GESSER, Audrei. Libras? Que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno
da língua de sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
INTRODUÇÃO
Na introdução a autora expõe brevemente sua trajetória, o contexto e
concepção do livro e a que ele se propõe, de maneira geral, criar um espaço para reflexões sobre algumas questões relativas à área da surdez. Ilustrando falas recorrentes para trazer à tona algumas crenças, preconceitos e questionamentos acerca da língua de sinais e da realidade surda.
CAPÍTULO 1: A LÍNGUA DE SINAIS
Assim como as línguas orais, as línguas de sinais não são universais e
uniformes. A língua de sinais dos surdos não é artificial, pois evoluiu como parte cultural do povo surdo. Existe uma língua artificial com objetivo maior de estabelecer comunicação internacional, o Gestuno, que funciona como língua franca ou auxiliar. Ao contrário do que muitos pensam, a língua de sinais possui gramática e teve seu reconhecimento linguístico nos estudos do linguista americano Willian Stokoe em 1960. Em níveis fonológicos e morfológicos temos os parâmetros: configuração de mão (CM), orientação da palma da mão (O), ponto de articulação (PA) ou locação (L) e movimento (M), podendo ser usadas uma ou duas mãos. Os surdos também fazem uso extensivo de marcadores não manuais, as expressões faciais são elementos gramaticais que compõem a estrutura da língua. A partir dessa análise pode-se perceber que as línguas orais e de sinais são semelhantes estruturalmente, diferindo-se quanto a forma como as combinações são construídas: enquanto as línguas de sinais, de maneira geral, incorporam unidades simultaneamente, as línguas orais tendem a organizá-las linear/sequencialmente. A crença da sociedade ouvinte de que a língua de sinais dos surdos não tem gramática, está ancorada na crença de que elas não passariam de mímica e pantomimas. Em estudo de 1979, Klima e Bellugi demonstraram a diferença entre mímica e sinais a partir da observação de narrativas que necessitavam de pantomimas para serem contadas. Usando surdos e não sinalizadores, os pesquisadores procuraram estabelecer critérios para a diferenciação e constataram que as pantomimas tinham muitas possibilidades, variando conforme o indivíduo, enquanto na língua de sinais permanecia apenas uma variedade, a legitimada e convencionada pelo grupo de usuários estudados. Outra diferença é que as pantomimas ou mímicas são mais detalhadas e demoradas que os sinais, uma vez que a pantomima quer fazer com que você veja o “objeto”, enquanto um sinal quer que você veja o símbolo convencionado para esse objeto. No entanto, essa recorrente pergunta ou comparação, traz em si um preconceito muito grave, a visão de doença e anormalidade sobre a população surda, como se eles conseguissem apenas se expressar limitadamente de uma forma pantomímica, compreensível somente entre eles. Os surdos são fisicamente e psicologicamente normais, é necessário que nós indivíduos de uma cultura de língua oral, entendamos que o canal comunicativo diferente (visual-gestual) não inferioriza, nem anula a existência de uma língua tão natural, complexa e genuína como é a língua de sinais. A língua de sinais não é exclusivamente icônica, embora exista um número elevado desses sinais (beber, árvore...), é importante destacar que essa característica não é exclusiva das línguas de sinais. Ainda amarrada a essa crença está o que Wilcox e Wilcox (1997) destaca em seu livro: a de que as línguas de sinais seriam mais conceituais do que as línguas orais. Na verdade, todas as línguas são conceituais, a diferença está em como cada língua “empacota os conceitos em unidades linguísticas”. Tampouco, a língua de sinais é um código secreto, essa é uma crença que advêm da proibição histórica que os surdos tiveram de se comunicar em sua língua natural. Várias implicações sociais, políticas, educacionais, psicológicas e linguísticas decorrem dessa proibição. Linguisticamente, pode-se afirmar que a língua de sinais É língua porque apresenta características presentes em outras línguas naturais e, essencialmente, porque é humana. Como vimos, ela tem e se apresenta estruturada em todos os níveis, como as línguas orais: fonológico, morfológico, sintático e semântico. Além disso, podemos encontrar nela outras caraterísticas: a produtividade/criatividade, a flexibilidade, a descontinuidade e a arbitrariedade. A língua de sinais é o alfabeto manual? De forma alguma. O alfabeto manual, utilizado para soletrar manualmente as palavras (soletramento digital ou datilologia), é apenas um recurso utilizado por falantes da língua de sinais. Imagine quanto tempo levaria para um surdo falar uma sentença ou ter uma conversa se utilizasse apenas soletramento manual? Entretanto, é importante destacar a função desse recurso na interação entre os usuários da língua de sinais: ele é usado para soletrar nomes próprios de pessoas ou lugares, siglas e algum vocábulo não existente na língua. Além disso, recorre-se também a datilologia para realizar sinais de pontuação, podendo o mesmo ocorrer com as preposições ou outras classes de palavras. No Brasil, o alfabeto manual é composto de 27 formatos (contando com o grafema do Ç que é a configuração da letra C com movimento trêmulo). Cada formato de mão corresponde a uma letra do alfabeto português brasileiro. Por ser uma convenção, o alfabeto manual se configura de forma específica nas línguas de sinais de cada país. Existe também o alfabeto manual para surdos-cegos, com a diferença crucial de que os surdos-cegos precisam pegar na mão do interlocutor e tatear o sinal. É importante ressaltar que o soletramento, tanto na sua forma receptiva quanto produtiva, supõe e implica letramento. O soletrante que não for alfabetizado na língua oral de sua comunidade, terá as mesmas dificuldades de um indivíduo iletrado para lançar mão deste uso. Mais uma prova para desconstruir a crença: afinal, o português não é o abecedário. Vimos que a língua de sinais não é datilologia ou mímica, também não é universal, muito menos artificial. Ligada a essas crenças, vem a indagação: Seria a LIBRAS um português sinalizado? Também não, pois a língua de sinais tem estrutura própria e é autônoma, ou seja, independe de qualquer língua oral em sua concepção linguística. Educacionalmente, o uso do português sinalizado tem sido alvo de muitas críticas, porque se insere na filosofia do bimodalismo. Nessa visão encara-se a língua de sinais como um meio para se atingir um fim, ou seja, apenas um recurso para ensinar a língua oral (no Brasil, o português), funcionando como uma mistura de sinais e fala. Junto a indagação anterior pressupõe-se também que a língua de sinais teria origem na língua oral, o que da mesma forma, não procede. Cada língua de sinais tem suas influências e raízes históricas a partir de línguas de sinais específicas. Tanto a língua americana de sinais (American sign Language – ASL) quanto a língua brasileira de sinais (LIBRAS) têm origem na língua francesa de sinais. Em 1855, o surdo francês Ernest Huet veio ao Brasil por convite do Imperador dom Pedro II, para criar a primeira escola para surdos brasileiros e, em 1857 foi fundado o Instituto Nacional de Educação de Surdo (INES), no Rio de Janeiro, no mesmo endereço que se localiza até hoje. Durante anos, o INES tem sido o centro de referência e de formação dos indivíduos surdos. Outro fato importante na história das línguas de sinais foi o congresso de Milão, em 1880, que, em função de sua decisão em favor das filosofias e métodos oralistas, afetou a educação dos surdos ao redor de todo o mundo. Apesar do nome, a língua de brasileira de sinais não é uma unidade. Em todas as línguas humanas, há variedade e diversidade. A língua portuguesa é “uma unidade que se constitui de muitas variedades” (Parâmetros circulares Nacionais, 1998:29 apud Bagno, 1999:19). Portanto, dizer que todos os brasileiros falam o mesmo português é uma inverdade da mesma proporção que dizer que todos surdos usam a mesma LIBRAS. Afirmar essa unidade é negar a variedade línguas, quando de fato nenhuma é uniforme e homogênea. A língua de sinais é uma língua ágrafa? Não, mas, até bem pouco tempo, era considerada uma língua sem escrita. A ideia de representar as línguas de sinais remete à história da coreógrafa americana Velerie Sutton. Em 1974 ela criou um sistema para registrar as danças de seus alunos que chamou a atenção da comunidade científica dinamarquesa de língua de sinais. A partir do contato com pesquisadores da Universidade de Copenhagen, ocorreu a transição dos “sinais de dança” para a “escrita dos sinais” ou “SingWriting”, sistema que pode ser aplicado na representação de qualquer língua de sinais.
CAPÍTULO 2: O SURDO
Surdo, surdo-mudo ou deficiente auditivo? A maioria dos ouvintes
desconhece a carga semântica desses termos. Ao contrário do que se parece com o mais “politicamente correto”, o termo que a comunidade surda mais adota e se identifica é o surdo, os demais termos infringem sobre eles a condição de doença ou excepcionalidade. Como já apontado, o surdo com aparelho fonador intacto se for treinado, pode falar. Essa visão fisiológica e medicalizada, traz muitas percepções falhas e preconceitos, com diversas implicações sociais e culturais. A crença de que estar em um contexto surdo é estar num mundo silencioso, por exemplo. Por definição, barulho é a ausência de silêncio; é um ruído ou som perceptível aos ouvidos. Todavia, na cultura surda o barulho e silêncio assumem novas versões. Como eles “ouvem com os olhos”, O “barulho” é perceptível a visão dos surdos, manifestado em forma de movimento, conversas paralelas, risos, expressões faciais, corporais e manuais. Poderíamos nos referir a uma espécie de “ruído visual” como diz Gesser (2006). Não há desvantagem na surdez quando se fala em comunicação e interação, visto que não é a modalidade da língua que define se estamos em silêncio ou não. Os surdos dançam, “ouvem” música, ruídos e vibrações, tem sensações e constroem seus mundos e subjetividades na e através da língua de sinais, em resumo, concebem e redefinem seu mundo através da visão. Uma grande questão que traz vários debates e preconceitos de ambos os lados do espectro, surdo e ouvinte, é a oralização para integração à sociedade, ou seja, o treino fonoaudiológico para fazer leitura labial e falar a língua portuguesa. Oralizar é sinônimo de negação da língua dos surdos, sinônimo de correção, imposição de treinos exaustivos, repetitivos e mecânicos da fala, que deixaram marcas e traumas profundos na vida da maioria dos surdos. Um dos grandes nomes do oralismo, dado seu prestígio na época (1880), foi Alexandre Graham Bell, que contribuiu de maneira crucial com seu discurso eugenista para a negação e opressão da língua de sinais. O ponto mediador entre ambos os extremos do purismo linguístico seria o de que, se respeitarmos a língua de sinais e o direito do surdo de ser educado nela, devemos também respeitar o direito daqueles surdos que optam por falar a língua oral. Os surdos possuem identidade e cultura próprias, sim. Mas é importante acrescentar à asserção um plural: todos somos permeados, surdos e ouvintes, por múltiplas identidades e culturas. Essa identidade muitas vezes forçosamente homogeneizada e unificada é importante para resistência e visibilidade de um grupo minoritário, contudo pensar o surdo no singular é apagar a diversidade e multiculturalismo que distingue o surdo negro da surda mulher, o surdo índio do surdo gaúcho, o surdo oralizado do surdo de lares surdos etc. Por isso se fala também em várias culturas surdas. Outra crença comum é a de que os surdos têm dificuldade de falar e escrever por não saberem a língua oral. Como já posto, surdos vocalizam e a oralização é um treino. Para além disso, é necessário expandir o conceito que temos de língua humana e enxergar outra dimensão na qual conceber a língua: o canal viso-gestual. Mesmo não oralizando os surdos falam, por sinais, é preciso descontruir a perspectiva essencialmente oral-auditiva de fala e língua. Quanto a escrita, o fato dela ter uma relação fônica com a língua oral pode e de fato cria outro desafio para o surdo: reconhecer uma realidade fônica que não lhe é familiar acusticamente. São símbolos “abstratos” para o surdo (Ahlgren, 1994). A escrita é uma habilidade cognitiva que demanda esforço de todos (surdos, ouvintes, ricos, pobres, homens e mulheres) e geralmente é desenvolvida quando se recebe instrução formal. Aí se cai no lugar comum para reforçar que não se trata de dificuldade, mas sim oportunidade. Oportunidade de acesso a uma escola que reconheça diferenças linguísticas; que promova acesso a língua padrão; e no caso dos surdos, que tenha professores proficientes na língua de sinais; que permita a alfabetização na língua primeira e natural dos surdos. O uso da língua de sinais não atrapalha a aprendizagem da língua oral, o ensino da escrita para surdos deve passar por ela. Atualmente há um consenso entre especialistas sobre o fracasso escolar em relação à aquisição de conhecimento e ao desenvolvimento da linguagem (escrita) quando a língua de sinais não é utilizada como língua de instrução. Todos os cidadãos devem ter o direito de ser educado em sua própria língua (Honenberger, 1998). A língua portuguesa tem, sim, um papel fundamental na escolarização e vida cotidiana do surdo, da mesma forma que na vida de todos os brasileiros. Para dar conta das questões educacionais na formação de surdos, inclusive na aprendizagem da língua portuguesa, há a necessidade de inverter a lógica praticada até então nos ambientes escolares e afirmar: “Os professores ouvintes de crianças surdas é que precisam saber LIBRAS para poderem educá-las”. Ainda que a filosofia oralista tenha predominado por muito tempo na educação dos surdos, nem todo surdo faz leitura labial, havendo variação entre surdos mais e menos habilidosos. Lembrando que: leitura labial é só um recurso utilizado em situações emergenciais com os surdos. Para aqueles que interagem frequentemente com eles a língua de sinais é indispensável.
CAPÍTULO 3: A SURDEZ
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Indicar as referências dos materiais utilizados, seguindo as normas da ABNT.