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A Língua

Portuguesa
1. A Língua Portuguesa 4
Sobre a Unidade da Língua Portuguesa 6
Sobre a Diversidade da Língua Portuguesa 7

2. Origem e Formação da Língua Portuguesa 9


Os Crioulos Sino-Portugueses
São os de Macau e Hong-Kong. 12
Os Crioulos do Brasil 14
Aspectos fônicos 15
Aspectos Sintáticos 15
Condicionamentos Sócio Históricos
na Formação do Português Brasileiro 17
O Multilinguismo no Brasil Colonial e Pós-Colonial 18
Sobre a Escolarização no Brasil
Colonial e Pós-Colonial 19

3. A Sala de Aula e o Professor 22

4. Referências Bibliográficas 28

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03
A LÍNGUA PORTUGUESA

1. A Língua Portuguesa

Fonte: Social Bauru1

A primeira lembrança que nos


vem à mente quando falamos
em língua nos leva ao órgão do cor-
formalizado para a realização dessa
interação. E os interlocutores, em
princípio, participativos de um diá-
po que é usado na comunicação, logo com fins determinados (ensinar
e é a partir daí que começamos a e aprender) são reais e não, virtuais,
entender que o idioma escrito hoje, professor e aluno (ZANINI, 1999).
foi um dia, apenas falado. A partir Desde a pré-história, a neces-
desse princípio de fala, nós defini- sidade de comunicação se fazia pre-
mos língua como o conjunto de le- sente. Antes da língua oral, o ho-
tras que formam palavras com senti- mem desenvolveu outras linguagens
dos diversos. E a relação dessas pa- como gestos, sinais e símbolos pictó-
lavras e suas significações nós cha- ricos, amuletos, tudo isto profunda-
mamos de sistema. Logo, a língua é mente relacionado com o mítico
um sistema, ou seja, um conjunto de (deus).
elementos que relacionam entre si e No entendimento de Caval-
formam um significado (VILARI- canti (2011) essa necessidade de se
NHO, 2009). comunicar encontra fundamento na
A língua é o meio que favorece própria essência humana, já que se
a interação entre os homens e a es- nota a propensão à partilha e à orga-
cola se revela, pois, como o espaço nização social.

1 Retirado em https://www.socialbauru.com.br/

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A LÍNGUA PORTUGUESA

Acredita-se que as primeiras mundo, produzem cultura. Assim,


articulações de sons produzidos pelo um projeto educativo comprometi-
nosso aparelho fonador com signifi- do com a democratização social e
cados distintos para cada ruído, con- cultural atribui à escola a função e a
vencionados em código, foram cele- responsabilidade de contribuir para
bradas na Língua Indo-europeia, garantir a todos os alunos o acesso
numa região incerta da Europa aos saberes linguísticos necessários
oriental, a 3000 a.C. A partir de en- para o exercício da cidadania (BRA-
tão, o Indo-europeu foi levado a di- SIL, 1997, p. 19).
versas regiões, desde o Oriente Pró- Nossa língua recebe adjetiva-
ximo até a Grã-Bretanha. Justamen- ção de ―portuguesa porque veio de
te pela grande propagação dessa lín- Portugal, colonizador do Brasil. Po-
gua em territórios tão distantes, o rém, o português de Portugal não
Indo-europeu evolui na forma de permaneceu em sua colônia de ma-
diversas novas línguas, como o gre- neira pura e simples, mas recebeu
go, o eslavo e o itálico (CAVALCAN- uma conotação abrasileirada e, por
TI, 2011). isso, falamos do português do Brasil.
O latim é uma terceira fisiono- No entanto, não só o Brasil foi
mia, determinada por fatores locais colonizado pelos portugueses e fala
(cultura, principalmente), daquela o português, mas também outros
primeira língua, o Indo-europeu, fa- países: Ilha da Madeira, Arquipé-
lada pelo homem ainda na pré-his- lago dos Açores, Moçambique, An-
tória. (Sobre o latim veremos em de- gola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e
talhes no próximo tópico). São Tomé e Príncipe, como mostra o
Segundo os Parâmetros Curri- mapa abaixo:
culares Nacionais para a Língua Por-
tuguesa (PCN), o domínio da língua-
gem, como atividade discursiva e
cognitiva, e o domínio da língua, co-
mo sistema simbólico utilizado por
uma comunidade linguística, são
condições de possibilidade de plena
participação social. Pela linguagem
os homens e as mulheres se comu-
nicam, têm acesso à informação, ex-
pressam e defendem pontos de vista, Na área vasta e descontínua
partilham ou constroem visões de em que é falado, o português apre-

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A LÍNGUA PORTUGUESA

senta-se, como qualquer língua viva, ros, muitos africanos e alguns asiá-
internamente diferenciado em va- ticos aprendem no berço, reconhe-
riedades que divergem de maneira cem como patrimônio nacional e uti-
mais ou menos acentuada quanto à lizam como instrumento de comuni-
pronúncia, a gramática e ao voca- cação, quer dentro da sua comuni-
bulário. Tal diferenciação, entretan- dade, quer no relacionamento com
to, não compromete a unidade do as outras comunidades lusofalantes.
idioma: apesar da acidentada his- Esta língua não dispõe de um
tória da sua expansão na Europa e, território contínuo (mas de vastos
principalmente, fora dela, a língua territórios separados, em vários con-
portuguesa conseguiu manter até tinentes) e não é privativa de uma
hoje apreciável coesão entre as suas comunidade (mas é sentida como
variedades. As formas característi- sua, por igual, em comunidades dis-
cas que uma língua assume regio- tanciadas). Por isso, apresenta gran-
nalmente denominam-se dialetos. de diversidade interna, consoante as
Alguns linguistas, porém, distin- regiões e os grupos que a usam. Mas,
guem o falar do dialeto. também por isso, é uma das prin-
Dialeto seria um sistema de si- cipais línguas internacionais do
nais originados de uma língua co- mundo. É possível ter percepções
mum, viva ou desaparecida; normal- diferentes quanto à unidade ou
mente, com uma concreta delimita- diversidade internas do português,
ção geográfica, mas sem uma forte conforme a perspectiva do obser-
diferenciação diante dos outros dia- vador. Quem se concentrar na língua
letos da mesma origem. De modo se- dos escritores e da escola, colherá
cundário, poder-se-iam também uma sensação de unidade. Quem
chamar dialetos as estruturas lin- comparar a língua falada de duas re-
guísticas, simultâneas de outra, que giões (dialetos) ou grupos sociais
não alcançam a categoria de língua. (sociolectos) não escapará a uma
Falar seria a peculiaridade ex- sensação de diversidade, até mesmo
pressiva própria de uma região e que de divisão.
não apresenta o grau de coerência
alcançado pelo dialeto. Caracterizar- Sobre a Unidade da Língua
se-ia por ser um dialeto empobreci- Portuguesa
do, que, tendo abandonado a língua
Uma língua de cultura como a
escrita, convive apenas com mani-
nossa, portadora de longa história,
festações orais. O Português é a lín-
que serve de matéria prima e é pro-
gua que os portugueses, os brasilei-
duto de diversas literaturas, instru-

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A LÍNGUA PORTUGUESA

mento de afirmação mundial de di- riantes, pertence, mais do que ao


versas sociedades, não se esgota na domínio linguístico, ao domínio da
descrição do seu sistema linguístico: história, da cultura e, em última ins-
uma língua como esta vive na histó- tância, da política. Na medida em
ria, na sociedade e no mundo. Tem que a percepção destas realidades
uma existência que é motivada e for variando com o decorrer dos
condicionada pelos grandes movi- tempos e das gerações, será certa-
mentos humanos e, imediatamente, mente de esperar, concomitante-
pela existência dos grupos que a mente, que a extensão da noção de
falam. língua portuguesa varie também.
Isto significa que o português
falado em Portugal, no Brasil e na Sobre a Diversidade da Língua
África pode continuar a ser sentido Portuguesa
como uma única língua enquanto os
povos dos vários países lusofalantes A diversidade linguística que o
sentirem necessidade de laços que português apresenta através do seu
os unam. enorme espaço pluricontinental é,
inevitavelmente, muito grande e
certamente vai aumentar com o
tempo.
Os linguistas acham-se dividi-
dos a esse respeito: alguns acham
que, já neste momento, o português
de Portugal (PE) e o português do
Brasil (PB) são línguas diferentes;
outros acham que constituem va-
riedades bastante distanciadas den-
Fonte: tro de uma mesma língua.
https://www.portugues.com.br/

A língua é, porventura, o mais


poderoso desses laços. A este res-
peito, Raposo (1984, p. 592) diz que
a realidade da noção de língua por-
tuguesa, aquilo que lhe dá uma di-
mensão qualitativa para além de um
mero estatuto de repositório de va-

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A LÍNGUA PORTUGUESA

2. Origem e Formação da Língua Portuguesa

Fonte: Estudo Pratico2

A Língua Latina surgiu na região


do Lácio (hoje Itália ao sul do
Rio Tibre), por volta do século VII
do, sobretudo, a fatores locais (cul-
tura, folclore, invasões) , até se frag-
mentar.
a.C., dois milênios depois do Indo- Numa breve linha do tempo
europeu. Roma era a capital do Lá- podemos situar assim a evolução da
cio (um grandioso império, diga-se língua portuguesa:
de passagem) e apropriando-se da Pré-história - Latim Vulgar
língua utilizada pelos povos itálicos (VII a.C. – IX d.C): Ainda no Im-
(fundadores de Roma) que ainda so- pério Romano, as pessoas eram
friam invasões bárbaras, os romanos obrigadas a falar Latim, mesmo não
tornaram o Latim a língua oficial do sendo sua língua local. Os romanos
Império, porém, como aconteceu ao conquistaram a Península Ibérica
Indo-europeu, o Latim, não poden- em 218 a.C. A partir de então, o La-
do permanecer o mesmo em tão di- tim falado na Galícia e na Lusitânia
ferentes lugares e tão longínquas re- (províncias ibéricas) adquiriu traços
giões, foi sofrendo alterações, devi- peculiares próprios da Península.

2 Retirado em https://www.estudopratico.com.br/

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A LÍNGUA PORTUGUESA

Essa época é chamada pré- lego-português, uma evolução do


histórica porque não há documentos Latim totalmente de acordo com o
escritos, o Latim Vulgar era apenas que o povo queria, pois o Latim era
falado (principalmente pelo povo uma língua imposta pelos romanos
nas situações domésticas), mas ofi- as povos ibéricos.
cialmente (nos documentos e regis- A Língua Portuguesa (século
tros escritos) só se podia usar o La- XIV - XVI): A partir do século XIV,
tim Canônico. o Galego-português cada vez mais é
Primeiras Letras do Latim Vul- substituído pelos dialetos regionais
gar (IX d.C. – XII d.C.): No sé- da Lusitânia e da Galícia, até que o
culo IX, começa a escritura dos pri- Português se dissocia do Galego.
meiros documentos em Latim ―bár- Já a partir do século XVI, a
baro, ou seja, com traços de uma Língua já está muito perto do uso
nova língua que se anunciava entre o que fazemos hoje. O Português co-
povo. Dessa forma, trata-se de regis- meça a dar seus primeiros passos.
tros de pequena importância na hie- Ainda há resquícios do galego-por-
rarquia de poder (testamentos, con- tuguês, principalmente na ortogra-
tratos, documentos jurídicos de pe- fia, que é sempre cambiante. Entre-
quena monta). tanto, o predomínio das caracterís-
Note-se que esses documentos ticas do Português é evidente (CA-
de cartórios, se não atendiam aos in- VALCANTI, 2011).
teresses dos governantes, faziam A maior parte do vocabulário
parte da vida privada do povo, que da Língua Portuguesa tem sua ori-
dava a mão de obra para as institui- gem no Latim: pater (pai); mater
ções de baixo escalão. (mãe); filius (filho); manus (mão);
O galego-português (1150- aqua (água); bonus (bom); fortis
1200): A partir do final do século (forte); viridis (verde); dicere (di-
XII, na Península Ibérica não se fala zer); cadere (cair); amare (amar);
mais o Latim, nem mesmo em sua avis (ave).
forma Vulgar. As características do Não obstante, a estas palavras
Latim que não se identificavam com se somam outras provenientes do
a vida e o pensamento da grande po- Latim Vulgar (termos populares):
pulação se perderam. Portanto, já bellus (belo); caballus (cavalo);
completamente descaracterizado, o cattus (gato); casa (casa); grandis
latim torna-se, aos poucos, língua (grande)
morta, e cada vez mais vigora o Ga-

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A LÍNGUA PORTUGUESA

Também há de se considerar a crioulos! Os crioulos são línguas


sobrevivência de várias palavras naturais, de formação rápida, cria-
oriundas da língua local, antes da in- das pela necessidade de expressão e
vasão romana: barro, manteiga, vei- comunicação plena entre indiví-
ga, sapo, esquerdo. duos inseridos em comunidades
Algumas palavras germânicas multilíngues relativamente estáveis.
foram incorporadas a muitas línguas Procurando superar a pouca funcio-
românicas, inclusive o Português. nalidade das suas línguas maternas,
Na maioria dos casos, foram intro- estes recorrem ao modelo imposto
duzidas por ocasião das invasões (mas pouco acessível) da língua
bárbaras, das quais estas são pro- socialmente dominante e ao seu as-
venientes: guerra; guardar; trégua; ber linguístico para constituir uma
ganso; lua; roubar; espiar; fato (rou- forma de linguagem veicular sim-
pa); ataviar; estaca; espeto; marta; ples, de uso restrito, mas eficaz, que
agasalhar; gana; branco; brotar. posteriormente é gramaticalmente
A última observação recai na complexificada e lexicalmente ex-
longa permanência dos mouros na pandida, em particular pelas novas
Península, fato que refletiu na Lín- gerações de crianças que a adquirem
gua. Até hoje, a presença dos árabes como língua materna, dando origem
na Ibéria pode ser notada pela re- ao crioulo (MATTOS E SILVA,
gião de Andaluzia, onde existe uma 2000).
grande quantidade de ciganos e ou- Chamam-se de base portu-
tros povos bárbaros ou nômades. guesa os crioulos cujo léxico é, na
Dentre as palavras de uso corrente sua maioria, de origem portuguesa.
na Língua Portuguesa, citem-se: ar- No entanto, do ponto de vista gra-
roz; azeite; azeitona; bolota; açuce- matical, os crioulos são línguas
na; javali; azulejo; açúcar; refém, diferenciadas e autônomas. Sendo a
arrabalde; mesquinho; baldio; até língua-base aquela que dá o léxico,
Dentre elas, pode-se destacar podemos encontrar crioulos de dife-
o grupo de palavras que se iniciam rentes bases: de base inglesa (como
por AL, que é o artigo da língua o Krio da Serra Leoa), de base fran-
árabe: alface; alfarrábio; alfinete; al- cesa (como o crioulo das Seychelles),
barda; alicerce; almofada; alfaiate; de base árabe (como o Kinubi do
almocreve; almoxarife; alfândega; Uganda e do Quênia) ou outra. Os
aldeia (CAVALCANTI, 2011). crioulos de base portuguesa são
Chegamos a um tempo mais hábitualmente classificados de acor-
moderno e uma nova divisão: os

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A LÍNGUA PORTUGUESA

do com um critério de ordem predo- Os Crioulos Sino-Portugue-


minantemente geográfica embora, ses São os de Macau e
em muitos casos, exista também Hong-Kong.
uma correlação entre a localização
geográfica e o tipo de línguas de Na América encontramos ain-
substrato em presença no momento da um crioulo que se poderá consi-
da formação. derar de base ibérica, já que o por-
Na África formaram-se os tuguês partilha com o castelhano a
Crioulos da Alta Guiné (em Cabo origem de uma grande parte do léxi-
Verde, Guiné- Bissau e Casamansa) co (o Papiamento de Curaçau, Aruba
e os do Golfo da Guiné (em S. Tomé, e Bonaire, nas Antilhas) e um outro
Príncipe e Ano Bom). crioulo no Suriname, o Saramacano,
Classificam-se como Indo- que, sendo de base inglesa, manifes-
portugueses os crioulos da Índia (de ta no seu léxico uma forte influência
Diu, Damão, Bombaim, Chaul, Kor- portuguesa.
lai, Mangalor, Cananor, Tellicherry, As navegações, expansão e co-
Mahé, Cochim, Vaipim e Quilom e lonização portuguesa foram propí-
da Costa de Coromandel e de Ben- cias ao contato linguístico e à forma-
gala) e os crioulos do Sri-Lanka, an- ção de crioulos. As situações sócio-
tigo Ceilão (Trincomalee e Battica- linguísticas decorrentes dos diferen-
loa, Mannar e zona de Puttallam). tes tipos de contato entre a língua
Quanto a Goa (na Índia), é discutível portuguesa e as outras línguas afri-
se aí se terá formado um crioulo de canas, asiáticas e americanas, esti-
base portuguesa. Theban (1985) e veram na origem de manifestações
Tomás (1995) consideram, contra- linguísticas também diferentes.
riamente a Holm (1989) e Clemens Os primeiros contatos favore-
(1996, 2000), que a pressão muito ceram, naturalmente, a formação de
forte do português, língua oficial e línguas de contato, para efeitos de
de instrução, teria impedido a for- comunicação imediata, sobretudo
mação de um crioulo em Goa quando as línguas veiculares tradi-
(MATTOS E SILVA, 2000). cionalmente usadas para o mesmo
Na Ásia surgiram ainda criou- fim, como o árabe, deixavam de ser
los de base portuguesa na e em algu- funcionais. Estes contatos perdu-
mas ilhas da Indonésia conhecidos raram como línguas de comércio na
sob a designação de Malaio-por- África e na Ásia até ao século XVIII.
tugueses.

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A LÍNGUA PORTUGUESA

A partir desses primeiros con- modos distintos: por formação in


tatos, onde a língua portuguesa con- loco ou por difusão (tendo, neste ca-
seguiu se impor, apoiada por um so, migrado com os seus falantes
número elevado de falantes (como para diferentes partes do mundo às
no Brasil) ou por uma política de vezes tão longínquas como as An-
ensino e difusão sistemática (como tilhas), ou ainda pela convergência
em Goa, sede do poder militar e das duas formas.
administrativo português desde Os crioulos de base portuguesa
1512), foi plenamente adquirida pe- que se presume terem existido em
los grupos que a ela tiveram acesso e algumas zonas do Brasil, nomeada-
manteve-se assim, com vitalidade, mente no Nordeste, poderão ter sido
muitas vezes a par das outras lín- o resultado dessa convergência: ao
guas maternas e do próprio contato contexto multilíngue favorecido pe-
de base portuguesa. las plantações de açúcar veio as-
Pelo contrário, a formação das sociar-se a importação de escravos
línguas crioulas ocorreu, tipicamen- de regiões africanas onde comprova-
te, em comunidades multilíngues damente já se falava crioulo, como
em que houve fraco acesso ao mode- no arquipélago de São Tomé (MAT-
lo da língua portuguesa (sendo o nú- TOS E SILVA, 2000).
mero de portugueses proporcional- Sendo, ao contrário dos pid-
mente muito inferior ao dos outros gins (As línguas de contato.), línguas
grupos), perda parcial ou mesmo maternas de uma comunidade, os
total de funcionalidade das outras crioulos, uma vez formados, passa-
línguas maternas e forte miscigena- ram a constituir símbolos de identi-
ção. Estas condições ocorriam em dade de grupo o que explica, em
zonas de concentração e isolamento grande parte, a sua resistência às
das populações miscigenadas, longe subsequentes investidas assimilado-
das suas terras e culturas de origem, ras das línguas de poder e de maior
em particular em plantações e em prestígio social e cultural que com
ilhas como as de Cabo Verde e São eles se mantiveram em contato,
Tomé, mas também nas fortificações entre as quais o próprio português.
costeiras edificadas pelos portugue- Essa resistência foi tanto
ses nos séculos XV e XVI. maior e mais eficaz quanto maior o
Os crioulos de base portuguesa isolamento e quanto menor o poder
conhecidos surgiram nas zonas e lo- e a pressão das línguas em contato
cais assinalados nos mapas (ver o (nomeadamente através da instru-
mapa no primeiro capítulo) de três ção). Foi ainda favorecida quando à

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A LÍNGUA PORTUGUESA

língua crioula se veio associar a acessível, nomeadamente nas comu-


identificação com a religião cristã, nidades escravas, teria sido adqui-
por oposição às religiões circundan- rido como segunda língua por fa-
tes. Em circunstâncias em que as lantes adultos de outras línguas ma-
populações falantes de crioulos as- ternas (em particular africanos) de
cenderam à independência (Cabo uma forma imperfeita sofrendo
Verde, Guiné-Bissau...) houve mes- uma reestruturação parcial e nessa
mo uma revitalização do crioulo, forma tendo sido transmitido de ge-
fortalecida nos casos de oficiali- ração em geração. A presença de tra-
zação. ços tipicamente crioulos (tais como
Ainda assim, esses focos de re- a variação no uso de flexões verbais
sistência acabaram frequentemente e na concordância nominal e verbal)
por ceder e permitir uma descriouli- ter-se-ia devido, igualmente, à in-
zação umas vezes paulatina, outras fluência de antigos crioulos falados
acelerada, conduzindo, em alguns no Brasil (nomeadamente pelos es-
casos, à morte, em particular quan- cravos trazidos da costa ocidental de
do os crioulos perderam a funciona- África para trabalhar nas planta-
lidade em favor de outras línguas ções) e atualmente extintos.
social e politicamente dominantes Para outros autores (como
(como aconteceu com a maioria dos Parkvall 1999 apud Pereira, 2000), o
crioulos da Ásia). grau de reestruturação patente no
PVB é tão moderado que difícilmen-
Os Crioulos do Brasil te se lhe poderá aplicar a designação
de semicírculo, podendo a reestru-
Segundo Pereira (2000) al- turação existente explicar- se, não só
guns autores referem-se a uma va- pelo efeito do contato com outras
riedade não padronizada do portu- línguas, mas também, pela evolução
guês brasileiro, o Português Verná- interna inerente a qualquer língua.
culo do Brasil (PVB) (Holm et al No entanto, existe uma varie-
1999), como sendo um semi-crioulo, dade dialetal afro-brasileira que pa-
uma variedade que, embora parti- rece corresponder a uma fase avan-
lhando com os crioulos alguns traços çada de descrioulização de um ante-
estruturais, não resultou de um pro- rior crioulo, a variedade de Helvécia,
cesso de crioulização radical. Nesta ao sul da Baía. A povoação de Hel-
perspectiva, em situação de contato vécia descende de escravos negros
entre múltiplas línguas, o português, que pertenciam a uma colônia suíça
constituindo um modelo pouco alemã fundada em 1818.

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A LÍNGUA PORTUGUESA

Segundo Baxter (1995), nas brasileiro contemporâneo da língua


primeiras épocas da Colônia Leo- portuguesa.
poldina, o português que serviu de
modelo para a formação desta va- Aspectos fônicos
riedade era ele próprio muito va-
riável, sendo falado por uns como Quando algum estrangeiro ou-
língua materna e por outros como ve um brasileiro e um português, ou
língua segunda, o que favoreceu um quando um brasileiro ouve um por-
processo mais radical de reestru- tuguês (ou vice-versa), a primeira
turação (PEREIRA, 2000). impressão que se instala é a da dife-
Aspectos que Diferenciam o rença do sotaque, que caracteriza a
Português Brasileiro e o Português pronúncia diferenciadora do brasi-
Europeu Contemporâneo. Evidente- leiro em relação ao português. Esse
mente que o Português Brasileiro sotaque/pronúncia recobre distin-
descende do Europeu, mas no Bra- ções fônicas, tanto suprassegmen-
sil, tomou a sua forma na complexa tais ou prosódicas, interpretadas
interação entre: ainda imprecisamente pelos linguis-
 A língua do colonizador (e, tas, como diferenças fônicas seg-
portanto, do poder e do pres- mentáveis (as realizações fonéticas
tígio); próprias ao sistema vocálico e con-
 As numerosas línguas indíge- sonântico do Português Brasileiro e
nas brasileiras; do Europeu) (MATTOS E SILVA,
 As também numerosas línguas 2010).
africanas chegadas pelo tráfi-
co negreiro (oficial entre 1549
e 1830, não oficial antes e de- Aspectos Sintáticos
pois desses limites); e final-
mente; O ouvinte estrangeiro não per-
 As línguas dos que emigraram ceberia de imediato as profundas di-
para o Brasil da Europa e da ferenças sintáticas. Não se pode ne-
Ásia, sobretudo a partir de gar que um ponto central da dife-
meados do século XIX.
rença está no sistema pronominal,
tanto na posição de sujeito, como de
Dessa potencial que Pereira
complemento, com reflexos inevitá-
(2000) denomina ―Babel linguísti-
veis nos possessivos e no paradigma
ca, foi se definindo, ao longo de qui-
das flexões número-pessoais do
nhentos anos – pouco tempo para a
verbo.
história de uma língua o formato

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A LÍNGUA PORTUGUESA

No Brasil, com a expansão do modo ser inferidos pragmáticamen-


você e do ―a gente como pronomes te (essa condição varia entre as di-
pessoais e com a redução do uso do versas línguas, sendo até ser difícil
tu e do vós, a 3ª pessoa verbal se ge- de ser definida).Línguas em que
neraliza: temos hoje em convivên- existe isso são chamadas pro- drop
cia, no Brasil, um paradigma verbal (redução de de pronoun-dropping,
de: quatro posições: do inglês para supressão de prono-
 Eu falo/ele, você, a gente fala/ me), possível no Português Euro-
nós falamos/eles, vocês falam; peu, em que essas reduções não
 Outro de três posições, ocorrem tal como no Português Bra-
 Eu falo/ele, você, a gente fala/ sileiro.
eles falam; O uso extensivo de você, em
 Outro de duas posições, dos lugar de tu, cria no Português Bra-
menos escolarizados, ou não-
escolarizados, sobretudo de sileiro uma ambiguidade para o seu,
áreas rurais, mas não só, que possessivo que pode referir-se ao in-
não aplicam a regra de con- terlocutor ou não, ambiguidade des-
cordância verbo-nominal, feita no discurso (Comprei seu livro
 Eu falo/ele, você, a gente, eles, ontem ou Zélia Gattai escreveu um
vocês fala. novo romance, seu livro está sendo
muito vendido). Ambiguidade tam-
Em algumas áreas geodialetais bém desfeita, estruturalmente, pelo
brasileiras, usa-se o tu, na fala cor- dele, que passa a adquirir a condição
rente com o verbo na 3ª pessoa (tu de pronome possessivo (Saramago
fala) e, em reduzidas áreas (talvez a escreveu um novo romance, o livro
mais forte seja o litoral catarinense e dele está sendo muito vendido).
sul riograndense), ao tu ainda se Quanto aos pronomes comple-
segue a flexão histórica (tu falas). mentos clíticos, sobretudo os de ter-
Percebe-se que quanto mais é ceira pessoa – o, a, os, as – estão
reduzido o paradigma flexional nú- sendo eliminados no Português Bra-
mero-pessoal do verbo, mais neces- sileiro, preferindo- se, em seu lugar,
sário se faz o preenchimento do ou o sintagma nominal pleno ou,
sujeito pronominal, perdendo assim embora estigmatizado pelos alta-
o Português Brasileiro o chamado mente escolarizados, o pronome su-
parâmetro pro-drop (Anáfora zero jeito correspondente, o chamado ele
ou nula é o fenômeno pelo qual uma acusativo ou ainda o apagamento do
certa classe de pronomes pode ser pronome complemento, estratégia
omitida quando puderem de algum de esquiva muito frequente (Seu fi-

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A LÍNGUA PORTUGUESA

lho estava no Shopping. Eu vi seu a próclise, como nas orações subor-


filho lá ou ...eu vi ele lá ou ...eu vi lá). dinadas e nas negativas (O vestido
O apagamento do objeto direto pro- que dei-lhe de presente ficou bom;
nominal clítico é corrente no Por- Eu não disse-lhe que viesse!). Há
tuguês Brasileiro, movimento inver- ainda aceitação normal e generaliza-
so ao preenchimento do sujeito da dos clíticos na primeira posição
(MATTOS E SILVA, 2000). da sentença, exceto os acusativos o,
Ainda quanto aos pronomes a, os, as (Lhe disse que não viesse; -
complementos clíticos, ressalta o Me passe esse livro).
lhe, originalmente um dativo, cor-
respondente ao objeto indireto, usa- Condicionamentos Sócio His-
do como acusativo, objeto direto, tóricos na Formação do Portu-
correlacionado ao pronome sujeito guês Brasileiro
você (Você gosta muito de cinema.
Eu lhe vejo sempre no Multiplex). O Segundo Mattos e Silva
lhe acusativo varia com te, mesmo (2000) Serafim da Silva Neto (1986)
sendo o tratamento você (Você gosta defendia a tese da unidade da língua
de cinema. Eu te vejo sempre no portuguesa no Brasil, entrevendo
Multiplex). Nos exemplos dados, o que no Brasil as delimitações diale-
clítico canônico -o/a- pode ocorrer tais espaciais não eram tão marca-
no uso cuidado, monitorado, de es- doras como as isoglossas da Româ-
colarizados; ele é adquirido na esco- nia Antiga. Mas Paul Teyssier (198
la e, curiosamente, primeiro na es- 2), na sua História da língua portu-
crita e depois na fala, o que mostra guesa, reconhece que na diversidade
ser um recurso sintático, efeito de socioletal essa pretensa unidade se
aprendizagem pela escolarização, e desfaz. Segundo ele -a realidade,
não adquirido naturalmente na in- porém, é que as divisões dialetais no
fância. Brasil são menos geográficas que
Ainda sobre os clíticos e aí, não socioculturais. As diferenças na ma-
só os de 3ª pessoa, nós, brasileiros, neira de falar são maiores, num de-
quando os usamos, preferimos a terminado lugar, entre um homem
próclise. A ênclise é hoje mal apren- culto e o vizinho analfabeto que en-
dida na escola, tanto que, cada vez tre dois brasileiros do mesmo nível
mais, encontramos em textos de es- cultural originários de duas regiões
tudantes e em outros, como os jor- distantes uma da outra.
nalísticos, a ênclise nas posições em A implementação dos estudos
que, historicamente, sempre se usou sociolinguísticos no Brasil demons-

17
A LÍNGUA PORTUGUESA

trou que o Português Brasileiro é lação brasileira, que atinge hoje um


não apenas heterogêneo e variável, total de 169.544.443 habitantes, se-
mas também plural e polarizado, de- gundo os primeiros resultados do
finindo-se dois sistemas igualmente Censo 2000.
heterogêneos, que designamos co- Uma certa homogeneidade
mo norma culta e norma vernácula, cultural e linguística, ao longo do
e outros autores como Português litoral, a partir do Rio Grande do
Brasileiro culto e Português Brasi- Norte, e também na Bacia do Pa-
leiro popular. raná/Paraguai, tornou possível a
Essa heterogeneidade enraíza- gramatização da Língua mais falada
se em condicionamentos de nature- na costa do Brasil, título muito ade-
za sócio histórica: multilinguíssimo, quado da gramática do Pe José de
ou contato entre falantes de múlti- Anchieta, publicada em 1595. Essa
plas línguas distintas; fatos da de- língua estará na base do que no
mografia histórica; mobilidade po- século XVIII veio a se designar de
pulacional dos escravos; escolariza- língua geral.
ção no Brasil, no período colonial e Rodrigues (1986) distingue
pós-colonial. duas línguas gerais:
 A paulista, de base tupiniquim
O Multilinguismo no Brasil Co- e/ou guarani, que terá sido a
lonial e Pós-Colonial língua de intercomunicação
entre colonizadores, colonos e
Mattos e Silva (2000) afir- índios nas bandeiras para os
mam, com certa margem de segu- interiores do Brasil, a partir de
rança, que até meados do século São Paulo, no século XVII; e,
XVIII o multilinguismo generaliza-  A amazônica, de base tupi-
nambá, que, a partir do Ma-
do caracterizou o território brasi-
ranhão, começou a avançar na
leiro, até certo ponto freado pelas colonização da babélica Ama-
leis pombalinas de política linguís- zônia, adjetivo recorrente nos
tica dos meados do século XVIII. escritos do Pe Antônio Vieira.
O multilinguismo perdura:
ainda hoje, apesar de a língua portu- Enriquecer-se-á esse multilin-
guesa ser a língua oficial majoritária guismo autóctone em contato com o
no Brasil, persistem cerca de 180 lín- português do colonizador e com os
guas indígenas, com a média de 200 escravos africanos trazidos para o
falantes por língua, faladas por 300. Brasil, oficialmente a partir de 1549,
000 a 500.000 índios (estimativas mas já solicitados antes. Após a ins-
de 2000), perfazendo 0,2 da popu- talação do primeiro governo geral,

18
A LÍNGUA PORTUGUESA

em 1549, estabeleceu-se o tráfico re- guismo no Brasil com a chegada dos


gular e estimulou-se a importação emigrantes europeus e asiáticos, so-
de africanos para o Brasil. Segundo bretudo a partir do século XIX. Os
Couto (1992, p. 278), ―nos finais de dados a seguir têm como fonte o
Quinhentos, a presença africana estudo de Lúcio Kreutz (2000, p.
(42%) já se estendia a todas as ca- 351) – A educação dos imigrantes no
pitanias, ultrapassando no conjunto, Brasil: ―os alemães formaram a pri-
qualquer um dos outros grupos – meira corrente imigratória, a partir
Portugueses (30%) e Índios (28%), de 1824, localizando-se, sobretudo,
apresentando um crescimento espe- em São Leopoldo no Rio Grande do
tacular nas capitanias de Pernam- Sul. Os italianos vieram a partir da
buco e Bahia, esta última sextupli- década de 1870 e formaram o con-
cando seus habitantes negros. tingente maior: 1.513.151 de imi-
Teria o Brasil, ao findar o pri- grantes. No mesmo período vieram
meiro século colonial, 101.750 habi- 1.462.111 portugueses, 598.802 es-
tantes, dos quais 42% de africanos. panhóis, 188.622 japoneses (a partir
Diante desses dados demográficos de 1908), 123.724 russos, 94.453
se pode admitir que o forte candi- austríacos, 79.509 sírio-libaneses,
dato para a difusão do português ge- 50.010 poloneses e 349.354 de di-
ral brasileiro, antecedente histórico versas nacionalidades.
do atualmente designado de verná- Segundo este autor, a década
culo ou português popular, variante mais intensa da imigração, entre 18
sociolinguística mais generalizada 50 e 1920, foi a de 1890 com 1.200.
no Brasil, seriam os africanos e afro- 000 imigrantes. Na sua grande
descendentes, e não os indígenas au- maioria esses novos componentes
tóctones, já que o Português Bra- da sociedade multilíngue, multiétni-
sileiro culto, próprio hoje, em geral, ca, multirracial e pluricultural brasi-
aos de escolarização mais alta, será o leira se situaram de São Paulo para o
descendente do Português Europeu Sul.
ou mais europeizado das elites e dos
segmentos mais altos da sociedade Sobre a Escolarização no Bra-
colonial (MATTOS E SILVA, 2000). sil Colonial e Pós-Colonial
Além das línguas indígenas
Até a primeira metade do sé-
autóctones e das africanas chegadas
culo XIX, a etnia branca, constituída
com o tráfico negreiro, que oficial-
por portugueses ou luso-descen-
mente se encerra em 1830, com-
dentes, perfez apenas 30% da popu-
pleta-se o quadro geral do multilin-
lação. Nos outros 70% estão, sobre-

19
A LÍNGUA PORTUGUESA

tudo, os africanos e afrodescenden- seu prestígio sociocultural na segun-


tes, já que os indígenas ou morreram da metade do século XIX no Brasil,
por extermínio intencional ou por realizar a norma padrão de tradição
epidemias. Estes 70% adquiriram a lusitanizante.
língua da colonização, a língua alvo, Considerando-se os fatores só-
numa situação chamada pelos espe- cio históricos que atuaram das ori-
cialistas de transmissão irregular ou gens e por todo o período colonial e
de aquisição imperfeita, já que pós-colonial, pode-se entrever uma
tinham história familiar de língua interpretação de como se originou e
não portuguesa. se formou o Português Brasileiro,
Segundo Ribeiro (1999) em constituído em contexto social de
―A origem do português culto – a transmissão, majoritariamente, ir-
escolarização, em 1890 seriam 85% regular, na oralidade, livre das peias
os analfabetos no Brasil. Chegou-se normativizadoras da escolarização
à segunda década do século XX com e, consequentemente, da escrita, o
apenas 25% como potenciais usuá- que resultou numa variante, em
rios do Português Brasileiro culto e muitos aspectos, divergente da
75% como potenciais portadores do europeia.
português popular brasileiro, ou No seu interior, esse Portu-
seja, o vernáculo ou normas verná- guês Brasileiro heterogêneo apre-
culas, ainda hoje predominantes no senta variantes socioletais com con-
Brasil. figurações profundamente modifi-
Conjugando assim os dados de cadas, que se aproximam dos criou-
demografia histórica, o tipo de los de base portuguesa e variantes
transmissão linguística irregular, que se aproximam do Português Eu-
majoritário ao longo dos séculos XVI ropeu. No primeiro caso, Mattos e
ao XIX e os dados da quase ausência Silva (2000) acredita que uma
de escolarização nesses séculos, po- crioulização prévia, embora leve,
de-se interpretar a polarização so- possa ter ocorrido no passado e, no
cioletal que caracteriza o Português segundo, a deriva natural, apressada
Brasileiro da atualidade, no qual pela história social do Brasil, não
convivem os portadores das normas deve ser desconsiderada. Enfim, não
cultas com os majoritariamente por- se pode tratar como um conjunto
tadores das normas vernáculas e homogêneo, unitário, o Português
ainda uma minoria, em extinção, Brasileiro, nem numa perspectiva
que busca, no modelo da gramática sincrônica, nem numa perspectiva
normativo-prescritiva, que inicia diacrônica.

20
A LÍNGUA PORTUGUESA

3. A Sala de Aula e o Professor

Fonte: Simulare3

U ma tarefa importante que cabe


à Escola Fundamental é a for-
mação de alunos que saibam ler e es-
a qualquer momento, e deve estar
consciente de que é possível essa
perda. Assim, devem também cons-
crever textos autonomamente, en- tituir objetos de conhecimento do
tendendo por autonomia a capaci- professor a disciplina e a organiza-
dade de lidar com as exigências do ção do trabalho. Há conhecimentos
texto escrito de forma consciente, que emergem na sala de aula e que
voluntária e intencional. devem ser valorizados; existem con-
Quanto a sala de aula, este é flitos que restringem a ação do pro-
um espaço onde a todo o momento fessor, e há estratégias utilizadas por
acontecem problemas que exigem a ele para enfrentar tais situações da
interferência do professor. Mas, o melhor maneira possível, requeren-
professor pode perder a autoridade do até mesmo a intervenção de pe-

3 Retirado em https://simulare.com.br/

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A LÍNGUA PORTUGUESA

dagogos ou administradores escola- dinâmica de organização de cada


res (FERREIRA, 2004). um, bem como dos conceitos envol-
Quando a criança inicia o vidos em sua compreensão e pro-
aprendizado escolar, traz consigo a dução, nas diferentes situações em
experiência da linguagem oral; já in- que esta última ocorre (JOLIBERT
ternalizou uma ―gramática da lín- ET al., 1994a e b).
gua. Nem sempre, porém, essa gra- O professor, em sua função de
mática corresponde ao ―modelo mediador, é peça fundamental no
adotado pela escola, e, mesmo sendo desencadeamento do processo de
esse o caso, tal conhecimento opera desenvolvimento do aluno: tem o
em um plano não consciente, vale papel de estimular as trocas verbais
dizer, a criança ainda não consegue entre todos os participantes do pro-
lidar voluntária e intencionalmente cesso de ensino-aprendizagem e,
com ele. com isso, proporcionar as condições
Além disso, há uma diferença necessárias ao desenvolvimento das
entre a aprendizagem da linguagem funções psicointelectuais superiores
escrita - nos planos da leitura e da dos alunos.
produção de textos escritos - e aque- Essas funções aparecem, se-
la relativa à linguagem oral, pois a gundo Vygotsky (1988, p. 114), duas
primeira requer da criança uma du- vezes no curso desse desenvolvi-
pla abstração: lidar com uma lin- mento, a primeira vez, nas ativida-
guagem que prescinde dos aspec- des coletivas, nas atividades sociais,
tos sonoros em sua realização, res- ou seja, como funções interpsíqui-
tringindo-se ao plano das ideias cas; a segunda, nas atividades indi-
veiculadas pelas palavras e, ao mes- viduais, como propriedades internas
mo tempo, lidar com a ausência do do pensamento da criança, ou seja,
interlocutor na situação imediata de como funções interpsíquicas.
sua produção (VYGOTSKY, 1991, p. Isso significa que o aluno pre-
229-30). cisa ser envolvido em situações de
Para conduzir o aluno ao do- leitura e escrita em que é possibi-
mínio da linguagem escrita, o pro- litada a reflexão sobre o material que
fessor deve atuar como o mediador lê ou escreve. No plano da leitura, ao
entre a criança e o seu objeto de co- invés de apenas ler o texto e respon-
nhecimento, orientando-a na leitura der questões escritas sobre o mate-
e escrita de diversos tipos de textos rial lido, os alunos devem ser condu-
(Kaufman e Rodríguez, 1995), pos- zidos a fazerem eles mesmos, com a
sibilitando-lhe o conhecimento da ajuda e interferência do professor,

23
A LÍNGUA PORTUGUESA

um questionamento acerca dos ele- operação sobre a língua — que jun-


mentos que envolvem a compreen- tamente com as atividades linguís-
são global do texto, desde os mais ticas — de leitura e produção — e as
amplos como o contexto em que foi metalinguísticas — de descrição e
escrito, autoria, destinação, estrutu- categorização — formam o conjunto
ração, até os mais específicos que das três principais atividades que
configuram a organização textual devem ser levadas a efeito no ensino
com coesão e coerência. da língua materna (SÃO PAULO,
Quanto à escrita, os alunos 1991).
devem ser orientados a criar a sua O desencadeamento de uma
própria escrita para depois, a partir discussão epilinguística, no momen-
de confrontações com os textos de to da leitura e da produção de textos
seus pares e com textos de refe- escritos, põe em confronto os conhe-
rência, previamente selecionados cimentos linguísticos do aluno e
para essa tarefa, fazer as necessárias aqueles que a escola, na pessoa do
intervenções no texto que escreve. professor, considera adequados a
Desta perspectiva, os alunos viven- sua formação como leitor/produtor
ciam um processo de ação-reflexão- de textos. Esse processo de reflexão
ação que lhes possibilita, num pri- sobre o escrito, no momento da lei-
meiro momento, lançar mão de seus tura e da produção de textos, permi-
conhecimentos prévios para produ- te que os alunos se conscientizem
zir seu texto; em seguida, pelas lei- dos usos adequados dos fatos lin-
turas, análises e confrontações que guísticos em jogo nessas ações e, aos
faz dos textos lidos com sua própria poucos, ganhem autonomia para
produção, em interação com os de- lidar com elas de forma voluntária
mais alunos e com o professor, (MILLER, 2003)
refletir acerca da adequação de seu Segundo Nóbrega (2008) é
texto à situação de comunicação em consenso hoje que o ensino de Lín-
que se insere e às exigências lin- gua Portuguesa deve-se pautar nos
guísticas próprias do texto que es- usos que dela se fazem com a
creve, para fazer nele as alterações finalidade de permitir que crianças,
que forem necessárias ao longo do jovens e adultos adquiram as habili-
processo e, finalmente, chegar à dades necessárias para transitar
escrita definitiva do texto. pelo mundo da escrita, reconhecen-
O processo acima referido ca- do os textos que circulam social-
racteriza o que chamamos de ativi- mente e lançando mão deles para
dades epilinguísticas — de reflexão e

24
A LÍNGUA PORTUGUESA

dar conta das necessidades e de- rem-se a domínios de produção dis-


mandas que a vida lhes reserva. cursiva ou de atividade humana que
Em função desse contexto, o possibilitam o surgimento de um
ensino de Língua Portuguesa desti- conjunto de gêneros bastante espe-
na-se a formar crianças, jovens e cíficos que são publicados em deter-
adultos capazes de usar adequada- minados suportes, a saber:
mente a língua, em suas modalida- Literária: conto, fábula, crônica
des escrita e oral, para participar das etc. – livro
práticas sociais, seja para aprender, Jornalística: notícia, reportagem,
se informar, se divertir, ou para se entrevista etc. - jornal, revista.
relacionar com outros indivíduos. Escolar: lição (capítulo, unidade)
Para tanto, o ensino de Língua do livro didático, pergunta/respos-
Portuguesa deve estar fundamenta- ta, exercícios etc. - livro didático,
do no princípio de que ler, escutar apostilas.
ou produzir textos orais e escritos Os gêneros, constituindo for-
são atos de linguagem que supõem mas relativamente estáveis de enun-
atitude ativa do aluno na construção ciados, são caracterizados por três
do sentido, para a qual concorrem elementos:
fatores internos e externos ao texto.  Conteúdo temático: assuntos /
Sob esse ponto de vista ensinar temas típicos;
Língua Portuguesa requer não só  Construção composicional: es-
lançar mão de textos e estudar suas truturação geral dos textos
pertencentes àquele gênero;
propriedades intrínsecas de língua-
 Estilo: seleção nos recursos da
gem, mas conhecer seus contextos
língua.
de produção para assim, compreen-
der a prática social que os justificam. Abaixo temos quadros com as
Nóbrega (2008) nos fala das modalidades de linguagem, esferas
esferas discursivas, as quais refe- discursivas e práticas de linguagem:

Modalidade de Esferas discursivas Práticas de linguagem


linguagem

Modalidade escrita Esfera escolar Leitura


Esfera jornalística
Produção escrita
Esfera literária
Esfera cotidiana
Análise e reflexão sobre a
Esfera da vida pública
língua e a linguagem

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A LÍNGUA PORTUGUESA

Modalidade oral Esfera escolar Escuta / Produção oral


Esfera jornalística
Esfera literária
Esfera cotidiana
Esfera da vida pública

ESFERAS DE MODALIDADE ESCRITA MODALIDADE ORAL


DISCURSIVAS

Esfera escolar Verbete de enciclopédia infantil; Artigo Explicação; Exposição oral.


de divulgação científica para crianças

Esfera jornalística Manchete; Notícia televisiva e


Notícia; radiofônica; Comentário de
Entrevista; notícias; Relato de
Resenha; acontecimento do cotidiano;
Artigo de opinião. Entrevista.

Esfera literária Conto de repetição; Conto Tradicional; Conto de repetição; Conto


Fábula; Lenda e Mito; Canção; Cordel; Tradicional; Fábula; Lenda e
Poema Visual; Poema. Mito; Canção; Cordel; Rap.

Esfera cotidiana Bilhete; Receita; Regras de jogos; Carta, Recado; Receita; Regras de
E-mail; Roteiro e mapa de localização. jogos; Relato de experiências
vividas; Descrição de
itinerário.

Esfera da vida pública Carta de solicitação e de reclamação; Debate; Solicitação,


Requerimento e carta de solicitação, de reclamação; Debate regrado;
reclamação; Estatuto; Currículo. Entrevista profissional.

Modalidade escrita Esfera escolar Leitura


Esfera jornalística Produção escrita
Esfera literária Análise e reflexão sobre a
Esfera cotidiana língua e a linguagem
Esfera da vida pública

Modalidade oral Esfera escolar Escuta/Produção oral


Esfera jornalística
Esfera literária
Esfera cotidiana
Esfera da vida pública

Fonte: NÓBREGA (2008).

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27
A LÍNGUA PORTUGUESA

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