela no caso serve como recurso narrativo
fílmico para esclarecer ou encadear os pontos da trama que são mais importantes. A
mescla é o principal tratamento fílmico desse romance que brinca com a história, a
biografia, a autobiografia etc.4

Enquanto Sonhos tropicais tem uma direção de arte, figurino, e maneira de falar que
em tudo tenta retratar o século XIX, em Cidade de Deus já encontramos no próprio
romance de Paulo Lins uma linguagem despojada, de literatura beirando a oralidade,
inclusive com muitas gírias, que serão estilizadas no filme. Haja vista que o modo de falar
português é uma marca e um valor do filme. Há um narrador em primeira pessoa que vai
narrando episódios em sua volta, pequenas histórias nas quais ele está inserido
diretamente como personagem ativa ou como observador. O menino que sonha em ter
uma máquina fotográfica, ganhar prêmios e sair da comunidade violenta na qual vive sem
perspectivas.

4
. Autobiografia porque o autor Moacyr Scliar era médico, como o seu personagem Oswaldo Cruz. Outro
fator autobiografo é a inserção de questões do judaísmo presente nesta, e em várias outras obras do
autor, interessado por ser filho de pais judeus. Ver a esse respeito a dissertação de MACHADO, referência
citada na nota anterior.
Frame do filme Cidade de Deus.

A máquina foi o primeiro romance de Adriana Falcão. Logo virou peça de teatro,
adaptada por João Falcão, marido da autora. A parceria do casal continuou logo depois
com a adaptação para o cinema, na direção do próprio João Falcão. Que Adriana Falcão
teve seu primeiro romance promovido pelo cinema, é evidente. O livro está esgotado nas
livrarias. Entretanto, a autora tinha experiência em escrever para a TV, foi uma das
autoras de A grande família, seriado de grande êxito na TV aberta do Brasil. O romance
tem um narrador de primeira pessoa, Antônio, que já velho, num manicômio, fala dele
mesmo em terceira pessoa, para narrar os fotos que os jovens Antônio e Karina viveram
na cidade fictícia chamada Nordestina. Há uma mescla de fantástico, aventura, história
de amor e ficção científica neste romance. Também há uma crítica social aos formatos
dos filmes e aos programas sensacionalista da televisão. Como a cidade de Nordestina
está localizada no sertão do Nordeste, lugar que por costume não acontece nada, todos os
habitantes decidem partir da cidade, em dado momento da vida. Partir também é sonho
de Karina. Para não ver Karina partir, Antônio decide viajar e trazer o mundo para
Nordestina. A adaptação para o cinema contou com certo grau de experimentalismo. O
cenário é feito em miniaturas, que se intercalam com sequências de casas verdadeiras,
onde predominam as cenas feitas em estúdios. Em determinadas cenas a atriz anda nas
ruas, e seu corpo é maior que as casas.
Frame do filme A máquina.

A fotografia contou com a habilidade de Walter Carvalho, o mesmo que fotografou o


filme Lavoura Arcaica. Mas em A máquina predomina uma luz artificial, que compõem
belas imitações do céu e da lua. Como artificio de iluminação fílmica é usada a noite
americana (técnica de filmar de dia para fingir que é de noite). Os realizadores tentam
esconder o truque do uso da noite americana para melhor convencimento do espectador,
geralmente. Isso pode ser um projeto de fotografia para um filme. Mas em A máquina
fizeram questão de deixar as evidências da técnica utilizada como um jogo com o
espectador.5 No caso é um acerto, porque essa fotografia artificial e bonita traduz
semióticamente a atmosfera do faz de conta que o livro propõe com os recursos do
discurso verbal, bem conduzido pela escritora, irônica e bem humorada. O primeiro
parágrafo do livro já anuncia o que virá:

Lá, de onde Antônio vem é longe que só a gota. Longe que só a gota pra trás, o
que é muito mais longe que só a gota do que longe que só a gota pros lados. Pois
vir de longe pros lados é vir de longe no espaço, lonjura besta que qualquer bicho
alado derrota. Já vir pra trás é vir de longe no tempo, lonjura que pra ficar
desimpossível demora. (FALCÃO, 2005, p. 07). (Grifos da autora).

5
. JESUS, Ronald de, discute com detalhes esses aspectos da fotografia de A máquina, e outros filmes do
Sertão na retomada, em sua dissertação de mestrado Do choque lumínico ao fiat lux: luzes e sombras no
Sertão do Cinema Brasileiro, 2015.
O cheiro do ralo, livro, tem uma relação similar com os meios de comunicação
audiovisuais. É romance de estreia do cartunista Lourenço Mutarelli, publicado
em 2002 pela editora Devir. Com o sucesso do filme o livro foi relançado em 2011 pela
Companhia da Letras, uma das mais importantes editoras do país. Mutarelli, autor de
primeiro romance, tinha e tem muitas relações com artistas e realizadores, ganhou nove
prêmios como cartunista. Trouxe para o romance um estilo de frases curtas, alinhadas em
colunas verticais como se fossem versos. Em muitas passagens a escrita tem um estilo
descritivo das ações, como os roteiros de cinema:

Ele entra.
Traz um olho de vidro nas mãos. Esse olho já viu de tudo.
Ele diz. Esse olho tem história. De tudo, ele não viu. Penso eu. Não viu a bunda,
isso ele não viu. Pego o olho. Analiso. É incrível. É perfeito. Injetado. Quero o
olho pra mim. A bunda e o olho. Lembro daquela capa de disco. Acho que era do
Tom Zé. A bunda e o olho.
O olho do cu.
Chuto.
Quero o olho para mim. Será o meu amuleto. (MUTARELLI, 2011, p. 36)
O personagem tem um trauma, haver perdido o pai na guerra antes de nascer, o que
não sabemos se é verdade ou paranoia. Tem sua mesa de escritório num galpão cheio de
coisas entulhadas, e seu negócio é comprar objetos usados. Compra o olho de vidro para
ir compondo um esqueleto, quer remontar seu pai, em forma de Frankenstein. Atrás dele
tem uma latrina, de onde um ralo exala cheiro de merda. Esse cheiro de ralo funciona bem
como uma metáfora da decadência moral e física que vive o personagem. Politicamente
incorreto, a obra mostra um homem em decrepitude, caminhando até a morte como
solução final de roteiro.
A simplicidade do romance foi traduzida para o cinema num projeto de audiovisual
que buscou ser coerente, também simples. Foram usadas poucas locações, quase todas as
sequências são internas. Para marcar a rotina do personagem usaram uma fachada de um
prédio comercial, e uma câmera mostrava o personagem chegando e levantando a porta.
Cortava, e outro plano já exibia o personagem atendendo alguém que vinha vender
alguma quinquilharia. Simplicidade e rusticidade também observamos nos movimentos
de câmera, onde predominou os conceitos de câmera no ombro, câmera na mão. Isso
oferece dinamismo e flutuação de movimentos para a lógica das imagens. Impacta na
recepção do espectador num sentido contrário ao das grandes produções, aproximando o
conceito fílmico do cinema de autor. Uma obra de arte que fala da condição humana. Em
outro dado momento o personagem compra uma perna de manequim, de plástico, diz que
vai compor o seu pai, juntamente com o olho que havia comprado antes. Como em
nenhum momento vemos o personagem vender nada do que comprou ou tem acumulado
em seu galpão, desconfiamos que ele tem um projeto, alimentado por uma psicopatologia:
a conquista de objetos signicos, que possam representar o pai ausente de forma
ontológica. A obra deixa, assim, muito espaço para as abordagens filosóficas, ou
psicológicas.

Considerações finais

A título de considerações finais vou fechar alguns tópicos, deixando outros abertos
para buscar respostas futuras. De todos os filmes analisados Sonhos tropicais, parece ser
o que menos foi visto pelo grande público. É justamente o filme adaptado do escritor mais
reconhecido por sua produção entre os cinco elencados, Moacyr Scliar, quem escreveu
dezenas de livros, crônicas, contos, romances, ganhou três prêmios Jabutis, maior prêmio
da literatura brasileira. Um homem de letras. Raduan Nassar, de Lavoura arcaica, vem
ganhando vários prêmios literários também, ainda que seja um autor bissexto. O que
escreve tem consistência literária. O filme, adaptado de seu livro, teve boa acolhida da
crítica internacional, que o batizou como “obra prima do barroco brasileiro”. Paulo Lins,
autor de Cidade de Deus, é hoje um escritor que detém uma obra consistente também.
Uma das primeiras perguntas que me fiz foi, por que Cidade de Deus foi mais visto que
Sonhos tropicais, se ambos se referem ao mesmo espaço, e tratam de problemas
parecidos? Com mais tempo, conclui que seria injusto comparar a recepção de Cidade de
Deus com qualquer um dos filmes elencados. Talvez com qualquer filme brasileiro no
tocante ao de êxito comercial.
Cidade de Deus é um filme que trata da violência, o crime contra a pessoa, o tráfico
de drogas nas favelas do Rio de Janeiro, com uma linguagem própria do audiovisual.
Tudo é estilizado, desde a roupa, penteados, modo de andar, de falar, até a forma de
empunhar as armas. Não que a ficção não esteja amparada na realidade, mas o principal
fator é a violência das favelas exibida e vista como espetáculo da cultura de massa, dos
chamados filmes de ação, com lutas de bandidos contra bandidos, e bandidos contra a
polícia. É um filme que olha para a frente, basta ver as produções que ele inspirou como
Tropa de Elite, Cidade dos homens, entre outros. Sonhos tropicais é um filme para quem
tem um gosto intelectual, interessado em olhar para trás, para o ritmo do final do século
XIX e começo do XX. Quem assiste aos dois filmes identifica a origem de muitos
problemas sociais recentes do Brasil.
Se Lavoura arcaica é o filme mais complexo dos cinco analisados, devemos isso às
duas vias de acesso que ele nos proporciona, uma ao mundo psicológico, interior do
personagem principal, outra ao externo, o convívio desse personagem com os outros
personagens, e com a natureza. Natureza essa negada no mundo urbano de O cheiro do
ralo, e mais ainda no sertão artificial de A máquina, na fictícia Nordestina.
Na literatura brasileira desse começo de século XX observamos uma retomada de
duas correntes latino-americanas: a literatura realista e a fantástica. E o tratamento fílmico
que o cinema vem dando para essa produção literária, na sua tradução intersemiótica,
pode acentuar algumas das características dessas correntes, ou até mesmo mesclá-las. Isso
é algo que ainda precisamos observar melhor. O que podemos afirmar com toda certeza
é que o cinema vem fazendo a mediação entre o público e a literatura, como podemos
observar no percurso que traçamos do neorrealista Cidade de Deus, à fantástica
Nordestina. A máquina pode ser vista como uma paródia de ficção cientifica, no meio do
Nordeste. A arte se comunica com a realidade pela simbiose, e nessa visada ela nos revela
um Brasil, terra de contrastes. Os meios nem sempre têm revelado bons livros ao público,
pela aposta comercial que as editoras fazem em pessoas que já têm um nome importante,
lançadas como novos autores. Mas no caso desses cinco romances o cinema fez a
mediação de cinco obras significativas esteticamente, e o púbico que se interessou por
elas através do audiovisual, inclusive com a boa surpresa de dois romances de estreia de
seus autores. Por fim, o cinema da retomada tem um dos pés que não é de barro, está bem
plantado na literatura nacional. Entre literatura e cinema, a cultura brasileira.

Referências literárias

BAKHTIN, Mikhail. Plurilinguismo no romance. Questões de Literatura e Estética.


São Paulo: Unesp, 1998.
BASTIDES, Roger. Brasil, terra de contrastes. Rio de Janeiro – São Paulo: Difel, s/d.
CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. (Momentos Decisivos). São
Paulo: Editara Martins, 1971.
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: teoria e prática. São Paulo: Summus,
2009.
FALCÃO, Adriana. A máquina. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
JESUS, Ronald Souza de. Do choque lumínico ao fiat lux: luzes e sombras no Sertão
do Cinema Brasileiro. Brasília: FAC – UNB, 2015. (Dissertação de Mestrado).
Disponível em <http://www.repositorio.unb.br/handle/10482/19633>.
LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MACHADO. Ivete Bellomo. Entre o real e o fictício: elementos narrativos em
Sonhos tropicais, de Moacyr Scliar. Pelotas: Universidade Católica de Pelotas, 1998.
(Dissertação de Mestrado). Disponível em:
<http://tede.ucpel.edu.br:8080/jspui/bitstream/tede/433/1/ivete.pdf>
MUTARELLI, Lourenço. O cheiro do ralo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
PARANAGUÁ, Paulo. Cinema na América Latina: longe de Deus e perto de
Hollywood. Porto Alegre: L&PM, 1985.
PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. 3ª reimp. São Paulo: Perspectiva, 1987.
SCLIAR, Moacyr. Sonhos tropicais. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Filmografia
O cheiro do ralo. DVD. 2006.
A máquina. 2005. Suporte digital disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=3esLsA5Nm7A
Cidade de Deus. DVD. 2002.
Sonhos tropicais. DVD. 2001/2002.
Lavoura arcaica. DVD. 2001.

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