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UPE - UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO

ESPECIALIZAÇÃO EM ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA E SUAS LITERATURAS


ANÁLISE DO DISCURSO
PROFESSOR: PETERSON MARTINS ALVES ARAÚJO
ALUNO: LEONARDO BEZERRA LEMOS

RESENHA DO LIVRO INFANTIL “O SACI” DE MONTEIRO LOBATO

REFERÊNCIAS
LOBATO, Monteiro - O SACI. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941. Sétima
edição. Biblioteca Pedagogica Brasileira Literatura Brasileira Serie 1ª Vol. 4.

A obra de Monteiro Lobato é uma referência para o mundo quando o assunto é


literatura infantojuvenil no Brasil. Lobato, que foi um exímio nascionalista - entusiasta da
exploração de petróleo pelo país em detrimento às multinacionais e do desenvolvimento da
indústria nacional - , imprimiu tanto nas sua atuação profissional como na literatura a
valorização do “produto nacional”. Nas obras do escritor vemos as figuras folclóricas típicas
de nosso país como o Saci Pererê, a Iara, a Mula sem Cabeça, o Curupira; e através da
abrangência de sua obra as várias gerações de brasileiros vem tendo acesso a essas figuras, o
que perpetua nossa cultura popular. O Saci, em especial, ocupa um papel de destaque noa
série de livros “Sítio do Pica Pau Amarelo”, principal êxito de Lobato, tendo esta figura
folclórica uma edição só para si, lançada em 1921, e que será abordada na resenha a seguir
sob a ótica da Análise do Discurso: como o Brasil efervescente da década de 1920, que
construía sua “identidade nacional” reagia a uma figura do folclore brasileiro, fruto da cultura
oral popular, como protagonista de um livro? Ainda mais essa figura sendo negra? Como
terão reagido as elites? E os progressistas? E qual a relação do racismo com as comunidade
negras nas obras do autor?
Ao longo das mais de 100 páginas devidamenre ilustradas - na sétima edição, objeto
de análise desta resenha, os desenhos são assinados por J. U. Campos - , o leitor é convidado a
um delicioso passeio pelo Brasil brejeiro que inspira a maioria das obras do autor: matas
bucólicas, aventuras e brincadeiras infantis, muitos contos orais e folclore brasileiro como
elemento de suas narrativas. Há também o recorte do Brasil ainda recém saído do mal que foi
a escravidão: quando a obra “O Saci” foi lançada, a abolição da escravatura no país tinha
apenas 33 anos de existência. Pela ótica da Análise do Dicurso não é difícil deduzir que a
mentalidade de Lobato, um homem branco vindo de família também branca e de certa posse
financeira, carregaria consigo uma imagem do povo negro ainda deturpada e preconceituosa,
o que é facilmente atestado ao longo de suas obras, sendo inclusive objeto de ação judicial
contemporânea no Supremo Tribunal de Justiça, quando o Instituto de Advocacia Racial e
Ambiental e do pesquisador de gestão educacional Antônio Gomes da Costa Neto concluíram
que era preciso que o livro “Caçadas de Pedrinho” fosse retirado das salas de aula, enquando
o Ministério da Educação apenas sugeria que uma nota técnica acompanhasse a edição
orientando o professor a ressaltar a problemática do racismo e o contexto histórico em que foi
escrita a obra. Eis os itens racistas:

“Publicado em 1933, "Caçadas de Pedrinho" (...) tem trechos que justificariam a


conclusão de racismo estão alguns em que Tia Nastácia é chamada de negra. Outra parte
diz: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca
de carvão". Em relação aos animais, um exemplo mencionado é: "Não é à toa que os
macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens". Outro é: “Não vai escapar
ninguém — nem Tia Nastácia, que tem carne preta”.

Outro ponto ainda na temática racista, esta observada por este autor, diz respeito à
associação do Saci ao “diabo”, figura cristã que se opõe a todas as ideias de Jesus Cristo ou do
que seria bom. Além da descrição ao longo dos diálogos associando a figura folcórica ao
“diabo”, o próprio desenho da capa reforça também essa perceção, já que traz consigo o
elemento sobrancelha arqueada num ângulo que remete a chifres.
Observe a capa:

Ao mesmo tempo que o trabalho de Lobato traz uma importante contribuição ao


fortalecimento da cultura oral brasileira e suas figuras folclóricas, levando essas narrativas a
cada vez mais gente, o seu “regionalismo” não foi suficiente para colocá-lo lado a lado com
os modernistas da época que lutavam pelo fortalecimento de uma cultura genuinamente
brasileira. Lobato, inclusive, foi crítico a uma exposição de Anita Malfatti em 1917 que o
colocou em oposição à trupe que mais tarde organizaria a Semana de Arte Moderna de 1922.
“Opostos” à época, hoje apenas versões diferentes de uma mesma arte genuinamente
brasileira. Enquanto Lobato apontava que os trabalhos dos principais expoentes que
compuseram a Semana de 1922 não eram genuinamente brasileiras porque bebiam das
inspirações da europa, o próprio autor influenciou-se por autores estrangeiros. Ou seja: à
época se procurava uma “arte” genuinamente brasileira mas ambos os casos, com as
influências que receberam e à luz da Análise do Discurso, não produziram uma cultura
“pura”, mas nem por isso menos brasileira. Veja a falta que a Análise do Discurso faz nesse
momento histórico, já que uma análise nesta linha poderia “apaziguar” os ânimos.
Ao mesmo tempo que a elite intelectual buscava essa “identidade nacional”, ver nas
pratileiras das livrarias e bibliotecas obras estrangeiras dividir espaço com Saci, com os
“causos” de nossos sertões e cenários brasileiros seria um alento para essa busca. Mas como
ja dito anteriormente, a própria perpetuação dessas lendas e histórias nacionais de geração em
geração é outro grande ganho do trabalho de Lobato. Uma pena, porém, que a luta antiracista
não seja uma tônica em sua obra: a cultura nacional e nossos cenários sim estão bem
representados na obra, mas a população negra ainda não, tratada nos livros como
subservientes, ainda que exaltados seus talentos. Como ser antiracista numa época em que
esse termo talvez não existisse? Apesar do termo ser muito mais presente
contemporaneamente, o fato dele não ser comum à época não exime o autor de poder ter
maior “cuidado” com a figura do negro em sua obra. Mas, como bem falamos na Análise do
Discurso, a percepção de mundo naquele momento e sua realidade socioeconômica (homem
branco com condições de vida) não deram ao autor a oportunidade de ser um aliado na luta
pela valorização do homem negro, mesmo que em sua obra houvesse alguma valorização do
brasileiro e nossa cultura.
Por este motivo hoje o autor pode até ser “cancelado”, mas sob a ótiva da Análise do
Discurso sua obra pode ser entendida de maneira mais leve quando observada as condições
histórias da época de sua criação, bem como se a Análise do Discurso fosse mais valorizada
na Educação Nacional, naturalmente o debate sobre o racismo na obra de Lobato seria
analisada como esta oportunidade de justamente debater este mal e pensar sobre como mesmo
depois de décadas da abolição da escravatura a população negra ainda não era encarada como
parte da cultura nacional, devendo ser enaltecida e valorizada.

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