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Monteiro Lobato: rasgado, queimado, cancelado e imprescindível


Escritor, já muito atacado no passado sob pretexto de veicular ideias evolucionistas e socialistas, tem mais recentemente sido
acusado de racismo. Mas simplesmente banir seus textos das salas de aula e espaços de discussão é renunciar a debater uma
obra prenhe de criatividade, inventividade e criticidade.

Thiago Alves Valente

E Lobato continua “causando”…

Com mais de 70 anos já transcorridos desde a morte de seu criador, os personagens infantis de Monteiro Lobato circulam por leituras
polêmicas e atuais dentro e fora da escola. Considerado um divisor de águas na produção literária para crianças, Lobato legou à posteridade
textos que, em diferentes situações, suscitaram seu intenso reconhecimento tanto por parte do público leitor, quanto da crítica
especializada. Da mesma forma, porém, a polêmica se tornou elemento indissociável desse reconhecimento, o que chega, junto com a
ininterrupta edição de seus textos infantis, aos leitores de hoje.

Sobre seus livros para crianças, há pouco mais de uma década, em capítulo intitulado “Monteiro Lobato, um clássico para crianças”,
respondíamos à questão: O que há de tão atrativo no Sítio do Picapau Amarelo? Ou, em outras palavras, por que Pedrinho, Narizinho e
Emília, principalmente Emília, continuam tão presentes no imaginário infantil brasileiro? Ainda de outro modo: como Lobato fez esta mágica
que, embora muitas vezes explicada nos mínimos detalhes pelos mais “maduros”, continua encantando os “menos experientes”?
Indagações como essas não têm faltado aos pesquisadores e demais leitores especializados ao longo dos anos. Perguntas impossíveis de
serem respondidas em um só texto ou mesmo em muitos outros trabalhos que vêm tentando, no mínimo, tangenciar as mil e uma
questões instauradas pela obra de Lobato.

Um escritor publicista
A partir dos anos 1980, foram consolidados estudos sistemáticos sobre a literatura infantil e juvenil brasileira. Nesse contexto, a figura de
Lobato se mostra central, trazendo como foco desses trabalhos a discussão de aspectos temáticos relevantes, como aponta Marisa Lajolo em
artigo de 1988, “A figura do negro em Monteiro Lobato”, ao abordar Histórias de Tia Nastácia:

As contradições vão se acirrando ao longo do texto lobatiano, que, ao contrário de seus pares, não se limita a
reproduzir, em forma de antologia asséptica, as histórias que Tia Nastácia conta. Lobato reproduz a história
encenando a situação de narração e recepção, pondo, pois, em confronto o mundo da cultura negra do
qual, no caso, Tia Nastácia é legítima porta-voz, e o mundo da modernidade branca, à qual dão voz tanto as
crianças como a própria Dona Benta, também ela ouvinte de Tia Nastácia e também ela insatisfeita com as
histórias que ouve (…).

Um artigo como esse mostra, ao leitor de hoje, que os estudos sistemáticos sobre a obra de Monteiro Lobato têm sido realizados de forma
séria, sem ceder a simples opiniões ou questão de gosto. Por isso mesmo, muitos temas que ocupam o centro de polêmicas em diferentes
ambientes sociais ou veículos de comunicação nunca foram desconhecidos daqueles que estudam a obra do escritor.

Assim, em texto mais recente, intitulado “Provocações à longeva Botocúndia: Monteiro Lobato e Urupês”, de 2018, publicado em número da
revista Leitura em revista em que se comemorava uma efeméride literária – 70 anos sem Lobato, destacávamos a verve crítica lobatiana.
Lembramos, então, que isso foi  um dos aspectos que chamou a atenção de José Guilherme Merquior ao atribuir a Lobato a identidade de
“publicista” – “um escritor que discute problemas de interesse público, de interesse coletivo”. Acrescenta o autor, ainda, que é esse o perfil
que poderíamos relacionar a certo tipo de jornalismo engajado que “não só discute temas de evidente interesse coletivo como o faz dentro
de uma linguagem que sistematicamente aspira a uma comunicação com o grande público”.   

Amante de boas brigas


A exposição decorrente desta atividade, na qual Lobato via oportunidade para divulgar seus livros, levaria a uma visibilidade cotidiana ou
mesmo à imagem pública de alguém que se colocava disponível ao debate, à discussão, à divergência. A partir dos jornais de sua época,
Lobato lançaria questionamentos e reflexões contundentes, provocativas, na expectativa de influenciar ações em seu contexto social. Como
aponta Sueli Cassal, o envolvimento de Lobato com grandes causas era movido por um desejo utópico de uma nação desenvolvida, muita
próxima da situação econômica dos Estados Unidos, o que seria possível mediante a valorização do conhecimento científico.

“Não deixaria por menos uma boa briga”, poderia ser uma expressão para definir Lobato. “Boas brigas” foram as campanhas por
necessidades básicas dos brasileiros, como a do saneamento, de 1918, em que acompanhou médicos sanitaristas, colocando-se a serviço da
denúncia em uma séria de matérias sobre moléstias (verminoses, na maioria) que atingiam a população paulista de modo vergonhoso. Seu
empenho como adido comercial nos anos 1930, para dar ferro ao Brasil, isto é, para incentivar a produção nacional, bem como sua ação tanto
como publicista quanto empresário para desenvolver a exploração do petróleo, se refletiam em artigos e livros. A obra infantil não deixaria,
evidentemente, de refletir essas experiências, algumas posteriores, outras concomitantes a atividades de editor, empresário, publicista.

O leitor infantil surge, então, como um destinatário de suas expectativas – aliás, como em todo texto, na obra infantil é evidente que se
projeta uma ideia de leitor. Um suposto leitor neutro, raso, manipulável não estava na mira dos livros de Lobato. Ao não subestimar seu
destinatário criança, o escritor convidava esse leitor infantil a pensar o mundo ao seu redor por meio de um trabalho inventivo e consciente
com o texto literário. Os rompantes de contrariedade de diferentes grupos em diferentes momentos iriam atestar, ainda que de modo
inusitado, a relevância daquele labor literário ao longo do tempo e das gerações.

Darwinismo e socialismo
Nos anos 1950, uma obra, em particular, se tornaria paradigmática desse tipo de abordagem polêmica e acusatória, realizando uma
interpretação bibliográfica de Lobato cujo título encerra, por si só, um entendimento notoriamente avesso para com as lutas por ele travadas
no campo econômico: A literatura infantil de Monteiro Lobato ou Comunismo para Crianças, do Padre Sales Brasil.

O autor projeta sobre a obra infantil temas que, de longe, estariam no centro da proposta lobatiana de formação de leitores, como é o caso
da ausência de conteúdos religiosos propensos a reafirmar a identidade católica brasileira. Mais do que as ausências, o autor do estudo
busca pistas em livros como A chave do tamanho, de 1942, sobre ideologias danosas à moral das crianças. É dessa forma que entende a
miniaturização dos personagens como a extinção de classes sociais, isto é, em A chave do tamanho haveria uma propaganda dos benefícios
de uma sociedade comunista: “é o seguinte: quando todos os homens chegarem ao mesmo tamanho (nivelamento das classes sociais),
então não haverá sobre a terra nem injustiça nem certos preconceitos”.

Capa de A literatura infantil de Monteiro Lobato,


obra crítica dos anos 1950

Ao lembrarmos do texto do padre Sales Brasil, percebemos que a fantasia, a inteligência e a criticidade são ignoradas como excepcionais
qualidades da obra de Lobato e rebaixadas segundo uma inegável visão obscurantista.  Em outro trecho, outra denúncia: “Trata-se,
evidentemente, da luta pela vida, segundo Darwin, aplicada ao campo sociológico pela teoria da seleção natural, de Spencer, ambas
aproveitadas pela filosofia marxista-leninista e feitas balinhas de doce na literatura infantil de Monteiro Lobato”.
Aos olhos de hoje, a obra do padre Sales Brasil pode parecer um brandir de armas desnecessário, exagerado, até mesmo risível para muitos.
Entretanto, a fórmula do “cancelamento” dos anos 1950 mostra-se ainda presente nas primeiras décadas do século 21, agora reportando-se à
questão do racismo, que é pauta fundamental e premente, mas que tem sido associada a Lobato, na maioria das vezes, de forma ligeira,
rasa, equivocada.

No centro dos debates, tivemos o conto “Negrinha” e a obra Caçadas de Pedrinho, a partir de 2010, como objeto de representação junto ao
Conselho Nacional de Educação (CNE) e, também, à Controladoria Geral da União (CGU). O questionamento se debruçava sobre expressões
que atentariam contra um item do edital do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), qual seja, a presença de estereótipos ou
discriminação nas obras adquiridas pelo programa.

Entre propostas de inserção de notas de rodapé ou mesmo refacção das narrativas, a intensidade dos debates atestou a complexidade do
tema, convidando aqueles dedicados aos estudos sobre a obra lobatiana a se manifestarem. Como comentou Marisa Lajolo – em
manifestação pública por meio de um artigo intitulado “Quem paga a música escolhe a dança?”, de 2010 – vivenciar debates sobre a
literatura e a formação dos leitores na escola equivalia a um reconhecimento público sobre o assunto, bem como da própria obra: “Caçadas
de Pedrinho, de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso”.

Acusações de racismo e debate


O debate, porém, nem sempre tem se dado em campos mais profícuos de ideias, conceitos e ideologias. Ao avocar os escritos lobatianos em
artigo publicado na Folha de S. Paulo, em janeiro de 2021, Marcelo Coelho defendeu que “Pode ser chato saber disso, mas Monteiro Lobato
era de um racismo delirante”, reeditando aspectos que há muito deveriam ter sido superados frente à qualidade dos debates em torno da
obra lobatiana em curso já há mais de uma década, como a busca de “provas” descontextualizadas do pressuposto racismo de Lobato, não
apenas em sua obra mas no interior de sua correspondência pessoal.

 Felizmente, a réplica não tardou, pois outra pesquisadora de Lobato, Ana Lúcia Brandão, veio a público em defesa do escritor, no mesmo
jornal e em data muito próxima, com o artigo “ ‘Racismo delirante’ é tratamento grotesco, Monteiro Lobato merece respeito”. Entre muitos
apontamentos, lembra seus leitores de que “Levar ao pé da letra palavras ou frases de uma mensagem pessoal entre amigos, para classificar
um deles como “racista” revela uma enorme incompreensão do que significa a crítica literária”.

De alma lavada, o leitor lobatiano pode seguir de braços dados com Lobato. Entretanto, não se trata de vencer uma discussão ou ganhar o
pódio da verdade. Como obra literária, os escritos de Lobato comportam questionamentos, dúvidas, discordâncias. Em evento acadêmico
recente, em que discutíamos a obra do escritor, chamou nossa atenção uma fala de um aluno de graduação, cujo apontamento sustentava-
se por meio da ideia de que Monteiro Lobato não o representava como cidadão, sujeito, pessoa imbuída e reconhecida como portadora de
direitos fundamentais.

Caçadas de Pedrinho, de 1939, uma


das obras no centro do debate sobre
racismo

É importante esclarecer que nenhuma das ponderações desse estudante pode ser considerada irrelevante para a discussão, assim como é
possível compreender o tom de agressividade de suas primeiras manifestações, face ao momento em que se dá o eternamente adiado
debate sobre o racismo no Brasil. Nem ainda poderíamos discordar de que não só de Lobato se formam leitores!

O que parece um “problema” ou algo a se lamentar, porém, é o fechamento do interlocutor a textos cujas ideias continuam a contribuir para
a formação inequívoca de leitores críticos mais autônomos e audaciosos em suas incursões pelo mundo da literatura. A conversa que
travamos com aquele aluno, portanto, não mirava uma desqualificação de seu discurso ou certo menosprezo da intelectualidade por um
suposto modismo ideológico. Ao contrário do que se poderia supor, as questões às quais nosso interlocutor se apegava com pertinência e
propriedade, são essas mesmas questões que convidam à leitura da obra lobatiana, reitere-se.

É neste ponto que encerramos nosso convite irrestrito à leitura da obra infantil de Lobato. As polêmicas atestam, tanto pelo conjunto de
argumentos e exposições, quanto pela presença de seus livros nas mãos de crianças do século 21, a vitalidade de suas narrativas. Presença
que deve ser lembrada, sobretudo, agora que a obra do autor se encontra em domínio público e surgem inúmeras edições em papel e
digitais de seus textos. O reconhecimento da amplitude e da intensidade de muitos temas, assuntos ou fatos presentes em suas histórias
permite a discussão também ampla, aberta e, por que não, profunda desses temas, dos mais aos menos polêmicos. Se há, portanto, uma
posição a assumir, ela se configura na busca por preservar a leitura de obras marcadas pela criatividade, inventividade e criticidade.
Cancelar Lobato, portanto, é queimar um ramo literário em que aquela tríade – criatividade, inventividade e criticidade – constitui grande
probabilidade de servir a consciências imbuídas de utopias ainda tão caras à sociedade de nosso tempo.
Thiago Alves Valente  fez doutorado em Literatura na Unesp e é professor de Literatura Brasileira do Centro de Letras, Comunicação e Artes (CLCA), Campus de Cornélio
Procópio (CCP) da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e coordenador do GT Leitura e Literatura Infantil e Juvenil da ANPOLL

Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.


Imagens acima: reprodução.

25/02/2022, 11h33

Atualizado em:
25/02/2022, 12h21

TAGS
Literatura Literatura brasileira Literatura Infantil Monteiro Lobato

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