Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Inês Virgínia Prado Soares1 RESUMO: O presente artigo tem por finalida-
de abordar a necessidade de se tratar o tema da
língua e dos falares do Brasil como bens cultu-
rais, os quais necessitam de instrumentos jurídi-
cos e administrativos para sua tutela efetiva. A
argumentação é desenvolvida no sentido de que
a oficialidade da língua portuguesa, indicada
pela Constituição, não significa o afastamento,
proibição ou rejeição da diversidade de línguas
brasileiras faladas pelos grupos formadores da
sociedade brasileira.
Palavras-chave: direitos lingüísticos, patri-
mônio imaterial, línguas e falares brasileiros-
Registro
1
Procuradora da República em São Paulo, Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialista em Direito
Sanitário pela UNB, autora do livro Proteção Jurídica do Patrimônio Arqueológico no Brasil: fundamentos para efetividade da tutela em face de obras
e atividades impactantes, Editora Habilis, 2007 e Presidente do Instituto de Estudos Direito e Cidadania – IEDC.
volveu uma política lingüística direcio- pouco mudou. Graças à Constituição em vigor
nada ao monolingüismo, centrada na lín- está havendo diversos desenvolvimentos impor-
gua portuguesa como língua oficial e tantes para muitas dessas minorias em vários pla-
nacional. Ligada à própria conformação nos, inclusive no acesso a projetos de educação
da nacionalidade brasileira, essa posi- mais específicos e com consideração de suas lín-
ção monolingüística se erigiu no perío- guas nativas. Entretanto, ainda são grandes a
do colonial com o Diretório dos Índios hostilidade e a violência, alimentadas não só por
(1757), que obrigava o uso da língua ambições de natureza econômica, mas também
portuguesa no Estado do Grão Pará e pela desinformação sobre a diversidade cultural
Maranhão em detrimento da língua ge- do país, sobre a importância dessa diversidade
ral, de base tupi (língua indígena), em para a nação e para a humanidade e sobre os
franca utilização naquele momento. Se- direitos fundamentais das minorias’ (idem, 01).”8
guindo essa direção, tivemos na histó- Na Constituição o tratamento da cultura e dos
ria do país várias medidas de controle bens culturais decorre dos elementos que carac-
da diversidade lingüística, como as das terizam o Estado brasileiro como Estado Demo-
campanhas de nacionalização da déca- crático de Direito. Por isso, pode-se afirmar que
da de 1930 [4], além das que garantem a discussão pautada na diversidade cultural (e
a manutenção de políticas educacionais nos direitos e bens culturais desta decorrentes)
voltadas maciçamente ao ensino e uso tem sua fundamentação no texto constitucional,
da língua portuguesa como língua única. já que nosso sistema jurídico estabelece um Es-
tado de direito cultural e indica a construção de
O resultado dessa posição foi o extermínio
um Estado democrático cultural9.
de inúmeras línguas. Rodrigues (1986) calcula
que se falavam no que é hoje o território brasi- Assim, embora a Constituição não defina o
leiro, em 1500, cerca de 1.200 línguas, das quais que é patrimônio cultural brasileiro, dispõe que
restaram cerca 180. Em 2005, diz esse autor: ‘a o seu tratamento deve se pautar no respeito à
redução de 1200 para 180 línguas indígenas nos diversidade e à liberdade e na busca da igualda-
últimos 500 anos foi o efeito de um processo de material entre e para os grupos formadores
colonizador extremamente violento e continua- da sociedade brasileira, especialmente para os
do, o qual ainda perdura, não tendo sido inter- grupos desfavorecidos histórica, social e econo-
rompido nem com a independência política do micamente. Desse modo, as comunidades bra-
país no início do século XIX, nem com a instau- sileiras falantes de línguas indígenas (Nheengatu
ração do regime republicano no final desse mes- e Guarani), afro-brasileiras (falante de Gira de
mo século, nem ainda com a promulgação da Tabatinga-MG) e de imigração (Talian, Hunsru-
“Constituição Cidadã” de 1988. Embora esta ckkish e Pomerano) 10 encontram no texto cons-
tenha sido a primeira carta magna a reconhecer titucional a fundamentação legal para edição de
direitos fundamentais dos povos indígenas, in- normas e a implementação de medidas, instru-
clusive direitos lingüísticos, as relações entre a mentos e ações que permitam que não somente
sociedade majoritária e as minorias indígenas se expressem em seus próprios idiomas nas re-
8
Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras“, Revista Patrimônio, http://
www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08.
9
E o traço cultural democrático é estabelecido constitucionalmente, em especial: a) pelos artigos que versam sobre a cultura, sobre a necessidade de
respeito à diversidade cultural brasileira e sobre a importância da tutela dos bens culturais que são referenciais para os grupos formadores da
sociedade; e b) pela estruturação do Estado para a tutela dos valores culturais, com a colaboração da comunidade. A Constituição portuguesa também
trata a matéria e o comentário da doutrina portuguesa cabe exatamente para a Constituição brasileira: “A salvaguarda e valorização do patrimônio
cultural constitui uma preocupação partilhada por todos os segmentos em que se desdobra o amplo campus do direito cultural, o qual, tendo por base
o que vem sendo designado por constituição cultural, se encontra polarizado em torno do Estado cultural que uma tal constituição suporta e que, bem
vistas as coisas, é simultaneamente, um Estado de direito cultural, enquanto garante um conjunto de direitos e liberdades fundamentais pessoais de
caráter cultural, e um Estado democrático cultural, enquanto se apresenta constitucionalmente empenhado na realização dos chamados direitos
culturais.” José Casalta Nabais, Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural, p. 59, Coimbra, Editora Almedina, 2004.
10
Línguas indicadas por Maria Cecília Londres Fonseca, “A diversidade linguística no Brasil: considerações sobre uma proposta de política”, Revista
Patrimônio, http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=215, acesso em 25.04.08.
lações de repercussão pública, mas que tenham estabelecidos nos incisos I a V do art. 1º. Assim,
a língua reconhecida como bem cultural brasi- a soberania popular, a cidadania, a dignidade da
leiro. pessoa humana, o pluralismo político e os valo-
A valorização da diversidade lingüística no res sociais do trabalho e da livre iniciativa
Brasil não modifica a predominância da língua direcionam a forma de organização da socieda-
portuguesa nem permite se falar na possibilida- de brasileira e o modo de agir social. Além dis-
de de oficialidade de pluralismo lingüístico no so, cabe ao Estado brasileiro a construção de
ordenamento jurídico brasileiro: a fala e a co- uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia
municação devem ser prioritariamente em por- do desenvolvimento nacional, a erradicação da
tuguês quando praticadas pelos órgãos públicos, pobreza e da marginalização, a redução das de-
nos espaços públicos e nas relações privadas com sigualdades sociais e regionais e, ainda, a pro-
qualquer repercussão social ou pública, a me- moção do bem de todos, sem preconceito de ori-
nos que uma lei excepcione seu uso ou garanta gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
a possibilidade de expressão em outra língua ou formas de discriminação.
falar, com base na diversidade cultural. Desse A declaração dos fundamentos e objetivos
modo, a língua portuguesa, além de ser o idio- do Estado Democrático brasileiro é o reconhe-
ma nacional, por força da Constituição, também cimento jurídico da necessidade de desenvolvi-
assume a posição de língua oficial, conforme mento econômico e social e da existência de
disposto no art. 13 caput.
desigualdades em nosso país. A gama de valo-
O presente artigo tem por finalidade abordar res indicada constitucionalmente a partir da con-
a necessidade de se tratar o tema da língua e dos cepção de uma sociedade democrática fornece
falares do Brasil como bens culturais que, em um leque extenso de bens a serem protegidos,
uma perspectiva de diversidade cultural, neces- pelos planos e programas nacionais, regionais,
sitam de instrumentos para sua tutela. Como a estaduais e municipais.11
hegemonia da língua portuguesa não significa o
Dentre os bens e valores significativos para
afastamento, proibição ou rejeição da diversi-
dade de línguas brasileiras faladas pelos grupos a sociedade brasileira estão os decorrentes dos
formadores da sociedade brasileira: línguas in- direitos culturais. Assim, os direitos culturais
dígenas, línguas de imigração (alóctones) ou que preenchem de significado a tutela cultural
afro-brasileiras, a discussão do tema assume es- constitucional são: a liberdade de expressão da
pecial importância para os grupos falantes, que atividade intelectual, artística e científica; o di-
são minoritários e que têm na língua um dos bens reito de criação cultural, compreendidas as cria-
culturais mais preciosos para a manutenção de ções artísticas, científicas e tecnológicas; o di-
sua identidade cultural. reito de acesso às fontes da cultura nacional; o
direito de difusão das manifestações culturais;
o direito de proteção das manifestações das cul-
2. Constituição brasileira, direitos turas populares, indígenas e afro-brasileiras e de
culturais e diversidade lingüística outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional; o direito-dever estatal de
2.1. Os valores culturais na Constituição formação do patrimônio cultural brasileiro e de
No sistema constitucional brasileiro, a demo- proteção dos bens culturais, que passam a um
cracia tem como pressupostos os fundamentos regime especial de bens de interesse público.12
11
Entre os valores constitucionais, vale destacar: a dignidade humana (consagrada princípio fundamental da República, art. 1º, III); os direitos sociais
da educação, da saúde, do trabalho, do lazer, da segurança, da previdência social, da proteção à maternidade e à infância, da assistência aos
desamparados (previstos no art. 6º); a ordem econômica que tem por objeto assegurar a todos existência digna (art. 170); a ordem social com objetivo
de proporcionar o bem-estar e a justiça sociais (art. 193); a educação (art. 205); a garantia a todos do pleno exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura nacional (art. 215, § 1.º); a previsão de instrumentos para tutela do patrimônio cultural brasileiro pelo Poder Público em
colaboração com a comunidade (art. 216, § 1.º); a ciência e a tecnologia (art. 218); a previsão do mercado interno como patrimônio nacional (art.
219); e o dever de proteger o meio ambiente para as presentes e futuras gerações (art. 225).
12
José Afonso da Silva, Ordenação Constitucional da Cultura, São Paulo, Ed. Malheiros, 2001, p. 51/52.
Nesses direitos identificam-se duas ordens cia para manifestação e preservação da cultura
de valores culturais, ou nas palavras de José dos vários grupos formadores da sociedade ou
Afonso da Silva, dois sistemas de significações: no acesso amplo aos bens culturais já estabele-
cidos.
“Ora, vê-se bem que na ordenação cons-
titucional da cultura se encontram duas Os direitos culturais têm, na concepção cons-
ordens de valores culturais, dois siste- titucional, uma dimensão multicultural, consa-
mas de significações: uma que são as grada pela interação sociedade-Estado na reali-
próprias normas jurídico-constitucio- zação das tarefas que promovam tanto o exercí-
nais, por si sós repositórios de valores cio desses direitos, como a proteção e fruição
(direitos culturais, garantias de acesso dos bens culturais materiais e imateriais que lhe
à cultura, liberdades de criação e difu- dão suporte. A concepção constitucional parte
são cultural, igualdade no gozo dos bens da referencialidade dos bens culturais e da di-
culturais etc.); outra que se constitui da versidade cultural para a atuação do Poder Pú-
própria matéria normatizada: a cultura, blico e da sociedade em sua defesa:
o patrimônio cultural brasileiro, os di- “O multiculturalismo permeia todos os
versos objetos culturais (formas de ex- dispositivos constitucionais dedicados
pressão; modos de criar, fazer e viver; à proteção da cultura. Está presente na
criações artísticas; obras, objetos, docu- obrigação do Estado de proteger as ma-
mentos, edificações, conjuntos urbanos, nifestações culturais dos diferentes gru-
sítios, monumentos de valor cultural).”13 pos sociais e étnicos, incluindo indíge-
nas e afro-brasileiros, que formam a so-
As ordens de valores se complementam e
ciedade brasileira, e de fixar datas re-
interagem, necessariamente. Os direitos cultu-
presentativas para todos esses grupos.
rais, além de serem permanentemente repositório
Vislumbra-se a orientação pluralista e
de valores dos bens culturais, são destes depen-
multicultural do texto constitucional no
dentes. Essa situação peculiar é bem nítida quan-
conceito de patrimônio cultural, que
do se trata de direitos lingüísticos e da língua
consagra a idéia de que este abrange os
como bem cultural: enquanto os direitos cultu-
bens culturais referenciadores dos dife-
rais lingüísticos são pautados na diversidade e
rentes grupos formadores da sociedade
têm sua tutela a partir dos valores de referência
brasileira, e no tombamento constitucio-
que portam, os falares e as línguas somente se
nal dos documentos e sítios detentores
firmam como bens merecedores de tutela, quan-
de reminiscências históricas dos antigos
do os direitos culturais da comunidade ou do
quilombos. É a valorização da rica so-
grupo são reconhecidos.
ciodiversidade brasileira, e o reconheci-
Por isso, as ordens culturais constitucionais mento do papel das expressões culturais
estão permeadas pelas características da demo- de diferentes grupos sociais na forma-
cracia e da diversidade cultural. Nesse aspecto, ção da identidade cultural brasileira.”14
os sistemas de significação cultural que decor-
rem dos dispositivos constitucionais revelam e A ordem de valor que interessa para o pre-
garantem o empenho do Estado e da sociedade sente artigo, que aborda a tutela das línguas e
para a realização dos direitos culturais. Essa re- falares do Brasil como bem cultural, é a ordem
alização ocorre na fruição das liberdades, nas de valor que trata da vertente dinâmica da cultu-
escolhas e designação dos bens que são referên- ra: a cultura normatizada, especialmente o sig-
13
José Afonso da Silva, ob. cit., p. 34. No mesmo sentido, Celso Ribeiro Bastos: “A proteção fornecida pela Constituição à cultura atinge duas
modalidades fundamentais. A primeira é a liberdade ampla conferida a todos de pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes desta cultura.
A segunda vem a ser a proteção que o Poder Público deve exercer sobre o chamado Patrimônio Cultural Brasileiro” (Curso de Direito Constitucional
Positivo, 15ª Edição, Ed. Malheiros, p. 369, 1998).
14
Juliana Santilli, Patrimônio imaterial: proteção jurídica da cultura brasileira. In: III Seminário Internacional de Direito Ambiental. Cadernos do CEJ,
Brasília, v. 21, 2002.p. 75.
nificado jurídico do patrimônio cultural lingüís- cia cultural; b) na obrigação do Estado adotar
tico e a garantia da diversidade na fruição deste medidas imediatas, especialmente nos âmbitos
bem. legislativo e executivo, para que os direitos
lingüísticos e os falares ou línguas que servem
de base para grupos culturalmente diferencia-
2.2. A indicação constitucional para a
atuação do Estado brasileiro na proteção da dos (ou para a sociedade como um todo: o por-
diversidade lingüística tuguês) sejam promovidos e protegidos, inclu-
sive com a previsão de ações afirmativas para
O art. 215, caput, da Constituição Federal os grupos étnicos que utilizam línguas e falares
de 1988 determina que o Estado garantirá a to- diversos do português; c) na obrigação de ga-
dos o acesso às fontes da cultura nacional, apoi- rantir um patamar básico (mínimo) de fruição
ando, valorizando e incentivando a difusão das aos direitos lingüísticos e à língua, pela qual os
manifestações culturais. Ao Estado cabe uma grupos se expressam; e d) na obrigação de
atuação que possibilite que as manifestações progressividade e proibição de retrocesso no tra-
culturais nacionais ou estrangeiras se desenvol- tamento do tema.15
vam no país. Mas, especialmente, incumbe ao
A diversidade cultural se refere à “multipli-
Poder Público proteger as manifestações locais,
cidade de formas em que se expressam as cultu-
regionais ou nacionais das culturas populares,
ras dos grupos e sociedades. Estas expressões
indígenas e afro-brasileiras, bem como as de
se transmitem entre os grupos e a sociedade e
outros grupos participantes do processo civiliza-
dentro deles”.16 Desse modo, a previsão do de-
tório nacional, nos termos do art. 215, § 1º, da
ver de atuação democrática do Poder Público
Constituição.
na proteção e promoção das línguas e falares do
A tutela do Estado, prevista na Constituição Brasil deve se pautar no valor simbólico que o
para as manifestações culturais, deve se revelar bem representa para a identidade cultural da
na prática de ações positivas para defesa da sua sociedade brasileira ou dos grupos minoritários
existência, valorização e difusão. Ou ainda, sim- e na dimensão interativa desse bem cultural, que
plesmente, no fornecimento, pelo Poder Públi- pode contribuir para trazer à tona a diversidade
co, das condições essenciais para que as ativi- lingüística existente no Brasil.
dades culturais sejam praticadas com liberdade
Embora a Constituição faça menção expres-
pelos grupos, num espectro de diversidade cul-
sa às comunidades indígenas, o direito à diver-
tural.
sidade lingüística abrange todas as línguas fala-
O reconhecimento e tratamento, pela Cons- das por brasileiros e, por isso, o desenvolvimento
tituição, dos direitos culturais como direito fun- das políticas públicas deve atingir os diversos
damental e, a previsão do dever de atuação de- grupos falantes. Nesse sentido, vale trazer as
mocrática na proteção e promoção dos bens cul- ponderações de Rosângela Morello e Gilvan
turais, conduz o Estado à obrigação de Müller de Oliveira:
implementar ações e políticas públicas que po-
dem ser relacionadas, no que tange ao direito “A Constituição de 1988, como se dis-
cultural à diversidade lingüística, em quatro li- se antes, foi um passo importante nessa
nhas de atuação: a) na proibição de discrimina- direção, no que tange às línguas indíge-
ção, de indivíduos ou grupos, na fruição da lín- nas, atribuindo ao índio o estatuto de
gua como bem cultural, ou seja, no uso do falar cidadão brasileiro que tem direito a sua
ou da linguagem que seja portadora de referên- língua e a sua cultura. No entanto, ela
15
Conforme as obrigações relacionadas por Victor Abramovich e Christian Courtis para os direitos sociais. Para os autores as obrigações são: a
proibição de discriminação, a obrigação de adotar medidas imediatas, a obrigação de garantir níveis essenciais de direitos e, a obrigação de progres-
sividade e proibição de retrocesso (Los derechos sociales em debate democrático, Fundación Sindical de Estudios, p. 41/53, 2006).
16
Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, art. 41, Unesco, 2005. A diversidade cultural se refere à “multi-
plicidade de formas em que se expressam as culturas dos grupos e sociedades. Estas expressões se transmitem entre os grupos e a sociedade e dentro
deles”.
17
Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras”, Revista Patrimônio, http://
www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08.
18
Carlos Frederico Marés, Proteção Jurídica dos Bens Culturais. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 1, n. 2, 1993, p. 23.
19
Maria Cecília Londres Fonseca, “A diversidade linguística no Brasil: considerações sobre uma proposta de política”, Revista Patrimônio, http://
www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=215, acesso em 25.04.08.
base de legitimados ativos e a obrigação do Po- ses direitos culturais é a garantia do acesso e
der Público em atuar positivamente (não ser fruição aos bens materiais e imateriais necessá-
omisso), no sentido de proporcionar a fruição e rios para a sustentabilidade do bem, como bem
o acesso ao patrimônio cultural dentro de uma de valor autônomo, que deve ser preservado para
igualdade material. as próximas gerações.
O reconhecimento do direito ao patrimônio Nessa perspectiva, o direito ao patrimônio
cultural como direito fundamental ocorre na cultural lingüístico é um desdobramento dos di-
Constituição de 1988, com o estabelecimento reitos culturais, já que sua concepção pressupõe
de uma organização jurídico-política do Estado a diversidade lingüística (e sua fruição) e tem
brasileiro que possibilita a criação e o fortaleci- por base a liberdade e a educação. Assim, o di-
mento de um aparato normativo e institucional reito do indivíduo, ou do grupo, em se expres-
que garante a liberdade e igualdade no exercí- sar na língua que represente a sua identidade e
cio dos direitos culturais (plano normativo) e sua memória decorre do traço de diversidade
também que tutela os bens culturais (patrimônio cultural que informa o sistema jurídico brasileiro.
cultural) como bens da vida, em uma perspecti- O direito fundamental ao patrimônio cultu-
va de interação Estado-sociedade para o desem- ral lingüístico pode, também, ser analisado em
penho dessa tarefa. duas dimensões: a) em uma vertente subjetiva,
Dessa forma, na atual Constituição, o direi- como direito do homem (ou do grupo que per-
to ao patrimônio lingüístico é direito fundamen- tence) que pode ser invocado para limitar a atu-
tal: a) pela estrutura normativa dos dispositivos ação estatal; e b) em uma vertente objetiva, como
que versam especificamente sobre a matéria, direito à manutenção da língua e dos falares
como a do artigo 215 (“O Estado garantirá a to- portadores de valor de referência cultural.
dos o pleno exercício dos direitos culturais e O direito ao patrimônio cultural revela sua
acesso às fontes da cultura nacional...”) e a do vertente subjetiva no direito de resistência do
artigo 216, § 1º (com a previsão do dever de indivíduo (ou do grupo que pertence) à interfe-
proteção e promoção dos bens culturais pelo rência estatal na sua liberdade de exercício cul-
Estado, com a colaboração da sociedade); b) pela tural: desde as manifestações individuais coti-
colocação do direito ao patrimônio cultural in- dianas básicas, como a utilização da língua ma-
tangível como pressuposto para o exercício dos terna, a valorização da memória até as manifes-
outros direitos fundamentais, a começar pelo tações sociais essenciais para sobrevivência,
direito à vida digna e a se expressar com liber- como o exercício de atividade literária e de ou-
dade, a começar pela forma de expressão (nesse tras expressões ligadas à arte, a garantia de aces-
sentido, o direito ao patrimônio lingüístico é, so aos bens culturais, o respeito aos direitos au-
também, garantia da base material para que torais, a garantia da conservação das bases ma-
muitos outros direitos individuais ou coletivos teriais (por meio de registros, gravações, inven-
sejam exercidos em sua plenitude); e c) porque tários, pesquisas cadastrais, digitalização etc) da
os direitos fundamentais estão espalhados em língua portuguesa e das outras línguas (ou fala-
todo texto constitucional, sendo o rol do art. 5º res) do Brasil.
meramente exemplificativo, por força do dispos- Enquanto valor autônomo, o direito ao patri-
to nos seus parágrafos 2º e 3º. mônio cultural lingüístico, muda o foco na trata-
Os direitos lingüísticos, como os outros di- tiva da seleção das línguas e falares que têm
reitos fundamentais, necessitam além da garan- potencialidade para serem considerados bens
tia formal (prevista no sistema de justiça), de culturais brasileiros. Pela dimensão objetiva20,
uma garantia real, que se revela pelo aparato o direito ao patrimônio cultural lingüístico é pro-
jurídico-administrativo estabelecido para a tu- tegido como instituto que porta valores e direi-
tela e fruição do patrimônio cultural. Uma das tos essenciais à estrutura da sociedade demo-
vertentes mais importantes da garantia real des- crática. A proteção do patrimônio lingüístico está
20
Daniel Sarmento, A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais: Fragmentos de uma Teoria, Revista de Direito da Associação dos Procuradores
do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XII, p. 251/314, 2003.
outros idiomas e falares e no território nacional, O Poder Executivo protege o idioma oficial,
o português deve ser considerado o instrumento utilizando-o obrigatoriamente em seus atos co-
de comunicação por excelência, devendo a co- municativos internos e destinados ao público em
municação ser feita prioritariamente nessa lín- geral. Cabe também à administração impor aos
gua21. administrados que apresentem informações, re-
Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciá- latórios e outros dados escritos que sejam úteis
rio devem promover e proteger, com a colabo- à sociedade, principalmente para participação em
ração da comunidade, o bem cultural língua processos decisórios, em língua portuguesa.
portuguesa, por meio de instrumentos Por fim, os agentes privados nas relações em
nominados e outras formas de acautelamento e território brasileiro também têm obrigação de se
preservação. O Poder Legislativo contribui para comunicarem em língua portuguesa. Nesse sen-
a proteção da língua portuguesa mediante a tido, foi proposta ação civil pública para tutela
propositura de diversos projetos de lei que tra- da língua portuguesa nas relações de consumo.
tem da proteção da língua portuguesa, bem como A decisão que concedeu a liminar neste caso foi
a incorporação destes projetos ao sistema jurí- no sentido de que a língua portuguesa é elemen-
dico brasileiro.22 to de afirmação da cultura e da unidade nacio-
Ao Poder Judiciário também cabe a tutela nais e por isso é obrigatória nas relações de con-
da língua oficial no exercício da atividade sumo travadas no país23.
jurisdicional. É essa obrigação que perpassa os
A sensação de homogeneidade lingüística em
artigos 151 (que trata do dever do juiz de no-
nosso país, que parte da existência de uma lín-
mear intérprete para analisar documentos redi-
gua (portuguesa) que se caracteriza como base
gidos em língua estrangeira e para verter em por-
unificadora da comunicação entre os brasilei-
tuguês as declarações das partes e das testemu-
ros, não pode atingir os operadores do direito
nhas que não conhecerem o idioma oficial), 156
nem os órgãos (públicos ou privados) que lidam
(que determina que o uso do português é obri-
com a tutela dos bens e direitos culturais. Por
gatório no processo), 157 (que apenas permite
juntada de documentos redigidos em língua por- isso, a indicação da língua portuguesa como idio-
tuguesa se estiverem acompanhados de versão ma oficial não determina sua exclusividade nem
em português) do Código de Processo Civil e significa homogeneidade.
os artigos 193 e 223 do Código de Processo As comunidades indígenas podem utilizar
Penal. suas línguas maternas no ensino fundamental
21
José Carlos Barbosa Moreira, “Ação Civil Pública – Lei 7347/85 – 15 anos”. Coordenador Édis Milaré. A Ação Civil Pública e a Língua Portuguesa,
p. 346. Editora Revista dos Tribunais. 2002. São Paulo.
22
Tramitam no Congresso Nacional diversos projetos de lei sobre o assunto. Tais como: PL-2646/1996 (proibindo o uso de língua estrangeira sem a
correspondente tradução para a língua portuguesa na oferta e apresentação de produtos ou serviços, na sua publicidade, nos documentos decorrentes
do seu fornecimento, nas embalagens destinadas ao mercado interno, bem como na sinalização visual de estabelecimentos), PL-1736/1996 (proibin-
do a utilização de língua estrangeira na identificação de estabelecimentos comerciais, bem como nos anúncios e nos rótulos de mercadorias), PL-
1840/1996 (dispõe sobre a obrigatoriedade de tradução para a Língua Portuguesa de expressões escritas em idioma estrangeiro nas obras literárias,
técnicas e científicas), PL-2893/1997 (estabelecendo que toda mensagem escrita, falada ou audiovisual destinada a informação do público, deve ser
formulada em português e corretamente corrigida, inclusive o teclado de computador), PL-1676/1999 (restringindo o uso de palavra em Língua
Estrangeira ou “estrangeirismo”), PL-3288/2000 (dispõe sobre a obrigatoriedade de tradução para a língua portuguesa de indicativos e outros
escritos em língua estrangeira e dá outras providências.), PL-1575/2003 (inclui parágrafo ao artigo 36 da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990,
Código de Defesa do Consumidor, para prever a obrigatoriedade da publicidade em língua portuguesa, e dá outras providências).
23
Cf Ação Civil Pública nº 2006.61.19.006359-5, 1ª Vara Federal de Guarulhos, com pedido de liminar, que o Ministério Público Federal ajuizou em
face da União. Resumidamente, o MPF sustentou que: a) o uso indiscriminado de expressões estrangeiras nas relações de consumo, sem tradução,
contraria o disposto no artigo 31 do CDC, o qual assegura que a oferta e apresentação dos produtos e serviços devem ser oferecidas em língua
portuguesa; b) a conduta do fornecedor consistente em comunicar-se com o consumidor exclusivamente em língua estrangeira, ao menos nas hipóte-
ses do artigo 31 do CDC, é contrária ao espírito da Constituição Federal, pois se trata de conduta antidemocrática e discriminatória, que exclui de
mais de 90% da população o direito de entender claramente aquilo que se escreve nas vitrinas e anúncios de seu próprio país; c) o procedimento
instaurado no MPF de Guarulhos nada tem de reacionário ou de xenófobo, caminhando apenas no campo da objetividade; d) não se pretende
ressuscitar expressões imperiais, nem disciplinar o uso da língua nas artes, na fala do dia-a-dia ou em qualquer outro ramo da vida, em que deve
prevalecer a liberdade de expressão; e) objetiva-se forçar o cumprimento do artigo 31 do CDC e proibir que a comunicação e o oferecimento de
informações referidos no dispositivo sejam feitos exclusivamente em língua estrangeira; f) para democratizar o procedimento, foram adotadas as
seguintes iniciativas: entrevistas, endereço eletrônico e oitiva de Pasquale Cipro Neto. A liminar foi concedida pelo Exmo. Juiz Federal Antônio
André Muniz Mascarenhas de Souza.
(art. 210, § 2º, Constituição). Além disso, não “Diante dessas evidências, chegamos
se exige dos estrangeiros que conheçam o por- necessariamente a uma conclusão com-
tuguês para transitarem pelo território brasileiro patível com as circunstâncias extralin-
e também não é proibido o ensino e a prática de güísticas que foram favoráveis a esse
outros idiomas no Brasil, uma vez que isso seria processo: o português do Brasil, naqui-
contra o direito fundamental à liberdade das lo em que ele se afastou do português
pessoas24. de Portugal, é, historicamente, o resul-
O art. 215, § 1°, da CF estabelece que o Es- tado de um movimento implícito de
tado protegerá as manifestações culturais dos africanização do português e, em senti-
outros grupos participantes do processo do inverso, de aportuguesamento do
civilizatório nacional25. Assim, o emprego de africano sobre uma matriz indígena pré-
idioma distinto do oficial deve se fundar em ra- existente e mais localizada no Brasil.
zão especial, enquanto o português dispensa tal Assim sendo, o português brasileiro
justificação. Enquanto os direitos fundamentais descende de três famílias lingüísticas: a
de expressão garantem, no âmbito das relações família Indo-Européia que teve origem
sociais privadas no país, a possibilidade da uti- entre a Europa e a Ásia, da qual faz par-
lização de outros idiomas, persiste a obrigato- te a língua portuguesa; a família Tupi,
riedade de utilização, pelos agentes públicos e de línguas faladas pelo indígenas brasi-
privados, da língua portuguesa na comunicação leiros e que se espalha pela América do
pública26. Sul; e, por fim, a família Níger-Congo
que teve origem na África subsaariana
e se expandiu por grande parte desse
4.2. As outras línguas e falares do Brasil continente. Conseqüentemente, povos
Por meio da língua e dos falares do Brasil, indígenas e povos negros, ambos mar-
os integrantes da sociedade brasileira expressam caram profundamente a cultura do co-
e transmitem os valores essenciais para o de- lonizador português que se estabeleceu
senvolvimento das atividades e das relações co- no Brasil, dando origem à uma nova
tidianas em nosso país. Como já abordado, a lín- variação da língua portuguesa – mesti-
gua portuguesa é a base unificadora da cultura ça, brasileira.” 27
brasileira, sendo também o veículo por meio do
qual a grande maioria dos brasileiros tem pre- Por isso, a hegemonia da língua portuguesa
servada sua memória e sua identidade. E não não deve ser entendida como proibição de gru-
poderia ser diferente: o português falado no Bra- pos culturalmente diferenciados se expressarem
sil é o resultado de processo de acomodação das em falares ou línguas maternas, as quais são es-
línguas faladas pelos grupos formadores da so- senciais para sua cultura e para fruição de seus
ciedade brasileira, sendo uma variação da lín- direitos fundamentais. No plano coletivo, se a
gua portuguesa de Portugal: língua dos grupos de brasileiros for portadora
24
Nelson Nery Júnior, ao tratar do princípio do devido processo legal (due process of law) em sentido genérico (que é o sentido do art. 5º, LIV, da
Constituição da República), cita o exemplo de sua aplicação no caso em que Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, em 1923, ser inconstitu-
cional a lei estadual que proibia o ensino em outras línguas que não o inglês, incidindo a proibição tanto para as escolas públicas quanto para as
particulares. Nelson Nery Junior, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 8ª Edição, Revista dos Tribunais, p. 63/64, 2004.
25
Quanto à correção dos desrespeitos à língua portuguesa como “língua oficial” e como integrante do patrimônio cultural brasileiro, nos termos do art.
1º, IV, da Lei 7.347/85, é cabível ação civil pública, uma vez que se trata de interesse difuso. O interesse na observância do artigo 13 da Constituição
da República é um interesse difuso, pois é transindividual, indivisível, cujos titulares são indeterminados e ligados pela circunstância de fato de
habitarem país que adota certo idioma oficial. Segundo o autor, pode-se pedir que se substitua denominação noutra língua por denominação em
português, ou para que se acrescente esta àquela. Dentre as associações civis legitimadas para propor a ação civil pública estão as academias de
letras – a brasileira e outras congêneres (José Carlos Barbosa Moreira, A Ação Civil Pública e a Língua Portuguesa, p. 349).
26
José Carlos Barbosa Moreira, “Ação Civil Pública – Lei 7347/85 – 15 anos”. Coordenador Édis Milaré. A Ação Civil Pública e a Língua Portugue-
sa. Editora Revista dos Tribunais. 2002. São Paulo. A Ação Civil Pública e a Língua Portuguesa, p. 346 e 347.
27
Yeda Pessoa de Castro, “Das línguas africanas ao português brasileiro”, Revista Patrimônio, http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211,
acesso em 25.04.08.
de valores de referência dos grupos formadores to de bem cultural supra, por serem representa-
da sociedade brasileira, pode ser considerada tivas e identificadoras da própria cultura dessas
bem cultural integrante do patrimônio cultural comunidades.
brasileiro. Desse modo, duas significações decorrem da
Essa a concepção constitucional de dimen- utilização da linguagem falada como forma de
são multicultural na formação e tutela do manifestação e comunicação, com consequên-
patrimônio cultural brasileiro é consagrada pela cias jurídicas diversas: a) a significação norma-
interação sociedade-Estado na realização das tiva, expressa nos direitos relativos à liberdade;
tarefas que promovam tanto o exercício desses e b) a significação material, que se expressa na
direitos como a proteção e fruição dos bens cul- tutela da língua como bem cultural que integra
turais materiais e imateriais que lhe dão supor- o patrimônio brasileiro. Essa tutela tem raiz no
te. A referencialidade dos bens culturais linguís- art. 216, I da Constituição que arrola as “formas
ticos e da diversidade cultural tem, portanto, de expressão” como elemento integrante desse
fonte na Constituição e indicam a atuação do patrimônio.
Poder Público e da sociedade em sua defesa: Nesse sentido, pode-se falar em línguas dis-
“O multiculturalismo permeia todos os tintas da língua portuguesa como bens que inte-
dispositivos constitucionais dedicados gram (ou têm potencialidade para integrar) o
à proteção da cultura. Está presente na patrimônio cultural brasileiro desde que sejam
obrigação do Estado de proteger as ma- portadoras de referencialidade, isto é: estejam
nifestações culturais dos diferentes gru- ligados à memória, ação ou identidade dos gru-
pos sociais e étnicos, incluindo indíge- pos formadores da sociedade brasileira. Ao mes-
nas e afro-brasileiros, que formam a so- mo tempo, essas línguas e falares devem ter uma
ciedade brasileira, e de fixar datas re- continuidade histórica e uma projeção intergera-
presentativas para todos esses grupos. cional que justifiquem a atenção do Estado e a
Vislumbra-se a orientação pluralista e adoção de políticas públicas para sua tutela.
multicultural do texto constitucional no Nesse enfoque, além das línguas indígenas e
conceito de patrimônio cultural, que africanas, as línguas de imigração faladas no
consagra a idéia de que este abrange os Brasil devem ter atenção do poder público não
bens culturais referenciadores dos dife- somente por expressarem materialmente os di-
rentes grupos formadores da sociedade reitos linguísticos, mas também porque os “fa-
brasileira, e no tombamento constitucio- lares dos imigrantes”, se não absolvidos na lín-
nal dos documentos e sítios detentores gua portuguesa, têm presentes elementos que se
de reminiscências históricas dos antigos caracterizam como forma de expressão ligada
quilombos. É a valorização da rica so- à memória, identidade e ação de uma grupo
ciodiversidade brasileira, e o reconheci- formador da sociedade brasileira.
mento do papel das expressões culturais
Além de integrarem (ou poderem integrar),
de diferentes grupos sociais na forma-
o patrimônio cultural brasileiro, as outras lín-
ção da identidade cultural brasileira.”28
guas brasileiras exigem, enquanto bens cultu-
Não há dúvida que se pode falar em línguas rais, um aparato instrumental as tutele, que ga-
distintas da língua portuguesa como línguas bra- ranta a sua fruição pela geração presente e pelas
sileiras e como bens culturais integrantes (ou futuras gerações e que as torne acessíveis e co-
potencialmente integrantes) do patrimônio cul- nhecidas pela maioria dos brasileiros que somen-
tural brasileiro. As línguas faladas pelos brasi- te tem o português como língua brasileira.
leiros que integram as comunidades indígenas, Mas a aceitação de outros falares como bens
remanescentes de quilombos ou descendentes de culturais brasileiros não elimina a dificuldade
imigrantes certamente se enquadram no concei- da atividade de identificação de referências cul-
28
Juliana Santilli, Socioambientalismo e novos direitos. Proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 75.
turais que fundamentam a proteção da língua língua. Essa formalização não significa contro-
diversa do português bem cultural significativo le do Estado no exercício dos direitos linguísticos
para a sociedade brasileira. Por isso, vale desta- nem no teor do bem línguistico diverso do por-
car que, além do saber (do critério técnico), há tuguês, mas sim a garantia de existência de um
também a questão do prestígio de um grupo a aparato formal mínimo para a fruição do bem,
partir da preservação das marcas de sua identi- pelas próprias comunidades falantes, nos espa-
dade e dos vestígios de sua cultura, de acordo ços públicos ou nas relações privadas de reper-
com as suas percepções e não pelo olhar do gru- cussão pública.
po dominante: Desse modo, os estudos, a sistematização dos
“Como o português tornou-se a língua dados e a utilização dos instrumentos nominados
oficial e nacional do Brasil, sua relação ou não para tutela dessas línguas devem consi-
com as línguas indígenas e africanas está derar a fruição imediata pelos grupos falantes e
ligada a um processo caracterizado por o acesso e uso das gerações futuras.
sua proeminência política, de poder, da
língua portuguesa relativamente a esse
conjunto de línguas. E nessa medida a
5. Instrumentos de tutela das lín-
língua portuguesa é significada como guas e falares brasileiros
língua materna de todos os brasileiros,
mesmo que não o seja de fato. Há brasi- A perspectiva jurídica para consideração dos
leiros que não falam português. E esse bens culturais como bens integrantes do patri-
cenário, que caracteriza o espaço de mônio cultural brasileiro é a de que os mesmos
enunciação brasileiro, vem se modifi- preencham certas condicionantes, sendo preli-
cando no decorrer dos séculos e faz par- minarmente portadores dos valores de referên-
te do embate político da população bra- cia ligados à memória, identidade e ação dos
sileira, mesmo que sua maioria não te- grupos formadores da sociedade brasileira. Des-
nha disso nenhuma consciência.” 29 se modo, a simples caracterização de um bem
como bem cultural merecedor de tutela jurídica
Por isso, os instrumentos e atuações dos seto- não basta para a utilização de instrumentos
res públicos e privados tanto para a seleção dos protetivos próprios para a defesa dos bens cul-
bens que integram o patrimônio cultural brasi- turais brasileiros.
leiro, quanto para sua promoção e preservação, Além da caracterização da língua ou falar
embora devam se pautar na atualidade e se de- como bem cultural brasileiro, vale ressaltar que
senvolver para atenderem ao interesse da gera- todo o processo de seleção dos bens, elabora-
ção presente, não podem deixar de ter a pers- ção e implementação das políticas públicas que
pectiva da equidade intergeracional e da desi- abordem a questão lingüística e a sua diversida-
gualdade entre os grupos falantes e a maioria de no Brasil devem partir da previsão constitu-
dos brasileiros têm a língua oficial. cional da língua portuguesa como língua oficial.
Além disso, quando a língua ou falar brasi- A discussão acerca dos instrumentos protetivos
leiro seja considerado idioma oficial e corrente cabíveis para os bens culturais lingüísticos, bem
para a comunidade falante, o português deve ser como o ganho efetivo para as comunidades fa-
sempre considerado como segunda língua. Por- lantes dependem da compatibilização entre a
tanto, para esse processo formal de aceitação de oficialidade do português e abertura de espaços
línguas brasileiras diversas do português, há ain- públicos que abriguem a diversidade lingüística
da necessidade de pronunciamento formal do e comportem sua fruição pela comunidade fa-
Estado, por um dos três poderes, de excepcio- lante, num processo que lhes garanta a manu-
nalização da língua portuguesa como primeira tenção de sua identidade cultural.
29
Eduardo Guimarães, “O multilingüismo e o funcionamento das línguas”, Revista Patrimônio, http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211,
acesso em 25.04.08.
Como bem cultural imaterial, as línguas e Desse modo, o Patrimônio Cultural Imaterial
falares brasileiros dispõem de diversos instru- brasileiro tem o registro como o instrumento
mentos jurídicos para sua tutela, não somente administrativo específico para sua tutela, que
os nominados pela Constituição (art.216, § 1º), surge para proteger os conhecimentos produzi-
mas também por todos os meios acautelatórios dos coletivamente, que ultrapassam o plano in-
cabíveis, inclusive pela propositura de ações ju- dividual, já que são gerados em determinados
diciais. contextos culturais e históricos30 e se caracteri-
Os instrumentos mais importantes para a tu- zam pela repercussão social.
tela dos falares e idiomas brasileiros são aque- Sem ênfase nos direitos de natureza patri-
les que atingem diretamente a comunidade fa- monial e afastando o bem imaterial da possibili-
lante e lhes oferece uma aparato para que seus dade de apropriação indevida por um grupo ou
direitos lingüísticos sejam exercidos. comunidade no momento de sua fruição, o ins-
Desse modo, o registro, o inventário das lín- trumento do registro busca valorizar e promo-
guas faladas, a guarda dos dados lingüísticos, ver o bem cultural sem suporte material, harmo-
em meios audiovisuais e escritos, a produção de nizando, com sua inscrição, os diversos interes-
relatórios, a digitalização de dados colhidos em ses para que este possa servir de recurso cultu-
pesquisas acadêmicas e a elaboração e imple- ral a ser compartilhado por toda a sociedade bra-
mentação de uma política educacional que aco- sileira.
lha a diversidade lingüística, voltada especial- A atuação do Poder Público em relação aos
mente para a comunidade falante, mas também bens imateriais, inclusive no procedimento ad-
leve em consideração a necessidade de dar co- ministrativo de seleção e registro, deve ser no
nhecimento da existência de uma diversidade de sentido de respeitar a liberdade de manifestação
línguas brasileiras à maioria da população (que ou expressão cultural da comunidade, de acor-
não conhece os outros falares de seu país e de do com os valores e princípios estabelecidos
seus conterrâneos), são alguns instrumentos a constitucionalmente. A intervenção do Estado
serem utilizados . em relação aos bens imateriais se justifica para
Neste artigo abordaremos o Registro como promoção do bem, promoção que nessa seara se
instrumento protetivo do bem cultural imaterial realiza por meio de atuação que evite manipula-
“língua”. ções e previna ou corrija distorções, as quais
sempre inviabilizam ou prejudicam a existência
ou a livre fruição do bem intangível31.
6. Registro de línguas e falares O procedimento de registro, nos termos do
brasileiros como patrimônio Decreto nº 3.551/2000 culmina com a inscri-
cultural brasileiro ção do bem imaterial em Livros de registros, dos
quais quatro deles estão nominados atualmente:
O registro é um instrumento de gestão do Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro
patrimônio cultural que pode ser utilizado tanto das Celebrações, Livro de Registro das Formas
pela sociedade como pelo Poder Público. Po- de Expressão e Livro de Registro de Lugares.
rém, com a regulamentação pelo Decreto nº Além dos livros nominados, podem-se abrir
3.551/2000, que criou o Programa Nacional do outros livros, para registro de bens que não se
Patrimônio Imaterial e instituiu o registro de bens enquadrem nesses. É o caso dos bens
culturais que constituem o patrimônio cultural lingüísticos, que ainda não têm o Livro de Re-
brasileiro, o registro passou ser a entendido como gistro de Línguas, embora o pedido de criação
instrumento administrativo específico para tu- tenha sido encaminhado ao IPHAN em 2004,
tela do patrimônio imaterial. pelo então presidente da Comissão de Educa-
30
Conforme Juliana Santilli, Patrimônio Imaterial: Proteção Jurídica da Cultura brasileira, III Seminário Internacional de Direito Ambiental. Série
Cadernos CEJ, volume 21, Brasília 2002, p. 75.
ção e Cultura da Câmara dos Deputados, Sr. reza jurídica do falar como bem cultural. Po-
Carlos Abicalil, com assessoria do Instituto de rém, esse não pode ser o único instrumento de
Investigação e Desenvolvimento em Política seleção da língua como bem cultural. A dicção
Lingüística (Ipol). do Estado pode vir por meio da atuação dos po-
A partir desse pedido, foi realizado em 2006 deres legislativo, executivo ou judiciário. Des-
um seminário para tratamento do tema sob a se modo, o pré-requisito para instauração do
perspectiva patrimonial. Neste seminário, a dis- procedimento administrativo de Registro deve
cussão de critérios e procedimentos para o re- ser a conformação superficial da língua falada
gistro contou com a participação do Poder Pú- às exigências do próprio Decreto nº 3.551/2000,
blico de maneira mais sistematizada, com a for- com a apresentação de indícios e traços refe-
mação de um grupo interinstitucional que tra- renciais do idioma permitam a continuidade do
balharia na apresentação de diretrizes para cria- procedimento.
ção do Livro de registro das línguas. O grupo Dessa forma, o procedimento de registro da
de trabalho pautou-se em três linhas de atuação língua terá tramitação no IPHAN, que deve ins-
para estabelecer as diretrizes do Registro das lín- truí-lo e emitir parecer final que, publicado em
guas brasileiras como bens culturais: a) a pro- Diário Oficial, poderá ser contestado no prazo
moção do direito às línguas; b) a instalação de de 30 dias. A instrução deve ser feita, a princí-
políticas de registro e circulação das línguas; e pio pelo requerente, o qual deve instruir o pro-
c) a elaboração de equipamentos - instrumentos cesso com a descrição pormenorizada do bem,
e dispositivos – articulados às políticas lingüís- acompanhada de toda a documentação corres-
ticas.32 pondente, devendo destacar os elementos que
O Grupo de trabalho mencionado entendeu lhe sejam culturalmente relevantes. Mas ao
que a realização de inventário das línguas brasi- IPHAN cabe a tarefa de subsidiar o requerente
leiras - procedimento mais rápido que abrange- com todas as informações e dados que possa
ria todas as línguas faladas pelos brasileiros - produzir sobre o bem.34 Além do IPHAN, parti-
seria uma fase antecedente necessária ao Regis- cipa do procedimento o Conselho Consultivo do
tro, posto que “o registro acrescentaria aos di- Patrimônio Cultural, que se manifestará acerca
reitos auferidos pelo Inventário ainda uma do pedido de registro, após sua instrução, emis-
explicitação da contribuição específica daquela são de parecer pelo IPHAN, decurso de prazo
língua e daquela comunidade lingüística na cons- para sua contestação e juntada das manifesta-
trução da cidadania plural brasileira.” 33 ções da comunidade sobre o bem35. Caso o Con-
Certamente a realização do Inventário pre- selho Consultivo concorde com o registro, o
encheria a lacuna da dicção oficial sobre a natu- IPHAN concederá ao bem o título de “Patri-
31
“A intervenção pública na cultura serve para torná-la livre”, cf. Michele Anis, citado por José Afonso da Silva, Ordenação Constitucional da Cultura,
p. 210/211. José Afonso, com base na doutrina de Michele Anis, complementa que a “promoção cultural tem por escopo corrigir as disfunções
provenientes da relação que a cultura entretece com a praxe, descondicionando-a dos influxos que distorcem a livre expressão” (ob. cit, p. 211).
32
Conforme Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras”, Revista Patrimônio,
http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08. Nesse sentido, os autores explicam: “Ao estabelecer uma política de
registro nesses termos, estamos trazendo para o debate o fato de que o reconhecimento jurídico, embora seja fundamental, não é em si suficiente para
promover um espaço multilingüe. Essa promoção requer políticas de implementação de usos das línguas, de abertura de espaços para que elas se
legitimem, para que os falantes se posicionem, se projetem identitariamente. Desse modo, o registro como política no sentido aqui posto estabelece
para as línguas dois patamares de significação: o de registro como reconhecimento jurídico e como instrumento de documentação, acervo e circula-
ção.”
33
Conforme Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras”, Revista Patrimônio,
http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08. Nesse sentido, os autores explicam: “Ao estabelecer uma política de
registro nesses termos, estamos trazendo para o debate o fato de que o reconhecimento jurídico, embora seja fundamental, não é em si suficiente para
promover um espaço multilingüe. Essa promoção requer políticas de implementação de usos das línguas, de abertura de espaços para que elas se
legitimem, para que os falantes se posicionem, se projetem identitariamente. Desse modo, o registro como política no sentido aqui posto estabelece
para as línguas dois patamares de significação: o de registro como reconhecimento jurídico e como instrumento de documentação, acervo e circula-
ção.”
34
Cf. art. 3º, § 3º, do Decreto em comento. Nesse sentido Paulo Affonso Leme Machado:” As unidades do IPHAN ou qualquer órgão do Ministério da
Cultura poderão contribuir para a formação do procedimento administrativo, assim como entidade pública ou privada que detenha conhecimentos
específicos sobre a matéria” Ob. Cit, p. 916 .
35
Conforme, o art. 3º, §§ 4º e 5º, do Decreto em comento.
36
Os bens são agrupados por categoria e registrados em livros, classificados em: Livro de Registro dos Saberes, para os conhecimentos e modos de
fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Livro de Registro de Celebrações, para os rituais e festas que marcam vivência coletiva, religiosida-
de, entretenimento e outras práticas da vida social; Livro de Registros das Formas de Expressão, para as manifestações artísticas em geral; e Livro de
Registro dos Lugares, para mercados, feiras, santuários, praças onde são concentradas ou reproduzidas práticas culturais coletivas.
37
Decreto em comento, art. 6°, I. Destaca Carlos Frederico Marés de Souza Filho que: “Faltou ao Decreto a caracterização da criação de um suporte
específico para o bem cultural imaterial sem suporte. Esta é uma questão delicada. Estes bens têm como característica a ausência de suporte material.
Entretanto os meios de que se dispõe hoje, uma vez definida a importância do registro, deveria ser obrigatória a gravação de som ou imagem, ou
ambos, da prática cultural de determinado momento. Isso significa a criação de um suporte específico, demonstrativo do que é, ou era naquele
momento histórico, a manifestação cultural registrada”. Mas, a ausência de indicação expressa não inviabiliza o disposto no art. 6°, I e II, do Decreto,
cabendo ao Ministério da Cultura e ao IPHAN o estabelecimento obrigatório do suporte físico.
38
No mesmo sentido, de participação de indivíduos ou grupos na formação da documentação, cabe ao IPHAN promover seu registro adequado, sempre
que se trate manifestações culturais que associem suportes materiais diferenciados.
39
Os sambas, as rodas, os meus e os bois – A trajetória da salvaguarda do patrimônio imaterial no Brasil: 1936-2006. IPHAN, 2006, p. 18.
40
Conforme Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras”, Revista Patrimônio,
http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08.
41
Conforme Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras”, Revista Patrimônio,
http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08.
encontra fundamento na valorização dos bens de ações afirmativas que possibilitem a igualda-
que sejam importantes para a memória, a identi- de material entre os grupos formadores.
dade e a ação dos grupos formadores da socie- O processo de inserção de outras línguas bra-
dade brasileira. A proteção jurídica da diversi-
sileiras em espaços em que a língua portuguesa
dade cultural significa o direito de participação
tem hegemonia, exige a colocação do aparato
de todos os grupos formadores da sociedade bra-
administrativo à disposição da comunidade ou
sileira, especialmente dos que sejam étnica ou
culturalmente diferenciados e se caracterizem do individuo. A atuação do Estado deve ser
como grupos minoritários, no acesso e fruição centrada na necessidade de criação e oferta de
aos bens culturais. O sentido jurídico da diver- estruturas que garantam a manutenção do falar
sidade também embasa o estabelecimento de da comunidade numa perspectiva intergera-
políticas públicas diferenciadas, com previsão cional.