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José Pereira da Silva

GRAMÁTICA HISTÓRICA
DA LÍNGUA PORTUGUESA

Rio de Janeiro
Edição do Autor
2010
José Pereira da Silva
Direitos Autorais © 2010 José Pereira da Silva

Revisão:
Beatriz Pereira da Silva

Projeto Gráfico e Diagramação:


José Pereira da Silva

Capa:
Silvia Avelar Silva

Impressão:
Ingráfica Editorial
Tel.: (21) 3868 3614 – 99972541

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S586g Silva, José Pereira da, 1946 –


Gramática Historia da Língua Portuguesa / José Pereira
da Silva. – 1. ed. – Rio de Janeiro: O Autor, 2010.
200 p.; 14 x 21 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-99373-04-0

1. Língua Portuguesa – Gramática Histórica. I. Título.

CDD – 469.5

Índice para catálogo sistemático:


1. Língua Portuguesa – Gramática Histórica 469.5

É proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, sem a


prévia autorização do autor.
Todos os direitos reservados ao organizador.

Impresso no Brasil (2010)

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................13

0. INTRODUÇÃO ................................................................................................15
0.1. CONCEITOS DIVERSOS .........................................................................................15
0.1.1. Linguagem ................................................................................................15
0.1.2. Língua ................................................................................................15
0.2. CLASSIFICAÇÃO DAS LÍNGUAS ........................................................................16
0.3. DIALETO ................................................................................................17
0.3.1. Causas da dialetação de uma língua .........................................................17
0.4. O DIALETO BRASILEIRO ......................................................................................17
0.5. O INDO-EUROPEU ................................................................................................18
QUESTIONÁRIO ................................................................................................18

1. A LÍNGUA PORTUGUESA: SUA ORIGEM, HISTÓRIA E DOMÍNIO .................19


1.1. COMO SE ORIGINOU O PORTUGUÊS? ...............................................................19
1.2. POVOAMENTO DA PENÍNSULA IBÉRICA ........................................................19
1.3. ROMANIZAÇÃO DA PENÍNSULA IBÉRICA ......................................................20
1.4. QUE LÍNGUA DERAM OS ROMANOS À PENÍNSULA IBÉRICA? .................21
1.5. OUTROS FATORES DE CORRUPÇÃO DO LATIM ............................................23
1.5.1. A invasão dos bárbaros ..............................................................................23
1.5.2. Os árabes ................................................................................................24
1.6. SUBSTRATO, SUPERESTRATO E ADSTRATO..................................................24
1.6.1. Substrato ................................................................................................25
1.6.1.1. Célticas ...........................................................................................26
1.6.1.2. Ibéricas ...........................................................................................26
1.6.1.3. Fenícias ..........................................................................................27
1.6.1.4. O substrato ameríndio e africano ................................................27
1.6.2. Superestrato ................................................................................................27
1.6.3. Adstrato ................................................................................................28
1.7. O APARECIMENTO DO ROMANÇO ....................................................................29
1.8. AS LÍNGUAS ROMÂNICAS ....................................................................................29

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José Pereira da Silva
1.8.1. Na área balcano-românica .........................................................................29
1.8.2. Na área ítalo-românica ...............................................................................30
1.8.3. Na área galo-românica ...............................................................................30
1.8.4. Na área ibero-românica .............................................................................30
1.9. AS FASES DA LÍNGUA PORTUGUESA ...............................................................30
1.10. O GALEGO-PORTUGUÊS E A FIXAÇÃO DO PORTUGUÊS-MODERNO 32
1.11. FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA ...................................32
1.12. A EXPANSÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA ...................................................33
1.13. RESUMO DO CAPÍTULO ....................................................................................34
1.14. SINOPSE – ORIGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA........................................34
CANTIGA DA R IBEIRINHA ( OU DA G UARVAYA) ...................................................35
QUESTIONÁRIO ................................................................................................36

2. O LATIM VULGAR, ASPECTOS GERAIS ..................................................................37


2.1. BAIXO LATIM ................................................................................................37
2.2. LATIM BÁRBARO ................................................................................................38
2.3. FONTES DE CONHECIMENTO DO LATIM VULGAR ......................................38
2.3.1. As inscrições ................................................................................................39
2.3.2. Os diálogos do teatro romano ...................................................................39
2.3.3. O Appendix Probi .........................................................................................39
2.3.4. Mulomedicina Chironis ...............................................................................40
2.3.5. A Peregrinatio ad Loca Sancta ...................................................................40
2.3.6. Testemunho dos gramáticos ......................................................................40
2.3.7. Estudo comparativo das línguas românicas............................................43
2.4. CARACTERES DO LATIM VULGAR ....................................................................43
2.4.1. Tendência para o emprego de sufixos ......................................................44
2.4.2. Tendência para o uso das formas perifrásticas ......................................44
2.4.3. Tendência para ampliar o uso de preposições ........................................44
2.4.4. Tendências para empregar os demonstrativos como determinantes ..44
2.4.5. Tendência para substantivar adjetivos ....................................................45
2.4.6. Tendência para a simplificação do vocabulário .....................................45
2.4.7. Tendências para ignorar a quantidade das vogais ................................45
2.5. ALTERAÇÕES SOFRIDAS PELO LATIM.............................................................47
2.5.1. Transformações fonéticas ..........................................................................47
2.5.2. Transformações semânticas.......................................................................48
2.5.3. Transformações sintáticas .........................................................................48
RESUMO ................................................................................................49
QUESTIONÁRIO ................................................................................................50

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
3. NOÇÕES ELEMENTARES DE FONÉTICA HISTÓRICA, ACENTO TÔNICO E
ALTERAÇÕES FONÉTICAS ...........................................................................................51
3.1. FONÉTICA ................................................................................................51
3.2. FONEMAS ................................................................................................51
3.3. A FONÉTICA HISTÓRICA......................................................................................53
3.3.1. Classificação das alterações fonéticas ......................................................54
3.3.2. Palavras populares e empréstimos ............................................................55
3.4. A ACENTUAÇÃO NO LATIM VULGAR ..............................................................55
3.5. A IMPORTÂNCIA DA SÍLABA TÔNICA ..............................................................57
3.6. NOMENCLATURA DAS ALTERAÇÕES FONÉTICAS ......................................57
3.6.1. Desaparecimento de fonemas ....................................................................58
3.6.1.1. Aférese ............................................................................................58
3.6.1.2. Síncope ............................................................................................59
3.6.1.3. Haplologia ......................................................................................59
3.6.1.4. Apócope...........................................................................................60
3.6.2. Desenvolvimento de fonemas.....................................................................60
3.6.2.1. Prótese (ou próstese) .....................................................................60
3.6.2.2. Epêntese ..........................................................................................61
3.6.2.3. Ditongação .....................................................................................61
3.6.2.4. Paragoge .........................................................................................61
3.6.3. Troca de posição de fonemas ou metátese ...............................................62
3.6.4. Transformação de fonema .........................................................................62
3.6.4.1. Assimilação ....................................................................................62
3.6.4.2. Dissimilação ...................................................................................64
3.6.4.3. Vocalização ....................................................................................65
3.6.4.4. Consonantização ............................................................................65
3.6.4.5. Crase ...............................................................................................65
3.6.4.6. Nasalização ....................................................................................65
3.6.4.7. Desnasalização...............................................................................66
3.6.4.8. Sonorização ou Abrandamento ...................................................67
3.6.4.9. Palatalização ..................................................................................68
3.6.4.10. Oclusão ......................................................................................69
3.6.4.11. Assibilação ................................................................................69
3.6.4.12. Monotongação ou Redução ....................................................69
3.6.4.13. Apofonia ...................................................................................70
3.6.4.14. Metafonia ..................................................................................70
ESQUEMA ...............................................................................................72
EXERCÍCIOS DE METAPLASMOS ...................................................73

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José Pereira da Silva
4. VOCALISMO ................................................................................................75
4.1. VOGAIS ÁTONAS ................................................................................................77
4.1.1. Vogais pretônicas iniciais ...........................................................................77
4.1.2. Vogais pretônicas internas .........................................................................78
4.1.3. Vogais postônicas internas .........................................................................78
4.1.4. Vogais postônicas finais..............................................................................78
4.2. VOGAIS TÔNICAS ................................................................................................79
4.3. ESTUDO DO DITONGO ...........................................................................................80
4.3.1. Ditongos latinos ...........................................................................................80
4.3.2. Ditongos românicos .....................................................................................80
4.3.3. Origens dos ditongos românicos ...............................................................81
4.3.4. Fontes do ditongo OU ................................................................................81
4.3.5. Fontes do ditongo OI .................................................................................82
4.4. ESTUDO DO HIATO ................................................................................................82
4.4.1. Hiatos latinos................................................................................................83
4.4.2. Hiatos românicos .........................................................................................83
QUESTIONÁRIO ................................................................................................84

5. CONSONANTISMO ................................................................................................85
5.1. CONSOANTES SIMPLES INICIAIS .......................................................................85
5.2. CONSOANTES SIMPLES MEDIAIS OU INTERNAS ..........................................86
5.2.1. Consoantes surdas .......................................................................................86
5.2.2. Consoantes sonoras .....................................................................................87
5.2.3. Grupo de consoantes mais semivogal (ou I consoante) ..............................88
5.3. CONSOANTES FINAIS.............................................................................................89
5.4. CONSOANTES DOBRADAS ...................................................................................90
5.5. CONSOANTES AGRUPADAS.................................................................................90
5.5.1. Outros encontros de consoantes ...............................................................91
5.5.2. Grupos iniciais .............................................................................................91
5.5.2.1. Consoante seguida de r .................................................................91
5.5.2.2. Consoante seguida de l..................................................................92
5.5.2.3. Grupos iniciais com s impuro.......................................................93
5.5.3. Grupos internos ...........................................................................................93
5.5.3.1. Intervocálicos .................................................................................93
5.5.3.2. Não intervocálicos .........................................................................94
5.6. OUTROS ENCONTROS ............................................................................................94
5.6.1. Encontros românicos ..................................................................................95
QUESTIONÁRIO ................................................................................................96

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
6. A ORTOGRAFIA E A FONÉTICA HISTÓRICA ........................................................97
6.1. PERÍODO FONÉTICO ...............................................................................................97
6.2. PERÍODO PSEUDOETIMOLÓGICO ......................................................................98
6.3. PERÍODO HISTÓRICO-CIENTÍFICO .....................................................................98
6.4. AS NORMAS ORTOGRÁFICAS ...........................................................................100
6.4.1. Emprego do H ............................................................................................100
6.4.2. Emprego do CH .........................................................................................100
6.4.3. Emprego do X ............................................................................................101
6.4.4. Emprego do C sibilante ............................................................................101
6.4.5. Emprego do S surdo inicial......................................................................102
6.4.6. Emprego do S surdo medial = SS ...........................................................103
6.4.7. Emprego do J e do G ................................................................................103
6.4.8. Emprego do S sonoro ................................................................................104
6.4.9. Emprego do Z medial ...............................................................................104
6.4.10. Emprego do Z final ...................................................................................104
6.4.11. Acentuação gráfica ...................................................................................104
6.5. O PLURAL DAS PALAVRAS TERMINADAS EM –ÃO ...................................105
QUESTIONÁRIO ..............................................................................................106

7. FORMAS DIVERGENTES E SUAS CAUSAS ............................................................107


7.1. AS DIFERENÇAS CRONOLÓGICAS ...................................................................109
7.2. AS DIFERENÇAS SOCIAIS ...................................................................................110
7.3. AS DIFERENÇAS REGIONAIS .............................................................................110
7.4. VOCÁBULOS POPULARES, ERUDITOS E SEMIERUDITOS ........................111
7.4.1. Vocábulos populares ................................................................................111
7.4.2. Vocábulos eruditos ...................................................................................111
7.4.3. Vocábulos semieruditos ...........................................................................111
7.4.4. Outros exemplos de formas divergentes ...............................................112
7.5. FORMAS CONVERGENTES .................................................................................113
QUESTIONÁRIO ..............................................................................................114

8. O DESAPARECIMENTO DO NEUTRO, REDUÇÃO DAS DECLINAÇÕES , OS


CASOS, SOBREVIVÊNCIA DO ACUSATIVO ................................................................115
8.1. GÊNEROS ..............................................................................................115
8.2. DECLINAÇÕES ..............................................................................................116
8.3. CASOS ..............................................................................................116
8.4. O DESAPARECIMENTO DO NEUTRO ...............................................................117
8.4.1. Vestígios do gênero neutro em português ...............................................118
8.5. AS TRÊS DECLINAÇÕES DO LATIM VULGAR ..............................................119

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José Pereira da Silva
8.6. OS CASOS NO LATIM VULGAR E A SOBREVIVÊNCIA DO ACUSATIVO ...120
8.7. VESTÍGIOS DE OUTROS CASOS ........................................................................121

9. ESTUDO DO VERBO: REDUÇÃO DAS CONJUGAÇÕES, DESAPARECIMEN-


TO DE TEMPOS, CRIAÇÕES ROMÂNICAS ............................................................123
9.1. O SISTEMA VERBAL LATINO ............................................................................123
9.1.1. Quatro conjugações ..................................................................................123
9.1.2. Dois grupos de tempos ..............................................................................123
9.1.2.1. O infectum ....................................................................................123
9.1.2.2. O perfectum ..................................................................................124
9.1.2.3. Quatro formas nominais .............................................................124
9.1.2.4. Três vozes......................................................................................124
9.1.3. Redução das conjugações .........................................................................124
9.1.4. Desaparecimento de tempos ....................................................................126
9.1.4.1. No indicativo ................................................................................127
9.1.4.2. No subjuntivo ...............................................................................128
9.1.4.3. No imperativo ...............................................................................128
9.1.4.4. Nas formas nominais...................................................................129
9.1.5. Alterações nas vozes verbais....................................................................130
9.1.5.1. Voz ativa ......................................................................................130
9.1.5.2. Voz passiva ...................................................................................130
9.1.5.3. Verbos depoentes ........................................................................131
9.1.5.4. Os verbos anômalos ....................................................................132
9.2. CRIAÇÕES ROMÂNICAS .....................................................................................132
9.2.1. Futuro do presente ....................................................................................132
9.2.2. Futuro do pretérito ...................................................................................132
9.2.3. Tempos compostos ....................................................................................133
9.2.4. Conjugação passiva analítica ..................................................................133
9.2.5. O infinitivo pessoal ....................................................................................134
9.3. OUTRAS CLASSES DE PALAVRAS ...................................................................134
9.3.1. Artigo definido ...........................................................................................134
9.3.2. Artigo indefinido .......................................................................................135
9.3.3. O pronome da terceira pessoa .................................................................135
9.3.4. As formas oblíquas o, a, os, as ................................................................135
9.3.5. A forma oblíqua lhe .................................................................................136
QUESTIONÁRIO ..............................................................................................137

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
10. FATOS DEVIDOS À ANALOGIA ................................................................................139
10.1. O INFINITIVO SABER ........................................................................................140
10.2. O INFINITIVO PODER ......................................................................................140
10.3. A FORMA ESTOU ..............................................................................................140
10.4. A FORMA ESTEJA ..............................................................................................140
10.5. A FORMA ESTIVE ..............................................................................................141
10.6. A FORMA SOU ..............................................................................................141
10.7. A FORMA É ..............................................................................................141
10.8. A FORMA SOIS ..............................................................................................141
10.9. DESPEDIR, EXPEDIR, IMPEDIR, MENTIR, ARDER .....................................141
10.10. PARTICÍPIO DA SEGUNDA CONJUGAÇÃO ...............................................142
10.11. DESLOCAMENTO DO ACENTO EM FORMAS VERBAIS ...............................142
10.12. FEMININOS ANALÓGICOS .............................................................................143
10.13. PLURAIS ANALÓGICOS ..................................................................................143
10.14. CINCO, OITENTA, NOVENTA ........................................................................144

11. FORMAÇÃO DO VOCABULÁRIO PORTUGUÊS ..................................................145


11.1. VOCÁBULOS PRÉ-ROMANOS .......................................................................146
11.1.1. Elementos ibéricos ....................................................................................146
11.1.2. Elementos celtas ........................................................................................146
11.1.3. Elementos fenícios e cartagineses ...........................................................146
11.1.4. Elementos gregos .......................................................................................147
11.2. VOCÁBULOS LATINOS ...................................................................................147
11.3. VOCÁBULOS PÓS-ROMANOS .......................................................................149
11.3.1. Elementos germânicos ..............................................................................149
11.3.2. Elementos árabes.......................................................................................149
11.3.3. Elementos provençais e franceses ...........................................................150
11.3.4. Elementos ingleses ....................................................................................150
11.3.5. Elementos italianos ..................................................................................150
11.3.6. Elementos espanhóis ................................................................................151
11.3.7. Elementos alemães ...................................................................................151
11.3.8. Elementos asiáticos ..................................................................................151
11.3.9. Outros elementos ......................................................................................152
QUESTIONÁRIO .......................................................................................152

12. O PORTUGUÊS NO BRASIL: CONTRIBUIÇÃO BRASILEIRA PARA O LÉXI-


CO DA LÍNGUA ..............................................................................................153
12.1. DIFERENÇAS FONÉTICAS ..............................................................................157
12.2. DIFERENÇAS SINTÁTICAS .............................................................................159

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José Pereira da Silva
12.3. DIFERENÇAS SEMÂNTICAS ..........................................................................160
12.4. CONTRIBUIÇÃO BRASILEIRA PARA O LÉXICO DA LÍNGUA ..............161
12.4.1. De procedência indígena ..........................................................................162
12.4.2. De procedência africana ...........................................................................163
QUESTIONÁRIO .......................................................................................163

13. ARCAÍSMOS ..............................................................................................165


13.1. A QUE SE DEVEM OS ARCAÍSMOS? ............................................................165
13.2. PORQUE DEVEM SER EVITADOS OS ARCAÍSMOS .................................166
13.3. COMO SE DIVIDEM OS ARCAÍSMOS ..........................................................167
13.3.1. São arcaísmos léxicos ................................................................................167
13.3.2. São arcaísmos sintáticos ............................................................................167
13.4. ARCAÍSMOS FONÉTICOS ...............................................................................168
13.5. ARCAÍSMOS MORFOLÓGICOS .....................................................................168
13.6. ARCAIZAÇÃO COMO RECURSOS DE ESTILO ..........................................169
QUESTIONÁRIO ..............................................................................................170

14. BREVES TEXTOS ARCAICOS PARA EXEMPLOS E COMENTÁRIOS...........171


b) Textos com anotações ..............................................................................................171
1. BARCAROLA ..............................................................................................171
2. EXEMPRO DHŨA MONJA ..............................................................................................172
3. O LOBO E O CORDEIRO ..............................................................................................174
b) Textos para comentário ..............................................................................................176
14.1. CANTIGA DE AMIGO [1] ........................................................................................176
14.2. CANTIGA DE AMIGO [2] ........................................................................................177
14.3. CANTIGA DE AMIGO [3] ........................................................................................178
14.4. BARCAROLA ..............................................................................................179
14.5. DA PROVINCIA DE TURQUYA ..............................................................................179
14.6. LENDA DO REI LEAR .............................................................................................180
14.7. A DONA PEE DE CABRA ........................................................................................181
14.8. O RATO DA CIDADE E O DA ALDEIA ....................................................................183
14.9. RHEGRA SUA PERA Q UEM QUISER VIUER EM PAZ .............................................185
14.10. LIVRO DA ENSINANÇA DE BEM CAVALGAR TÔDA SELA....................................186

ANEXO 1:
PALAVRAS PORTUGUESAS DE ORIGEM TUPI ..................................................187

ANEXO 2:
PALAVRAS PORTUGUESAS DE ORIGEM ÁRABE ..............................................193

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................197

10
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

PREFÁCIO

Faz mais de duas décadas que conheço o Professor José Pereira da


Silva, meu dileto amigo e estimado e colega. Sempre o encontrei apegado a
projetos, pesquisas, iniciativas, trabalhos e empreendimentos, todos volta-
dos para cultura das letras, da linguagem, da gramática, da filologia e da
linguística.
Após longo período de elucubrações, o Professor José Pereira da Sil-
va agora publica sua GRAMÁTICA HISTÓRICA DA LÍNGUA PORGU-
GUESA. Trata-se de trabalho de quilate por configurar-se de incontestável
utilidade e valor para estudantes de letras, mestres e pesquisadores.
Mesmo a despeito do anti-historicismo que caracteriza algumas cor-
rentes da linguística moderna, o livro irá preencher, sem dúvida, os fins a
que se destina, isto é, mostrar a evolução da língua portuguesa no tempo e
no espaço e fornecer uma trilha segura para os estudos do português atual.
Podemos dizer, grosso modo, que o plano da obra consubstancia-se
no sumário.
Na Introdução evidenciam-se conceitos de linguagem, língua, classi-
ficação das línguas, dialeto (especialmente o português falado no Brasil).
A seguir, o autor discorre sobre as origens mais remotas do idioma,
através da história resumida da língua portuguesa, envereda pelos vários as-
pectos das alterações da fonética histórica (onde se inserem os diversos pe-
ríodos da ortografia da língua portuguesa), dos metaplasmos, da morfossin-
taxe, da lexicologia, das formas divergentes e convergentes, dos fatos devi-
dos à analogia, dos arcaísmos, da formação do léxico português, e ainda nos
mostra uma breve coletânea de textos arcaicos, além de um anexo relacio-
nado com palavras portuguesas de origem tupi e árabe.
A disposição das ideias segue o tradicionalismo dos livros de cunho
histórico da língua; não despreza, contudo, o sincronismo linguístico a pro-
jetar-se no português contemporâneo, haja a vista o tratamento criterioso
dispensado à recente reforma ortográfica.
Com muito acerto, o autor não abre mão da preocupação didática.
Cada capítulo traz um resumo, acompanhado de quadro sinóptico e aparato

11
José Pereira da Silva
de perguntas e respostas, pressupostos fundamentais e indispensáveis à di-
cotomia ensino-aprendizagem.
Com esta obra, o autor nos dá a conhecer, de modo meticuloso, en-
foques importantes de nossa gramática histórica, assunto por vezes árido,
por vezes difícil, mas ao mesmo tempo fascinante pelo seu conteúdo histó-
rico, social, linguístico-filológico, político, econômico, cultural enfim.

Em 18 de fevereiro de 2010.

Ruy Magalhães de Araujo

12
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

APRESENTAÇÃO

A primeira versão desta Gramática Histórica da Língua Portuguesa


constituiu a primeira parte do livro Português no Colégio, do Prof. Raul
Moreira Léllis, da Faculdade Católica de Filosofia e da Faculdade de Filo-
sofia de Santa Úrsula, que foi utilizado por nós em sua oitava edição revista
e aumentada, publicada em 1967 pela Companhia Editora Nacional, de São
Paulo.
Com a retirada da língua latina do currículo do ginásio e dos cursos
clássico, científico e normal, forçosamente se retirou também o ensino da
gramática histórica, assim como diversas outras disciplinas. Deste modo,
gramática histórica e história da língua portuguesa são, hoje, disciplinas que
só têm interesse direto para os brasileiros da área de Letras, para a funda-
mentação diacrônica de sua argumentação didática, visto que já não é maté-
ria do ensino de segundo grau. Trata-se, portanto, de uma disciplina instru-
mental para os estudantes e profissionais de Letras e de áreas afins.
A programação que é apresentada atualmente no sétimo período do
Curso Superior de Letras da Faculdade de Formação de Professores era de-
senvolvida no primeiro ou segundo ano dos cursos clássico, científico e
normal, podendo ser utilizada também “para iniciação às Faculdades de Fi-
losofia”, como eu mesmo tive oportunidade de fazer, lecionando no Institu-
to Imaculada Conceição no início da década de setenta.
Esta edição é dedicada especialmente a meus alunos de graduação e
de pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da PUC-
Minas Virtual e terá uma tiragem reduzida, exclusivamente para atendê-los
e para apresentar o trabalho aos colegas da área.
Apesar de se manter fiel à estrutura do trabalho que lhe deu origem,
acima referido, foram acrescentadas notas e comentários, ampliada a exem-
plificação, incluídos exercícios e alguns capítulos, além de feitas algumas
correções e atualizações à versão anterior, conforme foi prometido.
Há mais de uma década vem sendo utilizado esse material e feitas as
adaptações e atualizações necessárias para que o texto se torne adequado ao
ensino nos cursos de Letras, reconsideradas as limitações que até mesmo es-
ses estudantes ainda encontram para os estudos diacrônicos da língua portu-

13
José Pereira da Silva
guesa, não só pela carência dos conhecimentos de língua latina e de outras
línguas românicas, mas também por não haver o mesmo grau de motivação
prática para o seu estudo, já que não será imediatamente necessária na práti-
ca docente no ensino fundamental e médio.
Além dessa dificuldade, a novidade na assimilação da matéria para a
maioria dos estudantes de graduação lhes traz a necessidade de maior esfor-
ço, o que não ocorria no século XX e não ocorre ainda hoje em outros paí-
ses como os membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP), por exemplo.
Felizmente, vêm tomando grande impulso os estudos diacrônicos da
língua portuguesa no Brasil e esses estudos voltam a ser preocupação de um
numeroso séquito de professores do ensino superior de Letras, já compro-
vadas as limitações que têm aqueles que só conseguem ver a língua do pon-
to de vista descritivo e sincrônico.
Esperamos estar contribuindo, com este manual, para que os estudos
diacrônicos da língua portuguesa sejam mais rápida e eficientemente incre-
mentados entre os profissionais dessa área de conhecimentos.

Rio de Janeiro, fevereiro de 2010.

José Pereira da Silva

14
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

INTRODUÇÃO

A gramática histórica tem por objeto o estudo das transformações de


uma língua no tempo e no espaço.

0.1. CONCEITOS DIVERSOS


0.1.1- Linguagem em sentido mais amplo é todo sistema de sinais
que podem servir para a comunicação entre indivíduos.
Assim podemos falar em “linguagem dos animais” ou em vários ou-
tros sistemas de linguagem entre os homens, como a gesticulada ou mímica,
a que se faz através de símbolos: brasões, bandeiras, sinais de tráfego, e até
mesmo através dos sentidos (olfato, tato etc.).
No sentido restrito, porém, linguagem, aquela que constitui o objeto
da Linguística, restringe-se à linguagem humana articulada, isto é, “um sis-
tema natural de palavras de que a humanidade se serve para comunicação de
suas ideias e pensamentos”.
Observamos, pois, que:
a) a função da linguagem é ser instrumento da intercomunicação social;
b) ela é uma propriedade característica do ser humano;
c) não pode haver sociedade sem linguagem.

0.1.2- Língua “é a linguagem particularmente usada por um povo”.


Assim, podemos falar em língua portuguesa, francesa etc., e não lin-
guagem portuguesa, francesa etc.
Quanto ao uso uma língua pode ser:
a) Viva é a língua que serve de instrumento diário de comunicação entre os
indivíduos componentes de uma nação: o português, o francês etc.
b) Morta é a língua que não mais é falada, mas da qual temos conhecimen-
to através de documentos escritos. Ex.: o grego clássico, o latim, o dalmáti-
co (a partir de 1898).

15
José Pereira da Silva
c) Extinta é a língua que desapareceu sem deixar memória documental.
Ex.: O indo-europeu.

0.2 – CLASSIFICAÇÃO DAS LÍNGUAS1


A linguística distribui as línguas em grupos ou famílias. Para essa
classificação têm sido adotados quatro principais critérios:
a) o critério geográfico agrupa as línguas pelas regiões do globo em que são
faladas: línguas da Europa, da Ásia, da África, da América e da Oceania.
Tal critério, porém, não goza de valor científico, em face das migrações e
entrelaçamentos dos povos.
b) o critério etnológico distribui as línguas pelas raças que as falam. Visto,
porém, que atualmente as línguas não coincidem com as raças, tal critério
não leva vantagem sobre o anterior.
c) o critério morfológico reúne as línguas tomando por base a estrutura de
seus vocábulos.
Segundo o critério morfológico, as línguas se classificam em:
1º) línguas monossilábicas, isolantes ou radicais, em que as palavras são
monossílabos isolados e inalteráveis, chamados raízes. Nessas lín-
guas não há declinações nem conjugações; nomes e verbos distin-
guem-se pela posição que guardam na frase e pelas palavras denota-
tivas que os condicionam. Muitos linguistas supõem serem as línguas
monossilábicas o ponto de partida para todas as demais línguas. As
línguas monossilábicas mais importantes são o chinês, o siamês e o
anamita.
2º) línguas aglutinantes ou aglomerantes em que os radicais se aglome-
ram sem se fundir completamente, para formar termos compostos
que exprimam relações diferentes. Nessas línguas também não há de-
clinações e conjugações; todas as flexões nominais e verbais se ex-
primem por meio de partículas combinadas às palavras. Entre as lín-
guas aglutinantes estão o tupi-guarani, o húngaro, o turco, o japonês
e o coreano.
3º) línguas flexivas ou orgânicas em que as palavras sofrem modifica-
ções em suas formas para exprimirem os acidentes das ideias: gênero,
número, grau, tempo, pessoa e modo; ou funções sintáticas. As fle-
xões podem ocorrer no final das palavras como em “gato”/”gatos”,

1 O total das línguas conhecidas e estudadas no mundo é de mais de três mil, supondo-se que deva
atingir o dobro disso, dependendo do crité

16
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
“bonito”/“bonita” ou na parte interna da palavra como em
‘faz”/“fiz”/“fez”; neste caso, chamam-se Inflexões. Cerca de um bi-
lhão de pessoas praticam esse tipo de língua, pois todas as línguas in-
do-europeias são flexivas.
d) o critério genealógico reúne as línguas segundo o grau de paren-
tesco que apresentam entre si. Este critério é considerado o mais ci-
entífico e racional dentre todos. Foi exatamente pelo critério genea-
lógico da classificação das línguas que se chegou à conclusão da
existência da famosa unidade linguística: o indo-europeu.

0.3 – DIALETO
Esta é a definição proposta pelo Dr. J. Mattoso Câmara Jr.: “dialeto é
a modificação regional de uma língua, ou ainda, são línguas regionais que
apresentam entre si coincidências de traços linguísticos essenciais.”

0.3.1- Causas da dialetação de uma língua


Admitia-se no passado que as fronteiras naturais (oceanos, rios ou
montanhas) ou também as divisões políticas causassem ipso facto o dialeto.
Entretanto, segundo Silveira Bueno, estes fatores são meramente extrínse-
cos, e que por si sós não são suficientes para a formação do dialeto. Está
provado que
...os Andes não conseguiram estabelecer absoluta separação dialetal entre o
Chile e a Argentina, entre o Chile e o Peru, ou entre o Peru e a Bolívia.
De igual modo a separação política, entre a Bélgica e a Suíça, em relação à
França, provocou diferenciações fonéticas e semânticas, mas que não chegam a
solidificar absoluta separação. Logo, é preciso que, a par desses fatores extrínse-
cos, concorra o elemento intrínseco: o substrato linguístico.

0.4 – O DIALETO BRASILEIRO


O problema assim se propõe: Deverá o português do Brasil ser consi-
derado dialeto em relação ao de Portugal?
A resposta é afirmativa, porquanto ambas as causas, tanto extrínseca
quanto intrínseca, que concorrem na formação do dialeto, verificaram-se no
português do Brasil em face ao europeu.
Efetivamente, a língua portuguesa, que entrou no Brasil no século
XVI, fase do português arcaico, mesclou-se necessariamente do indigenis-
mo – substrato próprio do nosso meio – o qual, depois de feita a separação
da nossa comunidade pela independência política, pôde desenvolver-se li-

17
José Pereira da Silva
vremente, causando grandes diferenças fonéticas e semânticas no português
do Brasil em face ao europeu.
O brasileiro é, portanto, o maior dialeto da língua portuguesa.

0.5 – O INDO-EUROPEU
Em vista do parentesco observado entre as línguas da Ásia e da Eu-
ropa, e suas derivadas, conclui-se ter existido um idioma primitivo como
unidade comum, e que convencionalmente se chamou indo-europeu. A este
tronco linguístico pertenceu o ramo itálico, que teve como línguas o osco, o
úmbrio e o latim. Deste último vão se originar todas as línguas românicas,
dentre elas o português.

QUESTIONÁRIO
1 – Qual o objetivo da gramática histórica?
2 – A que grupo e ramo linguístico pertence o latim?

18
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

1. A LÍNGUA PORTUGUESA
SUA ORIGEM, HISTÓRIA E DOMÍNIO

O português é uma língua latina, também dita neolatina, tão certo é


que ele se originou da transformação do latim. Até mesmo se afirma que
Não fala com absoluto rigor quem diz que o português provém do latim. Ri-
goroso é dizer que o latim continua a existir no português, modificado evolutiva-
mente segundo leis orgânicas que sofrem exceções apenas quando outras leis de
maior força atuam nelas. (VASCONCELOS, C. M., s/d).

1.1. COMO SE ORIGINOU O PORTUGUÊS?


Esta pergunta acode muito justamente ao espírito de quem estuda o
assunto. Não apenas essa, porém muitas outras: como pôde o latim, língua
de Roma, chegar a Portugal? E, se lá chegou, por que se fala português e
não latim, do mesmo modo como nós falamos ainda hoje a língua que os
portugueses nos trouxeram e os norte-americanos falam o idioma que lhes
foi levado pelos ingleses?
A compreensão do problema depende da resposta a essas questões.

1.2. POVOAMENTO DA PENÍNSULA IBÉRICA


Vários povos, em épocas diversas, passaram pelas regiões hoje ocu-
padas por Espanha e Portugal. Os primeiros, parece que foram os celtas,
povo turbulento e guerreiro e os iberos, de cuja aproximação resultaram os
celtiberos, que inicialmente dominaram as regiões mais fecundas da Penín-
sula e principalmente a Lusitânia, onde vários nomes de cidades – Coimbra
(Conimbriga), Douro (Durius), Vouga (Vacua) – ainda hoje são apontados
como de origem céltica.
Posteriormente chegaram à Península os fenícios, os gregos e os car-
tagineses, estes ligados pelo sangue, pela descendência e pela língua aos
primeiros. Esses povos, formando várias tribos, espalhavam-se por toda a
Ibéria, havendo predominância de celtas na faixa onde hoje está Portugal.
Como os cartagineses pretendessem apoderar-se dela totalmente, por

19
José Pereira da Silva
ocasião do cerco de Sagunto, os celtiberos chamaram em socorro os romanos.

1.3. ROMANIZAÇÃO DA PENÍNSULA IBÉRICA


No século III antes de Cristo, durante a segunda guerra púnica, os
romanos, sob o comando de Cornélio Cipião, invadiram a Península Ibérica,
levados por duplo intento: atender ao pedido de socorro de Sagunto, cidade
grega atacada pelos soldados de Cartago, e destruir as bases de Aníbal, ge-
neral cartaginês que, nessa época, devastava os campos e cidades da Itália,
ameaçando seriamente a cidade de Roma.
Vencida Cartago, as legiões romanas dominaram toda a Península,
tornando-se ela província romana em 197 a. C. Essa dominação, no entanto,
não foi apenas político-militar, mas, e principalmente, cultural. Roma, para-
lelamente à sua conquista territorial, ia realizando a conquista linguística,
impondo aos povos vencidos a sua língua: o latim.
Tem início, dessa forma, dentro da Ibéria, uma conquista que se pro-
longará por mais de duzentos anos, fácil no começo, enquanto se tratou do
Sul e da costa oriental, mais civilizadas e cosmopolitas, difícil quando os
romanos tiveram de enfrentar as rijas povoações do Norte, mais selvagens e
guerreiras. O certo é que no governo de Augusto, entre os anos 26 e 18 an-
tes de Cristo, toda a Península estava em poder dos romanos, com exceção
de uma pequena faixa ao Norte.
Habilíssimos colonizadores, os latinos, experimentados em séculos
de conquista, não tiveram dificuldade em romanizar a nova terra. Estradas
magníficas, escolas públicas, exploração organizada de minas, templos cuja
beleza deslumbrava, casas de banho, excelente organização comercial e de
correios, foram fatores de rápida assimilação do povo ibérico. Em dois as-
pectos, principalmente, os romanos eram intransigentes: primeiro, o uso
obrigatório do latim para as transações comerciais, os atos oficiais e as
questões forenses; depois, o serviço militar, obrigatório mesmo para a mo-
cidade das terras conquistadas. Raramente um convocado servia em sua
própria província, de modo que um gaulês, um germânico, um ibero, postos
na mesma legião, lado a lado, só tinham um meio de comunicação – o latim,
língua comum – tanto mais quanto nessa língua eram dadas a instrução mili-
tar e as ordens de comando.
Essas e outras causas fizeram tão rápida difusão da fala e da civiliza-
ção romanas na Península Ibérica que, já no século I da nossa era, segundo
o testemunho de Estrabão, geógrafo grego que viajou a bacia do Mediterrâ-
neo, “os turdetanos [povo do interior da Península Ibérica ] e os ribeirinhos
do Bétis [rio que hoje se denomina Guadalquivir] adotaram de todo os cos-

20
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
tumes romanos e até já nem se lembram de sua própria língua.”
No ano 74 da nossa era o imperador Vespasiano concedia direito de
cidadania às populações do interior da Península, e o brilho da civilização
latina foi tão grande em terras da Ibéria que esta deu a Roma filósofos como
os dois Sênecas – pai e filho – poetas como Lucano e Marcial, um historia-
dor como Paulo Orósio, e até imperadores como Trajano e Adriano.

1.4. QUE LÍNGUA DERAM OS ROMANOS


À PENÍNSULA IBÉRICA?
À primeira vista, a pergunta é fácil de responder: o latim. Vale a pe-
na, porém, insistir em uma particularidade: acaso a língua de um país é um
todo rigorosamente uniforme? Não é verdade que na França, na Itália e na
Espanha existem falas regionais tão diversificadas que o povo de uma pro-
víncia pode não entender o natural de outra? Acaso a fala do nordestino bra-
sileiro é rigorosamente a mesma do carioca ou do paulista? Se o problema
pode ser sentido hoje, apesar da facilidade dos meios de comunicação – rá-
dio, televisão, telefone, internet, livros, jornais – e com a abundância de es-
colas, como não seria no tempo dos romanos?
Mais ainda: porventura algum de nós fala como escrevia Machado de
Assis, por exemplo? Ou sequer ao menos usamos ao falar com os colegas,
com os amigos íntimos, a mesma linguagem que usamos ao falar com pes-
soas de cerimônia ou que empregamos na correspondência?
Essas diferenças, sensíveis, típicas, devem ser lembradas porque elas
existiam ao tempo dos romanos e foram importantes na formação da nossa
língua. O latim não escapava a uma regra que se pode dizer geral:
Uma língua tem dois empregos distintos: o literário, quase sempre escrito,
usado pelos artistas da palavra e pela sociedade culta, difundido nas escolas e nas
academias – e o popular, falado quase sempre, de que se serve o povo despreocu-
pado e inculto. (SILVA NETO, 1976, p. 34)
Existia em Roma a língua literária (sermo urbanus, eruditus, perpo-
litus), língua artificial, de que Cícero se valia nos seus discursos e os filóso-
fos e poetas nos seus escritos; e o latim vulgar (sermo vulgaris, usualis,
plebeius, cottidianus, proletarius) que o povo em geral, os camponeses, os
soldados, usavam no trato comum.
Nesta última modalidade, o latim apresentava todos os defeitos, to-
das as falhas que uma língua pode apresentar quando o povo que o maneja
não tem cultura e não se esmera no falar. A própria maneira como Roma fa-
zia a colonização facilitava a corrupção do latim. Não se disse que os povos
vencidos eram obrigados a falar a língua dos vencedores? Não se afirmou

21
José Pereira da Silva
que os soldados, apanhados pelo serviço militar obrigatório, deviam servir
em províncias distantes e eram forçados a usar a língua comum? E como
poderiam uns e outros usar um idioma que, além de naturalmente difícil, era
a maior parte das vezes aprendido ao acaso, de ouvido, como o imigrante,
por exemplo, aprende o português?
Daí poder-se afirmar que “a designação latim vulgar não conceitua
uma língua, mas um conglomerado de falares de vários tipos”, ideia que
ressalta bastante clara da maneira, às vezes desdenhosa, como o latino culto
designava o falar do povo: sermo plebeius, a fala da plebe; sermo proleta-
rius, a fala dos operários; sermo castrensis (de castra, acampamento), o lin-
guajar dos soldados.
Os colonizadores das províncias romanas procediam das mais diver-
sas camadas sociais e dos mais vários recantos do Império. Eram frequentes
as colônias de veteranos, formadas por soldados desmobilizados aos quais
eram dadas terras como recompensa. Na Hispania, a primeira colônia de ve-
teranos foi fundada no ano 106 antes de Cristo.
Por tudo isso é que Carolina Michaëllis de Vasconcelos ensina, em
obra já citada antes:
Não é da língua cultíssima de Cícero e de César, os deuses maiores da prosa
clássica, que as línguas românicas procedem, e muito menos da linguagem poéti-
ca, sublimada, de Horácio, Catulo, Vergílio. É do latim falado por todas as clas-
ses, mas, sobretudo pelo verdadeiro povo; do latim de conversação despreocupa-
da, com fins meramente práticos, sociais, como instrumento de comércio, de pes-
soa a pessoa... (VASCONCELOS, C. M., s/d, p. 10)
Não se deve pensar, porém, que existisse mais de uma modalidade
de língua. O que se tinha era o latim literário, língua artificial, criada por
imitação dos modelos gregos, unicamente escrita, cheia de variações que
deviam embelezá-la; e o latim vulgar, língua unicamente falada, que possu-
ía vida própria, que não estava presa a princípios rígidos de fonética, morfo-
logia e sintaxe. Essa língua falada, que foi no começo o idioma do Lácio e
das tribos que primitivamente se aglomeraram em torno de Roma – etrus-
cos, oscos, úmbrios, volscos etc. – foi-se tornando cada vez mais rica e
também mais complexa, à medida que recebia novos contatos e novas in-
fluências oriundas das novas terras acrescentadas ao Império.
Enquanto a língua literária se fazia mais fixa e mais rígida, à propor-
ção que os eruditos lhe impunham regras e normas, a língua falada se enri-
quecia sempre mais, ganhava mais vida e colorido, mais complexidade e va-
riação, com a multiplicação das conquistas que davam a Roma novas for-
mas de vida correspondentes às castas, às classes sociais, às novas ocupa-
ções.

22
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
Literário
somente escrito, usado pelos poetas, oradores e filósofos
familiar = da classe média
latim – língua plebeu = da classe baixa
Vulgar
do Império castrense = dos soldados
falado pelas várias classes, com
náutico = dos marinheiros
aspectos diferentes
proletário =dos operários
rural = dos camponeses

É desse latim vulgar, cheio de falhas e de defeitos que o afastavam


bastante da língua erudita, que se vai originar o português.

1.5. OUTROS FATORES DE CORRUPÇÃO DO LATIM


Com a queda e fragmentação do Império Romano, suprimidos os
elementos unificadores do idioma, o latim vulgar falado no vasto território
da Península Ibérica, já bastante modificado pela ação do substrato linguís-
tico peninsular2, passou a se desenvolver independentemente em cada regi-
ão, isto é, dialetou-se.
Fatos supervenientes contribuíram, mais tarde, para precipitar e fazer
mais fundas as alterações do latim falado na Lusitânia.
Entre eles, dois apresentam maior importância que os outros: a inva-
são dos bárbaros e o domínio dos árabes na Península.

1.5.1 A invasão dos bárbaros


A invasão dos bárbaros, ocorrida no século V, foi o fator que deter-
minou a quebra dos laços que uniam a Roma as várias províncias do Impé-
rio, porque fez desaparecer definitivamente a centralização que, nos últimos
séculos, graças à grande extensão territorial que os romanos dominavam,
aparecia já bastante enfraquecida.
A princípio, situaram-se os alanos e suevos ao Noroeste da Península
e os vândalos ao Sul, principalmente na região hoje chamada Andaluzia,
nome proveniente de Vandalutia, pertencente aos vândalos (cf. NASCEN-
TES, 1932, s.v.). Depois, provenientes do solo da atual França, onde se ti-
nham localizado inicialmente, surgem os visigodos, povo de origem germâ-
nica, muito mais cultos do que os outros, e cuja fala já era bastante mescla-
da de elementos latinos, sem dúvida devido aos contatos antes mantidos
com o Império Romano. Este povo dominou os bárbaros que o tinham pre-

2Substrato linguístico é a influência da língua de um povo vencido sobre a qual se superpõe a língua do
vencedor.

23
José Pereira da Silva
cedido, expulsou os vândalos para o Norte da África e assenhoreou-se de
toda a Península Ibérica.
Os bárbaros destruíram o Império, quebraram a relativa unidade lin-
guística, fizeram desaparecer as escolas, extinguiram a organização comer-
cial, mas não puderam resistir ao brilho da civilização latina e, fato estra-
nho, embora conquistadores, acabaram vencidos pela cultura dos povos
conquistados, principalmente depois que o cristianismo ajudou a abrandar a
aspereza exterior de uma raça fundamentalmente mística. Como lembrança
do período de dominação germânica sofrido pela antiga Hispania, ficaram
apenas alguns vocábulos, muitos dos quais viveram durante longo tempo
sob formas alatinadas, como é o caso de brandire (derivado de brand = es-
pada), blancus (de blanch), Henricus (de Haimrik), Ricardus (de Rikhard),
além de guerra, elmo, feltro, guisa etc. (Cf. 11.3.1).

1.5.2. Os árabes
Os árabes invadiram a Península no século VIII e, embora tivessem
ocupado quase todo o território – com exceção apenas de uma pequena fai-
xa ao Norte – durante sete séculos, a sua influência foi bem menor do que a
dos visigodos, a tal ponto que mesmo os cristãos dominados e arabizados
(conhecidos pela denominação de moçárabes) se fizeram bilíngues e nunca
perderam a fala românica. A razão é que falavam eles idioma fundamental-
mente diverso do latim, de dificílimo, senão impossível caldeamento. Por
isso, não obstante o longo convívio de séculos, as duas línguas se mantive-
ram autônomas quanto à estrutura gramatical.
Também dos árabes restam no vocabulário português muitas pala-
vras, mais frequentemente de uso na agricultura e no comércio. Tal influên-
cia se restringe apenas ao léxico: cerca de mil vocábulos de origem árabe
existem no léxico português. Estes vocábulos são, de modo geral, caracteri-
zados pelo prefixo AL, artigo definido árabe, como acelga, açougue, açú-
car, açude, alface, alambique, alfândega, álcool, aldeia, alcaide, alfazema,
algodão, alqueire, alcatifa etc. (Ver tópico 11.3.2 e SILVA, J. P., 1996, p.
21-46).

1.6. SUBSTRATO, SUPERESTRATO E ADSTRATO


Agora se torna claro que as transformações sofridas pelo latim, para
dar origem ao português, foram apenas o resultado de que o povo inculto,
ou os colonos, ou os soldados, ou ainda os povos conquistados, falassem
mal a língua do Lácio, língua que lhes era imposta, a maior parte das vezes,
sem condições culturais que resultariam, por exemplo, da aprendizagem fei-

24
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
ta na escola.
Ao afirmar que a relação entre a unidade e a diferenciação do latim
vulgar oferece a chave para que se compreenda a origem das línguas româ-
nicas, Benedek Elemér Vidos (VIDOS, 1996, p. 175), apoiado em E.
Richter (RICHTER, 1934, p. 5), ensina: “O latim vulgar, como qualquer ou-
tra língua falada, estava sem dúvida diferenciado vertical (social) e horizon-
talmente (geograficamente)”.
Foi esse problema da diferenciação geográfica, mais do que o da di-
ferenciação social, que criou condições para que a língua latina viesse um
dia a dar origem às línguas românicas.
Socialmente, o latim seria bem falado ou mal falado, conforme a cul-
tura daqueles que o empregassem e, mais ainda, conforme a situação em
que fosse empregado. Já tem sido repetido várias vezes que ninguém fala
como escreve e que mesmo os bons escritores não utilizam, no falar diário e
até mesmo na correspondência íntima, a linguagem rebuscada, altamente li-
terária, de que se valem nas obras que escrevem.
Geograficamente, porém, as diferenças deviam ser muito mais sérias,
porque à medida que o Império se ampliava, envolvia povos de raças dife-
rentes, o que vale dizer também povos de falas diferentes: primeiro, foram
úmbrios, etruscos, oscos e tantas outras nações próximas, para chegar de-
pois aos recantos mais distantes e alcançar a Gália, a Germânia, a Ibéria, a
Britânia, a Macedônia, os mais remotos recantos do mundo conhecido.
Ao estudar os problemas relativos à transformação do latim vulgar,
na sua marcha lenta para dar origem às línguas românicas, resultado da fer-
mentação na fala de tantos povos que existiram dentro do Império, os lin-
guistas modernos formularam a teoria do substrato, a que se veio juntar,
quase de imediato, a hipótese do superestrato, ambas agora acompanhadas
pela aceitação da existência do chamado adstrato.
No dizer do já citado Vidos e consoante o que ficou estabelecido no
V Congresso Internacional de Linguística, realizado em Brujas, em 1939,
“substrato, superestrato e adstrato são meras expressões metafóricas para
indicar as influências linguísticas dos povos, respectivamente, vencidos,
vencedores e conviventes”. (VIDOS, 1996: 178).
Esta afirmação permite, então, que se estabeleçam os seguintes con-
ceitos:

1.6.1. Substrato
Existe substrato quando um povo conquistador impõe a sua própria

25
José Pereira da Silva
língua a um povo conquistado, determinando o desaparecimento gradativo
da língua dos primitivos habitantes. Durante algum tempo haverá uma fase
de bilinguismo, isto é, as duas línguas, tanto a do vencedor como a do ven-
cido, serão usadas nas relações mútuas, para que os povos se possam enten-
der, mas aos poucos a língua do povo dominado vai sendo esquecida, até
que predomine apenas a fala do vencedor. Do idioma perdido restarão ape-
nas palavras esparsas, incorporadas à fala do vencedor, contaminações vo-
cabulares, nomes próprios, nomes de lugares. Não se deve, porém, imaginar
que substrato seja apenas a palavra imposta a uma língua, pois que às vezes
ele é representado pela maneira de dizer que era própria do povo vencido e
até mesmo pela sua tendência fonética, a qual pode tornar-se viva muito
tempo depois da época em que teve lugar a dominação. É ainda o próprio
Vidos quem o ensina ao afirmar:
À medida que o poder de Roma começou a ceder e o prestígio do latim a di-
minuir, debilitou-se na população bilíngue o ideal linguístico do latim, que tivera
até então uma ação refreadora sobre o substrato, e os barbarismos tiveram possi-
bilidade de se desenvolverem livremente. (ALONSO, 1951, p. 323, apud VI-
DOS, 1996, p. 184).
A respeito dessa persistência e, mais ainda, demonstrando a sua lon-
ga duração, vale a pena ter-se em conta uma afirmação de Serafim da Silva
Neto:
...muitas mutações que vieram, mais tarde, verificar-se na fase do latim impe-
rial (II ao V século da era cristã), eram peculiares aos dialetos itálicos. Vejamos
exemplos: a queda do –g– intervocálico (cf. português ruído de rugito) era co-
mum no osco e no úmbrio, pois ao latim magis correspondia o osco mais e ao la-
tim magistro correspondia o úmbrio mestro. (SILVA NETO, 1956, p. 52)
Vejamos exemplos de palavras portuguesas devidas ao substrato:

1.6.1.1. Célticas
Há palavras celtas que foram possivelmente trazidas à Península Ibé-
rica pelos próprios legionários romanos, pois que entraram na língua latina
ao tempo das primeiras lutas com os gauleses, na alta Itália, por volta do sé-
culo IV antes de Cristo. Outras, sem dúvida as mais numerosas, datam da
conquista da Gália e da própria Ibéria. São de origem céltica: bragas, brio,
bico, cabana, caminho, camisa, carpinteiro, carro, cerveja, gato, gordo,
lança, légua, seara, saio, toca, touca, vassalo, Coimbra, Bragança, Lima,
Penafiel, Segóvia, além de outras. (Cf. tópico 11.1.2).

1.6.1.2. Ibéricas
Vale a pena ter-se em conta a afirmação de Adolfo Coelho, reprodu-

26
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
zida por Ismael de Lima Coutinho: “Dificilmente se apurarão trinta palavras
fundamentais em português a que se possa com verossimilhança atribuir
uma origem euscara [tudo aquilo que diz respeito ao vasconço]”. São do
substrato ibérico, além das palavras e dos sufixos que podem ser vistos no
tópico 11.1.1: abarca, baía, balsa, barro, cama, garra, manto, néspera, sa-
po, sarna, veiga.

1.6.1.3. Fenícias
Embora tenham passado pela Península Ibérica primeiro os fenícios
e, depois, os cartagineses, racialmente descendentes daqueles, não é grande
a contribuição do substrato dessas duas origens. (Cf. tópico 11.1.3).

1.6.1.4. Substrato ameríndio e africano


Não se deve esquecer, quando se trata de substrato, que a conquista
do Brasil e de grandes extensões territoriais da África trouxe para o vocabu-
lário português uma apreciável contribuição vocabular que aparece em no-
mes próprios, em nomes geográficos, na flora, na fauna, em nomes de ali-
mentos e até mesmo em contaminações vocabulares. Que se veja, a propósi-
to, o que está dito no capítulo XII, relativamente à contribuição brasileira
para o léxico da língua e, especificamente sobre a contribuição indígena,
leia-se o trabalho de Clóvis Monteiro (MONTEIRO, 1959, p. 75-143)

1.6.2. Superestrato
O termo superestrato, segundo Fredrick H. Jungemann,·
Foi usado pela primeira vez por W. von Wartburg, no Congresso de Roma-
nistas de Roma em 1932, para designar um povo imigrante e conquistador, que
gradualmente adota a língua do seu novo ambiente e ao mesmo tempo influi de
alguma forma no desenvolvimento ulterior dessa língua. (JUNGEMANN, 1955,
p. 17)
É fácil notar que, relativamente ao substrato, a diferença é profunda:
No primeiro caso, há um povo vencedor que domina, e um povo vencido
que é dominado; o vencedor impõe a sua língua, mas recebe palavras, mo-
dismos, influências vocabulares, daquele a quem venceu. No segundo caso
– isto é, no caso do superestrato –, há também um vencedor e um vencido,
um povo que domina e outro que vem a ser dominado, mas a civilização e a
cultura do vencido são maiores do que a do dominador, e acontece que este
perde a sua língua, aceita a fala daquele a quem venceu, e apenas vai forne-
cer para o vocabulário dominante algumas palavras, maneiras de dizer, no-
mes próprios, nomes de lugar, denominação de objetos.

27
José Pereira da Silva
Em todas as línguas românicas há fartos exemplos da influência do
superestrato e encontramo-los também em português, durante a dominação
dos bárbaros – principalmente dos visigodos – e dos árabes. Essas altera-
ções são, às vezes, fonéticas e às vezes representadas por vocábulos dos idi-
omas dos dominadores romanizados e incluídos na língua da Península.
O som w dos germanos passou às línguas novilatinas como guê: werra, por-
tuguês guerra, italiano guerra etc. O h aspirado dos árabes foi cambiado, em por-
tuguês, no f: almihadda > almofada. (SILVA NETO, 1956, p. 50)
Os árabes modificaram, de acordo com os seus hábitos glóticos, certos nomes
que encontraram cá, os quais depois passaram, assim modificados, para o nosso
vocabulário: Tagu, por exemplo, foi mudado em Tejo e Pace (de Pax Iulia), cer-
tamente na forma *Paga, foi mudada em Beja; no Algarve castella ou castellum
tornou-se Cacela, do mesmo modo que na língua comum castru se tornou alcacer
< al-cacer. Mas os sons resultantes são perfeitamente portugueses, e iguais aos
que se observam em palavras provenientes do latim. Dizemos Tejo como inveja
(do latim invidia), e Cacela como cancela (do latim cancellu). O mesmo notamos
nas palavras de origem germânica. (VASCONCELOS, J. L., 1959, p. 37)
Há grande número de vocábulos resultantes do superestrato germâni-
co e árabe, no português, relacionados nos tópicos 11.3.1 e 11.3.2, respecti-
vamente, parte intitulada Vocábulos pós-romanos.

1.6.3. Adstrato
“Com o termo adstrato, raras vezes empregado, faz-se referência ou
a línguas contíguas ou a línguas de substrato, ainda existentes”, ensina
Fredrick H. Jungemann (1962, p. 18). Benedek Elemér Vidos ainda é mais
explícito e mais positivo:
O conceito de adstrato poderia ser um útil complemento dos outros dois, no
sentido de que o substrato e o superestrato representam as influências em direção
vertical, de baixo para cima e de cima para baixo respectivamente, enquanto o
adstrato representa a influência de duas línguas coexistentes uma ao lado de outra,
isto é, horizontalmente.
Embora o adstrato possa estar em estreita correlação com os outros dois con-
ceitos, não se compara a eles em igualdade de condições, e pelo que se refere a
sua influência não tem a mesma importância, posto que substrato e superestrato
supõem o bilinguismo, o que não ocorre no adstrato. (VIDOS, 1996, p. 177.)
Fica bastante claro e vale como conclusão que o maior papel do
adstrato é facilitar empréstimos entre as línguas que vivem lado a lado, mas
sem que haja superposição dessas mesmas línguas, uma vez que uma não
chega a tomar o lugar da outra.
São adstratos, em relação ao português, o espanhol, o francês, o in-
glês, o italiano, o alemão e até mesmo certas línguas orientais, como o japo-
nês e o chinês, que emprestaram à língua de Portugal vocábulos hoje defini-

28
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
tivamente incorporados ao léxico. (Ver tópicos 11.3 a 11.3.8).

1.7. O APARECIMENTO DO ROMANÇO


Rompidos os laços que mantinham unido o Império Romano, que-
brada a uniformidade linguística contra a qual militavam já todos os fatores
que enumeramos antes, começaram a tomar força os falares regionais, im-
primindo ao latim vulgar alterações profundas e diferentes em cada região,
surgindo assim os diversos romanços ou romances, nome com que se de-
signam as diferentes falas, intermediárias entre o latim e as línguas atuais,
que apareceram nas várias províncias do Império depois da queda de Ro-
ma e, de modo geral, entre os séculos V e IX. Houve, como é natural, um
romanço francês, um italiano, um catalão e, precioso para o nosso estudo, o
romanço lusitano.
O nome se originou do advérbio romanice. Da fala de determinado
povo, fala que já não era o latim porque o Império tinha desaparecido, dir-
se-ia romanice loqui, isto é, falar romanicamente, à moda de Roma, e esse
advérbio é que, com as alterações naturais que vamos estudar mais tarde,
dará origem a romance e romanço: romanice > roman’ce > romance.
Durante a dominação dos godos e a dos árabes, o romanço falado na
orla ocidental da Península, isto é, na Lusitânia, foi adquirindo configuração
própria, até nos aparecer, no século XII, transformado numa língua distinta:
a portuguesa.

1.8. AS LÍNGUAS ROMÂNICAS


Dá-se o nome de línguas românicas ou neolatinas ao grupo de idio-
mas que evoluíram do latim vulgar.
Dos vários romanços originar-se-ão as línguas neolatinas modernas,
que são:

1.8.1. Na área balcano-românica:


1) o romeno ou valáquio (que não se deve confundir com o romai-
co, nome do grego moderno), falado na Romênia e em parte da
Macedônia.
2) o dalmático, falado na Dalmácia até final do século XIX, hoje
completamente desaparecido.

29
José Pereira da Silva
1.8.2. Na área ítalo-românica:
3) o italiano, falado na Itália, na Córsega e na Sicília.
4) o sardo, falado na Sardenha
5) o rético ou ladino, falado ao norte da Península Itálica, no Tirol
e no cantão suíço dos Grisões.

1.8.3. Na área Galo-România:


6) o francês, falado na França, em parte da Bélgica, na Suíça, no
Principado de Mônaco, no Canadá e na Guiana Francesa .
7) o franco-provençal, falado no Franco Condado, na Lorena, na
Saboia e na Suíça Francesa.
8) o provençal, falado na Provença.

1.8.4. Na área ibero-românica:


9) o catalão, falado na Catalunha e nas Ilhas Baleares.
10) o espanhol, falado na Espanha e nos países independentes da
América, com exceção do Brasil, dos Estados Unidos, do Ca-
nadá e das chamadas Guianas.
11) o galego, falado na Galiza.
12) o português, falado em Portugal, Ilha da Madeira, Açores,
Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Zanzibar,
Mombaça, Goa, Damão, Diu, Ceilão, Macau, Java, Cingapu-
ra, Malaca, Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Brasil.

1.9. AS FASES DA LÍNGUA PORTUGUESA


Através dos séculos e desde o domínio do latim vulgar na Península,
a língua portuguesa atravessou várias fases até chegar à forma atual.
Devem ser destacados os seguintes períodos, a partir do romanço lu-
sitânico, já mencionado, e que se estende do século V ao IX:
1) Fase Pré-Histórica – Começa com as origens da língua e vai até o século
IX. Do século V ao IX temos o que se chamou o romance lusitânico.
2) Período do Português Proto-Histórico – Estende-se do século IX ao XII;
a língua já é falada, mas não é escrita. Nesta fase, encontram-se, nos docu-
mentos redigidos em latim bárbaro, palavras portuguesas.
3) Fase Histórica – Inicia-se no século XII e se estende até os nossos dias.

30
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
Compreende dois períodos:
a) Período do Português Arcaico – Estende-se do século XII ao sé-
culo XV e a língua já aparece em documentos escritos, tanto em prosa como
em verso, mas não tem ainda as formas definitivas, que vai adquirir no perí-
odo seguinte.
No século XII aparece o primeiro texto inteiramente redigido em por-
tuguês. É a «Cantiga da Ribeirinha», poesia escrita por Paio Soares de Ta-
veirós dedicada à D. Maria Paes Ribeiro, a Ribeirinha. A grande filóloga
Dra. Carolina Michaëlis de Vasconcelos datou este primeiro documento da
língua portuguesa de 1189. A partir de então aparecem textos em poesia e,
mais tarde, em prosa. Podemos conhecer o português arcaico através das
poesias trovadorescas que estão reunidas em “Cancioneiros” e, ainda, na
prosa de cronistas como Fernão Lopes, Gomes Eanes Zurara, Rui de Pina.
Em 1290, D. Dinis, o Rei Trovador, torna obrigatório o uso da língua
portuguesa, e funda, em Coimbra, a primeira Universidade.
b) Período do Português Moderno – Estende-se do século XVI até
nossos dias e compreende duas fases distintas graças às influências sofridas:
a clássica, do século XVI ao XVIII, e a pós-clássica ou contemporânea, do
século XIX até hoje.
No século XVI, sob a influência dos humanistas do Renascimento,
houve um processo de aperfeiçoamento e enriquecimento linguísticos, vol-
tando-se os escritores à imitação dos modelos latinos, e procurando aproxi-
mar a língua portuguesa à língua mãe. Como a coroar esse processo, apare-
ce, em 1572, a obra de Luís de Camões, Os Lusíadas, marcando a história
do nosso idioma com o maior monumento literário e linguístico.
É ainda no século XVI que se inicia a gramaticalização do idioma
com a publicação, em 1536, da primeira gramática da língua portuguesa, es-
crita pelo Pe. Fernão de Oliveira, Gramática da Lingoagem Portugueza. Em
1540 João de Barros escreve a segunda com o mesmo título da primeira.
ESQUEMA
1ª PRÉ-HISTÓRICA (séc. V - IX) - temos o ROMANCE LUSITÂNICO

2ª PROTO-HISTÓRICA (séc. IX - XII) - já existe a língua falada; dá testemunho


disto o LATIM BÁRBARO.
a) Período ARCAICO (séc. XII - XVI)
FASES DA 1º documento 1189
LÍNGUA b) Período MODERNO(séc. XVI-hoje)
PORTUGUESA Movimentos que marcam o início do
3ª HISTÓRICA Português Moderno no séc. XVI:
(séc. XII- Hoje) 1º) O Renascimento Literário;
2º) A Publicação das 1ªs gramáticas (1536 e 1540);
3º) A publicação de «Os Lusíadas»... (1572).

31
José Pereira da Silva
1.10. O GALEGO-PORTUGUÊS
E A FIXAÇÃO DO PORTUGUÊS-MODERNO
A língua que aparece usada em Portugal no período arcaico, aquela
que vemos escrita nos primeiros documentos, datados do século XII, não é
ainda o português propriamente dito, mas uma mescla a que se chamou ga-
lego-português (ou galaico-português) e cujo domínio se estendeu da Galiza
até o Algarve. Posteriormente, com a consolidação da independência de
Portugal e a anexação do território galego ao reino de Castela, as pequenas
diferenças dialetais foram-se acentuando, as duas línguas – o galego e o
português – ganharam formas próprias, até que no começo do século XVI,
com a publicação das duas primeiras gramáticas da língua e com o apareci-
mento de Os Lusíadas, o português adquiriu as linhas definitivas que co-
nhecemos hoje.

1.11. FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA


Para autonomia e engrandecimento da língua portuguesa, antes sim-
ples dialeto da faixa ocidental da Ibéria, muito contribuiu, sem dúvida al-
guma, o fortalecimento de Portugal como nação, porque um dialeto só ad-
quire autonomia de língua quando circunstâncias político-sociais o fazem
instrumento de uma literatura.
Foi no século IX que o rei Alfonso VI, de Leão e Castela, desejando
premiar o conde D. Henrique de Borgonha, pela bravura com que se portou
no combate aos mouros, deu-lhe em recompensa a mão de sua filha, Dona
Tareja, e uma faixa de terra, entre os rios Douro e Minho, que foi o Conda-
do Portucalense, tendo por centro, como o próprio nome o diz, a cidade do
Porto. Vassalo embora da coroa de Castela, D. Afonso Henriques, filho e
sucessor do conde, luta para conquistar terras aos infiéis, aos quais vence na
batalha de Ourique (1139), leva os limites do condado até as margens do
Tejo, com a tomada de Lisboa, e pouco depois, em 1143, rompe os laços
que o prendem aos reis da Espanha e faz-se proclamar rei de Portugal. Ca-
berá ao Rei Afonso III a glória de dar os limites definitivos ao reino, com a
tomada aos mouros do Algarve, região situada no extremo sul, e D. Dinis, o
Rei Trovador, tornará obrigatório o uso da língua portuguesa, tentando criar
uma barreira à influência cultural da Espanha, ao mesmo tempo em que, pa-
ra dar forma à cultura lusitana, funda em Coimbra, no ano de 1290, a Uni-
versidade de onde sairão os homens que hão de perpetuar a língua do pe-
quenino reino.

32
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
1.12. A EXPANSÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Ao criar, em 1412, a Escola de Sagres, com o fim de incrementar o
estudo da arte náutica, mal sabia o Infante D. Henrique estar preparando a
epopeia dos Descobrimentos e a consequente expansão da língua portugue-
sa por todo o mundo.
Em 1419, Perestrelo, Zarco e Tristão Vaz descobrem a ilha da Ma-
deira; em 1434, Gil Eanes ultrapassa o cabo do Bojador; em 1468, Diogo
Cão pisa terras do Congo; em 1488, imortaliza Bartolomeu Dias as velas
portuguesas, quando transpõe o cabo das Tormentas; em 1498, coroa Vasco
da Gama a comovente pertinácia dos lusos, presenteando a Civilização com
o descobrimento do caminho marítimo para as Índias; em 1500, aportam as
naus cabralinas a solo americano!
Constituiu-se assim um grande império português ultramarino, em
terras da África, da Ásia, da Oceânia e da América. Levada pelos navegan-
tes e colonizadores, a língua portuguesa se fez ouvir pelos quatro cantos do
universo.
Com os descobrimentos marítimos, acima citados, que imortalizaram
o nome português a partir do século XV, graças a Diogo Cão, Bartolomeu
Dias, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e tantos outros, Portugal leva
aos quatro cantos do mundo o idioma a que dera forma e prestígio. Firme-
mente estabelecida em alguns lugares, como acontece no Brasil, onde é a
língua nacional, concorrendo com dialetos nativos em outros, o português
atinge hoje os seguintes domínios, segundo o Dr. Leite de Vasconcelos:
1) Português continental – falado em Portugal e com vários dialetos.
2) Português insulano – falado nas ilhas europeias da Madeira e dos
Açores.
3) Português ultramarino, que compreende:
a) o brasileiro;
b) o indo-português, com os dialetos crioulos de Damão, Diu e
Goa;
c) o crioulo de Ceilão;
d) o crioulo de Macau;
e) o malaio-português, com os dialetos crioulos de Java, Malaca e
Cingapura;
f) o português de Timor Leste (ilha da Oceania);
g) o crioulo do Cabo-Verde;

33
José Pereira da Silva
h) o crioulo da Guiné-Bissau;
i) o português de Angola, Moçambique, Zanzibar, Mombaça e
Melinde (todas regiões africanas).
Diz-se que um falar é do tipo crioulo quando “apenas se estabelecem
relações comerciais, entre vencedor e vencido, entre superior e inferior, e,
portanto, só há o interesse de mútua compreensão”. Nessas condições, a fala
importada concorre em igualdade de condições com os dialetos nativos,
como acontece ao português em algumas regiões da Ásia e da África.

1.13. RESUMO DO CAPÍTULO


1) O português, língua latina, representa a fase atual do latim vulgar
falado na Lusitânia.
2) Concorrem com o latim, na formação do falar lusitano, elementos
celtas, iberos, fenícios, germânicos e árabes.
3) A transformação local do latim vulgar deu origem, inicialmente,
ao romanço e, mais tarde, ao português propriamente dito. Houve também
romanços na Espanha, Itália, França, Romênia, Sardenha, Provença, Tirol,
Catalunha, Galiza, onde se falam hoje línguas latinas.
4) Constituído o Portugal nação, a língua portuguesa, na época dos
descobrimentos, espalha-se por todo o mundo e atualmente é falada no Bra-
sil, na Madeira, nos Açores, em Angola, Cabo-Verde, Moçambique, Timor,
além de muitos outros pontos.

SINOPSE
ORIGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA
iberos
celtiberos
celtas
1. Povos de civilização pré-
fenícios
romana na Península Ibérica:
gregos
cartagineses
2 – Romanização da Península Ibérica
Inicia-se no séc. III a. C.
Propósito da ida dos romanos para a Península Ibérica:
a) Atender diretamente ao pedido de socorro da cidade de Sagunto, cercada em 219 a. C.
por Aníbal, general cartaginês.
b) Sustar a expansão de Cartago, que representava séria ameaça aos romanos no mundo me-
diterrâneo.
Ações dos romanos para impor sua civilização e sua língua.
1º) Abriram escolas.
2º) Organização do serviço militar obrigatório e obrigatoriedade do uso do latim. Outras
benfeitorias: construção de estradas, de templos, de praças; organização do comércio e do cor-
reio etc.

34
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
3 – Povos de civilização pós-romana na Península Ibérica:
a) Bárbaros Germânicos (alanos, suevos, visigodos, vândalos) (séc. V. d. C.).
Ações dos bárbaros pelas quais eles causaram a dialetação do latim vulgar na Península Ibéri-
ca:
1º) Causaram a dissolução da unidade política do império.
2º) Fecharam as escolas.
3º) Extinguiram a nobreza romana na Península Ibérica.

b) Árabes (séc. VIII d. C.).


Foram definitivamente expulsos apenas em 1492. Alfonso VI, rei de Leão e Castela, inicia as
lutas para a expulsão dos mouros da Península Ibérica.
O Conde D. Henrique de Borgonha, como recompensa pelas lutas a favor do rei, recebe em ca-
samento sua filha bastarda, D. Tareja, e como dote de casamento recebe o Condado Portuca-
lense.
Afonso Henriques, filho desse casal, estende os limites do território mais o Sul e em 1140 faz a
sua independência em relação à Espanha proclamando-se o 1º rei de Portugal.
A língua que se falava nessa região era o dialeto galeziano, o qual após a fundação de Portugal
passou a ser chamado galaico-português, expressão linguística comum à Galiza e Portugal. É
nessa língua que foi escrito o primeiro documento da nossa literatura, a “Cantiga da Ribeiri-
nha”.

CANTIGA DA RIBEIRINHA (OU DA GUARVAYA)


Autor: Paio Soares de Taveirós
Data: 1189, segundo a Dra. Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
Dedicação: A D. Maria Pais Ribeiro, por alcunha “A Ribeirinha”, amante de D. Sancho I.
Texto:
No mundo non me sei parelha , parelha = igual, semelhante
mentre me for’como me vay mentre = enquanto, entrementes
ca já moiro por vos – e ay! ca = pois, porque
mia senhor branca e vermelha,
quereres que vos retraya retraya = retrate, evoque
quando vus eu vi en saya!
mao dia me levantei,
que vus enton non vi fea! que vus enton vi fea = que então vos vi linda
e, mia senhor, des aquel di’ay!
me foi a mi muyn mal,
e vos, filha de don Paay
Moniz, e ben vus semelha semelha = parece
d’aver eu por vos guarvaya guarvaya = manto próprio dos reis
pois eu, mia senhor, d’alfaya
nunca de vos ouve nem ei
valia d’ua correa. (Cancioneiro da Ajuda)

35
José Pereira da Silva
QUESTIONÁRIO
1. Que são línguas românicas?
2. Quantas e quais são as línguas neolatinas ou românicas?
3. Quais, dentre elas, são oficiais?
4. Todas as línguas românicas são línguas vivas?
5. Qual a origem mediata e imediata das línguas românicas?
6. Que é romance?Definir e localizar no tempo e no espaço.
7. Quais são os principais povos pré-latinos da Península Ibérica?
8. Em que século e por que os romanos invadiram a Península Ibérica?
9. Que se entende por romanização?
10. Que é substrato linguístico?
11. Quais os povos que invadiram a Península Ibérica após os romanos?
Em quais séculos se deram essas invasões?
12. Até quando ficaram os romanos dominando a Península Ibérica?
13. Por que os bárbaros germânicos e os árabes, sendo vencedores, não
conseguiram implantar sua cultura na Península Ibérica?
14. Quando os árabes deixaram, definitivamente, a Península Ibérica?
15. Quem foi D. Alfonso VI? E D. Henrique de Borgonha?
16. E D. Afonso Henriques?
17. Quando se deu a independência política do Condado? Quem a conse-
guiu?
18. Quem foi o 1º rei de Portugal? Quando foi reconhecido o novo reino?
19. Que dialeto era falado na região onde foi fundado Portugal?
20. Em que século aparecem os textos inteiramente redigidos em português?
21. Qual o 1º documento da língua portuguesa?De quando é datado?
22. Quais as fases da língua portuguesa? Faça um esquema.
23. Situar, no tempo, o português arcaico e falar ligeiramente sobre as
obras poéticas de tal época.
24. Qual a importância do Renascimento na evolução histórica do portu-
guês?
25. Que é domínio geográfico de uma língua?
26. Qual o domínio geográfico da língua portuguesa?

36
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

2. O LATIM VULGAR, ASPECTOS GERAIS

Uma certeza resulta do que foi mostrado anteriormente: foram as


modificações sofridas pelo latim vulgar que levaram ao português atual.
Claro também deve ficar que latim vulgar é língua somente falada, sem uni-
formidade, porque os vocábulos preferidos e dominantes deviam variar en-
tre os soldados, os componentes, os operários etc.
O latim era uma língua única, a língua oficial do povo romano. Mas,
como acontece com todas as línguas, apresentava diversas modalidades de
emprego, segundo as condições sociais das pessoas que o falavam e, ainda,
conforme as circunstâncias em que o faziam.
Os próprios romanos tinham a intuição da existência desses matizes.
À língua artisticamente trabalhada dos poetas, prosadores, retóricos e
oradores; àquela língua pura e solene que se ouvia no Senado e no Foro; em
que se redigiam os documentos oficiais e que servia de instrumento de co-
municação às mais altas camadas da aristocracia de Roma, chamavam ser-
mo urbanus.
À fala despreocupada da conversação, em que todos se entendiam
nas relações da vida diária, denominavam sermo vulgaris, no qual se distin-
guiam, por sua vez, várias tonalidades:
a) sermo cotidianus – a linguagem corrente das pessoas educadas;
b) sermo rusticus – o linguajar da gente sem cultura;
c) sermo peregrinus – o estilo próprio do uso regional.
Outras modalidades de latim existiam ainda, além do literário e do
vulgar, por nós já vistos:

2.1. BAIXO LATIM


Baixo latim é a língua literária da decadência “empregada pelos es-
critores cristãos, e na qual, de vez em quando, por humildade ou má instru-
ção dos autores, surgem barbarismos”. (SILVA NETO, 1956). O baixo la-
tim nunca foi língua viva e, como ensina o professor Vasconcelos Abreu,
constituiu “a última degradação do latim literário”, do qual era uma imitação.

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José Pereira da Silva
2.2. LATIM BÁRBARO
O latim bárbaro foi língua, somente escrita, usada pelos tabeliães da
Idade Média. Eis como Carolina Michaëllis explica essa modalidade de lín-
gua:
Ignorando o latim, eles (os tabeliães) misturavam parcelas mal aprendidas do
idioma do Lácio com fórmulas tradicionais, colhidas nos formulários do cartó-
rio. E onde essa ciência espúria falhava, acudiam com locuções e vocábulos do
romanço que no trato comum usavam; estropiando as primeiras gramaticalmen-
te, e deturpando mesmo as últimas porque lhes davam grafia e flexão pseudola-
tinas. (VASCONCELOS, C. M., [s./d])
Era possível, por essa razão, encontrarem-se nesses textos vocábulos
como abelia, ovelia e conelium, formas alatinadas do português abelha,
ovelha e coelho, que nem de longe correspondem ao latim vulgar apicula,
ovicula e cuniculum.
Essas modalidades de latim – o baixo e o bárbaro – são lembradas a
título de informação, porque não contribuíram para formar o português, uma
vez que eram apenas línguas escritas.
Sabido que o latim vulgar era língua somente falada, da qual não nos
restam documentos uniformes, importa perguntar: como podemos conhecer
as formas, as características, as tendências dessa modalidade do latim?

2.3. FONTES DE CONHECIMENTO DO LATIM VULGAR


São poucos os meios de que dispomos para conhecer o latim vulgar,
mas esses, pacientemente reunidos através dos séculos, orientam-nos bas-
tante e constituem ajuda inestimável. Como principais, vale a pena destacar:
1. as inscrições
2. os diálogos do teatro
3. o Appendix Probi
4. a Mulomedicina Chironis
5. a Peregrinatio ad Loca Sancta
6. o testemunho dos gramáticos
Foi consultando esses elementos, analisando-os, que os estudiosos pu-
deram conhecer as diferenças que o latim falado pelo povo apresentava rela-
tivamente ao latim usado pelos escritores.
Vale a pena ler a bela síntese desse assunto que faz Bruno Fregni
Bassetto. (Cf. BASSETTO, 2001, p. 110-138).

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
2.3.1. As inscrições
As inscrições são textos gravados em vários lugares – monumentos,
placas comemorativas, pedras tumulares etc. – nas quais os operários, pouco
cultos, praticavam erros, às vezes, ao escrever, a que estavam habituados na
fala. Imaginemos que um artífice, ao fazer um cartaz, hoje, escreva sinhora
em vez de senhora, ou riu em vez de rio. Não ficará claro que essa é, na fala
corrente, popular, a pronúncia dessas palavras? Pois os operários da época
do latim vulgar praticavam erros dessa espécie, escrevendo, por exemplo,
isse em lugar de ipse, falha que nos permite conhecer uma tendência capaz
de explicar a origem do pronome esse.
Infelizmente nem todas as inscrições têm o mesmo valor. Há as oficiais, que
são as mais corretas; há as funerárias, que obedeciam a certos formulários; há, en-
fim, as inscrições gravadas por pessoas de alguma ilustração.
As mais valiosas, para nós, são aquelas exaradas espontaneamente. Nesse rol
contam-se as chamadas tábulas execratórias, de cunho eminentemente popular.
Consistem em fórmulas mágicas, encantações, maldições, enfim, assuntos di-
retamente ligados à massa do povo. (SILVA NETO, 1946, p. 85).
Ao estudo especial das inscrições chama-se Epigrafia.

2.3.2. Os diálogos do teatro romano


Os diálogos do teatro romano constituem também fonte inestimável
para o estudo das tendências do latim falado. Autores houve em Roma, co-
mo Plauto, que pintavam ao vivo, em suas peças, cenas populares, procu-
rando imitar a fala rude do povo, exatamente como hoje certos autores, em
nosso meio, seja em revistas, em comédias ou em farsas, procuram reprodu-
zir a fala dos sertanejos, dos imigrantes, das pessoas incultas.

2.3.3. O Appendix Probi


O Appendix Probi, obra de gramático desconhecido, é uma lista de
227 palavras usadas erradamente pelo povo, ao lado das quais o autor ofere-
cia a pronúncia e a grafia corretas. Veja a lista completa na próxima página
Esse precioso documento, cujo autor se desconhece, é assim chama-
do por ter sido encontrado como anexo ou suplemento a uma obra do gra-
mático Probo. Foi elaborado provavelmente no século III depois de Cristo.
Ensinamentos como esses, que o Appendix Probi fornece, são preci-
osos, porque somente conhecendo-se a falha do latim vulgar – condenada
pelo autor – poder-se-á explicar a origem de certos vocábulos do latim clás-
sico. (Cf. SILVA NETO, 1956).

39
José Pereira da Silva
Por exemplo, o vernáculo orelha seria impossível em face do erudito
auris, mas torna-se explicável ante o popular oricla, sabendo-se que o cl la-
tino normalmente evolui para lh em português. O mesmo dir-se-ia de velho,
só explicável diante de veclus, artelho, admissível em face de articlus, olho,
compreensível ante a forma oclus etc.

2.3.4. Mulomedicina Chironis


Mulomedicina Chironis, possivelmente do século V, é um tratado de
veterinária cujos autores, muito pouco cultos, deixaram no que escreveram
imagens bastante claras do latim vulgar. O nome Chironis refere-se a Qui-
rão, um dos possíveis autores.

2.3.5. Peregrinação ad Loca Sancta


A Peregrinação ad Loca Sancta é a descrição de uma viagem à Ter-
ra Santa, dirigida por uma religiosa a suas irmãs de hábito. Segundo Grand-
gent, p. 295, foi atribuída à donzela aquitana Sílvia, irmã de Rufino, minis-
tro do imperador Arcádio, mas hoje está demonstrado que é obra de uma
freira espanhola chamada Etéria. A primeira redação oscila entre os anos
381 a 388 da nossa era. Rosalvo do Valle desenvolve um belo estudo sobre
essa fonte de estudos do latim vulgar, que utilizou como tese de concurso na
UFF. (Cf. VALLE, R., 1975).
Muito anterior ao texto acima é o chamado Banquete de Trimalcião,
escrito no ano 66 da nossa era por aquele famoso Petrônio que Nero levou
ao suicídio. Entre os comensais, que dialogam durante o banquete, há patrí-
cios que falam no mais correto latim, mas há também um liberto, por nome
Trimalcião, que fala servindo-se de uma rústica linguagem de campônio,
aparteado às vezes por outros libertos cujo linguajar é acentuadamente po-
pular.

2.3.6. O testemunho dos gramáticos


O testemunho dos gramáticos está vivo nas obras em que os mestres
latinos como Varrão, Quintiliano, Festo, procurando defender as boas nor-
mas da língua, não se cansavam de combater os erros do falar do povo.
O estudo dessas fontes, além de outras cuja menção não cabe nesta
obra, permite-nos conhecer como era o latim vulgar e nos mostra também
quais eram as suas tendências dominantes.

40
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
1) Porphireticum Marmor non Purpureticum 115) Lilium non Lileum
Marmur 116) Glis non Gliris
2) Tolonium non Toloneum 117) Delīrus non Delērus
3) Speculum non Speclum 118) Tinea non Tinia
4) Mascŭlus non Masclus 119) Exter non Extraneus
5) Vĕtŭlus non Vĕclus 120) Clamis non Clamus
6) Vitulus non Viclus 121) Vir non Vyr
7) Vernaculus non Vernaclus 122) Virgo non Vyrgo
8) Articulus non Articlus 123) Virga non Vyrga
9) Baculus non Vaclus 124) Occasio non Occansio
10) Angulus non Anglus 125) Caligo non Calligo
11) Iugulus non Iuglus 126) Terĕba non Telĕbra
12) Calcostegis non Calcosteis 127) Effiminatus non Imfimenatus
13) Septizonium non Septidonium 128) Botruus non Butro
14) Vacua non Vaqua 129) Grus non Gruis
15) Vacui non Vaqui 130) Anser non Ansar
16) Cultellum non Cuntellum 131) Tabula non Tabla
17) Marsias non Marsuas 132) Puella non Poella
18) Cannelam non Canianus 133) Balteus non baltius
19) Hercules non Herculens 134) Fax non Facla
20) Colŭmna non Colomna 135) Vico Capitis non Africae non Vico Caput
21) Pecten non Pectinis Africae
22) Aquaeductus non Aquiductus 136) Vico Tabuli Proconsolis non Vico Castrae
23) Cithara non Citera 137) Vico Castrorum non Vico Castrae
24) Crista non Crysta 138) Vico strobili non Vicostrobili
25) Formica non Furmica 139) Teter non Tetrus
26) Musīuum non Museum 140) Aper non Aprus
27) Exequiae non Execiae 141) Amycdăla non Amĭddŭla
28) Gyrus non Girus 142) Faseolus non Fasiolus
29) Avus non Aus 143) Stabulum non Stablum
30) Miles non Milex 144) Triclinium non Triclinu
31) Sobrius non Suber 145) Dimidius non Demidius
32) Figulus non Figel 146) Turma non Torma
33) Masculus non Mascel 147) Pusillus non Pisinnus
34) Lanius non Laneo 148) Meretrix non Menetris
35) Iuvencus non Iuvenclus 149) Aries non Ariex
36) Barbarus non Barbar 150) Persica non Pessica
37) Equus non Ecus 151) Dysentericus non Dysintericus
38) Coquus non Cocus 152) Opobalsamum non Ababalsamum
39) Coquens non Cocens 153) Tensa non Tesa
40) Coqui non Coci 154) Raucus non (D) Raucus
41) Acer non Acrum 155) Auctor non Autor
42) Pauper Mulier non Paupera Mulier 156) Auctoritas non Autoritas
43) Carcer non Car 157) (Ipse non Ipsus?)
44) Bravium non Bra (brum) 158) Linteum non Lintium
45) Pancarpus non Parcarpus 159) A ...Petre non ...tra
46) Theophilus non Izofilus 160) Terrae motus non Terrimotium
47) Homfagium non Monofagium 161) Noxius non Noxeus
48) Byzacenus non Byzacinus 162) Coruscus non Scoriscus
49) Capsesis non Capsessis 163) Tonĭtru non Tonǒtru
50) Catulus (non cat) elus 164) Passer non Passar
51) Catulus non Ca (te) llus 165) Anser non Ansar
52) Doleus non Dolium 166) Hĭrundo non Harundo
53) Calida non Calda 167) Obstetri non Opsestris
54) Frigida non Fricda 168) Capitulum non Capiclum
55) Vinea non Vinia 169) Nouerca non Nouarca
56) Tristis non Tristus 170) Nurus non Nura
57) Tersus non tertus 171) Socrus non Socra
58) Umbilīcus non Imbilīcus 172) Neptis non Nepticla

41
José Pereira da Silva
59) Tŭrma non Torma 173) Anus non Anucla
60) Celebs non Celeps 174) Tundeo non Detundo
61) Ostium non Osteum 175) Riuus non Rius
62) Flauus non Flaus 176) Imāgo non ...
63) Cauea non Cauia 177) Pauor non Paor
64) Senatus non Sinatus 178) Colŭber non Colober
65) Brattea non Brattia 179) Adĭpes non Alĭpes
66) Cochlea non Coclia 180) Sibĭlus non Sifĭlus
67) Cocleāre non Cocliarium 181) Frustrum non Frustum
68) Palearuim non Paliarium 182) Plebs non Pleps
69) Primipilaris non Primipilarius 183) Garrŭlus non Garŭlus
70) Alveus non Albeus 184) Parentalia non Parantalia
71) Globus non Glomus 185) Poples non Poplex
72) Lancea non Lancia 186) Locuples non Locuplex
73) Favilla non Failla 187) Robīgo non Rubīgo
74) Orbis non Orbs 188) Plasta non Blasta
75) Formosus non Formunsus 189) Bipennis non Bipinnis
76) Ansa non Asa 190) Ermeneumata non Erminomata
77) Flagĕllum non Fragĕllum 191) Tymum non Tumum
78) Calatus non Galatus 192) Strofa non Stropa
79) Digĭtus non Dicĭtus 193) Bitūmen non Butūmen
80) Solea non Solia 194) Mergus non Mergulus
81) Calceus non Calcius 195) Myrta non Murta
82) Iecur non Iocur 196) Zizipus non Zizupus
83) Auris non 197) Junipĭrus non Junipĕrus
84) Camĕra non Cammăra 198) Toleraviles non Tolerabilis
85) Pegma non Peuma 199) Basilica non Bassilica
86) Cloaca non Cluaca 200) Vĭrĭdis non Vĭrdis
87) Festuca non Fistuca 201) Tribŭla non Tribla
88) Ales non Alis 202) Constabilitus non Constabilitus
89) Facies non Facis 203) Sīrēna non Serena
90) Cautes non Cautis 204) Musium uel Musīuum non Museum
91) Pleves non Plevis 205) Labus non Lapsus
92) Vates non Vatis 206) Orilegium non Orologium
93) Tabes non Tavis 207) Ostiae non Hostiae
94) Suppellex non Superlex 208) Februarius non Febrarius
95) Apes non Apis 209) Glatri non Cracli
96) Nubes non Nubs 210) Allec non Allex
97) Suboles non Subolis 211) Rabidus non Rabiosus
98) Vulpes non Vulpis 212) Tintinaculum non Tintinabulum
99) Palumbes non Palumbus 213) Adon non Adonius
100) Lues non Luis 214) Grundio non Grunnio
101) Deses non Desis 215) Vapulo non Baplo
102) Reses non Resis 216) Necne non Necnec
103) Vepres non Vepris 217) Passim non Passi
104) Fames non Famis 218) Nunquit non Minquit
105) Clades non Cladis 219) Nunquam non Nunqua
106) Syrtes non Syrtis 220) Noviscum non Voscum
107) Aedes non Aedis 221) Vobiscum non Voscum
108) Sedes non Sedis 222) Nescioubi non Nesciocubi
109) Proles non Prolis 223) Pridem non Pride
110) Draco non Dracco 224) Olim non Oli
111) Ocŭlus non Oclus 225) Adhuc non Aduc
112) Aqua non Acqua 226) Idem non Ide
113) Alium non Aleum 227) Amfora non Ampora
114) Celebs non Celeps

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
2.3.7. Estudo comparativo das línguas românicas
Formas hipotéticas
Há, ainda, uma fonte indireta para o conhecimento do latim vulgar: é
a reconstituição de formas pelo estudo comparativo das línguas românicas.
Muitas vezes, determinada palavra não aparece em nenhum documento; to-
davia, é lícito supor a existência dela no latim vulgar, quando somente ela
pode explicar a presença de certas formas das línguas românicas.
Exemplifiquemos: o verbo português semelhar, o espanhol semejar,
o italiano simigliare, o galego somellar e outras formas românicas não po-
deriam originar-se da palavra latina similare. Pelo que se conhece da fonéti-
ca histórica dessas línguas, deduz-se ser *similiare a única forma que con-
vém a todas. Admite-se, então, como positiva, a existência de *similiare,
(proposta pelo grande romanista Frederico Diez).
A fim de mostrar o rigor científico do método filológico, basta dizer
que muitos vocábulos assim reconstruídos foram posteriormente encontra-
dos em documentos.
Tal aconteceu, por exemplo, com o étimo do português chover, es-
panhol llover, italiano piovere, francês pleuvoir, para os quais foi assentada,
por dedução, a palavra *plovere. Mais tarde, num texto de Petrônio, escritor
latino que viveu ao tempo de Nero, descobriu-se a forma plovebat, que veio
confirmar a exatidão da hipótese.
Essas formas conjeturais recebem o nome de hipotéticas ou recons-
truídas e são convencionalmente assinaladas por um asterisco (*).

2.4. CARACTERES DO LATIM VULGAR


O estudo das tendências do latim vulgar, das suas características do-
minantes, mostra-nos como foi que a língua do Lácio se alterou para dar
origem às línguas românicas e particularmente ao português.
Levado pela lei do menor esforço, presente em todas as línguas, e
cedendo ante as dificuldades que a língua latina apresentava na sua estrutura
muito complexa, duas coisas principalmente o povo procurava ao falar:
1- Simplificar a língua;
2- Tornar analítico, isto é, fazer flexível, graças ao uso de preposi-
ções, um idioma que às vezes se tornava duro pelo demasiado sintetismo.
O povo as alcançava essas duas finalidades maiores, desenvolvendo
tendências entre as quais importava destacar:

43
José Pereira da Silva
2.4.1. Tendência para o emprego de sufixos
Tendência para o emprego de sufixos, principalmente os tônicos e os
diminutivos.
apicula em vez de apis ovicula em vez de ovis
auricula em vez de auris sperantia em vez de spes
anellus em vez de anulus fibella em vez de fubulus

É curioso notar-se que as formas portuguesas abelha, ovelha, espe-


rança, anel e fivela só podem ser explicadas pelas suas correspondentes po-
pulares latinas e de forma alguma poderia originar-se das formas do latim
clássico.

2.4.2. Tendência para o uso das formas perifrásticas


A tendência para o uso das formas perifrásticas correspondia ao de-
sejo de expressar de modo claro as relações que a língua clássica exprimia
muito concisamente por meio de sínteses gramaticais.
Por exemplo: o futuro clássico tinha formas sintéticas e desinências
próprias, devendo dizer-se, então, amabo e dabo.
A língua popular preferia a perífrase e dizia amare habeo (infinito +
presente do indicativo de habere) e dare habeo, donde o português amarei e
darei.
Do mesmo modo, a passiva sintética foi sendo suplantada por forma-
ções analíticas, empregando-se, por exemplo, erat amatus em lugar de
amabatur.

2.4.3. Tendência para ampliar o uso de preposições


A tendência para ampliar o uso de preposições levou ao apagamento
das terminações dos casos, que acabaram reduzidos a dois. Por exemplo, em
lugar do genitivo Petri, preferia-se a formação de Petro: liber de Petro; illa
casa de Petro.

2.4.4. Tendências para empregar os demonstrativos como determinantes


A tendência para empregar os demonstrativos como determinantes
deu origem ao artigo definido românico. Por exemplo, em lugar de mensa-
rum, dizia-se illas mensas, de onde as mesas.

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
2.4.5. Tendência para substantivar adjetivos
Houve tendência para substantivar adjetivos, aproveitando, assim,
toda a força e todo o colorido do determinante:
aestivus, em vez de tempus aestivus – (port.) estilo
veranus, em vez de tempus veranus (port.) verão
malum, indicava em latim o fruto da macieira; mala matiana (plural neutro) indi-
cava certo tipo

2.4.6. Tendência para a simplificação do vocabulário


A tendência para a simplificação do vocabulário, às vezes até com
adoção de palavras dos dialetos regionais, despreza os termos eruditos. O
chamado Glossário de Reichenau, texto do século VII, publicado em Fran-
ça, foi feito para explicar vocábulos da língua literária com o seu corres-
pondente popular. Por exemplo:
erumnas = miserias binas = duas et duas
ferus = durus pecuniam = praetium
hispidus = pilosus.

Que se veja o que a este respeito escreve Meillet (MEILLET, A., 1933), re-
ferindo-se ao falar latino:
A língua popular possui termos próprios que transparecem nos textos. Casa e
domus existiam um e outro; a palavra domus, que designava uma habitação do ti-
po “burguês”, desapareceu; restou apenas a palavra casa, que designa a residência
do homem do povo. Equus e caballus coexistiam; mas o termo vulgar caballus
sobrepujou equus.

2.4.7. Tendências para ignorar a quantidade das vogais


As tendências para ignorar a quantidade das vogais levaram a distin-
gui-las apenas pelo timbre, e à adoção do acento de intensidade. (Ver tam-
bém o tópico 3.4)
Essas tendências levam a transformações tão profundas que, na épo-
ca de predomínio do latim vulgar, a língua apresentava os seguintes aspec-
tos, que a faziam profundamente diferente do latim clássico:
1 -- três declinações: 1ª, 2ª e 3ª (eram cinco no clássico)
2 -- dois casos apenas: nominativo e acusativo (antes eram seis)
3 -- dois gêneros: masculino e feminino (antes havia o neutro)
4 -- três conjugações: 1ª em are; 2ª em ere, 3ª em ire (antes a 3ª ter-
minava em ĕre breve e havia a quarta em ire)
5 -- desenvolvimento do uso das preposições, com acentuação do ca-

45
José Pereira da Silva
ráter analítico da língua.
6 -- desaparecimento da quantidade das vogais, que as faziam
longas e breves, e adoção do acento de intensidade, o que as tornou átonas e
tônicas
7 -- redução dos ditongos a vogais.
Para facilidade de estudo, ponhamos lado a lado alguns caracteres
morfológicos da língua literária e da vulgar
LATIM LITERÁRIO LATIM VULGAR
cinco declinações três declinações
seis casos simplificação e confusão de casos
três gêneros dois gêneros
quatro conjugações três conjugações
três vozes verbais duas vozes verbais
voz passiva sintética nos tempos do infec- voz passiva analítica em todos os tempos
tum

Na sintaxe, consignem-se os seguintes traços diferenciais:


LATIM LITERÁRIO LATIM VULGAR
reduzido emprego de preposições amplíssimo uso de preposições
preferência pela ordem inversa preferência pela ordem direta

Nos domínios do vocabulário, podem apontar-se as seguintes parti-


cularidades:
a) predileção por certas palavras em detrimento de outras, mais ou
menos do mesmo significado, que eram usadas na língua literária:
magnus grandis ignis focus
omnis totus urbs civitas
pulcher bellus equus caballus
ludus iocus senex vec(ǔ)lus
Os bucca domus casa

b) troca de sufixos átonos por tônicos:


LATIM LATIM LATIM LATIM
LITERÁRIO VULGAR LITERÁRIO VULGAR
martǔlus martellus fibǔlus fibella
rotǔla rotella vitǔlus vitellus
singǔlus singellus anǔlus anellus

c) emprego de palavras (especialmente no diminutivo), derivadas de


outras que caíram em desuso:

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
LATIM LATIM LATIM LATIM
LITERÁRIO VULGAR LITERÁRIO VULGAR
caput capǐtia cor *coratio
apis apǐc(ǔ)la ovis ovǐc(ǔ)la
avus *aviolus genu genuc(ǔ)lu
auris auric(ǔ)la

No terreno da fonética, o que mais importante há para anotar por


agora são estes dois fenômenos:
a) desaparecimento da quantidade das vogais;
b) queda da vogal imediatamente seguinte à tônica, nas palavras pro-
paroxítonas:
alt(e)ra, oc(ǔ)lu, artic(ǔ)lu, spec(ǔ)lu.

2.5. ALTERAÇÕES SOFRIDAS PELO LATIM


Foram principalmente de três ordens as transformações sofridas pelo
latim na passagem para o português: 1. fonéticas, 2. semânticas, 3. sintáti-
cas.

2.5.1. Transformações fonéticas


Resultaram do falar descuidado do povo, de certas tendências dialetais
de pronúncia, e acabaram atingindo, como não podia deixar de ser, a forma das
palavras, dada a “íntima união que existe entre a fonética e a morfologia. (NU-
NES, J. J., 1930)
Por exemplo, o Appendix Probi ensina que a tendência do povo era
dizer virdi em lugar de virĭdi, com o apagamento da vogal átona postônica.
Dessa forma do latim vulgar resultou, graças à evolução natural i > e, a
forma portuguesa verde. Assim também acontece em inúmeros outros casos:
calĭda cal’da (port.) calda ipse isse esse
articŭlus art’clus artelho
Havia geral tendência entre o povo para evitar os vocábulos proparo-
xítonos, fazendo-os paroxítonos.
latim clássico latim vulgar português
álacrem > álacre > alegre
cáthedram > cathédra > cadeira

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José Pereira da Silva
2.5.2. Transformações semânticas
A semântica estuda a significação dos vocábulos.
Muitas vezes, na passagem para o português, não é a forma da pala-
vra latina – ou não é só a forma – que se altera: também o sentido sofre mo-
dificações profundas, determinadas por fatores vários, que agem lentamen-
te, de maneira insensível, e de cujo trabalho só se tem ideia quando, séculos
depois, a palavra aparece na língua traduzindo ideia muito diversa daquela
que um dia exprimiu.
Por exemplo, o substantivo focus indicou, em latim, a lareira, o fo-
gão; no português designa aquilo que se contém na lareira, ou seja o fogo.
Burrus, para os romanos, era adjetivo e significava vermelho, aver-
melhado, ou, quando muito, ruço avermelhado. Dir-se-ia, então, de um
animal asĭnus burrus, asno avermelhado, para diferenciar de um asno bran-
co, pedrês etc. Com a substantivação do adjetivo, tivemos também a altera-
ção semântica, e burro, hoje, indica o próprio asno.
Às vezes, como veremos mais detidamente no estudo das formas di-
vergentes (tópico 7) a alteração da forma acompanha a alteração semântica,
e a língua, mais tarde, volta a buscar o vocábulo latino, porque a palavra
que possui não mais exprime a ideia primitiva, que lhe falta.
Que se veja, para exemplo, o caso de planu. Na evolução para o por-
tuguês veio a dar chão, com o significado mais corrente de solo, pavimento,
superfície. Foi necessário voltar ao latim e tomar o vocábulo erudito para
traduzir a verdadeira ideia de plano: liso, sem acidentes.
O mesmo ocorreu com leal e legal; caldo e cálido; solda e sólida;
cheio e pleno, além de muitos outros.

2.5.3. Transformações sintáticas


A sintaxe estuda a colocação das palavras na frase e as relações que
elas mantêm entre si.
A frase latina era extremamente móvel, maleável, graças aos casos
que indicavam a função da palavra sem que houvesse necessidade de lhe dar
lugar fixo. Não importa onde estivesse o sujeito ou o objeto direto: as ter-
minações próprias do nominativo e do acusativo indicavam-nos com relati-
va segurança, pelo menos para as pessoas cultas, e, de modo geral, fosse
qual fosse a ordem das palavras, o sentido era o mesmo.
Ribeiro de Vasconcelos oferece um exemplo esclarecedor pitoresco:

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
Seja, diz ele, uma proposição latina correspondente à portuguesa Deus ama o
homem: o sujeito será expresso pelo nominativo Deus, o predicado pelo verbo
diligit, o objeto sobre que recai diretamente a ação do verbo pelo acusativo ho-
minem. Qualquer que seja a ordem por que se disponham estas três palavras, o
sentido é sempre claro, óbvio, idêntico:
Deus diligit hominem Deus hominem diligit Hominem diligit Deus
Hominem Deus diligit Diligit Deus hominem Diligit hominem Deus
Não é isso o que se verifica no português: desapareceu a liberdade de
transposição do latim, e as relações são indicadas pela ordem natural das pa-
lavras (ordem direta), ou pelo uso das preposições.
Essas tendências fazem-se sentir no latim vulgar, e a Dra. Carolina
Michaëlis (op. cit., p. 253) mostra que, mesmo em frases pequenas, a cons-
trução popular divergia da clássica:
popular – Suus caballus est bellus
clássico – Equus eius pulcher est.
Ainda na sintaxe era notável a tendência do latim vulgar para o anali-
tismo na construção das orações subordinadas substantivas. Assim como em
português podemos construir as orações subordinadas substantivas de duas
maneiras: reduzidas de infinitivo, por exemplo: “o povo diz ser a Terra re-
donda”, ou desenvolvida mediante a conjunção integrante: «O povo diz que
a Terra é redonda», assim também, o latim clássico preferia sempre a forma
infinitiva: «Vulgus dicit terram esse rotundam», mas o latim vulgar preferia
a forma desenvolvida ou analítica. «Vulgus dicit quod terra est rotunda».

2.6. RESUMO
A lei do menor esforço, isto é, a tendência para simplificar sempre
mais a fala, levou o povo a alterar o latim, modificando-o de acordo com in-
fluências que podiam ser resultantes do desejo de fugir a dificuldades natu-
rais da língua ou consequências da imitação de outras línguas.
De que essas alterações existiram dão-nos provas documentos vários,
como as peças de teatro, o testemunho dos gramáticos, as inscrições, certos
livros etc., nos quais se pode ver como, levado por preferências irresistíveis,
o povo ora mudava a quantidade das vogais, ora desenvolvia o uso dos di-
minutivos, às vezes utilizava as formas perifrásticas, em certos casos desen-
volvia o emprego das preposições, não raro escolhia vocábulos estranhos no
lugar de vocábulos latinos etc. Tais e tão profundas são as alterações, que se
admite a existência de modalidades outras de latim, além do literário e do
vulgar, como o latim bárbaro e o baixo latim, ambos somente escritos, con-
forme foi explicado nos tópicos 2.1 e 2.2.

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José Pereira da Silva
QUESTIONÁRIO
1 – Que é latim clássico? E latim vulgar? E baixo-latim? E latim bárbaro?
2 – Citar 2 diferenças léxicas, 2 fonéticas, e 2 sintáticas entre o latim clás-
sico e o latim vulgar.
3 – Dar 2 exemplos de analitismo no latim vulgar comparando-os com o
sintetismo do latim clássico.
4 – O latim clássico e o latim vulgar são duas línguas diferentes ou dois as-
pectos da mesma língua?

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa

3. NOÇÕES ELEMENTARES
DE FONÉTICA HISTÓRICA;
ACENTO TÔNICO; ALTERAÇÕES FONÉTICAS

3.1. FONÉTICA
A fonética é a ciência que trata dos fonemas que constituem a lin-
guagem.
“A fonologia não se opõe à fonética”, ensina Bechara. Ela “determi-
na a natureza física e fisiológica das distinções observadas”, enquanto a
“fonologia estuda o número de oposições utilizadas e suas relações mútuas”
dentro de cada língua. (Cf. BECHARA, 2001, p. 556)

3.2. FONEMAS
Fonemas “são todas as sensações auditivas determinadas pelas modi-
ficações que os órgãos da fala imprimem à corrente de ar expelida pelos
pulmões” (NIEDERMAN, 1933).
Importa rever, aqui, algumas noções fundamentais, aprendidas du-
rante o ensino médio:
Fonema é o som; letra é a representação gráfica desse som, pelo que
pode haver fonemas grafados com mais de uma letra (como rr em carro) do
mesmo modo como uma só letra pode representar mais de um fonema (co-
mo o x de táxi, dito tacsi).
Os fonemas compreendem três grupos: vogais, semivogais3 e conso-

3 Rigorosamente, semivogal é o fonema vocálico precedido da vogal básica em uma sílaba, eliminando-
se os chamados encontros vocálicos instáveis da classificação de ditongos, exceto nos grupos “qu” e o
“gu” quando não constituem dígrafos, como em quase, água, cinquenta, tranquilo, aguentar, linguiça etc.
As semivogais, em nossa nomenclatura gramatical, incluem o que realmente deveria ser chamado de
semiconsoantes, termo incomum na gramaticologia em língua portuguesa. A semivogal se distingue da
semiconsoante por ficar sempre depois da base silábica e subordinada a esta, enquanto a semiconsoan-
te fica sempre antes, podendo ser separada desta para formar um hiato. Na verdade, os ditongos cres-
centes são variantes dos hiatos. Exemplos de semiconsoantes: armá-rio (-ri-o), tê-nue (-nu-e), histó-ria (-
ri-a); exemplos de semivogais: cai-xa, céu, coi-sa, cau-sa, an-dais.

51
José Pereira da Silva
antes.
Vogais são fonemas puros, musicais, produzidos unicamente pela vi-
bração das cordas vocais, constituindo-se na base da sílaba. São orais se a
coluna de ar passa exclusivamente pela boca, ou nasais se a passagem é fei-
ta parte pela boca, parte pelas fossas nasais.
Semivogais (lato sensu) são os fonemas i, u, quando formam sílaba
com uma vogal. No stricto sensu, distinguem-se das semiconsoantes por
formarem sílabas apenas com a vogal antecedente, que é a base silábica.
Consoantes são fonemas produzidos pela corrente de ar com partici-
pação dos demais órgãos da fala: língua, lábios, dentes etc. Há consoantes
sonoras, quando produzidas com vibração das cordas vocais, e surdas,
quando as cordas vocais ficam imóveis.
Fundamentalmente as vogais são sete, sendo que algumas delas se
neutralizam em sílabas átonas, além de poderem ser consideradas também
como orais ou nasais.
Eis o quadro das vogais orais que podem ocorrer em sílabas tônicas
do português falado no Brasil:
altas i u altas
ê ô
médias é ó médias
baixa a baixa
anteriores posteriores

Quando uma vogal se encontra na mesma sílaba com uma semivogal


pronunciadas em uma só emissão de voz, há um ditongo, mas só um dos fo-
nemas – o mais forte, chamado base – é vogal. Só podem ser semivogais os
fonemas i, u (pai; mau) grafadas às vezes com e ou o (mãe, pão).
Se as vogais que se encontram estiverem em sílabas diferentes, pro-
nunciadas ambas com a mesma intensidade, ter-se-á um hiato: feérico, caa-
tinga.
A classificação das consoantes, mais complexa, exige uma visão de
conjunto:

52
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

NOTA: Dentro desse quadro, é da maior importância fixar-se, para a


compreensão de fatos que serão estudados mais tarde, a correspondência
que existe entre as consoantes surdas e sonoras.
SURDAS _______ SONORAS SURDAS SONORAS
p ___________________ b f v
t ___________________ d s z
x ___________________ j (gê) c g(guê)

3.3. A FONÉTICA HISTÓRICA


A fonética histórica, também chamada evolutiva, estuda as diversas
fases de desenvolvimento, ou seja, analisa as transformações sucessivas dos
fonemas, por exemplo, na passagem do latim para o português.
Essas transformações fonéticas, que se caracterizam pela inconsci-
ência, isto é, são independentes da vontade de quem fala, apresentam cons-
tância absoluta, o que vale dizer que, em determinada região, todos os fo-
nemas ou grupo de fonemas, que se apresentem nas mesmas condições, de-
senvolvem-se de maneira idêntica. Os especialistas provam que as exceções
a essa regra são apenas aparentes.
Eis um exemplo: Houve uma época, por volta do século XI, em que todo l,
quando intervocálico, deixou de ser pronunciado na Lusitânia; por isso, correspon-
dentes às formas latinas malu, filu, aquila, temos, em português, mau, fio, águia.
Essa alteração é característica do português, pois em todas as outras línguas
românicas o l se manteve naquela situação; paralelamente ao nosso mau, o espanhol
e o italiano têm malo; o francês, o provençal e o catalão possuem mal.
Isso nos mostra que as alterações fonéticas são regulares, mas também nos
ensina que as direções em que elas se processam variam no espaço e no tempo. Por
conseguinte, todas as alterações fonéticas têm sua área geográfica determinada e sua
época de vigência.
Não é difícil compreender que o latim se tenha transformado profun-
damente, às vezes até com muita rapidez.

53
José Pereira da Silva
Em primeiro lugar, convém não esquecer que as épocas de coloniza-
ção foram diversas, diversos eram os colonos (Cf. tópico 1.3), diversos os
povos colonizadores, as raças e os climas. Depois, vale a pena lembrar que a
disciplina gramatical da língua, artificialmente criada por Lívio Andronico,
Névio, Ênio e outros estudiosos, segundo o modelo da gramática fisiológica
dos que deviam falar o latim, e oferecia a povos às vezes rudes e semibárba-
ros dificuldades linguísticas insuperáveis.
Dentro da própria Península Itálica, na própria Roma, essas trans-
formações eram evidentes, como ensina, por exemplo, esta passagem do
gramático Varrão, no seu tratado de Língua Latina: “In multis verbis in quo
antiqui dicebant s, postea discunt r.” (Em muitas palavras nas quais os anti-
gos diziam s, depois dizem r). E exemplificara; plusina = plurima; meli-
osem = meliorem; asenam = arenam” (NIEDERMANN, 1933).

Classificação das alterações fonéticas


Quando se procede ao estudo das mudanças de pronúncia, cumpre
ter em vista a distinção entre alterações espontâneas e alterações condicio-
nadas (Cf. GRAMMONT, 1946, p. 183).
Capitulam-se no primeiro grupo as que independem da situação do
fonema na palavra; e no segundo as que são provocadas pela influência dos
sons vizinhos ou próximos.
Exemplifiquemos:
As semiconsoantes latinas i e u estão quase sempre em português re-
presentadas por j e v, respectivamente: iacēre > jazer; maiestate > majesta-
de; lauare > lavar. Outras vezes, as semiconsoantes se mantêm, confundi-
das terminológica e descritivamente com as semivogais, por formarem síla-
bas com outras vogais. A distinção é sutil e aparentemente pouco produtiva,
exceto para a acentuação gráfica dos proparoxítonos.
Trata-se de uma mudança sistemática na maneira de articular o fo-
nema, a qual se verifica em todas as palavras em que ele aparecer. Eis uma
alteração espontânea4
Consideremos agora o fonema latino t. Vindo ele intervocálico, pas-
sa a d na transição para o português: rota > roda; mutu > mudo; maritu >
marido; potēre > poder. As vogais, como sabemos, são fonemas sonoros; o

4“Sin embargo, cada vez se cree menos en la incondicionalidad fonética, y el nombre de cambio inde-
pendiente se aplica más bien a aquel cuyas condiciones mensurables nos son desconocidas”. (GAYA,
1950: 160).

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
t é uma consoante surda. Por isso, sob a influência das vogais que o ladea-
vam, o t se contaminou da sonoridade delas, o que vale dizer que foi substi-
tuído por d (recorde-se que a diferença entre t e d consiste em que neste há
vibração das cordas vocais e naquele não se dá essa vibração). Aí está, por-
tanto, uma alteração condicionada.

Palavras populares e empréstimos


Examinando-se historicamente o léxico de uma língua, nota-se lhe a
existência de duas camadas de palavras: uma interna, indígena; outra exter-
na, adventícia.
As palavras do primeiro tipo continuam, através de mudanças de
pronúncia, vocábulos de uma língua anterior: são a prata da casa, as deno-
minadas palavras populares. As do segundo tipo entram no idioma já pron-
tas, transplantam-se com a forma já cristalizada, sem sofrerem evolução fo-
nética: chamam-se empréstimos (Cf. SILVA NETO, 1940, p. 7).
Exemplifiquemos: – a palavra latina apǐcǔla, antes de chegar à forma
portuguesa abelha, percorreu longo e acidentado caminho: apǐcǔla > apicla
>apecla > abecla > *abegla > *abeila > *abelia > abelha > abeia.
Outro exemplo: a palavra latina medǐcina, para se apresentar sob a
forma atual mezinha, passou por vários graus intermediários: medǐcina >
*medecina > *medezina > *meezina > mezĩa > mezinha.
Depois de constituída a língua portuguesa e principalmente a partir
do século XVI, vieram incorporar-se ao nosso léxico numerosas palavras de
várias procedências (francesas, italianas, asiáticas, americanas, africanas
etc.), inclusive do latim literário. Assim, ao lado da forma popular mezinha,
temos o termo culto medicina; a par de chão, resultante evolutiva de planǔ,
existe a palavra plano, que não é mais do que a própria forma latina com li-
geira adaptação no final. A introdução de termos eruditos provocou, muitas
vezes, o desaparecimento dos vocábulos populares correspondentes: é o ca-
so, por exemplo, de silêncio, que se sobrepôs ao arcaico seenço; de edificar,
que baniu o antigo eivigar; de áspide, que tomou o lugar de aspe.
Para os empréstimos tirados ao latim literário reserva-se o nome de
cultismos ou palavras eruditas; aos outros chama-se estrangeirismos.

3.4. A ACENTUAÇÃO NO LATIM VULGAR


Acento tônico é a maior inflexão da voz com que se pronuncia de-
terminada sílaba de uma palavra. O estudo do acento latino é de capital im-
portância na fonética histórica, porque muitos fatos verificados até a forma-

55
José Pereira da Silva
ção do português resultam apenas das modificações de acentuação ou da vi-
zinhança da sílaba tônica.
As vogais latinas deviam ser diferençadas por dois aspectos, como
lembra Ernesto Faria em sua Fonética Histórica do Latim: quantidade e
timbre. Portanto, não se diferenciavam em tom. Ou seja: o tom não era traço
distintivo na língua latina.
a) quantidade – era o tempo de duração da pronúncia, e as vo-
gais podia ser longas ou breves. A duração de uma vogal lon-
ga, na pronúncia, era igual ao dobro de duração de uma vogal
breve.
b) timbre, mostra as vogais abertas ou fechadas.
Eram, então, as seguintes as vogais latinas:
longas – ā ē ī ō ū
breves – ă ĕ ĭ ŏ ŭ
Excetuando-se o a, que era sempre aberto, as vogais breves eram
abertas e as longas eram fechadas.
Essa diferenciação, que se destinava a dar à frase cadência musical,
se era difícil para os latinos, mais difícil ainda seria, sem dúvida, para os
povos conquistados, e o resultado foi que a acentuação tradicional, baseada
na quantidade se transformou, no latim vulgar, em acento de intensidade.
As vogais passaram, de longas e breves que eram, a fortes e fracas,
ou, conforme a inadequada nomenclatura fonética generalizada, a tônicas5 e
átonas.
Vigoravam para a acentuação latina, de modo geral, as seguintes re-
gras:
1 – Não havia palavras oxítonas.
2 – Nas palavras dissílabas, o acento recaía sempre na penúltima sí-
laba:
légis, inter, dómus, páter, ámat, púlcher, ipse, ego, unus, ave, nun-
quam.
3– Nas palavras de três ou mais sílabas, a posição do acento depen-
dia da quantidade da penúltima sílaba: se ela era longa, recebia o acento; se
era breve, o acento recuava para a antepenúltima.

5Observe-se que o adjetivo “tônico” significa “com destaque pelo tom” e que “átono” significa “não mar-
cado ou não acentuado pelo tom”.

56
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
Exemplo com a penúltima longa: fidēlis, amātur, vehemēnter, plenu,
rotundu, magister.
Exemplos com a penúltima breve: fácĭlis, fémĕna, ímpĕtus, difícĭlis,
pópǔlu, tépǐdu, discípŭlu,
A acentuação dos polissílabos apresentava, no latim vulgar, exceção
em dois casos, em confronto com a língua literária:
a) havendo um hiato, se o i era tônico, a tonicidade se transferia
para a vogal seguinte:
paríetem > pariétem > (port.) parede mulíerem > muliérem > (port.) mulher
lancéǒla > lanceóla > lançó avíǒlu > aviólu > avóo > avô
uistíǒla > uistióla > ichó ascíǒla > ascióla > enxó
linéǒlu > lineólu > linhol aranéǒlu > araneólu > aranhó
lintéǒlum > lentiólum > lençol filíǒlum > filiólum > filhol

b) o acento se desloca da antepenúltima para a penúltima sílaba,


sempre que a esta se segue um grupo formado por consoante
oclusiva + r:
cáthedram> cathédra > (port.) cadeira ténebra > tenébra>– (port.) treva
íntĕgru > integro > intégro > (port.) inteiro cólŭbra > cólobra > cobra
cúlcĭtra > culcitra > coceira tônĭtrum > tônotru > (es)trondo

3.5. IMPORTÂNCIA DA SÍLABA TÔNICA


Com a passagem do acento de duração (quantidade) a acento de in-
tensidade, a vogal tônica e, portanto, a sílaba em que ela se achava, tor-
nou-se a alma da palavra e passou a depender dela o destino das outras sí-
labas, que podiam ser pretônicas ou postônicas.
Salvo raras exceções, a sílaba tônica latina não se altera na passagem
para o português, é a Lei da Persistência da Sílaba Tônica. No português o
acento tônico é o mesmo dos vocábulos do latim corrente. Vide tópico
4.1.4.5.

3.6. NOMENCLATURA DAS ALTERAÇÕES FONÉTICAS


As alterações que se operam nas palavras, na sua evolução do latim
para o português, todas elas dependendo de causas várias, estão compreen-
didas em quatro grandes grupos:
1. desaparecimento de fonemas (no início, no interior ou no final da
palavra),
2. desenvolvimento de fonemas (no início, no interior ou no final da
palavra),

57
José Pereira da Silva
3. troca de posição de fonemas (no início, no interior ou no final da
palavra),
4. transformação de fonemas (no início, no interior ou no final da pa-
lavra).
Seja qual for o metaplasmo6, sempre se deve ter em conta que a
transformação que se verifica em um fonema é:
a) inconsciente, isto é, ocorre sem que as pessoas tenham consciência das
alterações e, portanto, sem que as efetuem deliberadamente. Por exemplo,
quando alguém, entre nós, diz ocê, em lugar de você, não deliberou suprimir
o fonema inicial do pronome e nem perceberá que o faz.
b) gradual, isto é, resulta de uma série de transformações, sucessivas e, às
vezes, tão lentas que levam séculos para o seu processamento definitivo.
Por exemplo, esse mesmo pronome você, mencionado acima, é o resultado
da lenta transformação de vossa mercê – vossemecê – vosmecê – vossê (co-
mo aparece no século XVII, em D. Francisco Manuel de Melo) e, finalmen-
te, você.
c) regular, isto é, efetua-se de maneira uniforme, dentro da mesma época
em face das mesmas condições.
Feita essa advertência, podemos estudar os vários metaplasmos ou
alterações fonéticas:

3.6.1. Desaparecimento de fonemas


O desaparecimento de fonemas compreende três grupos: aférese (e
deglutinação), síncope (e haplologia) e apócope.

3.6.1.1. Aférese (deglutinação)


Aférese é o desaparecimento de fonema no começo da palavra: glat-
tire> latir; apotheca > bodega, inodium > enojo > nojo, horologiu> reló-
gio; acume> cume; attonitu > tonto; episcopu > bispo, psalmo > salmo;
Ulissipona > Lisboa, apostema > postema, está > tá, acontecer > contecer,
aguentar > guentar, aquentar > quentar, Sebastião > Bastião; José > Zé.
Caso especial de aférese é a deglutinação, supressão de um a ou o
inicial por confusão com o artigo: horologiu > orologio > relógio; apothe-
ca > abodega > bodega, acume > cume > gume; episcopu > obispo > bis-
po, aliança > liança; apostema > postema.

6 Metaplasmo é o nome que se dá a qualquer alteração que as palavras sofrem na sua evolução.

58
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
Não é fácil encontrarem-se exemplos em que ocorram apenas os fe-
nômenos que no momento estão sendo estudados, embora procuremos sem-
pre exemplos simples. Caberá ao professor das as explicações que cada caso
comportar, até que os estudantes tenham adquirido conhecimentos mais
completos.

3.6.1.2. Síncope
Síncope é o desaparecimento de fonema no interior da palavra: virĭde
> vir’de > verde, ocŭlu > oc’lu > olho, pede > pee > pé, legenda > lenda,
malu > mau, tegenda > tenda, pérola > perla, inimigo > imigo, solidão >
soidão, soledade > soidade > saudade, alteru > outro, dominu > dono, le-
pore > lebre, positu > posto, *pulica > pulga, gallicum > galgo, angelu >
angeo > anjo, macula > mágoa, spatula > espádua, tábula > tábua, delica-
tu > delgado, follicare > folgar, *salicarium > salgueiro, comitatu > con-
dado, verecundia > vergonha, veritate > verdade, recitare > rezar.
Pode-se ver, a partir dos exemplos arrolados, que a crase constitui,
de certo modo, um desaparecimento de fonema, visto que as duas vogais
idênticas se transformam em uma apenas. (Cf. tópico 3.6.4.5)
Há casos de síncope que são constantes, como acontece, por exem-
plo, com as consoantes sonoras, que em geral desaparecem na passagem pa-
ra o português, quando entre vogais. São elas:
d – crudele > cruel fidele > fiel crudu > cruu > cru
l – malu > mau filu > fio
n – granu > grão sanu > são manu > mão
g – legale > legal magis > mais

Outro caso de síncope digno de destaque, tão importante que merece


denominação especial, é a chamada:

3.6.1.3. Haplologia
Haplologia é o fenômeno que consiste no desaparecimento de uma
sílaba quando na palavra há outra igual ou semelhante: perdida> pérdida >
perda, bondade + oso > bondoso (não bondadoso), semi + mínima > semí-
nima (não semimínima), ídolo + latra > idólatra (não idololatra), tragico-
comédia >tragicomédia, formicicida > formicida, maldade + oso > maldo-
so, vendita > vendida > venda, simplices > simprezes > simprez > simples;
aurifices > ourivezes > ourives, rotatore > redador > redor, –tatosu > –
dadoso > –doso
Semelhantemente ocorre a haplologia sintática, que consiste na redu-

59
José Pereira da Silva
ção de duas palavras homônimas ou parônimas, e vizinhas, a uma só, como
se pode ver nestes exemplos:
Antes queria morrer do que [que] me acusassem de ladrão." (Domin-
gos Monteiro, Contos do Dia e da Noite, p. 137); "Aquele homem exalava
de si o [que] quer que fosse de sobrenatural e de divino." (Guerra Junqueiro,
Pátria, p. 204); pelo amor (de) Deus!...; Madre (de) Deus; ... melhor do que
(que) ele esteja a padecer, Rua Visconde (de) Niterói, Rua Conde (de) Bon-
fim, cal(do) de cana, des(de) que venhas.

3.6.1.4. Apócope
Apócope é o desaparecimento de fonema no final da palavra: amat >
(port.) ama, et > (port.) e, dare > (port.) dar, mare > mar, male > mal, facile
> fácil, capitale > capital, mármore > mármor; valle > val, grande > gran,
dominu > dono > dom, centum > cento > cem, quantu > quanto > quam >
quão, tantu > tanto > tam > tão, sanctu > santo > são, ille > ele > el, mille >
mil, inde > em, multu > muito > mui, belu > bel (bel prazer), casa > cas (em
cas de), monte > mon (Monsanto), castellu > castel (Castel-branco), valle >
val (Valverde).7

3.6.2. Desenvolvimento de fonemas


O desenvolvimento de fonemas compreende, do mesmo modo, três
grupos:

3.6.2.1. Prótese (ou próstese)


Prótese (também dito próstese) é o desenvolvimento de fonema no
princípio da palavra: stare > estar (neste caso ocorrem dois fenômenos já
conhecidos: prótese e apócope); sponsa > esposa, stella > estrela, spiritu >
espírito, scutu > escudo, levantar > alevantar, lesione > lesão > leijão >
aleijão, sperare > esperar, scriptu > escrito, smaragdum > esmeralda,
sclavu > escravo, squamare > escamar, remittere > remeter > arremeter,
rana > rã > arrã, mora (plural) > mora > amora, nana > nã > anã, medieta-
te > metade > ametade (arcaico), monstrare > mostar > amostrar,
*minatiare > meaçar > ameaçar; mostra > amostra.
Há uma maneira especial de prótese que é a aglutinação – incorpora-
ção do artigo no início do vocábulo. Exemplo: lacuna > alagoa; lesione >

7 Note-se que algumas apócopes são encontradas apenas em expressões estereotipadas.

60
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
lesão > aleijão; rã > arrã; mora > amora, nana > nã > anã, metade >
ametade.

3.6.2.2. Epêntese (e suarabácti)


Epêntese é o desenvolvimento de fonema no interior da palavra: stel-
la, já mencionado acima para o caso de prótese, sofreu também epêntese do
r medial: estrela, humeru > um’ro > ombro, arena > area > areia, humile
> humilde, nidu > nĩo > ninho, registo > registro, *memrar > nembrar >
lembrar, alkhomra > alfombra, ingenerare > engendrar, audit > ouve, lau-
dat > louva, claudere > chouvir (arcaico), caule > couve, tonare > troar.8
A epêntese possui uma modalidade que é o suarabácti – intercala-
ção de uma vogal para desfazer um grupo de consoantes: planu > prão >
porão, blata > brata > barata, advogado > adevogado, obter > obiter, in-
dignar >indiguinar, optar > opitar.
Importante caso particular de epêntese é a chamada ditongação.

3.6.2.3. Ditongação
Ditongação é o fenômeno que consiste no desdobramento de uma
vogal até criar um ditongo: vena > vea > veia, avena > avea > aveia, cate-
na > cadea > cadeia, alienu > alheio, plenu >cheio, foedu > feio, frenu >
freio, sinu > seio.9
A ditongação é fenômeno constante. Tanto que ainda hoje se diz
douze por doze; nós > nóis; rapaz > rapaiz; três > trêis; dez > déiz..

3.6.2.4. Paragoge
Paragoge é o desenvolvimento de fonema no final da palavra: fran-
cês chic > chique, francês bric-à-brac > bricabraque, inglês beef > bife,
inglês club > clube, inglês film > filme, assi > assim, entonce > entonces
(arcaico), ante > antes, amabant > amavam foi a evolução natural, mas a
pronúncia portuguesa é amavãu, pelo que se deve notar o aparecimento de
um fonema u, isto é, um som de u, que não se escreve, mas pode ser ouvido.

8 “Fenômeno muito parecido com a epêntese é a troca de uma consoante por outra: medĭcam > melga,
magĭdam > *madiga > malga, pallĭdum > pardo, papўrum > papel, ulĭcem > urze; iudicāre > julgar, porta-
tĭcum > portádego > portalgo (arcaico)” (Williams, 1986: 118).
9 A ditogação pode ser ainda um fenômeno: de síncope ou queda de uma consoante intervocálica (ama-
tis > amades > amais); de metátese (amabiles > amavies > amáveis); de hipértese (desvario > desvairo),
de alongamento da vogal tônica (sum > so > sou) e de vocalização (conceptum > conceito).

61
José Pereira da Silva
3.6.3. Troca de posição de fonemas
Os metaplasmos por transposição podem ocorrer por deslocamento
de fonema ou de acento tônico da palavra.
A troca de posição de fonemas na mesma sílaba recebe o nome parti-
cular de metátese: pro > por, semper > sempre, inter > entre, super > so-
bre, fernesim > frenesim, preguntar > perguntar, perparar > preparar, me-
rulum > melro > merlo, instrumento > estormento (arcaico), tenebras > te-
evras > trevas, praesaepem > pesebre (arcaico).
Hipértese é a transposição de um fonema de uma sílaba para a outra:
capio > caibo, primariu > primairo > primeiro, fenestra > festra > fresta,
genuculum > geolho > joelho, dehonestare > deostar > doestar, sibilare >
silvar, inodium > enojo, fenestram > feestra > fresta, pigritiam > pegriça
> preguiça, fabricam > fravega; capistrum > cabresto, satisfacĕre > satis-
fazer > sastifazer (popular), clericum > creligo (arcaico) > florem > frol
(arcaico), ancalçar > alcançar.

3.6.4. Transformação de fonema


A transformação de fonema pode ocorrer em várias circunstâncias e,
por isso, apresentando aspectos diversos:

3.6.4.1. Assimilação
Assimilação é a influência que um fonema exerce sobre outro pró-
ximo, a ponto de dar-lhe semelhança total ou parcial.
Trata-se, portanto, de uma alteração condicionada pelo ambiente fo-
nético: consiste na aproximação de um fonema a outro, podendo essa apro-
ximação determinar até o igualamento deles.
Tomemos, por exemplo, o vocábulo latino assibilare. Na passagem
para o português, dá ele origem ao vernáculo assobiar. Que alterações foné-
ticas sofreu?
1 – apócope do e final: assibilar,
2 – síncope do l intervocálico: assibiar,
3 – passagem do primeiro i para o, alteração esta que ocorre por as-
similação, pois é o fonema b, bilabial, que age sobre o i, vogal velar, de
modo a torná-lo o, que é também vogal labial (ver o quadro das vogais, no
início deste capítulo). Assim temos: assibilare > assobiar.

62
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
A palavra latina vǐpĕra produziu, na língua arcaica, vibera, que, de-
pois, passou a víbora; o e átono da penúltima sílaba transformou-se em o
por influência da consoante labial b, que lhe é contígua. Dada a sua condi-
ção de labial, o b provocou a mudança do e (vogal palatal) em o (vogal que
também é labial);
A palavra persǐcǔ produziu pêssego, em que foi tão completa a in-
fluência do s no r, que este se igualou àquele (rs > ss).
A assimilação, de acordo com a maneira como se processa, pode ser:
1 – parcial, 2 – total, 3 – progressiva, 4 – regressiva.
É parcial quando o fonema assimilado não fica totalmente igual ao
assimilador. É o caso de assibilare > assobiar, dado acima: uma vez que o i
não se tornou em b, mas apenas adquiriu um ponto de semelhança com o
fonema assimilador – ambos são labiais – a assimilação é parcial.
Há também assimilação parcial em: fame > fome, in + pio > impio >
ímpio, auru > ouro, lacte > laite >leite, assibilare > assibiar > assobiar,
molinarium > molneiro > moleiro, debent illum > *deben-lo > devem-no,
*fiz-lo > fi-lo.10
É total quando o fonema assimilado fica totalmente igual ao assimi-
lador. Por exemplo, na evolução persona > pessoa, o fonema r é totalmente
assimilado pelo s, tanto assim que se transforma em s. São também casos de
assimilação total: ipse > esse, ipsum > isso, subponere > suppor > supor,
subgenere: suggerir > sugerir, persicum > pêssego, inregulare > irregular,
per + lo > pello > pelo, in + legal > illegal > ilegal, persona > pessoa, mi-
rabilia > maravilha, novaculam > navalha; parabolam > paravra (arcai-
co), eleemosynam > esmolna > esmola, sal nitrum > salitre, *amare-lo >
amarlo > amá-lo.
É progressiva, quando o fonema assimilador está antes do fonema
assimilado: nostru > nosso, vipera > vibera > víbora, vostru > vosso,
amam-lo > amam-no, molinariu > molnario > mollairo > moleiro.
É regressiva quando o fonema assimilador está depois do fonema as-
similado: persona > pessoa, persicu > pêssego, fame > fome, captare > ca-
ttar > catar, ipsa > essa
A assimilação é a mais importante e frequente das alterações fonéti-
cas se reveste de aspectos muito variados. Numerosas mudanças existem

10 Um caso particular importante de assimilação parcial ocorre no caso da ressonância nasal em exem-
plos como: hac nocte > onte > ontem, pectinem > peitem > pẽitem > pentem (arcaico e dialetal); nubem
> nuve >*nũve > *nũvem > nuvem. mugilem > mugee > *mũge > mugem.

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José Pereira da Silva
que, não obstante terem nomes especiais, não deixam de ser, em última aná-
lise, casos de assimilação.
Eis as principais: sonorização, nasalação, palatalização,vocalização,
crase e oclusão.

3.6.4.2. Dissimilação
Dissimilação é a transformação de um fonema para torná-lo desigual,
dessemelhante a outro. Pode-se dizer que constitui fenômeno oposto à assi-
milação: rotundo > rodondo > redondo: a dissimilação do primeiro o resul-
ta da influência da vogal tônica. O mesmo se dá em: temor + oso > temoro-
so > temeroso; valoroso > valeroso; formosu > fermoso; rotatorem > re-
dor; remoinho > rodomoinho > redomoinho > redemoinho; primarium >
primairo > primeiro; liliu >lírio; locustam > lagosta, sexaginta > sessenta
> sassenta (arcaico), dicebat > dizia > dezia (arcaico), locale > lugar, ani-
mam > alma, memorare > nembrar > lembrar11; priorem > priol (arcaico),
globellum > lovelo > novelo, *ligaculum > legalho > negalho, arbitrum >
álvidro (arcaico), campanam > pampãa > campa; *ventanam > ventãa >
venta; quintanam > quintãa > quainta, português arcaico pentem > pente12.
Às vezes a dissimilação é tão violenta e profunda que leva ao desa-
parecimento do fonema: aratru > arado; prora > proa; cribru > crivo; ros-
tru > rosto, proprium > própio (arcaico e dialetal).
Como acontece com a assimilação, a dissimilação pode ser total,
parcial, progressiva e regressiva.
É total, quando se opera tão violentamente que ocasiona a elimina-
ção de um dos sons: prora > proa; rostrǔ > rosto; aratrǔ > arado.
É parcial, quando um dos sons apenas se distingue do outro, fazendo
contrastarem os caracteres que lhes eram comuns: da palavra latina anima
saiu, pela síncope regular da vogal postônica, a forma an’ma, da qual, por
dissimilação do n, se teve a portuguesa alma. O que havia de comum entre n
e m era a nasalidade; então, o n a perdeu, para melhor se distinguir do m. (O
fonema que tem caracteres iguais aos do n, exceto a nasalidade, é o l).

11Embora as duas consoantes em latim anima e português arcaico nembrar não fossem a mesma, eram
ambas nasais; a dissimilação se processou pelo desaparecimento da nasalidade para l.
12 Como se vê nestes últimos exemplos, a dissimilação também pode ocorrer na ressonância nasal.

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
3.6.4.3. Vocalização
Vocalização é a passagem de uma consoante a semivogal: lacte >
laite > leite, pectu > peito, nocte > noite, multu > muito, regno > reino, ab-
sencia > ausência, conceptum > conceito, acctum > auto, iactum > jeito,
falcem > foice,

3.6.4.4. Consonantização
Consonantização é a transformação de um fonema vocálico em con-
soante. Ocorreu, frequentemente, na formação do português, com i e u
quando, em função de semiconsoantes foram transformadas em j e v: Iesus
> Jesus, iacere > jazer, hierarquia > jerarquia, uacca > vaca, iam > já, ui-
ta > vida, maiestate > majestade, boue > bove > boi, laudare > *lodare >
loar > louar > louuar > louvar, audire > *odire > oir > ouir > ouuir >
ouvir.

3.6.4.5. Crase
Crase é a fusão de vogais iguais em uma só: pedem > pee > pé, se-
dem > see > sé, colorem > coor > cor; dolorem > door > dor, sagittam >
saeta > seeta > seta, cinitiam > ceinza > ciinza > cinza; creditum > credo
> criido > crido; sigillum > seello > selo; praedicare > preegar > pregar;
videre > veer > ver; medicinam > meezinha > mezinha; *panatarium >
paadeiro > padeiro, sanatiuum > saadio > sadio; palumbum > paombo >
poombo > pombo; creditorem > creedor > credor; maiorem > maor > mo-
or > mor
Quando a crase se dá pela junção da vogal final de uma palavra com
a vogal inicial de outra, na formação de expressões compostas, recebe o
nome especial de sinalefa: outra + hora > outrora, de + este > deste, de +
intro > dentro, a a > à, a as > às, a aquela(s) > àquela(s), a aqueles) >
àquele(s), a aquilo > àquilo, a aquele(s) outro(s) > àqueleoutro(s); a aque-
la(s) outra(s) > àqueleoutra(s).

3.6.4.6. Nasalização
Nasalização é a transformação de um fonema oral em nasal. Pode
ocorrer em virtude da influência de uma consoante nasal próxima (m, n), ou
por analogia (ver capítulo 10).
1º caso: mihi > mii > mim (por influência do m), nec > ne > nem
(por influência do n), lana > lãa > lã (por influência do n desaparecido),

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José Pereira da Silva
bonu > bom; tenes > tens; fines > fins, unum > uno > ũu > um; canes >
cães;homines > homens; ordines > ordẽes > ordens, orphanam > órfãa >
órfã, matres > mães;germanum > irmão, manum > mão;organum > órgão,
orphanum > órfão; Stephanum >Estêvão, lectiones > lições; pones > pões,
manum > mão, vadunt > vão, vinum > vinho, nidum > ninho, gallinam >
gallĩa > galinha; vicinam : vizĩa > vizinha; litaniam > lidaĩa > ladainha;
venibam > venĩa > veĩa > viĩa > viinha > vinha; *cinitia > cẽiza > ciinza
> cinza, divinitatem > divĩidade > divindade; poenitentiam > pendença;
devinare > adivinhar; ordinare : ordinhar > ordenar; denarium > dĩeiro >
dinheiro; venitis > vindes, multum > muito, benedicamus > bendigamos,
*nec-unum > ningum (arcaico) > nenhum, *-udinem > *-oen > –õe (arcai-
co), *-udines > *-oens > –ões, –inum > –inho, –inam > –inha.
2º caso: sic > si > sim (por influência de não). Por analogia, portan-
to. Visto que não se trata de uma causa interna da palavra em questão. Ti-
vemos a forma arcaica si, que se nasalou por associação com o antônimo
non. Tal nasalidade estendeu-se aos compostos assim e outrossi, moderna-
mente assim e outrossim. Registre-se que, modelados por mim, houve na
língua antiga os pronomes tim e sim.

3.6.4.7. Desnasalização
Desnasalização é o desaparecimento da nasalidade de um fonema.
Por exemplo, na formação do português, é frequente, em certa época, a que-
da do n intervocálico, o qual transmite à vogal anterior a nasalidade que po-
de desaparecer.
1º caso, a nasalidade fica: granu > grão manu > mão, vinu > vio >
vinho e outros, como vimos em 3.6.4.6.
2º caso, há desnasalização: luna > lũa > lua, arena > arẽa > area >
areia, corona > corõa > coroa, bona > bõa > boa, ponere > põere > poer
> pôr, generale, gẽerale > gẽeral > geeral > geral; sonare > sõare > sõar
> soar; alienu > aliẽo > alhẽo > alheo > alheio > cena > cẽa > cea >
ceia, seminare > semẽare > semear, vena > vẽa > vea > veia, fenestra >
fẽestra > feestra > festra > fresta, cuniculu > ceculu > cõeculu > coeculu
> coeclu > coelho, persona > persõa > persoa > pessoa, genesta > gĩesta
> giesta, mensa > mẽsa > mesa, mense > mẽse > mẽs > mês, mensura >
mẽsura > mesura, sponsu > esponso > espõso > esposo; ansa > ãsa > asa,
consuere > cõsuere > cosuere > coser, tensu > tẽsu > tẽso > teso, monstrare
> mõstrare > mostrar, adminacia > amẽacia > ameaça, moneta > mõeta >
mõeda > moeda, vanitate > vãitate > vaitate > vaidade, venatu > vẽatu > vea-
do, manachum > mãago >maago > mago; tenere > tẽere > teere > ter.

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
3.6.4.8. Sonorização ou Abrandamento
Sonorização é a troca de uma consoante surda pela sua homorgânica
sonora (ver tabela do início deste capítulo). Um fonema é denominado ho-
morgânico em relação a outro quando têm o ponto de articulação em co-
mum. Só ocorre a sonorização se a consoante surda estiver em posição in-
tervocálica.
As surdas que se sonorizam são:
p>b 13
– capio > caibo; lupu > lobo; sapui > soube; capere > caber,
caepulla > cebola, capitia > cabeça, cupa > cuba, sapone > sabão, capilu
> cabelo, napu > nabo, recepere > receber, caput > cabo, cupiditia > co-
biça, superbia > soberba, scopam > escova, apicula > abelha, ripa > riba,
capra > cabra, episcopu > bispo, aprile > abril
t > d – civitate > cidade; cito > cedo; maritu > marido; vita > vida; fata >
fada; solitate >soidade > saudade, fatu > fado, acutu > agudo, catellam >
cadela, cogitare > coidar >coidar > cuidar, salutare > saudar, vita > vida,
materia > madeira, tutum > tudo, acetum > azedo, mutu > mudo, metu >
medo, latrone > ladrão, patre > padre, matre > madre, atrium > adro, vi-
tru > vidro, citrea > cidra, putre > podre, utre > odre, grate > grade,
aratrum > arado, rutru > rodo, catena > cadeia, nata > nada, senatore >
senador, laudatu > louvado
c > g – pacare > pagar; aqua > água; amicu > amigo; aquila > águia; ca-
ttu > gato, acutu > agudo, securu > seguro, amicu > amigo, lacuna > la-
guna > lagõa > lagoa, ciconea > cegonha, vacare > vagar, resicare > res-
gare > rasgar, caballicare > cavalgar, pullica > pulga, vesica > bexiga,
periculu > perigo, acume > gume, jocu > jogo, manica > mãica >manga,
dominicu > domĩcu > domingo, delicatu > delcato > delgado, lacrima >
lágrima, sacrare > sagrar, secretu > segredo, cattu > gato, caveola > ga-
viola > gaiola, crate > grade, crypta > gruta, quiritare > critare > gritar,
caecu > cego, dico > digo, vindicare > vingar, plicare > pregare e chegar,
dracone > dragão, ficu > figo, socru > sogro, advocare > advogar.
c (e, i) > z – acetu > azedo, vicinu > vizinho, facere > fazer, dicis > dizes,
placere > prazer, vices > vezes, dece > dez, decembre > dezembro, jacere
> jazer, cruce > cruz, voce > voz, veloce > veloz, rapace > rapaz, audace
> audaz.

13 Em algumas palavras, esse “p” evoluiu para “v”: nepeta > néveda, populum > poboo > povo, scopa >
escova. Esse desenvolvimento adicional pode ter sido ocasionado em algumas dessas palavras pela
dissimilação.

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José Pereira da Silva
f > v – profectu > proveito; aurifice > ourives, trifoliu > trevo, aurifice >
ourives, profectus > proveito, Stephanu > Estêvão,
b > v14 – caballu > cavalo; faba > fava; populu > pobo > povo, gubernu >
governo, mirabilia > maravilha, dubitare > duvidar, scribere > escrever,
probare > provar, fibula > fibela > fivela, trabe > trave, cibare > cevar,
amabat > amava, debet > deve, habere > haver, nubem > nuvem, curbare
> curvar, libru > livro, libre > livre.

3.6.4.9. Palatalização
Palatalização é a fusão de uma consoante e um iode, determinando o
aparecimento de uma consoante palatal. Chama-se iode ao i que, pronuncia-
do com fechamento do canal bucal, como acontece com ioiô, adquire som
consonântico. Como o iode é de natureza palatal, palataliza a consoante a
que está ligada. Assim, por exemplo, as consoantes l, n, d, ss, quando acompanha-
das de iode, transformam-se, respectivamente, nas consoantes palatais lh, nh, j, x: fi-
lia (pronunciado fi-lya) > filha; venio (pronunciado ve-nyo) > venho; hodie (pro-
nunciado ho-dye) > hoje; bassiu (pronunciado ba-ssyo) > baixo.
Frequentemente se dá com:
n (e, i) + vogal > NH – vinea > vinha, aranea > aranha, seniore > senhor,
juniu > junho, maneana > manhã, regina > rainha, gallina > galinha, vinu >
vinho, cicinu > vizinho, juniu > junho, testimoneu > testemunho, montanea
> montanha, somniu > sonho, linea > linha, pinea > pinha, pino > pinho,
molinu > moinho, vagina > bainha, farina > farinha, ingeniu > engenho, ve-
recunnia > vergonha, extraneu > estranho, teneo > tenho, baneu > banho,
addivinare > adivinhar.
l (e,i) + vogal > LH palea > palha, folia > folha, julio > julho, muliere >
mulher, alliu > alho, malleu > malho, consiliu > conselho, milia > milha, vi-
rilia > virilha, batalia > batalha, meliore > melhor,
d (e,i) + vogal > J video > vejo, hodie > hoje, invidia > inveja, adiutare >
ajudar,
pl, cl, fl > CH pluvia > chuva, scoplu > escolho, manuplo > molho, ma-
cula > mancha, masculu > macho, marculatu marclatu > machado, implere
> encher, clave > chave, masculu > masclu > macho, flamma > chama, in-
flare > inchar, plagare > chagar, pleno > cheio, plantare > chantar, clamare
> chamar, inflatu > inchado, afflare > achar, flagrare > cheirar

14 A passagem do b para v recebe o nome especial de degeneração.

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
cl, pl, gl> LH oculu > oclo > olho, apicula > apecla > abelha, scopulu >
scoplo > escolho, tegula > tegla > telha, peduculu > decuclu > piolho, spe-
culu > especlu > espelho, ragulare > raglare > ralhar, ovicula > ovelha, ma-
cula > macla > malha, acucula > acucla > agulha, coagulu > coalho, tragula
> tragla > tralha
sc, ss (i, e) > X pisce > peixe, passione > paixão, miscere > mexer, russeu >
roxo, fasce > feixe,
s (i) > J cerevisia > cerveja, basiu > beijo, ecclesia > igreja

3.6.4.10. Oclusão
A oclusão consiste na passagem de uma das vogais extremas i (às
vezes e) e u (às vezes escrito o) a semivogais, formando ditongo com a vo-
gal anterior. Oclusão quer dizer fechamento. “Desde que a vogal passa a
semivogal, é porque ela se vai fechando cada vez mais, indo constituir a
semivogal de um ditongo”. (SILVA NETO, 1956)
ego > eo (duas sílabas) > eu (uma sílaba), solitate > so/i/da/de > sau/da/de,
De/us > Deus (uma única sílaba), amabilis > a/ma/be/les > a/ma/ve/es >
a/má/veis, Ex.: malu > mao (hiato) > mau (a oclusão se deu na passagem de
/ o / para / w /); lat. meu > meo (hiato) > meu; amabilis > amavees (hiato) >
amáveis (verbo), habui > haubi > houve, laicu > leigo, sapui > saupe > sou-
be, materia > mateira > madeira, corrigia > corriia > correia, rege > rei

3.6.4.11. Assibilação
É a transformação de um ou mais fonemas em um sibilante. Comu-
mente se dá com:
t (e, i) + vogal > Ç ou Z capitia > cabeça, lentiu > lenço, traditione > tradi-
ção, conditione > condição, editione > edição, tristitia > tristeza, captiare >
caçar, fortia > força, acutiare > aguçar, matiana > maçã, gratia > graça, lin-
teolum > lençol, linteu > lenço., duritia > dureza
d (e, i) + vogal > Ç audio > ouço, ardeo > arço (arc.)
c (e, i) + vogal > C ou Z lancea > lança, minacia > ameaça, judiciu > juízo,
dicis > dizes, placere > prazer.

3.6.4.12. Monotongação ou Redução


É a simplificação de um ditongo em uma vogal: fructu > fruito (arc.)
> fruto, lucta > luita (arc.) > luta, auricula > orelha, graixa > graxa, faixa >

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José Pereira da Silva
faxa, cuitelo > cutelo, luito > luto, pluvia > chuvia > chuva, enxuito > enxu-
to, tructa > truita > truta

3.6.4.13. Apofonia
É a mudança de timbre de uma vogal por influência de um prefixo:
in + aptu > inepto, in + barba > imberbe, sub + jactu > sujeito, in+ arte >
inerte, in + amigo > inimigo, dis + facile > dificile > dificil; in + arma>
inerme

3.6.4.14. Metafonia
É a mudança de timbre de uma vogal tônica por influência de outra,
geralmente i ou u: debita > dúvida, tepidu > tíbio, tosso (v. tossir) > tusso,
cobro (v. cobrir) > cubro, decima > dizima, veni > vim, feci > fiz, ista > es-
ta, illa > ela, ipsa > essa, formosa > formosa,
Além da nomenclatura aqui disponibilizada, seria importante, a título
de exercício, buscar em outros livros de Linguística e de Filologia os signi-
ficados e sinônimos de: abrandamento, aférese, aglutinação, alargamento,
apócope, apofonia, assibilação, assimilação, consonantização, crase, desna-
salação, diástole, dissimilação, ditongação, elisão, epêntese, haplologia, hi-
perbibasmo, hipértese, metafonia, metaplasmo, metátese, monotongação,
nasalização, palatalização, paragoge, próstese, prótese, redução, sinalefa,
síncope, sístole, sonorização, suarabácti, vocalização.

NOTA: – Na linguagem corrente observa-se tendência para os seguintes


metaplasmos:
1. Sinalefa – consiste na elisão da vogal átona final da palavra diante
de vogal inicial da palavra seguinte: pau d’água, minha’alma, outrora, aque-
loutro, mo, to, lho, do etc.
2. Ectlipse – consiste na supressão do “m” final de palavra diante de
vogal da palavra seguinte: com + a = coa, com + o = co’o, com + as = coas,
com + os = co’os
“O sol é grande; caem co’a (hoje coa) calma as aves” (Sá de Miranda).
“... e, perdida a branca e viva cor, co’a doce vida” (CAMÕES).
“ Onde co’o vento a água se meneia” (CAMÕES).
Homem essa! = homessa!

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
NOTAS: 1– Segundo alguns autores, também é ectlipse a elisão do “s” fi-
nal com vogal inicial de palavra seguinte.
2– No encontro da preposição “com” com o artigo masculino, nor-
malmente, além da ectlipse dá-se a crase: com + o = co’o > c’o com +
os = co’os > c’os
“Crendo c’o sangue só da morte indina” (CAMÕES).
“C’o ferro o duro Pirro se aparelha” (CAMÕES).
3. Os casos de desarticulação, considerados antes vícios de prosódia.
Tais casos ocorrem por:
a) Aférese: tá (por está), péra (por espera); Zé (por José), cê (por vo-
cê); inda (por ainda) , té (por até)
b) apócope ou ensurdecimento: bobage (por bobagem); qué (por
quer); sabê (por saber); passá (por passar); pô (por pôr)
c) prótese ou aglutinação: arrecear arrenegar alagoa (por lagoa)
d) epêntese ou suarabácti: beneficiência, prazeirosamente, hipinotis-
mo, peneu, iguinorante, opitar, obiter
e) ditongação: saudar (sau-dar por sa-u-dar); arruinar (ar-rui-nar por
ar-ru-i-nar); ruim (rữi por ru-im); fuzil (fuziu por fuzil);mais (por mas)
f) monotongação: fêxe, pêsce,frera, dotor, Oropa, Ogênio
g) palatização: Antonho (por Antônio) Demonho (por demônio)
h) despalatização (especificamente ieísmo): muié (por mulher), cuié
(por colher), oreia (por orelha)
i) assimilação: tamém (por também), probrema (por problema)
j) dissimilação: pírula (por pílula), estrambólico (por estrambótico),
breganha (por barganha)
l) hipértese: metereologia, areoporto, largatixa.
m) metátese: preto (por perto), preguntar (por perguntar), parteleira
(por prateleira), braganha (por barganha).
n) rotacismo: farta (por falta), armoço, bardiação, arface
o) lambdacismo: flera (por freira)
p) dissimilação eliminadora: dibre (por dribre, corrupção de drible)
q) haplologia: entretimento (por entretenimento), paralepípedo (por
paralelepípedo) infabilidade (por inbalibilidade)

71
José Pereira da Silva
r) desdobramento: sintaxe (pronunciado sintacse por sintasse), má-
ximo (cs por ss)
Obs: Notável é a supressão por síncope e apócope na palavra “Seu”
de Senhor (seu dotor, seu Zé etc.).

ESQUEMA
Prótese: statua > estátua
1 Por AUMENTO Epêntese: stella > estrela
Paragoge: ante > antes

(aglutinação: minacia > ameaça)


(Suarabácti: planu > p’rão > porão)

Aférese: acume > agume > gume


Síncope: pede > pee > pé
2. Por SUPRESSÃO Apócope: mare > mar
Crase: pede > pee > pé
METAPLASMOS

(deglutição: apotheca > baodega > bodega)


(haplologia: formicicida >formicida)

1. diástole: pônere > ponêre


a) Do acento 2. sístole: pantânu > pântanu
3. Por TRANSPOSIÇÃO
1. metátese: semper > sempre
b) De fonemas
2. hipértese: caio > caibo
4. Por TRANSFORMAÇÃO:
Vocalização: nocte > noite
Consonantização: iactu > jeito
Nasalização: luna > lữa > lua
Desnasalização: luna > lữa > lua
Assimilação: ipse > esse
Dissimilação: liliu > lírio
Sonorização ou abrandamento: apotheca > abodega
Palatização: hodie > hoje
Assibilação: bellitia > beleza
Ditongação: avena > avea > aveia
Monotongação ou redução: auricula > oricla > orelha
Apofonia: in + barba > inberbe
Metafonia: tepidu > tíbio

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
EXERCÍCIOS SOBRE METAPLASMOS
Dar o nome das seguintes alterações fonéticas:
1 – dolore > dolor > door > dor
2 – veritate > veridade > verdade
3 – oculu > oculo > oclo > olho
4 – lŭpu > lupo > lopo > lobo
5 – voce > voze > voz
6 – acume > agume > gume
7 – ipse > epse > esse
8 – macula > macla > malha
9 – integru > integro > intégro > inteiro
10 – inflare > inflar > inchar
11 – liliu > lilio > lírio
12 – multu > multo > muito
13 – dicere > dicére > dicer > dizer
14 – hodie > hodye > hoje
15 – fenestra > fẽestra > feestra > festra > fresta
16 – arena > arẽa > area > areia
17 – aranea > aranya > aranha
18 – bellitia > belitia > beletia > beletya > beleza
19 – bonitate > bonidade > bondade
20 – credo > creo > creio
21 – apĭcula > apicla > apecla > abecla > abelha
22 – parĭcula > paricla > parecla > parelha
23 – auricula > auricla > oricla > arecla > orelha
24 – coagulare > coagular > coaglar > coalhar
25 – civitate > cividade > ciidade > cidade
26 – ciconia > ceconia > cegonia > cegonya > cegonha
27 – clamare > clamar > chamar
28 – cerevisia > cerevesia > cervesia > cerveja
29 – filiu > filio > filyo > filho
30 – gallina > galina > galĩa > galinha
31 – vinu > vino > vìo > vinho

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José Pereira da Silva
32 – vicinu > vicino > vizino > vizĩo > vizinho
33 – flagrare > flagrar > chagrar > chairai > cheirar
34 – consiliu > consilio > conselio > conselyo > conselho
35 – avarĭtia > avaretia > avaretya > avareza
36 – animalia > alimalia > alimária
37 – adversu > adverso > avverso > averso > avesso
38 – debita > dibita > dibida > dívida
39 – solitariu > solitario > soltario > soltairo > solteiro
40 – primariu > primario > primairo > primeiro
41 – mollinariu > mollinario > molinario > molnario > mollario > molario >
molairo > moleiro
42 – dixi (dicsi) > dissi > disse
43 – tepidu > tepido > tebido > tebio > tíbio
44 – horologiu > horologio > rologio > relógio
45 – fructu > fructo > fruito > fruto
46 – invidia > invedia > invedya > inveja
47 – malu > malo > mao > mau
48 – lacuna > lacona > lagona > lagõa > lagoa
49 – nidu > nido > nĩo > ninho
50 – navigiu > navigio > naviio > navio
51 – rabia > ravia > raiva
52 – ponere > ponére > poner > poẽr > poer > poor > pôr
53 – operariu > operario > oberario > obrario > obrairo > obreiro
54 – populu > populo > popolo > pobolo > poboo > pobo > povo
55 – plenu > pleno > plẽo > pleo > cheo > cheio
56 – palumba > palomba > paomba > poomba > pomba
57 – persona > persõa > persoa > pessoa
58 – rotundu > rotundo > rotondo > rodondo redondo
59 – regina > reina > reĩa > reinha > rainha
60 – sapuit > sapui > sabui > saubi > saube > soube
61 – semper > sempre
62 – stella > stela > estela > estrela

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa

4. VOCALISMO

Vocalismo é o estudo das vogais e, no caso presente, o estudo espe-


cial da evolução das vogais do latim vulgar para o português.
Já vimos, em páginas anteriores, que as vogais latinas possuíam
quantidade e timbre. Pela quantidade eram longas e breves; pelo timbre,
abertas e fechadas.
De modo geral, toda vogal longa era fechada, da mesma forma co-
mo toda vogal breve era aberta. Excetua-se o a, que era sempre aberto.
Havia, então, no latim clássico:
longas: ā ē ī ō ū
breves: ă ĕ ĭ ŏ ŭ
Com o sinal mácron ( – ), indicam-se as vogais longas; com o sinal
braquia ( ˇ ), as breves. Um ponto ( . ) posto embaixo de uma vogal signifi-
ca que ela é fechada; uma vírgula quer dizer que ela é aberta.
Já foi também dito (cf. tópico 3.4) que em plena época imperial, pe-
las alturas do século III da nossa era, em virtude de fatores vários, a ideia de
quantidade, difícil de atender, e que se vinha apagando através dos séculos,
desapareceu por completo, substituída pela noção de timbre.
Daí resultaram as seguintes vogais (entendendo-se que não havia a
vogal a com timbre fechado no latim vulgar):
abertas: a e i o u
fechadas: e i o u
Ao mesmo tempo em que isso acontecia, o acento tônico, de nenhu-
ma importância na língua culta, foi-se tornando a alma da palavra na língua
vulgar, a tal ponto que o destino das vogais átonas passou a depender da po-
sição que elas ocupassem relativamente à tônica. Com isto, a musicalidade
da língua latina deixava de ser um traço distintivo, com o importantíssimo
jogo de sílabas longas e sílabas breves, que marcavam a cadência da fala e a
métrica da poesia latina.
São as vogais do latim vulgar que dão origem às vogais portuguesas,
com a seguinte correspondência, especificamente para o português do Brasil:

75
José Pereira da Silva
ă dar < dăre >; água < ăqua; águia < aquila; madre < matre; lado < latu
a< amar < amāre; graça < grātia; estar < stare; paço < palatiu; amargo <
ā
amaricu
pedra < pĕtra; dez < dĕce, égua < ĕqua, breve < brĕve, febre < fĕbre, né-
ĕ
é< voa < nĕbula
ae céu < caelǔ, quero < quaero, cego < caecum, prédio < praediu
ē dever < debēre; segredo < secrētǔ15
ê< ĭ cerca < cĭrca; verde < vir(ĭ)de
oe feio < feo < foedǔ
i< ī vida < vīta; fio < fīlǔ
ó< ŏ rosa < rŏsa; roda < rŏta
ō amor < amōre; lavor < labōre
ô<
ǔ onda < ǔnda; lobo < lǔpǔ
u< ū puro < pūrǔ; seguro < secūrǔ

Este quadro nos mostra a origem remota das nossas sete vogais; já
sabemos que a sua fonte imediata foram as vogais do latim vulgar.
Contribuíram também para a formação de vogais dois dos ditongos
latinos – ae e oe – que evoluíram do seguinte modo:
ae > é oe > ê
Sirvam os seguintes exemplos:
a do português correspondente a ā e ă do latim clássico: ăquam > água;
dăre > dar; măle > mal; căsa > casa; clārum > claro; ārborem > árvore;
stāre > estar.
é do português corresponde a ĕ e ae do latim clássico: dĕce > dez; brĕve >
breve; vela > vĕla; pĕde > pé; caelu > céu; praediu > prédio
ê do português corresponde a ĭ, ē e oe do latim clássico16: cĭto > cedo; pĭlum >
pêlo; sĭte > sede; secrētu > segredo; trēs > três; foeno > feno; poena> pe-
na; nive > neve17; mētu > medo18

15Quando seguido de semivogal ou de consoante vocalizável, o ĕ (“e” breve) se fecha por influência da
semivogal, como em matĕria > madeira, pĕcto > peito, lĕcto > leito, grĕge > grei, concĕptu > conceito.
16 Quando o “a” ou o “e” do latim eram seguidos de “i” ou de consoante vocalizável, foi muito comum a
formação de um ditongo na língua portuguesa, de modo que a semivogal fechou a vogal anterior: amavi
> amei, primariu > primairo > primeiro, materia > mateira > madeira, pecto > peito. A ocorrência do di-
tongo éi ou ói é excepcional, motivo pelo qual é acentuado graficamente, exceto nos paroxítonos.
17O ĭ corresponde normalmente a ê. Logo, o esperável seria neve (ê), e não neve (é). O timbre desse é
deve ter-se alterado por influência analógica do é da palavra névoa.
18Ao ĕ corresponde normalmente é. Logo, o esperável seria medo (é), e não medo (ê). O fechamento
dessa vogal foi decerto provocado pelo u átono da sílaba seguinte, o qual é fechado, tanto que o patro-
nímico "medo", proveniente da Medeia, permanece aberto, por ser um termo erudido ou raro.

76
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
A este fenômeno ocorrido com as vogais tônicas de “neve” e “medo”
se chama metafonia, que é definida pelo grande português Gonçalves Viana
como “Influência da vogal átona sobre o timbre de outra antecedente tônica”.
Eis exemplos de metafonia: pŏrcu > porco; ceriu > círio; feci > fici
> fiz.
i do português corresponde a ī do latim clássico: fīlu > fio; amīcu > amgo;
rīvu > rio; spīca > espiga
ó do português corresponde a ŏ do latim clássico: rŏsa > rosa; rŏta > roda;
prŏba > prova
ô do português corresponde a ō ou a ŭ do latim clássico: dolōre > dor;
amōre > amor; corōna > coroa; sŭper > sobre; gŭstu > gosto; cŭbitu >
côvado
u do português corresponde a ū do latim clássico: acūtu > agudo; nūbe >
nuvem; virtūte > virtude; rūga > ruga
a > o: fame > fome19.

4.1. VOGAIS ÁTONAS


O estudo das vogais átonas é mais complexo do que o das vogais tô-
nicas, porque é nelas, bem como nas consoantes que as acompanham, que
mais frequentemente se fazem sentir os fenômenos fonéticos.
A não ser que a vogal átona esteja amparada por uma consoante, ou
que sobre ela se faça sentir um acento secundário, o seu destino é apagar-se
diante da tônica, chegando às vezes até ao desaparecimento completo.
Conforme a posição que ocupa na palavra, a vogal átona pode ser:
1 – pretônica: inicial e interna20
2 – postônica: interna e final

4.1.1. Vogais pretônicas iniciais


As vogais pretônicas iniciais, quando sozinhas, desprotegidas de
consoantes, não têm tratamento uniforme e ora caem, ora ficam: acūme >

19O a tônico de fame(m) está em português representado por o, fato absolutamente anômalo. O que
possivelmente concorreu para esse desvio foi a influência das consoantes vizinhas, ambas labiais. Daí
os derivados faminto, famigerado, esfaimado (mas também esfomeado).
20
As palavras "pretônico" e "postônico" também se grafam como "pré-tônico" e "pós-tônico".

77
José Pereira da Silva
gume; apothēca > bodega; aprīle > abril; amarĭcu > amargo; epīscopo >
bispo; attōnitu > tonto; acucŭla > agulha; amicu >amigo; acutu > agudo
Se, porém, a vogal pretônica inicial estiver apoiada por uma conso-
ante, fica: filāre > fiar; cabāllu > cavalo; dormīre > dormir; delicātu >
delgado
Vejam-se agora exemplos de permanência de vogais pretônicas, ou de
troca por outras:
a) permanência: aprile > abril (a), filare > fiar (i), dormire > dormir (o)
b) troca: antenatu > enteado (ã > ẽ), regina > reĩa > rainha (e > a), verrēre >
varrer (e > a)

4.1.2. Vogais pretônicas internas


As vogais pretônicas internas, quando colocadas imediatamente an-
tes da tônica, geralmente desaparecem, isto é, sofrem síncope. Exemplos:
verĭtate > verdade; compŭtare > contar; quiritāre > gritar; penicēllu >
pincel
As principais exceções a essa regra são três:
1ª – se a vogal átona for precedida ou seguida de um grupo de consoantes,
fica: castitāte > castidade; gubernāre > governar
2ª – se a vogal átona for i e houver a queda de uma consoante medial, ela fi-
cará: vanitāte > vaidade; limināre > limiar; nomināre > nomear
3ª – se a vogal átona for a, não cai: ornamēntu > ornamento; juramēntu >
juramento; mirabĭlia > maravilha

4.1.3. Vogais postônicas internas


As vogais postônicas internas adjacentes à tônica geralmente caem,
isto devido à tendência da língua a evitar as proparoxítonas: asĭnu > asno;
pulĭca> pulga; domĭna> dona; reposĭta > reposta > resposta; viride >
verde; lepore > lebre; opera > obra

4.1.4. Vogais postônicas finais


As vogais finais latinas em geral permanecem na passagem para o
português, com exceção do e, que desaparece quando precedido de consoan-
te capaz de formar sílaba com a vogal que a antecede. Essas consoantes
eram l, n, r, s, z. Exemplos: aquĭla > águia; domĭna > dona; balena > ba-

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
lea > baleia; bene > bẽe > bem; amare > amar; mense > mês; cruce >cru-
ze > cruz; mare > mar; male > mal; vulgare > vulgar
Deve-se notar que o i final evolui para e e o u evolui graficamente
para o, apesar de continuarem foneticamente. Exemplos: dixi > disse; flūctu
> fruto; sabucu > sabugo; vivi > vive; vesti > veste; campu > campo; libru
> livro

4.2. VOGAIS TÔNICAS


A sílaba acentuada latina, feita a alma da palavra, em geral se man-
tém, como já dissemos, na passagem para o português, onde as vogais estão
representadas da seguinte maneira:
LATIM LATIM
PORTUGUÊS
LITERÁRIO VULGAR
ă
á á
ā
ĕ é é
ē ê
ê
ĭ í
ī î i
ŏ ó ó
ō ô
ô
ǔ ú
ū û u
Exemplos:
ă > á > á: dăre > dar; ăqua > água ā > á > á: amāre > amar; grātia > graça
ĕ > é > é: pĕtra > pedra; dĕce > dez ē > ê > ê: debēre > dever; secrētǔ > segredo
ĭ > í > ê: cĭrca > cerca; vir(ĭ)de > verde ī > î > i: vīta > vida; fīlǔ > fio
ŏ > ó > ó: rŏsa > rosa; rŏta > roda ō > ô > ô: amōre > amor; labōre > lavor
ǔ > ú > ô: ǔnda > onda; lǔpǔ > lobo ū > û > u: pūrǔ > puro; secūrǔ > seguro
Só excepcionalmente a vogal tônica latina pode ser alterada, o que
acontece principalmente nos seguintes casos:
1º – a tônico do latim vulgar, seguido de i, ditonga-se com ele e, na
evolução para o português, passa a e fechado: laicu > leigo; amavi > amei;
primariu > primairu > primeiro
2º – a tônico do latim vulgar, seguido de u, ditonga-se com ele e, ao
passar para o português, evolui para o fechado: sapui > saube > soube; ha-
bui > haube > houve
Devido à confusão entre os encontros au e al, na pronúncia, ocorre
com o a seguido de l o mesmo tratamento visto acima: falce > fauce > fou-
ce, alteru > autru > outro

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José Pereira da Silva
3º – e tônico do latim vulgar, seguido de i, ditonga-se com ele e, ao
passar para o português, evolui para e fechado: materia > madeira feria >
feira; medio > meio; lactu > leito

4.3. ESTUDO DO DITONGO


4.3.1. Ditongos latinos
Os ditongos latinos eram três: ae – quaero; oe – foedu; au – auru
O latim vulgar já apresentava tendência para reduzir esses ditongos a
simples vogais. Nenhum deles se manteve, na passagem para o português,
porque os dois primeiros evoluíram para vogais, conforme vimos antes, e o
terceiro, por dissimilação, deu origem a novo ditongo. Assim, temos:
ae > e – quaeru > quero; laeta > leda; caelu > céu;
caecu > cego; taediu > tédio; faeces > fezes;
Caesar > César. Exceção: graecu > grego (com ê, e não com é)
oe > e – poena > pena foedu > feo > feio foenu > feno
coena > cēa > cea > ceia; poena > pena.
au > ou – auru > ouro; tauru > touro; paucu > pouco
mauru > mouro; cautu > couto, causa > cousa.
au > au – audace > audaz aula > aula
A língua portuguesa tem, portanto, dois ditongos de origem latina:
au, ou (oi).

4.3.2. Ditongos românicos


Posteriormente, já distante a fase latina da língua, a evolução do por-
tuguês determinou a criação dos ditongos chamados românicos, os quais
nem sempre se mantiveram.
São eles:
1 – ai – que frequentemente evolui para ei21: lacte > *laite > leite; primariu
> primairo > primeiro; factu > faito > feito, amavi > amai > amei.

21 Assim como a semivogal /w/ do ditongo /aw/ (grafado “au” ou “ao”), a semivogal /y/ do ditongo /ay/
(grafado “ai” ou “ae”) influenciou na vogal /a/, fechando-a e transformando-a em /ọ/ e /ẹ/ respectivamen-
te, como se vê nos vocábulos “ouro” e “leite”. Em outras palavras: /a/ tônico, seguido, imediatamente ou
não, da semivogal /y/ e /w/, ou consoante vocalizável (por exemplo, /k/ ou /p/ em lacte, factu, saxu e
conceptu ou “l” em alteru), transforma-se em /ẹ/ ou em /ọ/ dando os ditongos /ey/ e /ow/.

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
2 – au – que frequentemente evolui para ou: falce > fauce > fouce; habui >
*haubi > houve; alteru > auteru > autro > outro
3 – ui – que frequentemente evolui para u: fructu > fruitu > fruto; lucta >
luita > luta; multu > muito > muĩto, cultellu > cuitelo > cutelo.

4.3.3. Origens dos ditongos românicos


São múltiplas as causas que dão origem aos ditongos portugueses:
1.ª - Um ditongo latino: auru > ouro; tauru > touro.
2.ª - A síncope de um fonema: patre > pate > pade > pai; matre > mate
> made > mãe; malu > mau; amate > amai; amavi > amai >amei
3.ª - A vocalização de uma consoante: alteru > outro; factu > *faito >
feito; absentia > ausência; regno > reino; nocte>noite.
4.ª - A metátese, ou troca de fonemas: primariu > primairo > primeiro;
regina > rainha; rabia > raiva; capio > caibo
5.ª - O alongamento, que é a transformação de vogal em ditongo, como
acontece ainda hoje na pronúncia douze: arena > area > areia; credo >
creo > creio; freno > freo > freio
Quase sempre – como acontece nos exemplos acima – o alongamen-
to tem por finalidade desfazer um hiato.
6.ª - A queda de uma consoante intervocálica: manu > mão; pane > pão;
oratione > oração; cane > cão; ratione > razão; vanitate > vaidade; va-
di(t) > vai
7ª – Por oclusão (fechamento de timbre das vogais e e o que pas-
sam respectivamente a i e u): malo> mao > mau; velo > veo > véu;
amatis > amades > amaes > amais
NOTA – Os ditongos ou e oi alteram-se em português, de acordo
com preferências que nem sempre podem ser explicadas: ouro e oiro; touro
e toiro; biscouto e biscoito; louro e loiro; cousa e coisa
No entanto, em outras só se usa uma das formas: oito, dezoito, pou-
co, louco, poupar, roubar etc.
Ainda não foi satisfatoriamente esclarecida a razão desse fenômeno.
O filólogo José Joaquim Nunes tentou explicá-lo pela influência dos judeus
portugueses do século XVI:
...parece que a pronúncia oi era no século XVI peculiar aos judeus, porquanto
Gil Vicente, que distingue ou e oi, isso não obstante, põe oi na boca dos que apre-
senta nalgumas das suas farsas. (NUNES, 1930, p. 77-78)

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José Pereira da Silva

4.3.4. Fontes do ditongo OU


O ditongo ou pode provir:
I) do ditongo au: auru > ouro, t(h)esauru > tesouro;
II) do ditongo românico au, originário este de várias causas, a saber:
a) vocalização de uma consoante sequente a um a: falce > fauce > fouce;
b) metátese de um u, atraído para junto de um a: capui > *caube > coube;
c) vocalização de um v em u, depois de um a: amav(i)t > amau(t) > amou.

4.3.5. Fontes do ditongo OI


O ditongo oi pode proceder:
a) da vocalização de uma consoante sequente a um o: nocte > noite;
b) da metátese de um i, atraído para junto de um o: coriu > coiro.

O ditongo final –ão do português moderno representa as formas do


português arcaico am, ã, om, õ, correspondentes às terminações latinas anu,
ane, one, udine, aunt, unt: veranu > verão; pane > pão; oratione > oração;
paganu > pagão; cane > cão

4.4. ESTUDO DO HIATO


NOTA – Para a prefeita compreensão deste ponto é importante rever
o que foi dito sobre as vogais (tópico 4) e sobre palatalização (tópico
3.6.4.9).
A pronúncia do hiato é particularmente difícil, porque exige a emis-
são de dois fonemas distintos – ambos vocálicos – ou do mesmo fonema,
com a mesma abertura da boca. Sente-se isso na pronúncia de fe-é-ri-co, pa-
ís, co-or-te etc. Para fugir a essa dificuldade, representada pelo maior esfor-
ço, a língua procura – e sempre procurou no passado – suprimir por várias
formas o hiato.
Essa eliminação se processou pelo fechamento de uma das vogais do
hiato. Para que isso fique bem compreendido, é preciso que se recordem os
graus de abertura das vogais:

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
a
é ó
ê ô
i u
(semivogal) y w (semivoval)
O tratamento difere conforme se estude a evolução de um hiato lati-
no ou de um hiato formado em português.

4.3.1. Hiatos Latinos


Os hiatos latinos não se mantiveram na passagem para o português e
o seu desaparecimento, dependendo de múltiplas circunstâncias, foi feito de
várias maneiras:
1. pela crase de vogais iguais: cohorte > coorte > corte; cooperire > co-
prire > cobrir; vedere > veer > ver; ponere >poor > pôr
2. pela transformação em semivogal de uma vogal u que depois desapare-
ce: quattour > quattwor > quatro; februariu > febrwariu > febrario >
*fevrairo > fevereiro
3. pelo fechamento de uma das vogais do hiato, o que leva à transforma-
ção da vogal em semivogal, com a consequente mudança do hiato em
ditongo: fŭ-gi-o (hiato) > fu-gyo (ditongo); fa-ci-o (hiato) > fa-cyo (di-
tongo); caelo > ceo > céu; ego > eo > eu
Quando isto ocorre, a semivogal liga-se à consoante que a antecede,
dando origem, no português, a um novo fonema:
ly > lh: miliu > (três sílabas graças ao hiato: mi-li-u); mi-lyu > (duas síla-
bas, com ditongo); milho > (formação de fonema palatal lh)
ny > nh: se-ni-ō-re > se-nyo-re > senhor; ci-cō-ni-a > ci-co-nya > cego-
nha; aranea > arania > aranya > aranha
cy > ç: fă-ci-o > fa-cyo > faço; lancea > lancia > lancya > lança
ty > ç/ z: pre-ti-u > pre-tyo > preço; gratia > gratya > graça; ratione >
ratyone > razão
dy > ç/ j: audio > audyo > ouço; insidyo > *ensedyo > ensejo; hodie > ho-
dye > hoje
gy > j: fugio > fugyo > fujo; angĕlu > angeo > anjo
si > ij: baseu > basiu > basyo > baijo > beijo; caseu > casiu > casyo >
queijo

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José Pereira da Silva

4.3.2. Hiatos românicos


Desde a fase arcaica a língua portuguesa apresenta acentuada tendên-
cia a evitar o hiato.
Os hiatos chamados românicos, isto é, formados depois da fase do la-
tim vulgar, também se desfizeram pelos seguintes processos:
1.º -- pela crase, quando as vogais eram iguais: sedere > seer > ser; dolōre
> door > dor; pede > pee > pé; colōre > coor > cor; vagativu > vaadio >
vadio; crudu > cruu > cru
2.º -- pelas assimilações de vogais diferentes, que depois desapareciam pe-
la crase: excadescēre > escaecer > esqueecer > esquecer; palumbu > pa-
ombo > poombo > pombo; venītu > vẽido > vĩindo > viindo > vindo
3.º -- pela epêntese de um i: credu > creo > creio; senu > sēo > seio; are-
na > arēa > areia; plaga > praia

QUESTIONÁRIO
1 – Que é vocalismo?
2 – Compare as vogais tônicas do latim clássico, do latim vulgar e do por-
tuguês.
3 – Assinale a quantidade das vogais tônicas latinas, considerando o tim-
bre das vogais tônicas portuguesas: nebula > névoa; siccu > seco; ficu
> figo; super > sobre; rota > roda; luce > luz; cito > cedo.
4 – Qual o tratamento das vogais átonas pretônicas e postônicas?
5 – Que são ditongos de origem latina? E de origem românica?
6 – Quais as causas da ditongação na língua portuguesa? Exemplifique.
7 – Quais as origens do ditongo –ão português?
8 – A epêntese de um i para desfazer um hiato, como em creo > creio, re-
cebe o nome de oclusão, alargamento ou metafonia?

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa

5. CONSONANTISMO

Consonantismo é o estudo das consoantes e, no caso presente, o es-


tudo especial do destino das consoantes latinas na sua passagem para o por-
tuguês.
Pouco diferiam as consoantes do latim literário e as do latim vulgar.
Assinalem-se apenas as principais divergências:
a) o c, que se pronunciava sempre quê, passou a soar como cê, antes de e e
i;
b) o g, que se pronunciava sempre guê, passou a soar como jê, antes de e e
i;
c) o s intervocálico, que se pronunciava como ss, passou a soar como z.
O h, que é uma simples letra, indicava, quando inicial, uma leve as-
piração, que ao tempo do Império já se perdera totalmente; na língua vulgar,
conservando-se somente como símbolo etimológico, sem nenhum valor na
pronúncia.
O destino das consoantes latinas dependeu sempre da posição que
elas ocupavam na palavra – iniciais, mediais ou finais – e ainda de que fos-
sem simples, dobradas ou agrupadas.

5.1. CONSOANTES SIMPLES INICIAIS


As consoantes simples iniciais geralmente permanecem: pace > paz,
tauru > touro, lacu > lago, bucca > boca, nocte > noite, vagativu > vadio,
bene > bem, gutta > gota, patria > pátria, corona > coroa, latrone >la-
drão, rota > roda, debere >dever, manu > mão, salute > saúde, filiu >fi-
lho, navigiu > navio, tale > tal.

As exceções são raras, como em:


a) c > g: cattu > gato, colla > gola, camella > gamela;
b) b > v: betulariu > vidoeiro;

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José Pereira da Silva
c) v > b: vascellu > baixel, vessica > bexiga, vota > boda, vagina > bai-
nha, vipera > bibora, palore > bolor; libelu > nível,

5.2. CONSOANTES SIMPLES MEDIAIS, OU INTERNAS


As consoantes simples mediais ou internas podem ser surdas ou so-
noras:

5.2.1. Consoantes surdas


As consoantes surdas sonorizam-se, isto é, transformam-se nas suas
homorgânicas sonoras (Cf. o quadro e a nota do tópico 3.2)
p > b – ripa > riba; sapēre > saber; popūlu > poboo > povo; lupu > lobo;
napu > nabo, cupa > cuba, cepulla > cebola, sapore > sabor, capilu > ca-
belo, capitulu > cabido, recipere > receber, cupiditia > cobiça, superbia >
soberba, scopa > escova.
t > d – vita > vida; rŏta > roda; potēre > poder; mutu > mudo, catella >
cadela, coturnice > codorniz, cogitare > cuidar, salutare > saudar, materia
> madeira, totu > todo, acetu > azedo
c > g – amicu > amigo; lacu > lago; pacāre > pagar; acutu > agudo; focu
> fogo; dico > digo, oraculu > orago, securu > seguro, lacuna > lagoa, ci-
conia > cegonha, vacare > vagar, resicare > rasgar, caballicare > caval-
gar, pulica > pulga, vesica > bexiga, secare > segar, periculu > perigo,
acume > gume, jocu > jogo, manica > manga, dominicu > domingo, deli-
catu > delgado, mollicare > amolgar
f > v – profectu > proveito aurifĭce > ourives; Christŏphanu > Cristóvão,
trifoliu > trevo, defensa > devesa, profectu > proveito,
q > g – aqua > água; equa > égua; aquila > águia; aequale > igual
s > z – Em latim o s possuía o som do nosso «ss», rosa (pronúncia latina
rossa) = rosa (pronúncia portuguesa roza). Por exemplo: causa > causa >
cousa > coisa; casa > casa (não houve alteração gráfica: s = z).
A sonorização resulta de a consoante estar entre duas vogais: como
estas são sonoras, a sonoridade delas se transmite à consoante.
Compreende-se, diante dessa explicação, que a consoante surda que
fique inalterável quando antes dela existia, por exemplo, uma semivogal:
pauco > pouco, autumno > outono
c (antes de e ou de i) > z: facēre > fazer, iacēre > jazer, dicēre > dizer,
vicīno > vizĩo > vizinho

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
5.2.2. Consoantes sonoras
As consoantes sonoras geralmente caem:
d – fidele > fiel; crudu > cruu > cru; radiu > raio; sedere > ser; crudele >
cruel; sudore > suor; pede > pee > pé, mediu > meio, fastidiu > fastio,
gradu > grau, sedentare > sentar, badiu > baio, tradere > trair, sudare >
suar, tepido > tíbio, teda > teia
l – filu > fio; velu >véu; gelare > gear; palatiu > paaço > paço, aquila >
águia, caelum > céu, palum > pau, voluntate > vontade, gelata > geada,
malu > mau, polumbu > pombo, molere > moer, dolente > doente; fidele >
fiel, crudele > cruel, sole > sol, aprile > abril
g – No latim clássico era sempre gutural, mesmo antes de e ou i. Dir-se-ia,
então: ghemere, ghentem, ghigantem, reghere, redighit.
Quando intervocálico e não sendo seguido de e ou i, geralmente cai:
legale > leal; regale > real; ligame > liame; legere > ler, regina > rainha,
legere > ler, legenda > lenda, tagenia > tainha, vagina > bainha, ruga >
rua, sigillu > selo, rugitu > ruído, Pelagiu > Paio, plaga > praia, magistru
> mestre, navigiu > navio, cogitare > cuidar, digitu > dedo, magis > mais,
rege > rei, sagita > seta, ego > eu, legitimu > lídimo, fagea > faia, sagu >
saio, lege > lei
NOTA – A queda do e final, nos dois primeiros casos, foi explicada
no lugar próprio (tópico 4.1.4)
Quando seguido de e ou i, deu origem, muitas vezes, ao fonema pala-
tal sonoro gê: regere > reger, redigit > redige, exigit > exige, rugire > rugir
n – ao cair, transmite à vogal anterior nasalidade que pode ficar, pode desa-
parecer ou pode dar origem ao dígrafo nh:
1 – a nasalidade fica: manu > mão, granu > grão, lana > lã, vanu >
vão, sanu > são, latrone > ladrõe > ladrão, planu > chão, bonu > bom, donu
> dom, sine > sem, jejunu > jejum, cane > cãm > cão, unu > um, manu >
mão, romanu > romão, sonu > som.
2 – a nasalidade desaparece: arena > arẽa > areia, luna > lũa > lua,
avena > avẽna > areia, generale > gẽeral > geral; persona > pessõa >
pessoa, alienu > alheio, corona > coroa, cena >ceia, moneta > moeda, se-
minare > semear, vanitate > vaidade, vena > veia, ponere > poer > pôr,
fenestra > fresta, catena > cadeia, minutu > miúdo, bona > boa, luna >
lua, lacuna > lagoa, Ulyssipona > Lisboa, cuniculu > coelho, genesta > gi-
esta

87
José Pereira da Silva
3 – a nasalidade dá origem ao dígrafo nh, nas terminações ina e inu
desenvolveu-se um fonema de transição nh: vinu > vĩo > vinho, caminu >
caminho, regina > reĩa > rainha.
b – fugindo à regra, e de acordo com a tendência que já existia no latim vul-
gar e se manteve na Península Ibérica, alterna-se com v: faba > fava, ca-
ballu > cavalo, cubĭtu > côvado
O v cai na terminação ivu e no substantivo bove, mas em outros casos cos-
tuma ficar: rivu > rio, tardivu > tardio, vagativu > vaadio > vadio, bove >
boi; lavare > lavar, nove > nove, nive > neve, avena > avẽa > avea > aveia.
m –: permaneceu: amicu > amigo; lacrima > lágrima, demon > demo, fa-
ma > fama, cremare > queirmar, pomare > pomar,
r –: permaneceu: hora > hora; corona > coroa; arena > area > areia, sa-
nare > sarar, aranea > aranha, aratru > arado, peiorare > piorar, jurare
> jurar, scarabiculu > escaravelho, farina > farinha, vipera > víbora,
amore > amor, pavore > pavor; mercede > mercê, circinare >cercear, cir-
ca > cerca, cardu > cardo, ordine > ordem, perdere > perder, virginem >
virgem, marginem > margem, virtutem > virtude, porta > porta, curtare >
cortar, formica > formiga, formare > formar, tornare > tornar, sarna >
sarna, carpu > carpo, corvu > corvo, cervo > cervo, parvulu > parvo, bar-
baru > bárbaro22

5.2.3.Grupos de Consoantes mais Semivogal (ou I consoante)


Explicação: tomemos a palavra latina miliu e ela terá três sílabas,
pois o encontro vocálico final é um hiato: mi-li-u. Este hiato final será des-
feito, passando então a ditongo, pois o i consoante será considerado semi-
vogal e a palavra terá duas sílabas: mi-lyu. Nesta sílaba final resultou o en-
contro da consoante l com a semivogal i. Finalmente, o grupo ly palatiza-se
em lh = milho.
1 – Ly – NY palatizam-se respectivamente a lh e nh. filiu > filyo > filho,
palea > palya > palha, consiliu > consilyo > conselho, ciconia > ciconya >
cegonha, verecundia > verecundya > vergonha, teneo > tenyo > tenho, linea
>linya > linha, seniore > senyor > senhor, aranea > aranya > aranha
2 – Cy – Ty assibilam-se ora para c ora para z. facio > facyo > faço. lancea
> lancia > lancya > lança, iudiciu > judicyo > juízo, jaceo > jacyo > jazo,
pretiu > pretyo > preço, gratia > gratya > graça, palatio > palatyo > paaço

22Geralmente, o grupo –rb– se transforma em –rv-: arbore > árvore, arboretu > arvoredo, sorbere > sor-
ver, carbone > carvão, turbidu > turvo, sorba > sorva, turba > turva, arbutu > ervodo.

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
> paço, capitia > cabitya > cabeça, bellitia > bellitya > beleza, sperantia >
sperantya > esperança
3 – Dy assibila-se para c ou palatiza-se para j: audio > audyo > ouço, ardeo
> ardio > ardyo > arço (arc.), verecundia > verecundya > vergonça (arc.),
insidio > ensedyo > enseio, hodie > hodye > hoje, invidia > invidya > inveja
4– Gy palatizou-se a j: fugio > fugyo > fujo, angelu > angeo > angyo > an-
jo, spongia > spongya > esponja
NOTA: – Em certas palavras correntes em classe social de melhor
nível de cultura, as consoantes D e G, dos grupos DY e GY, foram tratadas
como intervocálicas, sofrendo, portanto, síncope. A justificativa é que a vo-
gal I não passou para IODE, isto é, não se consonantizou. Ex.: radiu > radio
> raio, badiu > badio > baio, navigiu > navigio > navio, exagiu > exagio >
ensaio
5 – Sy – ssy passam respectivamente para ij e ix: baseu > basiu > basyi >
baijo > beijo, caseu > casiu > casyo > caijo > queijo, ecclesia > igreija >
(arc.) > igreja, russeu > russio > russyo > roixo > roxo, passione > passyone
> paixão

5.3. CONSOANTES FINAIS


As palavras do latim vulgar apresentavam na terminação apenas as
consoantes r, s ou t. Os demais fonemas consonânticos que podiam ser fi-
nais no latim clássico, inclusive o m do acusativo, foram eliminados, com o
predomínio da fase popular da língua.
Em português, as únicas consoantes que podem ser finais são o l, o r
e o s, pelo que se torna claro que a antiga terminação latina em t não se
manteve no idioma que hoje falamos, ao mesmo tempo em que se ganhou
como final uma consoante que não era comum no latim vulgar – o l, resul-
tado sempre da queda de uma vogal final, como no caso de male > mal.
O destino de consoantes finais latinas, na passagem para o português,
pode então ser assim resumido:
a) para indicar o plural: arbŏres > árvores casas > casas aves > aves
b) como final de nomes próprios: Deus > Deus, Marcus > Marcos
c) nas terminações de verbos e de advérbios: amas > amas, debemus > de-
vemos, magis > mais, minus > menos
As demais consoantes finais portuguesas têm a seguinte origem:
l – resulta do desaparecimento de uma vogal: legāle > legal, fidēle > fie,
aprīle > abril, curūle > curul, male > mal, regale >real

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José Pereira da Silva
r – resulta do desaparecimento de uma vogal final: muliere > mulher, de-
bēre > dever, audīre > ouvir, seductōre > sedutor, mare > mar, amare >
amar
z – resulta da evolução de um grupo final de ce: dece > dez , judice > juíz,
luce > luz, voce > voze > voz

O m e o n que aparecem no final de palavras portuguesas não são fo-


nemas, porém simples sinais indicadores da nasalização: com, em, quem,
jardim, gérmen, regímen.

5.4. CONSOANTES DOBRADAS


As consoantes dobradas (também chamadas geminadas) – Existiam
em latim e eram pronunciadas de maneira distinta – stup-pa – como aconte-
ce ainda hoje no italiano, mas não existem no português e foram todas redu-
zidas a consoantes simples:
bb = b sabbatu > sábado; abbate > abade
cc = c bucca > boca
dd = d additione > adição
ff = f effectu > efeito
gg = g aggravare > agravar
ll = l illa > ela; collu > colo capillu > cabelo
mm = m flamma > chama
nn = n pannu > pano; annu > ano, pannu > pano
pp = p stuppa > estopa
tt = t gutta > gota
Em português, não existem consoantes geminadas. Os sinais rr e ss,
existentes em português, denominados dígrafos, ou seja, grupos de duas le-
tras que representam um só fonema, não são consoantes dobradas e grafia
especial para indicar som especial do r e do s intervocálicos, pois não é o
mesmo dizer-se caro ou carro e casa ou cassa.

5.5. CONSOANTES AGRUPADAS


As consoantes agrupadas têm, dentro da atual Nomenclatura Grama-
tical Brasileira, a designação geral de encontros consonantais.

90
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
O seu tratamento, na passagem do latim para o português variou con-
forme fossem:
a) iniciais b) internas
Alguns provêm do latim, outros se formaram na fase românica.
Estudá-los-emos segundo o quadro abaixo:
1) consoante + r: pratu > prado, bruttu > bruto, gradu > grau etc.
I– 2) consoante + l: clamare > chamar, clavu > cravo, flacco > fraco etc.
iniciais 3) s + consoante: stare > ĭstare > estar,
sponsa > ĭsponsa > esposa etc.
1) consoante + r: macru > magro, aprile > abril, pu-
tre > podre
a) intervocálicos
2) consoante + l: macula > macla > malha,
II – duplo > dobro, tribulo > trilho
Mediais 1) consoante + r: exfricare > esfregar,
membru > membro, monstrare > mostrar
b) protegidos
2) consoante + l: masculu > masclo > macho,
inflare > inchar

5.5.1. Outros encontros de consoantes


Muitas vezes, encontram-se duas consoantes que não estão na mes-
ma sílaba. São os encontros disjuntos.
De tais encontros resultam fenômenos fonéticos regulares, que oca-
sionam evoluções típicas. Por esse motivo, é aqui que cabe estudá-los.
Eis os mais importantes encontros de consoantes, grupados de acor-
do com o respectivo destino:
1) rs, ps, mn: persona > pessoa, ipse > esse, somno > sono
2) ct, pt: lacte > leite, conceptu > conceito
3) ns: mensa > mesa
4) gn: signa > senha
5) x (= cs): saxo > saixo > seixo
6) dg, dz e zd: triticu > tridgo > trigo, undece > ondze > onze, recitare > rezdare > rezar

Cada um desses grupos tem tratamento diferente e devemos estudá-


los em separado.

5.5.2. Grupos iniciais


5.5.2.1. Consoante seguida de r,
Quando formados por consoante seguida de r, não se alteram na pas-
sagem para o português:

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José Pereira da Silva
pr > pr – pratu >prado; praeda > prea; probare > provar; profectu > pro-
veito
br > br – breve > breve brachiu > braço bruttu > bruto
tr > tr – trabe > trave; tres > três; truncu > tronco; trans > trás; tristitia >
tristeza
dr > dr – dracone > dragão; drama > drama
cr > cr – credere > crer cruce > cruz crudele > cruel
Apontam-se casos, excepecionais, em que esse grupo evolui para gr:
crate > grade, crypta > gruta
gr > gr – granu > grão; gradu > grau; gracŭlu > gralho; granatu > grado
fr > fr – fraxino > freixo; fronte > fronte; fructu > fruto; frenu > freio

5.5.2.2. Consoante seguida de l


Quando formados de consoante seguida de l – pl, bl, cl, gl, fl – os
grupos iniciais apresentam duplo destino: os que têm a primeira consoante
surda, ou seja, pl, cl, fl, evoluem, em uma primeira fase, para ch; em outra
fase êsses e os demais, trocam o l por r. Segundo o Dr. Joaquim Nunes, “a
transformação dos grupos pl, cl, fl em ch é a mais antiga e portanto a genui-
namente popular”. (NUNES, J. J., 1930)
Para essa divergência de tratamento devem ter concorrido outras
causas, além da simples questão de remotidade. Entre elas, podem apontar-
se fatores de ordem regional e de ordem cultural.
Observa-se, por exemplo, que, nas regiões do Norte, de população
mais inculta, a transformação em ch era sistemática. Por outro lado, as pala-
vras referentes ao Cristianismo (e aí está um fator cultural de alta importân-
cia) apresentam a lateral trocada pela vibrante (cl, fl, pl > cr, fr, pr).
Quaisquer que tenham sido as causas, o certo é que temos o seguinte:
pl > ch – plenu > cheio; planu > chão; pluvia >chuva
pr – placēre > prazer; placĭtu > prazo
fl > ch – flamma > chama; flagrare > cheirar
fr – floccu > froco: flaccu > fraco
cl > ch – clamare > chamar; clave > chave
cr – clavĭcula > cravelha; clavu > cravo
Os grupos Bl e Gl transformaram-se em br, gr, ou então reduziram-
se a L.

92
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
bl > br – blandu > brando; blancu >branco
gl > gr – glute > grude
gl > l – glattire > latir

5.5.2.3. Grupos iniciais com s impuro


Os grupos iniciais com s impuro, isto é, grupos em que aparece s se-
guido de consoante, receberam primeiro, em latim, um i de apoio, o qual
evolui depois para e: scalata > iscalata > escada; sponsa > isponsa > es-
posa; stare > istare > estar; ĭscutu > escudo; spatiu > espatiu > espaço;
Stēphanu > Estephanu > Estêvão; splendidu > ĭsplendidu > esplêndio
Sendo no grupo sc seguido de vogal i-e, o s sofre aférese. Ex: scena
> cena; scientia > ciência.

5.5.3. Grupos internos


5.5.3.1. Intervocálicos
Se o grupo apresentar consoante surda seguida de r, ocorre a sonori-
zação da primeira:
cr > gr – macru > magro; secretu > segredo; lacrima >lágrima
pr > br – aprīle > abril capra > cabra
tr > dr – pŭtre > pobre latrone > ladrão
fr > vr: afrĭcu > ávrego (nome de um vento).
Outros grupos intervocálicos
br > vr – libru > livro
gr > gr > nīgro > negro
dr > ir: cat(h)edra > cadeira.23
Às vezes ocorre a vocalização do g: intêgru > inteiro
cl > lh – specŭlu > ispec’lu > espelho, macŭla > mac’la > malha
lh – scopŭlu > escop’lu > escolho
pl > br – duplo > dobro
lh – tribŭlu – trib’lu > trilho
bl > br – nobĭle > nob’le > nobre > nobre

23 Sobre “cadeira < catedra” e “inteiro < integru”, vide o tópico que trata do deslocamento do acento.

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José Pereira da Silva
gl > lh – tegŭla > teg’la > telha
gr – regŭla > reg’la > regra
Em certos casos, o R da sílaba átona desapareceu por dissimilação
total. Ex.: aratru > arado, rostru > rosto, cribru > crivo, fratre > frade,
matrasta > madrasta
No caso das palavras Patre e Madre dando pai e mãe, há duas hipóteses.
Conforme a primeira teoria as palavras Padre e Madre deram pai e
mãe através das formas pade e made de caráter afetivo. A segunda teoria é
de Lima Coutinho, segundo o qual já existiam no latim vulgar pate e mate
análogas de frate, em que o r caiu por dissimilação total.

5.5.3.2. Não intervocálicos


Esses grupos são também chamados de grupos protegidos. Não se al-
teram, geralmente, quando são formados de consoante seguida de r:
fr > fr – exfricare > esfregar
br > br – membru > membro
tr > tr – mostrare > mostrar
A Alteração é constante se no grupo aparece consoante seguida de l,
palatarizaram-se em ch quando precedidos de consoantes e em lh quando
precedidos de vogal:
cl > ch mascŭlu > masc’lu > macho; oculu > oclu > olho; auricula
> ouricla > orelha; apicula > apicla > abelha; macula > macla > malha
fl > ch inflare > inchar, flama > chama, aflare > achar
pl > ch aplicare > achegar; scopolu > iscoplu > escolho; plicare >
chegar

5.6. OUTROS ENCONTROS


ps > ss – Assimila-se: ipse > esse; ipsu > isso; gypsu > gesso
rs > ss – persona > pessoa
ns > s – Sofre síncope do n: mensa > mesa
mn > nn > n – somnu > sonnu > sono, domĭna > domna > donna > dona
ct > it – Vocaliza-se: nocte > noite;respectu > respeito; octo > oito;
pt > tt > t –sept > sette > sete; captare > cattar > catar.
gn > nh – signa > senha; lignu > lenho; pugnu > punho; agnu > anho;

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
pt > it: conceptu > conceito, praeceptu > preceito;
gn > in – regnu > reino

A consoante x, pronunciada em latim cs, teve, às vezes evolução de


encontro consonantal: dixi > disse sexoginta > sessaenta > sessenta, saxu >
seixo mataxa > madaixa > madeixa, laxare > leixar (arcaico);
Nos grupos resultantes dos prefixos ad, sub, ab, dá-se a assimilação (ra-
ramente a vocalização): absentia > ausência; substare > sustar; subjectu >
sujeito; suterrare > soterrar; subjulgare > sojugar (arcaico); advocatu > avo-
gado (arc.); adversu > avesso.
Nos grupos de constritivas mais outras consoantes verificam-se:
rs – mn – assimilam-se: persicu > pêssego; persona > pessoa; somnu > so-
no; autumnu > outono;
rb – ib – b – sonoriza-se em v: arbore > árvore; turbare > torvar; carbone >
carvão; albu > alvo; silbar > (por sibilare) > silvar
sc – seguido de e ou i, assimila-se, ou passa a ix: patescere > padecer; me-
rescere > merecer; congnoscere > conecer > conhecer; pisce > peixe.
It, Ic, Ip – houve vocalização do l: alteru > altru > outro; multu > muito;
falce > foice; palpare > paupare > poupar.
Os grupos ml e mr resultantes da síncope de uma vogal desenvolvem
uma consoante de transição b: simulante > sim’lante > semblante; umeru >
um’ru > ombro.

5.6.1. Encontros românicos


dg, dz, zd:
dg > g: trītĭcu > *trid(e)go > *tridgo > trigo;
dz > z: ǔndece > *ond(e)ze > *ondze > onze;
zd > z: recĭtare > *rez(e)dar > *rezdar > rezar.

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José Pereira da Silva
QUESTIONÁRIO
1 – Que é consonantismo?
2 – Qual o tratamento das consoantes surdas em posição intervocálica?
3 – Quais as consoantes finais latinas que se conservam em português?
4 – Qual o tratamento dos grupos consonantais homogêneos, ou consoantes
geminadas? Exemplos.
5 – O português possui consoantes geminadas? Não? Então como se expli-
ca a grafia de carro e cassa?
6 – Dê exemplos de palatizações ocorridas com os grupos Cl-, Fl-, Pl– ini-
ciais.
7 – Dê exemplos de palatizações ocorridas com os grupos –bl-, –cl-, –fl-, –
gn-, –pl-, –tl em posição medial.
8 – Aplicando os conhecimentos de metaplasmos, vocalismos e consonan-
tismo, explicar a evolução dos seguintes vocábulos: aurícula – veritate –
invidia – inflare – ansa – persicu – cathedra – granu – acetu – sponsa –
clamat – afflare – episcopu – flamma – tenere – colore – aurifice.
9 – Dê o étimo e a evolução das seguintes formas portuguesas: esse – eu –
lua – lembrar – Lisboa – pôr – ombro – pessoa – creio – céu – olho – sadio
– mão – pé.
10 – Explique a presença dos dígrafos lh e nh nas palavras abaixo: filiu >
filho; palea > palha; aranea > aranha; seniore > senhor.

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa

6. A ORTOGRAFIA E A FONÉTICA HISTÓRICA

A ortografia portuguesa apresenta, mormente para o principiante, di-


ficuldades que só podem ser resolvidas à luz dos conhecimentos da fonética,
e que aumentam quando se trata de sons semelhantes com representação
gráfica diferente, como é o caso, por exemplo, do fonema xê, grafado às ve-
zes como ch e outras vezes como x: mecha e mexa; feche e feixe: bucho e
buxo; tocha e trouxa etc.
As vacilações justificam-se, de certa maneira, porque ainda circulam
entre nós livros antigos (em sebos ou nas bibliotecas) em que se leem pala-
vras com Athenas, Egypto, offerta, physica, e tantas outras, lembranças de
épocas em que a vacilação no tocante à ortografia era desnorteante. Mesmo
depois dessa fase, ainda tivemos o acento diferencial de timbre (Ex.: êle/ele,
dêsse/desse, govêrno/governo), o acento secundário em palavras derivadas
(Ex.: Zèzinho, cafèzinho, sòmente, cômodamente, vovôzinho).
Agora, com o novo acordo ortográfico que está sendo implementado,
algumas simplificações foram importantes, como a eliminação do trema, do
acento nos hiatos finais oo(s), eem e alguns outros que não se justificavam,
além da eliminação do trema.
Os próprios eruditos, através dos séculos, andaram em divergência,
razão pela qual se conhecem na história da ortografia portuguesa, três perí-
odos distintos (Sobre a história da ortografia no Brasil, cf. Garcia, 1996):

6.1. PERÍODO FONÉTICO


Começa com os primeiros documentos redigidos em português e
termina no século XVI. Neste período as palavras eram escritas tal qual
eram pronunciadas: honrra (honra), ezame (exame). A falta de uniformidade
era absoluta e a maneira de escrever variava de autor para autor, de um co-
pista para outro: bem, ben e bẽ; homem, omen, e ome; hũu, hũ e ũ. Na fábu-
la 36 do Livro de Esopo, manuscrito do século XV, lê-se, por exemplo,
emssynava, contrayro, paao e ffilho.
O h, por exemplo, podia indicar ora a tonicidade da vogal (he = é),
ora a existência de um hiato (trahedor = traidor), ora o som i (sabha = sa-

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José Pereira da Silva
bia), e, inda, instalar-se arbitrariamente, sem função definida (hűa = űa hi-
dade = idade).
Não obstante às vacilações existentes, o que caracterizava a grafia do
português arcaico era a simplicidade e, principalmente, o sentimento fonético.

6.2. PERÍODO PSEUDOETIMOLÓGICO


A partir do século XVI e principalmente nos séculos XVII e XVIII,
com o florescimento dos estudos clássicos, os autores começam a ter a pre-
ocupação do eruditismo e surgem as etimologias verdadeiras e falsas, com a
preocupação de manter, em português, grafias latinas e gregas: technico,
typho, bocca, secco etc. Chegou-se a escrever asthma e phtysica! Inicia-se
no século XVI e vai até o ano de 1904, quando aparece a Ortografia Nacio-
nal, de Gonçalves Viana. Dentro desse período as palavras eram escritas de
acordo com a grafia de origem, reproduzindo todas as letras do étimo, em-
bora não fossem pronunciadas. E a duplicação de consoantes intervocálicas
existentes em palavras latinas? Tendo diante de si o latim dos livros, grafa-
vam approximar, abbade, bocca, secco etc., por ignorarem que, na evolução
para a nossa língua, essas consoantes se simplificaram.
Com a pretensão de ser etimológica, tal ortografia estava inçada de
erros, de formas absurdas, totalmente contrárias à etimologia.

6.3. PERÍODO HISTÓRICO-CIENTÍFICO


Principia com a publicação da Ortografia Nacional e chega até nos-
sos dias. Só a partir de 1868, graças aos estudos e trabalhos de Adolfo Coe-
lho, Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, José Joaquim Nunes e outros,
a filologia toma vulto em Portugal e a simplificação ortográfica começa a
ser feita em bases sólidas24, culminando com o Acordo de 1931, entre a
Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de Lisboa, de que
resultou o sistema ortográfico vigente, consolidado no Pequeno Vocabulá-
rio Ortográfico da Língua Portuguêsa, organizado pela Academia Brasilei-
ra de Letras.25
Para essa unificação concorreu grandemente, além da ação diplomá-
tica dos dois países, o entusiasmo com que acolheram e prepararam a re-

24 Em 1911, o governo português tornou obrigatória a reforma ortográfica.


25Na verdade, o Acordo assinado em 1943 é o que se mantém no Brasil. Em 1945 foi assinado um novo
Acordo, mas o Brasil continuou com o de 1943 e Portugal com o de 1945, pois o congresso nacional
brasileiro não se manifestou favoravelmente.

98
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
forma ortográfica, pela imprensa e pela cátedra, muitos ilustres filólogos
brasileiros, entre os quais Silva Ramos, Mário Barreto, Sousa da Silveira,
Antenor Nascentes e Jaques Raimundo.
A reforma de Gonçalves Viana foi baseada na fonética histórica, daí
o sistema simplificado ser o verdadeiramente etimológico. A reforma orto-
gráfica já prescrevia:
a) Proscrição absoluta e incondicional de todos os símbolos da etimologia gre-
ga: th, ph, ch (k), rh e y;
b) Redução das consoantes dobradas a singelas, com exceção de rr e ss, mediais,
que têm valores peculiares;
c) Eliminação das consoantes nulas, quando não influem na pronúncia da vogal
que as precede;
d) Regularização da acentuação gráfica.
Condições políticas especiais não permitiram, porém, que durasse o
Acordo. A Constituição Brasileira de 1934 determinou a volta ao sistema
anterior. Fez-se necessário, então, novo entendimento entre os dois países,
entendimento de que resultou a Convenção Luso-Brasileira de 1943, que
revigorou o Acordo de 1931.
Posteriormente, a fim de aplainar pequenas divergências que surgi-
ram na interpretação de algumas regras, reunira-se em Lisboa, de julho a
outubro de 1945, delegados das duas academias, daí surgindo as “Conclu-
sões Complementares do Acordo de 1931”. As modificações então introdu-
zidas foram, porém, tais e tantas, que quase equivaliam a nova reforma,
contra a qual protestaram prestigiosos professores brasileiros, especialmente
Júlio Nogueira e Clóvis Monteiro.
Posta em vigor em Portugal a partir de 1° de janeiro de 1946, a “or-
tografia de 1945” nunca vigorou no Brasil.
Entrementes, continua de pé, entre nós, a “ortografia de 1943”, con-
substanciada no Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa
(Imprensa Nacional, 1943), elaborada pela Academia Brasileira de Letras,
cuja ortografia foi exigida oficialmente até 2008, começando, no Brasil,a
partir de primeiro de janeiro de 2009, a implementação do Acordo Ortográ-
fico da Língua Portuguesa de 1990, e, em Portugal, a partir de primeiro de
janeiro de 2010.
A 18 de dezembro de 1971, o governo brasileiro publica a Lei 5765,
que “aprova alterações na ortografia da língua portuguesa”, resultantes do
parecer conjunto da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ci-
ências de Lisboa, que unificou a ortografia do português em pequenos deta-
lhes, especificamente sobre acentuação gráfica, determinando que

99
José Pereira da Silva
...fica abolido o trema nos hiatos átonos26; o acento circunflexo diferencial na le-
tra e e na letra o da sílaba tônica das palavras homógrafas de outras em que são
abertas a letra e e a letra o27, exceção feita da forma pôde, que se acentuará por
oposição a pode; o acento circunflexo e o grave com que se assinala a sílaba sub-
tônica dos vocábulos derivados em que figura o sufixo –mente ou sufixos inicia-
dos por z. (Cf. FERREIRA, p. XIII)

6.4. AS NORMAS ORTOGRÁFICAS


As normas atualmente aceitas inspiram-se na história da língua, e
têm base científica porque se fundam apenas no conhecimento da origem
das palavras e das transformações por elas sofridas.
Dentro do que sabemos hoje, à luz da fonética histórica, e olhando
tão-somente os vocábulos de origem latina, certas dificuldades ortográficas
podem ser assim explicadas:

6.4.1. Emprego do h
Esta letra não tem valor [não representa fonema] em português, co-
mo já não tinha em latim, e foi conservada apenas como inicial, em respeito
à etimologia: haver, hélice, hidrogênio, hóstia, hem?.
No interior do vocábulo só se emprega em dois casos: quando inte-
grante de um dígrafo – ch, lh, nh – e nos compostos em que o segundo ele-
mento, com h inicial, se une ao primeiro por meio de hífen: macho, malho,
manha, anti-higiênico, pré-história, super-homem.

6.4.2. Emprego do ch
O ch português – sempre com o som xê – resulta:

26No Vocabulário de 1943 o trema era não obrigatório, mas facultativo, nesse tipo de hiatos; teria sido
conveniente mantê-lo quando, em poesia metrificada, se deseja contar como hiato um encontro vocálico
mais comumente lido como ditongo. É o caso, por exemplo, de saudade e saudoso, que, sendo, de ordi-
nário, contados como trissílabos, ainda hoje aparecem também como tetrassílabos.
27Fala-se de oposição entre e e o fechados (vistos que trazem sobrepostos o acento circunflexo) e as
mesmas vogais abertas. Duas observações: A primeira: se a oposição é entre vogal fechada e reduzida,
o acento da primeira se mantém: pôr (verbo) e por (preposição). A segunda: se há um grupo de três ho-
mônicos, o primeiro com vogal tônica fechada, o segundo com vogal tônica aberta, e o terceiro com vo-
gal reduzida (e, portanto, dissílabo átono), então haverá, respectivamente, o acento circunflexo, acento
agudo, e ausência de acento: pêlo (s.m.), pélo (do verbo pelar) e pelo (contração); pêra (s.f.), péra (s.f.)
e pera (preposição antiga), dissílabo átono; pôlo (s.m. e adj.), pólo (s.m.) e polo (contração antiga).

100
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
a) da transformação dos grupos latinos pl, cl, fl, iniciais ou mediais: afflare
> achar; amplu > ancho; mascŭlo > masclu > macho; capŭlu > caplu >
cacho; planu > chão; implere > encher.
b) da evolução do grupo latino sti+vogal: bestia > bicha; mustione > mu-
chão; ustiolu > ichó (armadilha para apanhar pequenos animais)
Note-se que é frequente a presença do dígrafo ch por influência do
francês e do espanhol: bachelier > bacharel; cachalot > cachalote; broche >
broche (franceses); charco > charco; charneca > charneca; rancho > ran-
cho.

6.4.3. Emprego do x
O x português resulta, geralmente:
Da palatalização do s latino, isolado ou em grupos como ss, sç ou ps,
às vezes ligado a um iode: vascella > *vaiscella > baixela; capsa > caixa;
Carthusiu > Cartuxo; asciata > enxada; insertare > enxertar; passione >
paixão; fasce > feixe; miscere > mexer; ressue > roxo.
Do x latino: buxu > buxo; coaxare > coaxar; coxa > coxa; coxu >
coxo; laxare > deixar; exaguare > enxaguar; examen > exame; fluxu >
frouxo; luxu > luxu; mataxa > madeixa; relaxare > relaxar; rixa > rixa.
Da palatalização do s em contato com c fricativo: pisce > peixe; mis-
cere > mexer.

6.4.4. Emprego do c sibilante (som ç)


É sabido hoje que os sons ç e ss eram seguramente diferençados na
língua antiga, a tal ponto que não se encontra exemplo em nenhum bom au-
tor quinhentista de rima do som ç com o som ss. Que se veja o cuidado de
Camões nestes dois exemplos:
Eis depois vem Dinis, que bem parece
Do bravo Afonso estirpe nobre e dina;
Com quem a fama grande se escurece
Da liberalidade alexandrina.
Co este o reino próspero florece
(Alcança já a paz áurea, divina)
Em constituições, leis e costumes,
Na terra já tranquila claros lumes.
(Os Lusíadas, III: 96)

101
José Pereira da Silva
O batel de Coelho foi depressa
Po’lo tomar; mas antes que chegasse,
Um etíope ousado se arremessa
A ele, porque não se lhe escapasse;
Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa
Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse;
Acudo eu logo, e enquanto o remo aperto,
Se mostra um bando negro descoberto.
(Os Lusíadas,V: 32)

Mais tarde os dois sons tornaram-se idênticos, na maior parte do do-


mínio da lusofonia, do que resultou que a representação gráfica de ambos
viesse também a baralhar-se na escrita dos que não possuem sólidos conhe-
cimentos da língua. Deve-se, porém notar que o c, consoante fricativa al-
veolar surda – som sibilante – seja ele inicial ou medial, bem como o s sur-
do, medial ou não, são, na quase totalidade das vezes, etimológicos, pelo
que para o seu correto emprego só há uma regra: obedecer à etimologia.
Não é demais também pedir que os estudantes revejam o quadro do
tópico 3.2 e se lembrem de que é preciso evitar confusão entre letra, que é
a representação escrita de um som, e fonema, que é o próprio som. Ao falar
em consoante fricativa alveolar surda, referimo-nos a um fonema que, re-
presentando sempre o mesmo som, pode ser escrito de várias formas dife-
rentes:
c – céu, cinza ç – caça, caçula sc – consciência, nascer
s – seu, sopa ss —cassa, passou x – externo, expedir
O c sibilante inicial português geralmente provém:
a) do c sibilante do latim vulgar: coenare > cear; caepulla > cebola; cedere
> ceder; ciconia > cegonha; celebre > célebre; celsu > celso; censu > censo
b) do grupo sc inicial latino: sceleratu > celerado; *scinticula > centelha;
sciatica > ciática; scindere > cindir.
O c fricativo medial – som sibilante ç – geralmente provém da evo-
lução de ce, ci, te, ti, latinos seguidos de vogal: acutiare> aguçar; minacia
> ameaça; pretiu > preço; attitiare > atiçar; gratia > graça; cupiditia >
cubiça; lancea > lança; buceu > buço; facticiu > feitiço; matea > maça;
acceptare > aceitar; alucinare > alucinar; exacerbare > exacerbar; lace-
rare > lacerar.

6.4.5. Emprego do s surdo inicial


Quando inicial o s tem, antes de e e de i, o mesmo som de c e repre-
senta sempre a letra inicial da palavra latina de origem: se > se; si> se; sepe

102
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
> sebe; siccu > seco; secretu > segredo; site > sede; sinu > seio; silva >
selva; sigillu > selo; sedere > ser; serenu > sereno; sermone > sermão.

6.4.6. Emprego do s surdo medial = ss


Quando medial, o s surdo português – grafado sempre ss – geralmen-
te provém:
a) do ss latino ou grego: assare > assar; ossu > osso; grossu > grosso;
grassari > grassar; assestare > assestar.
b) do s latino, intervocálico ou precedido de consoante: ressonare > resso-
ar; *obsidiare > assediar; reversare > revessar; ad sibilare > assobiar;
persona > pessoa.
c) do x (=cs) intervocálico: dixi > disse; sexaginta > sessenta; texere > tesser.

6.4.7. Emprego do j e do g
No emprego de j e do g respeita-se a etimologia, a não ser quando
razões fonéticas obrigam a troca de uma letra pela outra, justamente para
que se respeite o som, como veremos abaixo.
O g português representa também o g do latim vulgar: gelu > gelo;
gemere > gemer; elogiu > elogio; generale > geral; gigante.
Note-se: O latim viaticu sofreu abrandamento do c intervocálico: via-
ticu > viagem.
O j português representa:
a) a consonantização do i semiconsoante latino: iactu > jeito; iam > já; Ie-
sus > Jesus; maiestate > majestade.
b) o resultado da evolução de um iode (Cf. o tópico 3.6.4.9) antecedido de
consoante: hodie > hoje; radiare > rajar; basiu > beijo; caseu > queijo.
São muitos os casos em que se escreve j em substituição ao g, apenas
por uma razão de pronúncia, isto é, para que o g, antes de a, de o, ou de u
não tome outro som: angeo > anjo, mas escrevem-se com g angélico, ange-
litude, Angelina. Viaticu > viagem, mas escrevem-se viajem, viajar.
O mesmo pode-se observar em: fugir, a par de fujo, rugir, a par de
rujo, dirigir, a par de dirijo, eleger, a par de elejamos.

103
José Pereira da Silva
6.4.8. Emprego do s sonoro
O s sonoro português, sempre medial (intervocálico) tem o som de z
e origina-se:
a) da sonorização do s intervocálico latino, sempre surdo naquela língua e,
por isso, sempre com o som ss: casa (pronunciado cassa) > casa; rosa >
rosa; risu > riso; usu > uso.
b) da redução do encontro ns: mensa > mesa; sponsa > esposa; defensa >
defesa; pensu > peso; prehensa > presa; retensu > reteso.

6.4.9. Emprego do z medial


O z medial português origina-se:
a) do c fricativo latino entre vogais: facere > fazer> fazer; medicina > me-
zinha; amicitate > amizade; decimare > dizimar; ducentus > duzentos.
b) da evolução do c ou t seguido de iode: iudiciu > juízo; pretiare > prezar;
satione > sazão; vitiu > vezo.
c) o sufixo izar de origem grega: organizar; civilizar e seus derivados: orga-
nização, civilização.

6.4.10. Emprego do z final


Escrevem-se com z final, em português, vocábulos que no latim vul-
gar terminavam em ace: audace > audaz; efficace > eficaz; fugace > fugaz;
pugnace > pugnaz; vorace > voraz; vivace > vivaz.

6.4.11. Acentuação gráfica


Aspecto importante da reforma ortográfica foi a sistematização do
emprego dos acentos gráficos. Importante, porque concorre para a disciplina
da pronúncia.
No sistema ortográfico ora vigente, a poucas regras se reduz a acen-
tuação gráfica. Na verdade, as palavras da língua portuguesa levam acento
gráfico quando fogem a seus padrões fonéticos normais28 ou quando ele in-
dica um fato morfossintático.

28 As palavras do português são acentuadas naturalmente na penúltima vogal quando terminarem em


“a”, “as”, “e”, “es”, “o”, “os”, “em”, “ens” ou “am” e na última vogal quando terminarem de outra forma. O
acento gráfico indica a sílaba mais forte que está fora desse ponto natural (não justificado pela pronún-
cia) ou é marca da morfossintaxe.

104
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
6.5. O PLURAL DAS PALAVRAS TERMINADAS EM ÃO
Cabe aqui, sem a menor dúvida, uma palavra sobre o problema da
formação do plural dos vocábulos terminados em ão, bastante difícil de
apreender quando o estudante ainda não tem ideia da formação do vocabu-
lário português.
Essas palavras fazem o plural de várias maneiras:
ãos – mão, mãos; cidadão, cidadãos; cristão, cristãos
ães – pão, pães; cão, cães; alemão, alemães
ões – multidão, multidões; coração, corações
De que depende a variação, se todas terminam de maneira igual, no
singular? Será possível formular uma regra para a formação plural, regra
que poupe o esforço de estar decorando plurais, como a acontece até agora?
De início, é preciso lembrar que o final ão português tem várias ori-
gens:
anu > ão – manu > mão
ane > ão – pane > * pãe > pã > pão
one > ão – ratione > * razõe > razom > razão
udine > ão – multitudine > multidõe > multidõ > multidão
A evolução dessas terminações foi lógica; o n intervocálico cai nasa-
lando a vogal anterior (Cf. tópico 3.6.4.6). Depois, a partir de uma época
que o Dr. Leite de Vasconcelos estima, em suas Lições de Filologia Portu-
guesa, pela altura do século XIV, as formas ã (de ane), õm (de one) e õe
(de udine), por dissimilações ou por analogia com a terminação ão, mais
comum e talvez mais sonora, evoluíram também para ão.
É preciso, porém, considerar que o plural dessas palavras não se
forma em português – o que seria feito apenas com o acréscimo do s, mas
veio formado já do latim, evoluindo da mesma forma como evoluiu o singu-
lar, com a queda do n intervocálico. Convém saber, a propósito, que o acu-
sativo latino de onde se origina o vocabulário português (ver tópico 8.6)
terminava no plural em s. Assim temos:
sing. manu > mão pl. manus > mãos
sing. pane > *pãe > pã > pão pl. panes > pães
sing. ratione> razõe > razom > razão pl. rationes > razões
sing. multitudine > multidõe > multidõ > multidão, pl. multitudines > mul-
tidões

105
José Pereira da Silva
QUESTIONÁRIO
1- Na história da ortografia portuguesa, o que sabe a respeito dos períodos
Fonético, Etimológico (ou Pseudoetimológico) e Simplificado?
2- Qual desses sistemas ortográficos é o vigente no Brasil?
3- Por que escrevemos jeito com j?
4- Justifique a grafia de: azedo – coração – tristeza – lança.
5- Explique o ch em:
a. afflare > achar; implere > encher
b. capulu > cacho; masculu > macho
6- Justifique o x em:
a. passione > paixão; russeu > roxo
b. miscere > mexer; pisce > peixe
7- Explique o dígrafo ss em:
a. dixi > disse; ipsu > isso
b. sexaginta > sessenta; persona > pessoa
8- Por que escrevemos hoje com h? Dê 5 formas portuguesas em que haja
o h inicial e justifique seu emprego.
9- Explique o emprego do z final em: audaz – veloz – rapaz – fugaz.
10- Qual a origem do ch português?

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa

7. FORMAS DIVERGENTES E SUAS CAUSAS

Repare-se o que aconteceu, por exemplo, com a palavra plaga, agora


que são conhecidos os fenômenos fonéticos e muitos dos fatos que incluí-
ram na formação da língua.
1º – O encontro consonantal inicial pl evolui de duas maneiras dife-
rentes:
pl > ch – plaga > chaga, plantare > chantar, planctu > chanto
pl > pr – plaga > praga, planctu > chanto > pranto
2º – O g intervocálico muitas vezes cai: plaga > praa > praia
3º – Não obstante ter-se transformado assim, tantas vezes, ainda é
corrente em português, como forma erudita, o vocábulo plaga.
A consequência disso é que a mesma palavra latina apresenta, em
português, várias resultantes: plaga > chaga, praga, praia, plaga
A isso é que se dá o nome de formas divergentes que são os vários
vocábulos atuais provenientes de uma só palavra latina.
O fato é frequente na língua e acontece muitas outras vezes, como
aconteceu com plaga.
Esmiucemos as séries divergentes das palavras planu e macǔla.
plano (forma erudita)
chão (forma popular mais antiga)
prão (forma popular mais recente, dentro do português arcaico)
porão (proveniente do português arcaico prão com suarabácti)
Planu lhano (forma importada do espanhol)
piano (forma importada do italiano, significando trecho musical
executado com pouca sonoridade, ou piano, através do francês,
equivalente a redução do italiano pianoforte, que é o instrumento
musical).

Embora a palavra prão se tivesse formado em época mais moderna


do que chão, não existe hoje na língua comum; dela saiu, porém, a palavra
porão, que se poderia acrescentar à série.

107
José Pereira da Silva
mácula (forma erudita)
mágoa (forma semierudita)
Macǔla malha (forma popular mais antiga)
mancha (forma popular também antiga)
mangra (forma popular mais recente)

Na evolução de macǔla > mágoa não se deu a síncope da vogal pos-


tônica, demonstrando que mágoa não é uma forma popular; com efeito, pa-
rece certo que ela se prende à linguagem eclesiástica.
Malha deriva normalmente de mac(ǔ)la: macǔla > macla > malha.
Com macla deve ter coexistido a forma *mangla, donde mancha.
Mangra29 tem a seguinte história: macǔla > macla > *magla >
*magra > mangra. O a de *magra ter-se-ia nasalado por influência do m
inicial, donde mangra.
Outros exemplos:
Alienare > alienar, alhear Litteram > literato, letrado
Amplus > amplo, ancho Magis > mais, mas
Amygdalam > amigdala, amêndoa Maculam > mácula, mágoa, mancha, malha,
Area > area, eira mancla
Articulum > artículo, artelho, artigo Masticare > mascar, mastigar
Assignare > assinar, acenar Memorare > memorar, lembrar
Calvariam > calveira, caveira Mercenarium > mercieiro, marceneiro
Capitiam > cabaça, cabeça Minutum > minuto, miúdo
Clamare > clamar, chamar Moles > mole, monte
Clavicŭla > chavelha, clavicula, cravelha Operare > operar, obrar
Cogitare > gogitar, cuidar Pallidum > pálido, pardo
Colligere > colligir, colher Parabola: parábola, parávoa (arcaico), palavra
Coronam > coronha, coroa Parabolam > parola, parábola, palavra
Correctione > correção, correição Pausare > pausar, pousar
Cumuldum > cúmulo, combro Pensare > pensar, pesar
Defensa > defensa, devesa, defesa Placitum >pleito, preito
Delicatus > delicado, delgado Plagam > plaga, praia
Diabolo: diabro30 (arcaico), diabo. Plagam > plaga, praia, praga, chaga
Digitalem > digital, dedal Planum > plaino, lhano, piano, chão
Dominum > dom, dono Plattu > prato; prado; chato
Focu > foco, fogo Plicare > plicar, pregar, chegar
Entretinimentum > entretenimento, entertimento Plumbum > prumo, chumbo
Estivare > estivar, estiar Rarum > raro, ralo
Finitum > finito, findo, fino Rationem > ração, razão
Fixare > fixar, ficar, fincar Recitare > recitar, rezar
Flammam > flama, chama regŭla > regra, régua, relha
Folium > folio, folho, folha Ringi > rengir, ranger, renhir
Fratem > frei, frade Sanare > sanar, sarar
Gelatam > gelada, geada, geléa Sanctum > são, santo
Germanum > germano, Hermano, mano, irmão Senum > seno, seio, sino
Gluten > gluten, grude Sibilum > sibilo, silvo
Grandi > grande, grão Silvam > silva, selva

29mangra = ferrugem do trigo. Cf. “... a sua seara teve boa erva, mas depois deu-lhe mangra, no tempo
que avia de engraecer a espiga”. (PINTO, 1843: II, 339)
30 O br ainda se vê nos derivados: diabrete, diabrura, endiabrado.

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
Implicare > implicar, Solitarium > solitário, solteiro
Impregnare > empregar Somnium > sono, sonho
Latinum > latino, ladinho, ladino Tensum > tenso, teso
Legale > legal, leal Tomum > tomo, tombo
Turbam > turba, turma

Quais são as causas das formas divergentes? Como se pode explicar


essa multiplicidade morfológica, correspondente também a variações de
sentido que raramente se aproximam do significado primitivo?
As principais causas das formas divergentes são três:
a) diferenças cronológicas, b) diferenças sociais,
c) diferenças regionais.
Em consequência de cada um desses fatores ou da conjugação deles,
pode dar-se o caso de coexistirem em nossa língua, oriundas de um étimo
único: a) uma forma erudita, isto é, importada diretamente do latim literá-
rio, ao lado de uma forma popular, isto é, decorrente de evolução fonética
normal; b) formas populares portuguesas introduzidas em épocas diversas;
c) uma forma popular portuguesa, a par de formas populares que nos vieram
por intermédio de outras línguas.

7.1. DIFERENÇAS CRONOLÓGICAS


As diferenças cronológicas (cronos significa tempo) resultam da en-
trada da mesma palavra na língua em épocas várias, sofrendo de cada vez
alterações diferentes porque, já o vimos antes, as alterações fonéticas são
uniformes em determinado espaço de tempo, mas variam de uma época para
outra.
Quando consideramos que a colonização da Península Ibérica não se
realizou ao mesmo tempo, mas foi avançando progressivamente, atingindo
cada região de uma vez; quando lembramos que os núcleos de colonos só se
instalavam como resultado de uma conquista que levou mais de um século
para se consolidar, percebemos que o vocábulo latino, já de si diversificado,
porque levado por homens de procedências diferentes (Cf. tópico 1.3),
quando se instalou ao Norte, por exemplo, já devia estar modificado na fala rude
dos colonos do Sul. É mais do que certo que o vocábulo levado pelas legiões partici-
pantes das guerras púnicas e posto na boca das populações bárbaras, devia estar bas-
tante alterado no período áureo de Sêneca, quando a Ibéria era motivo de orgulho
para o Império.
Compreende-se, desse modo, que um vocábulo chegado na época da
conquista já estivesse deturpado na forma e no sentido quando, dezenas de

109
José Pereira da Silva
anos depois, camadas mais ilustradas da população o empregam com a for-
ma e o sentido clássicos.

7.2. DIFERENÇAS SOCIAIS


As diferenças sociais resultaram do interesse que as classes cultas
sempre mostraram por um vocabulário mais rico e mais próximo das ori-
gens da língua. Era bastante natural que um letrado, um jurista, fosse buscar
no latim o vocábulo legítimo (de legitimus) para indicar aquilo que está de
acordo com a lei, uma vez que a evolução dessa palavra, quando da sua
primeira entrada na Península, resultou em lídimo e lindo, palavras que não
têm, nem de longe, o sentido de legítimo. O mesmo aconteceu com centenas
de outras palavras e só assim se explica que ao lado de formações populares
como olho, agosto, lealdade, logro, caldo, solda, e tantas outras, existam as
formas eruditas de óculo, augusto, legalidade, lucro, cálido, sólida.
A Dra. Carolina Michaëlis apresenta, nas suas Lições de Filologia
Portuguêsa, um bom número de palavras empregadas em Os Lusíadas e não
consignadas em nenhum texto impresso antes de 1572, data de publicação
do imortal poema. Entre elas estão, por exemplo, tuba, procela, estridor,
superar, devastar, lúcido, salso, argênteo, imbele, diáfano, hirsuto etc.

7.3. DIFERENÇAS REGIONAIS


São múltiplos os testemunhos que nos permitem afirmar, com segu-
rança, que as transformações sofridas pelo latim vulgar, para dar origem ao
português, não foram as mesmas em todos os pontos do território de Portu-
gal. Que se leia, a este respeito, a opinião de Menendez Pidal, no seu traba-
lho Orígenes del Español: “... os moçárabes da Lusitânia, por exemplo, não
perdiam o l e o n intervocálicos, como faziam ao norte os portugueses do
século XI.”
Essa é também a opinião de J. J. Nunes quando menciona, em sua
Gramática Histórica, vocábulos de origem árabe, correntes no Sul de Por-
tugal, nos quais o l e o n intervocálicos não desapareceram: aduana, azeito-
na, cenoura, ginete, sanefa, alféloa, atalaia, cenoura, javali, e tantas outras.
Parece fora de dúvida que a forma latina defensa evoluiu para defesa
no Sul, por influência mourisca, mas a resultante da mesma palavra, no
Norte, onde aquela não era corrente, é devesa.
O resultado da influência desses fatores é que se deve distinguir na
formação do vocábulo português pelo menos três camadas distintas:

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
7.4. VOCÁBULOS POPULARES, ERUDITOS E SEMIERUDITOS
7.4.1. Vocábulos populares
Vocábulos populares são resultantes das transformações sofridas pe-
las palavras que, levadas à Península no tempo dos romanos, foram sofren-
do alterações sucessivas, modificadas pelo falar do povo.
plumbu < chumbo < prumo articulu < artelho < artigo
corona < coronha coroa

7.4.2. Vocábulos eruditos


Vocábulos eruditos (também chamados literários) foram tomados ao
latim pelos poetas, juristas, sacerdotes, fosse para traduzir ideias novas, fos-
se apenas para dar aspectos novos à obra literária, valorizando-a com pala-
vras cultas. Na época do Renascimento os escritores procuravam aproximar-
se o mais possível do tipo latino clássico-literário. Daí a introdução de vá-
rias palavras em sua forma primeira, quando já as tínhamos modificadas pe-
la fonética popular.
duplo (erudita) ao lado de dobro (popular), pleno (erudita) ao lado de
cheio (popular), solitário (erudita) ao lado de solteiro (popular)

7.4.3. Vocábulos semieruditos


Entre essas duas camadas colocam-se os vocábulos semieruditos, de-
nominação com que se distinguem as palavras que, tendo entrado na língua
depois da época em que se processava a grande transformação do latim vul-
gar, foram menos alteradas do que os populares.
Que se veja, para exemplo, o que aconteceu com o substantivo latino
macula: entrou na língua vulgar com duas formas distintas, já diferençadas
em Roma, segundo a Dra. Carolina Michaëlis:
1. malha (de rede) 2. mancha (nódoa)
Aparece no português com uma forma semierudita:
3. mágoa (dor moral)
É hoje corrente também a forma erudita:
4. mácula (mancha ou defeito moral)
Não raro, de uma língua estrangeira vem para o português um vocá-
bulo que, unido aos resultantes da transformação de determinada palavra la-
tina, vai aumentar o número das formas divergentes. Tem-se exemplo disso

111
José Pereira da Silva
com a evolução de planus, que nos oferece: formas populares: porão,
chão, prão; forma erudita: plano; importada do italiano: piano(ritmo);
forma importada do francês: piano (instrumento); importada do espa-
nhol: lhano.

7.4.4. Outros exemplos de formas divergentes:


atriu > adro, átrio solitariu > solteiro, solitário, solidário
delicatu > delgado, delicado apotheca > adega, bodega, botica, boteco
Também se encontram formas divergentes – populares e eruditas –
entre os sufixos:
ense > ês: francês, português, inglês, montês, cortês
ense: fluminense, paraense, ateniense, parisiense
toriu > douro: bebedouro, logradouro, ancoradouro
tório: dormitório, lavatório, escritório, oratório
anu > ão: cristão, capelão, vilão, comarcão
ano: romano, praiano, sergipano, alentejano
ariu > eiro: copeiro, brasileiro
ário: estatuário, mandatário, boticário
bile > vel: afável, indelével amável, incorrigível
bil: ignóbil, flébil, formações eruditas como terribilíssimo, amabilís-
simo etc, foram muito usadas por escritores de outras épocas, como, por
exemplo, Camões:
A lei tenho daquele, a cujo império
Obedece o visíbil, e invisíbil,
Aquele que criou todo o Hemisfério,
Tudo o que sente, e todo o insensíbil,
Que padeceu desonra, e vitupério,
Sofrendo morte injusta, e insofríbil,
E que do céu aa terra enfim de ceu,
Por subir os mortais da terra ao céu.
(Os Lusíadas, I, 65)

Mas Africa dirá ser impossíbil


Poder ninguém vencer o Rei terríbil.
(Os Lusíadas, IV, 54)

E as mães que o som terríbil escuitaram


Aos peitos os filhinhos apertaram.
(Os Lusíadas, IV, 28)

112
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
Ainda hoje figuram tais formas nos superlativos eruditos (amabilís-
simo, terribilíssimo) e nos substantivos abstratos derivados de muitos adje-
tivos (amabilidade, volubilidade).

7.5. FORMAS CONVERGENTES


Não é demais estudar aqui o problema das chamadas formas conver-
gentes, dada principalmente a confusão que às vezes se verifica com o pon-
to anterior, ainda que pouco profundamente.
São formas convergentes as várias palavras portuguesas que têm
origem mais apresentam a mesma forma, embora com significado diverso.
São, portanto homônimos, como é o caso de fiar (ter confiança) e fi-
ar (fazer fio).
Como se explicam as formas convergentes?
São sempre o resultado de fenômenos fonéticos, variáveis de acordo
com a região em que foram correntes os vocábulos primitivos, a época em
que eles entraram na língua, e sujeitos principalmente às influências sociais,
pois que muitas delas são importadas de outras línguas, como o francês e o
italiano, de tão marcante ação no idioma de Portugal, em épocas diversas.
As formas convergentes constituem homônimos perfeitos em português.
São formas convergentes:
1) donu > dõo > dõ > dom = virtude 1) comedo > como = forma do verbo comer
2) domine > dom’ne > dom = senhor 2) quomodo > como = conjunção
1) sanu> são = sadio, que tem saúde 1) vadunt > vão = lugar onde se passa
2) sunt > som (arcaico) > são = verbo ser 2) vanu > vão = inútil
3) santo > san > são = sagrado 1) Ager > agro = campo
1) vigilare > velar = estar desperto 2) Acer > agro = azedo
2) velare > velar = cobrir, pôr véu 1) Plicare > pregar, prender com prego, alfinete
1) Comedo > como= de comer etc.
2) Quomodo > como = comparttivo 2) Predicare > pregar , fazer uma prédica
1) Ansa > asa = asa de vaso 1) Rea > ré, feminino de réu.
2) Ala > asa = asa de pássaro 2) Retro > ré, por trás, para trás.
1) Per > por = preposição por 1) Thymum > timo, nomo de um arbusto
2) Pro > por = preposição por 2) Thymus > timo, glândula de vitela ou de cor-
1) capulu > cabo = suporte para segurar deiro.
2) caput > cabo= extremidade

113
José Pereira da Silva
QUESTIONÁRIO
1 – Que são formas divergentes?
2 – Quais as causas das formas divergentes? Exemplificar.
3 – Do vocábulo latino capitalem temos 3 formas portuguesas. Caudal, ca-
bedal e capital. Dizer a que corrente pertence cada uma delas e indicar o
critério adotado para a classificação.
4 – Que são formas convergentes? Exemplificar?
5 – Quais as causas das formas convergentes?
6 – Como se justifica a existência dos homônimos na língua portuguesa?

114
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

8 – O DESAPARECIMENTO DO NEUTRO;
REDUÇÃO DAS DECLINAÇÕES; OS CASOS;
SOBREVIVÊNCIA DO ACUSATIVO

A morfologia latina apresentava características próprias, às vezes


demasiadamente complexas, que podem ser assim resumidas:

8.1. GÊNEROS
No primitivo indo-europeu o gênero gramatical dos substantivos
fundamentavam-se no sexo real e por isso os seres inanimados eram do gê-
nero neutro (neuter = nem um nem outro).
Tal distinção, porém, tornou-se, funcionalmente falando, uma super-
fluidade. Daí que já o grego e o latim, embora tivessem conservado o gêne-
ro neutro, não eram rigorosos no seu uso; vamos encontrar nessas línguas
seres inanimados que podiam ser masculinos ou femininos.
Na passagem para as línguas neolatinas, o gênero neutro foi desapa-
recendo progressivamente e hoje se pode dizer que, nas línguas românicas,
deixou de existir como categoria gramatical.
Eram três os gêneros no latim clássico: masculino, feminino e neutro.
A distribuição dos nomes por esses três gêneros era arbitrária e bem difícil
de fazer, às vezes, porque não obedecia a regras fixas nem lógicas.
Havia nomes neutros na segunda, na terceira e na quarta declinações;
eles apresentavam o nominativo, o vocativo e o acusativo iguais no singu-
lar, e tinha, nesses três casos, o plural em ă:
Segunda declinação: Nominativo – templum (singular), templa (plu-
ral); Vocativo – templum (singular), templa (plural); Acusativo – templum
(singular), templa (plural)
Terceira declinação: Nominativo – lac (singular), lacta (plural);
Nominativo – lac (singular), lacta (plural); Nominativo – lac (singular), lac-
ta (plural)

115
José Pereira da Silva
Quarta declinação: Nominativo – cornu (singular), cornua (plural);
Vocativo – cornu (singular), cornua (plural); Acusativo – cornu (singular),
cornua (plural)
A ideia de gênero não se ligava, vale a pena lembrar, ao sexo ou à
falta de sexo; era uma distinção puramente gramatical, cuja observância de-
pendia, na quase totalidade dos casos, da forma externa. Além disso, quan-
do as palavras perdiam suas terminações diferenciadas, resultava a confusão
dos gêneros.

8.2. DECLINAÇÕES
Eram cinco as declinações latinas, caracterizadas principalmente pela
terminação do genitivo singular:
1º. genitivo singular ae: poeta, ae
2º. genitivo singular i: dominus, i
3º. genitivo singular is; pater, is
4º. genitivo singular us: fructus, us
5º. genitivo singular ei: dies, ei

8.3. CASOS
Eram seis os casos e cada um deles correspondendo a uma função
sintática diferente, porque o latim era uma língua sintética, com pouco
desenvolvimento do emprego das preposições.
Assim é que no latim literário existem tantas flexões ou desinên-
cias, quantas são as funções sintáticas que uma palavra pode receber na
preposição.
Explicando melhor: tomemos, por exemplo, a palavra Pedro
exercendo as funções de:
português latim clássico
1. Sujeito Pedro Petrus
2. Compl. Restritivo de Pedro Petri
3. Objeto indireto a Pedro Petro
4. Objeto direto Pedro Petrum
5. Vocativo ó Pedro Petre
6. Adj. Adverbial com Pedro cum Petro

A essas desinências correspondentes às diversas funções lógicas


dá-se o nome de casos. Há então, no latim clássico, os seguintes casos:
NOMINATIVO – caso do sujeito (discipulus);

116
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
VOCATIVO – caso das imprecações (discipule);
ACUSATIVO – caso de objeto direto (discipulum);
GENITIVO – caso do adjunto restritivo, traduzia também ideia de
posse (discipuli);
DATIVO – caso de objeto indireto (discipulo)
ABLATIVO – caso dos complementos e adjuntos circunstanciais.
(discipulo)
Ora, as línguas de origem popular procuram – para maior facilidade
– reduzir essas flexões casuais, substituindo-as pelo uso de artigos e prepo-
sições.
A evolução da língua, através de alterações profundas, acabou crian-
do modificações entre o latim clássico e o latim vulgar que levariam à estru-
tura do português.

8.4. O DESAPARECIMENTO DO NEUTRO


As causas do desaparecimento do gênero neutro foram fonéticas
(analogia das formas) e psicológicas (desnecessidade da oposição entre o gê-
nero animado e o inanimado).
Já na língua culta podia-se notar acentuada tendência para fazer de-
saparecer o neutro, confundindo-o com o masculino. Mesmo bons autores
incorriam nesse erro e era comum encontrar-se fatus em lugar de fatum, ou
caelus em lugar de caelum. Onde a confusão se tornava às vezes mais gri-
tante era no emprego do plural. Os neutros tinham três casos que faziam o
plural em a – o nominativo, o acusativo e o vocativo –, mas tornou-se fre-
quente, na fala popular e na escrita, usar-se castellos, lactes, mares, tem-
plos, monumentos, onde se deveria empregar castella, lacta, maria, templa,
monumenta.
A generalização dessa tendência levou ao completo desaparecimento
do neutro, tornando-se masculinos todos os nomes pertencentes a esse gênero.
Houve ainda outra alteração digna de nota: muitos nomes tomados ao
plural neutro foram, por causa da terminação a, incorporados ao feminino,
gênero ao qual pertencia também essa terminação, do que resultou uma cu-
riosa duplicidade pois o mesmo substantivo latino tem no português dois
representantes: um masculino, tomado ao singular, e outro feminino, oriun-
do do plural, como acontece com:
a) Masculino, tomado ao singular neutro: lignu > lenho, brachiu > braço,
ovu > ovo, fructu > fruto

117
José Pereira da Silva
b) Feminino tomado ao plural neutro: ligna > lenha, brachia > braça, ova
> ova, fructa > fruta
Compreende-se também assim, que alguns substantivos apresentem
no feminino sentido coletivo, embora o masculino exprima ideia de unida-
de, como acontece com lenha, que lembra quantidade de achas de madeira.
ova (plural de ovum) > ova (f.) folia (plural de folium) > folha (f.)
gesta (plural de gestum) > gesta (f.) interanea (plural de interaneum) > entranha (f.)
ligna (plural de lignum) > lenha (f.) vestimenta (plural de vestimentum) > vestimenta (f.)
amora (plural de amorum) > amora (f.) ferramenta (plural de ferramentum) > ferramenta (f.)

Quanto à terceira declinação, alguns nomes neutros, como os, os-


sis/vas, vasis, passaram para a segunda declinação assumindo o gênero
masculino.
Outros terminados em e, como maré, rete, praesepe, ovile etc., já em
latim alternavam o neutro com a forma do masculino ou feminino, passando
para o português com estes gêneros.
Os neutros terminados em us, como corpus, tempus, pectus, deram
em português nomes em os: corpos, tempos, peitos; só posteriormente ado-
taram, por analogia, as formas do singular: corpo, tempo, peito.
Como regra geral, porém, os neutros da terceira declinação incorpo-
raram-se também aos masculinos.
Resumindo: os neutros, no latim vulgar, tomaram dois caminhos: no
singular passaram a masculinos e, no plural, passaram a femininos.

8.4.1. Vestígios do gênero neutro em português


Como dissemos, o gênero neutro não existe em português, como ca-
tegoria gramatical. Entretanto, deixou vestígios nos seguintes casos:
1. Nas formas de pronomes demonstrativos – isto (esta coisa); isso
(essa coisa); aquilo (aquela coisa); o (igual a isto ou aquilo) em frases
como estas: Disse tudo o que sabia (isto é, aquilo que sabia); Espero
que sejas feliz quanto o desejo (isto é, quanto desejo isto, a saber, que
sejas feliz).
2. Nas formas de pronomes indefinidos – tudo (toda coisa); nada (ne-
nhuma coisa); algo (alguma coisa).
3. Nas formas de adjetivo substantivado – o útil (a coisa útil); o agra-
dável (a coisa agradável); o belo (a coisa bela).
4. Nos casos de indefinidos substantivados – aprecio o cantar do pás-
saro: Fumar não é bom.

118
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
5. Quando o sujeito é indeterminado em frases como estas: Limonada
é bom; É proibido entrada.

8.5. AS TRÊS DECLINAÇÕES DO LATIM VULGAR


Já no latim literário havia acentuada tendência para tumultuar as de-
clinações, principalmente devido à confusão que era possível fazer entre al-
gumas delas, pois havia nomes que tanto podiam ser declinados pela segun-
da como pela quarta – fructus, us ou fructus, i; senatus, us ou senatus, i;
domus, us ou domus, i – enquanto outros tanto eram declináveis pela quinta
como pela primeira – materies, ei ou materia, ae; rabies, ei ou rabia, ae.
Estas confusões têm seus germens nas declinações heteróclitas do
próprio latim literário.
Segundo Quintiliano já era dúbia a flexão da palavra domus (segunda
e quarta declinação).
Segundo Varrão, os nomes de árvores, com o pinus, cupressus, lau-
rus, podiam seguir estas duas declinações.
Já em Plauto, Terêncio e Catão encontram-se os genitivos senati,
fructi, gemiti, tumulti. Assim também havia dubiedade de usos já no latim
literário entre os nomes da quinta e os da primeira declinação: materies-ei /
matéria-ae; luxuries-ei luxuria-ae.
Por isso as palavras dia e raiva não podem ter provindo de dies e ra-
bies e sim das formas vulgares dia e rabia.
A acentuação dessa tendência foi tão grande no latim vulgar que le-
vou ao desaparecimento de duas declinações:
a) os nomes da quinta declinação, entre os quais havia predominância de
femininos, foram quase todos incorporados à primeira, excetuando-se ape-
nas uma pequena minoria que foi incluída entre os nomes da terceira decli-
nação, que faziam o nominativo em es;
b) os substantivos da quarta declinação, cujo nominativo era igual ao da
segunda, foram incorporados a esta.
Ficou, assim, o latim vulgar reduzido a três declinações:
A PRIMEIRA – da fusão da antiga primeira com a quinta.
A SEGUNDA – da fusão da antiga segunda com a quarta.
A TERCEIRA – a que foram incorporados nomes da quinta.

119
José Pereira da Silva
8.6. OS CASOS NO LATIM VULGAR
E A SOBREVIVÊNCIA DO ACUSATIVO
A distinção das funções sintáticas por meio das desinências dos ca-
sos, além de naturalmente complexa, devia oferecer dificuldades quase in-
superáveis para os povos conquistados, cujas línguas não só eram bárbaras,
mas também possuíam, em geral, estrutura diferente da latina. Daí o desen-
volvimento do emprego das preposições, as quais, usadas de começo com o
propósito de tornar mais precisas as diversas relações sintáticas, vieram por
fim a suplantar o uso das desinências casuais.
Essas dificuldades, unidas à semelhança que certas desinências apre-
sentavam entre si, acabaram por levar ao desaparecimento dos casos e o
mau emprego deles com algumas preposições:
a) O vocativo, sempre igual ao nominativo, teve as suas funções absorvi-
das por este;
b) O genitivo foi inicialmente substituído pelo ablativo precedido de pre-
posição de;
c) O dativo foi substituído pelo acusativo regido de ad.
Assim se passaram, pois, a exprimir as funções sintáticas:
1) sujeito: pelo nominativo-acusativo;
2) objeto direto: pelo acusativo;
3) objeto indireto: pelo acusativo precedido de ad;
4) complemento restritivo: pelo acusativo precedido de de;
5) adjuntos adverbiais: pelo acusativo precedido de várias preposições (per,
cum, inter, de).
O maior desenvolvimento do emprego das preposições levou, poste-
riormente, a transformações mais profundas e o acusativo, empregado com
per, cum, de, acabou assumindo também o papel de ablativo.
Estariam os casos, desse modo, reduzidos a dois:
1) nominativo, para o sujeito e o vocativo;
2) acusativo que, sem preposição ou com ela, poderia desempenhar fun-
ção de complementos ou de adjuntos.
Aconteceu, porém, que o acusativo, perdendo o m final que o carac-
terizava no singular, tornou-se, na grande maioria dos casos, igual ao nomi-
nativo e, confundido com este, acabou por tomar-lhe o lugar.
Tornado caso único, o acusativo passou a expressar todas as fun-
ções sintáticas e dá-se-lhe o nome de caso lexicogênico – isto é, gerador do
léxico, – porque dele se origina a grande maioria das palavras portuguesas.

120
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
É assim que temos:
Da 1ª declinação: acusativo a(m) – as
Da 2ª declinação: acusativo u(m) – os
Da 3ª declinação: acusativo e(m) – es
Pode-se, então, explicar:
1. Que o feminino em português termine em a, porque essa era a desinên-
cia da 1ª declinação, na qual quase todos os substantivos eram femininos.
2. Que o masculino em português termine em o, pois essa foi, com a evo-
lução, a desinência da 2ª declinação, na qual predominavam os masculinos.
3. Que o plural em português termine em s, pois essa foi sempre a termi-
nação do acusativo plural.
Os nomes da 3ª declinação, terminados em e, foram distribuídos arbi-
trariamente pelos dois gêneros: o dente, a pele etc.

8.7. VESTÍGIOS DE OUTROS CASOS


Embora o acusativo seja o caso lexicogênico, há em nossa língua
vestígios de outros casos.
NOMINATIVO – Nomes próprios: Deus, Marcos, Cícero etc.
Pronomes pessoais: eu < ego, tu < tu, ele < ĭlle, nós < nos, vós <
vos;
Demonstrativos: este, esse, aquele.
GENITIVO – Está presente em alguns patronímicos: Fernandici >
Fernandez > Fernandes (filho de Fernando), Soarici > Soarez > Soares (fi-
lho de Soeiro); Luz (< Lucii, isto é, filho de Lúcio); Paez (< Pelagĭci, isto é,
filho de Pelágio)
Deu origem também as palavras compostas: terremoto (terrae + mo-
tu); aqueduto(aquae + duto); agricultor (agri + cultura); jurisprudência (júris
+ prudentia); uxoricida (uxoris + cida).
DATIVO – Mantém-se em pronomes com função de objeto indireto:
mihi > mim; tibi > ti; sibi > si; illi > lhe.
ABLATIVO – agora (hac + hora); fidedigno (fide + dignu); talvez
(tali + vice).

121
José Pereira da Silva

122
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

9. ESTUDOS DO VERBO: REDUÇÃO DAS CONJUGAÇÕES;


DESAPARECIMENTO DE TEMPOS; CRIAÇÕES ROMÂNICAS

9.1. SISTEMA VERBAL LATINO


O sistema verbal latino, pelo menos no período clássico, foi bastante
complexo. De modo geral compreendia:

9.1.1.Quatro conjugações:
– A primeira, infinitivo em are
– A segunda, infinitivo em ēre (longo)
– A terceira, infinitivo em ĕre (breve)
– A quarta, infinitivo em ire
Em quase todo o Império Romano permaneceram as quatro termina-
ções do infinitivo.
Mas se deram muitas migrações de verbos de uma para outras conju-
gações.
Na Itália, prevaleceu a terceira; nas Gálias, a quarta; na Hispânia
(Península Ibérica), perdeu-se inteiramente a conjugação em ĕre.

9.1.2. Dois grupos de tempos:


9.1.2.1. O infectum
Infectum é o grupo de tempos que indicam uma ação em curso, o que
corresponde ao aspecto imperfeito.
Compreendia:
– no indicativo: presente, pretérito imperfeito e futuro imperfeito
– no imperativo: presente e futuro
– no subjuntivo: presente e pretérito imperfeito

123
José Pereira da Silva
9.1.2.2. O perfectum
Perfectum é o grupo de tempos que indicam uma ação passada, já
concluída, o que corresponde ao aspecto perfeito.
Compreendia:
– no indicativo: o pretérito perfeito, o pretérito mais-que-perfeito e o futuro
perfeito
– no subjuntivo: o pretérito perfeito e o pretérito mais-que-perfeito

9.1.2.3. Quatro formas nominais


– no infinitivo: presente, perfeito e futuro
– o gerúndio: Declinável em quatro casos: acusativo, genitivo, dativo e
ablativo
– o supino...
– Os particípios: presente (só voz ativa), passado (só voz passiva), futuro
(voz ativa e passiva, esta chamada gerundivo)

9.1.2.4. Três vozes:


– Ativa – em que o sujeito é o agente da ação verbal
– Passiva – que tanto indicava a ação sofrida pelo sujeito, como a impessoa-
lidade ou a flexibilidade.
– Depoente – em que, sob a forma passiva, o verbo traduzia ação ativa.
Esse sistema verbal, complexo e por vezes confuso, pelo menos para
povos de fala bárbara, entrou em decomposição no latim vulgar, apresen-
tando, em relação à Lusitânia, as seguintes modificações fundamentais:

9.1.3. Redução das conjugações


Mesmo no latim clássico havia certa confusão entre as conjugações,
confusão de que resultou, em pontos diversos do Império, preferência por
uma em prejuízo das outras, de tal modo que algumas sofreram alterações
profundas, quando não chegaram ao desaparecimento completo. A primeira
e a quarta foram as menos sacrificadas, mas pode-se afirmar que na Ibéria
prevaleceu a segunda, na Itália houve preferência pela terceira, enquanto na
Gália predominava a quarta. O siciliano e o sardo eliminaram a segunda
conjugação; o espanhol e o português perderam a terceira, ao mesmo tempo
em que incluíam novas formas na primeira e na quarta.

124
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
Qual a razão dessas alterações?
A maior parte das vezes não é fácil explicá-las, sendo certo que pro-
cedem, quase sempre, de razões dialetais, regionais, respeitáveis em todos
os casos.
Em relação a Portugal e Espanha, onde desapareceu totalmente a ter-
ceira conjugação, costuma-se invocar como razão apreciável a dificuldade
que devia representar fazer-se a diferença entre o ē longo e o ĕ breve, quan-
do se sabe – se já o estudamos no início do capítulo 4 – que a tendência era
para acabar com o acento de quantidade, substituindo-o pelo acento de in-
tensidade.
O que se verifica, então, no latim vulgar da Península Ibérica, é a
redução das quatro conjugações a três:
1ª conjugação – are – amare,
2ª conjugação – ere – debere,
3ª conjugação – ire – audire.
Os verbos em are, ere, ire deram, respectivamente, em português: ar,
er, ir.
A primeira conjugação é a mais resistente uma vez que além de não
perder verbos, recebeu-os da segunda e da terceira. Assim: torrēre > torra-
re > torrar; fidere > fidare > fiar; prosternere > prostrare > prostar
Os verbos da antiga terceira conjugação, que tinham vogal breve no
infinitivo – ĕre – foram incorporados à segunda, com vogal longa: facĕre >
facēre, dicĕre > dicēre, capĕre > capēre, legĕre > legēre, ponĕre > poēre >
poer (arc) > pôr.
Alguns verbos passaram a pertencer à terceira – antiga quarta, – com
a terminação do infinitivo em ire: fugĕre > fugire, fingĕre > fingire, petĕre
> petire.
Note-se que os compostos de ducere e de sequi deram em português
verbos em ir: conduzir, produzir, reduzir, seduzir, perseguir, prosseguir etc.
Portanto, a quarta conjugação latina deu a terceira em português.
Transformações mais profundas apresenta o verbo ponĕre. Passa,
como a grande maioria, da terceira para a segunda conjugação, com o alon-
gamento da vogal temática: ponĕre > ponēre. As alterações fonéticas im-
primem-lhe mudanças naturais: queda do n intervocálico e desaparecimento
da vogal final: ponēre > poēr > poer.
Sob a forma poer, foi o verbo corrente no português arcaico.

125
José Pereira da Silva
Razões históricas levaram ao desaparecimento da vogal e no infiniti-
vo, embora ela esteja presente em outras formas do verbo: tu pões, ele põe,
vós pusestes, se eu pusesse etc.
Lembrança do infinitivo arcaico poer vive até hoje no adjetivo poe-
deira, em poente (oposto a nascente) etc.
De modo que não é certo se dizer que o verbo pôr forma, com os
seus compostos, uma quarta conjugação portuguesa, pois ele é, na realidade,
um verbo irregular da segunda.
Note-se ainda que houve mudança de conjugação dentro da própria
língua portuguesa. Ex.: cadĕre > cadēre > caer (arc) > cair; corrigĕre > cor-
rigēre > correger (arc) > corrigir

9.1.4. Desaparecimento de tempos


Quadro comparativo da conjugação latina com a correspondente por-
tuguesa.
I – Modo Indicativo
Presente Pret. Imperf. Futuro Imp.
Amo > eu amo amabam > amava amabo > (amarei)
Pret. Perf. Pret. + que Perf. Futuro Perfeito
Amavi > eu amei amaram > eu amara amaro > (terei amado)

II – Modo Subjuntivo
Presente Pret. Imperf. Pret. Perf.
Amem > eu ame amarem > (amasse) amarim > (tenha
amado)
Pret. + que Perf. Futuro
Amassem > (tivesse amado) X > (eu amar)

III – Modo Imperativo


Presente Futuro
Ama > ama tu Amato > (X)

Formas Nominais
1. Infinitivo
Impessoal = amare > amar
Presente
Pessoal = X > (amar eu)
Impessoal = amasse > (ter amado)
Perfeito
pessoal = X > (ter eu amado)
Impessoal = amaturum esse > (haver de amar)
Futuro
pessoal = X > (haver eu de amar)

126
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
2. Particípio
Presente amans > (amante, amando)
Passado amatus > amado
Futuro amaturus > (X)
Supino amatum > (X)
g. amandi > (X)
d. amando > (X)
Gerúndio
ac. amandum > (X)
abl. amando > amando
Gerundivo amandus-a-um > (X)

O latim vulgar impôs transformações profundas à conjugação latina,


levando ao desaparecimento de inúmeros tempos, tanto no infectum como
no perfectum.
Observam-se no português, as seguintes formações:

9.1.4.1. No indicativo
Ficam: o presente, o pretérito imperfeito, o pretérito perfeito, o pre-
térito mais-que-perfeito
Desaparecem:
a) o futuro imperfeito, cujas terminações – bo, bis, bit – levaram a fácil
confusão com as do imperfeito – bam, bas, bat.
b) o futuro perfeito que se fundiu com o pretérito perfeito do subjuntivo,
dando origem, em português, a um tempo novo: o futuro do subjuntivo.
Ao lado da forma normal de futuro (ex. amabo) existiam as locuções
verbais formadas do verbo auxiliar habere mais o infinitivo. Ex.:
«De republica nihil habeo ad te scribere». (Cicero ad Att.)
Em Sêneca «quid habui facere» (o que eu tive intenção de fazer).
Compensando a perda dos dois futuros, o latim vulgar deu origem a
duas formas, criadas de acordo com a tendência que a língua apresentava
para as formas perifrásticas (ver tópico 2.4). Essas duas criações foram o fu-
turo do presente e o futuro do pretérito, durante muito tempo chamado con-
dicional.
Ambos se formam juntando o auxiliar haver ao infinitivo do verbo
que se conjuga, do seguinte modo:

127
José Pereira da Silva
FUTURO DO PRESENTE = INFINITIVO + PRESENTE DE HABERE:
amare + habeo > amar + *hai (o) > amarei
amare + habes > amar + *has > amarás
amare + habet > amar + *hat > amará
amare + habebomus > amar + *h (ab) emos > amaremos
amare + habetis > amar + *h (ab) etis> amareis
amare + habent > amar + *haunt > amarão

FUTURO DO PRETÉRITO = INFINITO + IMPERFEITO DE HABERE


amare + habebam> amar + *h (ab) ea > amaria
amare + habebas > amar + *h (ab) eas > amarias
amare + habebat > amar + *h (ab) eat > amaria
amare + habebamus > amar + *h (ab) eamos > amaríamos
amare + habebatis > amar + *h (ab) eatis > amaríeis
amare + habebant > amar + *h (ab) eant > amariam

Nas línguas românicas predominam essas locuções verbais, notando-


se que na fase final do latim vulgar o verbo auxiliar é proposto ao infinitivo,
cantare habeo, daí em português cantarei. Analogicamente é formado o fu-
turo do pretérito. Do mesmo modo que se dizia «habeo dicere», tenho a in-
tenção de dizer, assim também se podia expressar «habebam dicere», tinha
a intenção de dizer, donde em português: cantare habebam > cantaria.

9.1.4.2. No subjuntivo
Ficam: o presente, o pretérito imperfeito (com função nova)
Deve-se notar:
1º – O IMPERFEITO DO SUBJUNTIVO latino – amarem, amares, amaret
– deu origem ao INFINITIVO PESSOAL português.
O atual IMPERFEITO DO SUBJUNTIVO português (amasse,
amasses, amasse) é o resultado da evolução do MAIS-QUE-PERFEITO la-
tino (amavissem, amavisses, amavisset). É portanto, um tempo que assumiu
uma nova função.
2º – O futuro do subjuntivo não existe em latim. Por isso a nossa forma
quando eu amar é também uma nova função assumida.
Esta forma é resultante de uma confusão entre o futuro perfeito e o
pretérito perfeito do subjuntivo, formas, aliás, quase idênticas no latim.

9.1.4.3. No imperativo
Fica apenas o presente: ama > ama, amate > amai.
Desaparecem o FUTURO IMPERATIVO e, por outro lado, o PRE-

128
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
SENTE DO SUBJUNTIVO português passou a fornecer ao IMPERATIVO
AFIRMATIVO três pessoas e ao NEGATIVO todas as pessoas.

9.1.4.4. Das formas nominais


– O infinitivo fornece ao português apenas o PRESENTE; perdem-se o per-
feito e o futuro: amare > amar.
– Do gerúndio, conserva-se apenas o ablativo: amando, assim mesmo, mui-
tas vezes, com valor de adjetivo por confusão com o particípio presente.
Ex.: Vejo crianças colhendo (=que colhem) flores.
– O gerundivo também desconhecido do latim vulgar, não chegou ao portu-
guês pela via tradicional. Já tardiamente, cunhadas sob o modelo latino, é
que penetraram na língua várias formas de gerundivo, deixou apenas vestí-
gios em formas como estas: vitando, memorando, colendo, venerando, exe-
crando, minuendo, multiplicando, horrendo, colendo, examinando, fazenda,
oferenda, moenda, formando etc
Alguns gerundivos, criações individuais de grandes escritores, não
fizeram carreira, morreram ao nascer. Estão no caso, por exemplo, o empre-
gandas, de Filinto Elísio; o intangendas, de Castilho; e o murchandas, do
nosso Machado de Assis:
“Não empregandas iras”. (apud Mário Barreto. Novissimos Estudos.
2ª ed. Rio de Janeiro, 1924, p. 271)
“... as intangendas roupas...” (Filinto Elísio. Fastos. Lisboa, 1862,
III, p. 163)
“De não-murchandas e cheirosas flores.” (Machado de Assis, Poesi-
as. Rio de Janeiro: Garnier, 1901, p. 198).
Desde que exista na língua um verbo-base, é lícito tirar dele um ge-
rundivo; assim se formaram palavras como bacharelando (de bacharelar),
doutorando (de doutorar), diplomando (de diplomar). O que não está certo
é criarem-se aberrações como farmacolando, engenheirando, normalistanda
etc., que têm surgido ultimamente. Se não há os verbos “farmacolar”, ou
“engenheirar”, ou “normalistar”, como poderá haver os respectivos gerun-
divos?
– O particípio presente perde a função verbal e vive apenas como ad-
jetivo ou substantivo: amante
Até em Camões encontramos exemplos de particípio presente:
Atenta a ilha Barém, que o fundo ornado
Tem das suas perlas ricas e imitantes
À cor da aurora;

129
José Pereira da Silva
A partir do século XVI, tal emprego é considerado latinismo.
Hoje, o particípio presente se reduz a mero adjetivo: água corrente,
resposta urgente; ou a substantivo como: estudante, crente; ou até a preposi-
ções: durante, mediante etc.
Também o particípio futuro perdeu sua forma correspondente no
português; deixou apenas alguns vestígios como em nascituro ou nas formas
em «ouro»: vindouro, imorredouro etc.
– O particípio passado conserva-se: amatus > amado; amata >
amada
– O supino que é, em latim, um tempo primitivo em relação aos seus
derivados (particípio presente, particípio futuro ativo e infinito futuro ativo
e passivo) não deixou vestígios em português.

9.1.5. Alterações nas vozes verbais


9.1.5.1. Voz ativa
A voz ativa conservou, como acabamos de ver, a maior parte das su-
as formas e as alterações que sofreu, todas de acordo com certas tendências
que eram velhas na língua falada, mesmo em Roma, além de poucas, não
foram fundamentais.

9.1.5.2. Voz passiva


A voz passiva, porém, mostra modificações profundas.
Dois eram os processos para indicar a passividade:
1º – Os tempos derivados do infectum recebiam desinências próprias (for-
mação sintética). Por exemplo, na 1ª conjugação:
PRESENTE IMPERFEITO
am + or = sou amado am + abar = era amado
am + aris = és amado am + abaris = eras amado
am + atur = é amado am + abatur = era amado
am + amur = somos amados am + abamur = éramos amados
am + amini = sois amados am + abamini = éreis amados
am + antur = são amados am + abantur = eram amados

2º – Os derivados do perfectum, porém, indicavam a passiva por meio de


uma conjugação perifrástica formada pelo particípio passado unido às for-
mas do verbo esse (formação analítica).

130
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
PRETÉRITO PERFEITO
amatus sum = fui amado amati sumus = fomos amados
amatus es = foste amado amati estis = fostes amados
amatus est = foi amado amati sunt = foram amados

Na fase final do latim vulgar as formas sintéticas foram inteiramente


abandonadas; usando-se em seu lugar formas analíticas semelhantes às que
eram usadas nos derivados do perfectum. Assim, em lugar de amabor, ama-
baris, passou-se a dizer amatus sum, amatus es etc. Essa construção foi a
que se generalizou e chegou ao português.

9.1.5.3. Verbos depoentes


Os verbos depoentes, que propriamente não constituíam uma voz
mas uma conjugação, participavam, pelo menos na forma, de certos aspec-
tos da passiva: tinham forma passiva e significação ativa:
imitor, imitaris, imitari, imitatus sum = imitar
morior, morĕris, mori, mortuus sum = morrer

No latim clássico já havia certa vacilação no emprego dos verbos


depoentes, tanto assim que bons autores empregavam horto em vez de hor-
tor, nasco em vez de nascor e sequo em vez de sequor.
Desaparecida a flexão passiva sintética, o latim vulgar generalizou a
tendência viva na língua, e a conjugação depoente desapareceu, transfor-
mada em ativa.
nascere, em vez de nasci
sequire, em vez de sequi
mentire, em vez de mentiri
hortare, em vez de hortari

Deixaram de ter valor verbal em português:


1º – O PARTICÍPIO PRESENTE, que hoje só aparece como adjetivo ou
substantivo: sol nascente; homem temente; fala corrente; os ouvintes, o pe-
dinte.
2º – O PARTICÍPIO FUTURO, já desaparecido no latim vulgar e de que há
vestígio em palavras como vindouro, nascituro, futuro etc.
3º – O GERÚNDIO, cujas formas, perdidas, para o latim vulgar, chegam ao
português por via erudita, depois de fixada a língua, com valor substantivo:
educando, bacharelando, examinando, subtraendo, dividendo.

131
José Pereira da Silva
9.1.5.4. Verbos Anômalos
O verbo esse transformou-se em essere (confere italiano essere; fran-
cês être). O português e o espanhol “ser” não vêm de essere e sim de sedere
que, originariamente, significava estar sentado.
O verbo posse deu potēre, donde em português poder.
Os compostos de ferre passaram em geral para a quarta conjugação
latina, dando, em português, verbos em ir. Exemplos: conferre > conferire
> conferir; differre > differire > diferir; aferre > afferire > aferir; praefer-
re > praferire > preferir; referre > referire > referir.
Mas os verbos sufferre e offerre deram também sufferēre e offeres-
cēre, donde o português sofrer e oferecer.

9.2. CRIAÇÕES ROMÂNICAS


Já é possível ver, em face do que tem sido estudado, que a formação
do português não resultou apenas de alterações fonéticas, sintáticas ou se-
mânticas sofridas pelo latim. Houve também o desaparecimento global de
inúmeras formas latinas, como houve a criação, na fala de Portugal, de as-
pectos antes inexistentes no falar romano.
A esses aspectos novos, desconhecidos pela gramática latina é que se
dá o nome de criações românicas.
Algumas dessas criações, relacionadas com o verbo, foram vistas no
capítulo anterior.

9.2 1. Futuro do presente


O desaparecimento do futuro imperfeito latino deve ter sido resultado
da confusão a que ele se prestava com outras formas verbais: o imperfeito
do indicativo na 1ª e na 2ª conjugações, os presentes do indicativo e do sub-
juntivo na 3ª e na 4ª.
Para compensar essa perda, o latim vulgar desenvolveu uma perífrase
verbal formada pelo infinitivo do verbo principal e o indicativo presente de
habēre. O português, seguindo essa trilha, formou, pelo mesmo processo, o
futuro do presente, conforme vimos antes. (Vide 9.1.4.1).

9.2.2. Futuro do pretérito


Por uma perífrase semelhante – agora juntando o infinitivo do verbo
principal às formas contraídas do imperfeito do indicativo de haver – pas-

132
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
saram as línguas românicas, e entre elas o português, a formar o futuro do
pretérito, antes conhecido pelo nome de condicional (Vide 9.1.4.1).

9.2.3. Tempos compostos


O latim literário não possuía forma própria para o perfeito presente;
para exprimir uma ação passada cujos efeitos perduram no presente introdu-
ziu-se no latim corrente um circunlóquio formado do verbo habere mais o
particípio passado do verbo principal. Ex.: Em Cícero lemos: «in ea provin-
cia pecunias magnas collocadas habent” (têm colocadas nessa província
grandes somas de dinheiro) onde a ideia é de presente.
A tendência para as formas perifrásticas, tão viva no latim vulgar
(ver 2.4.2) desenvolveu um tipo de construção verbal analítica visível às ve-
zes até mesmo em alguns clássicos: o particípio passado do verbo principal
unido a habēre. Satis habeo deliberatum, escreveu Cícero.
Essa construção perifrástica, feita a princípio só com o auxiliar
habēre e, depois, também com tenēre, ganhou grande predominância no la-
tim vulgar, chegando a constituir uma verdadeira conjugação composta, as-
pecto com o qual passou para o português.
Tenho ou hei louvado Tinha ou havia vendido
Terei ou haverei mandado Tenha ou haja produzido

9.2.4. Conjugação passiva analítica


As formas da passiva analítica, que germinaram no latim popular pa-
ra substituir a passiva sintética do latim clássico (ver 9.1.5), constituem ou-
tra apreciável criação das línguas românicas.
Pertencem à semântica do infectum todos os tempos que trazem ideia
não concluída ou perfeita (presente – imperfeito – futuro imperfeito).
No latim literário estes tempos tinham forma sintética na voz passiva,
as quais foram substituídas por formas analíticas no latim vulgar.
Exemplos:

latim literário latim vulgar


Pres. Ind. AMOR Amatus sum
Pres. Subj. AMER Amatus sim
Pret. Imperf. Ind. AMABAR Amatus eram
Pret. Imp. Subj. AMARER Amatus essem
Futuro Imperf. AMABOR Amatus erro

133
José Pereira da Silva
9.2.5. O infinitivo pessoal
Criação românica é também, embora sua existência se limite apenas
ao português, ao galego e ao mirandês, o chamado infinito pessoal. Os es-
pecialistas não são acordes no que diz respeito à origem dessa forma verbal,
admitindo uns que ela proceda do imperfeito do subjuntivo latino, enquanto
outros consideram-na oriunda do próprio infinitivo pessoal, flexionado por
analogia, mas, seja como for, é certo que o latim não a conheceu.
Três são as teorias explicativas de seu aparecimento:
A primeira teoria (de MEYER-LÜBKE) atribui origem analógica ao
infinitivo flexionado. Assim, como no futuro do subjuntivo se diz amar,
amares, amar etc.
A segunda teoria (de Leite de Vasconcelos) também é analógica. A
construção de frases como: «ter eu saúde é bom», “ter ele saúde é bom”, te-
ria estendido a «teres tu saúde é bom»; «termos nós saúde é bom» etc. Essa
nova modalidade de infinitivo teria sido ajudada pela flexão do subjuntivo
nos verbos fracos.
A terceira teoria (conta com o maior número de filólogos) sustenta
que o nosso infinitivo flexionado deriva-se diretamente do pretérito imper-
feito do subjuntivo latino.
Aliás, do ponto de vista fonético nenhuma dificuldade haveria nessa
passagem.
Compare-se:
Pretérito Imp. Subj. Infinitivo Pessoal
Amarem > amar
Amares > amares
Amaret > amar
amaremus > amarmos
amaretis > amardes
amarent > amarem

9.3. OUTRAS CLASSES DE PALAVRAS


Deve-se notar, porém, que as criações românicas não se limitam aos aciden-
tes verbais, atingindo outras classes de palavras:

9.3.1. Artigo definido


No latim não havia artigos. O que os romanos faziam frequentemen-
te, mesmo na língua clássica, era empregar o pronome demonstrativo antes
de um substantivo, próprio ou comum, para indicar que ele era conhecido,

134
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
prática possivelmente adotada também pela fala popular.
Cícero teria escrito: Magnus ille Alexander. (CÍCERO, Arch, 10,
apud J. J. NUNES, Digressões Lexicológicas ) .
Com a redução dos casos latinos, passou-se a dizer illu filiu, illa pe-
tra, donde as formas portuguesas ello filho, ella pedra. Ello e ella, quando
colocadas em próclise, diante de palavras acentuadas, perderam a vogal ini-
cial, do que resultaram as formas lo, la. A transformação lo > o, la > a, ve-
rificou-se nos séculos XI ou XII, sempre que o l ficava entre vogais, como
nos casos a lo, de la, expressões que evoluíram para ao e da: Assim, tive-
mos as transformações:
illu > ello > elo > lo> o illa > ella > ela > la > a
illus > ellos > elos > los > os illas > ellas > elas > las > as

9.3.2. Artigo indefinido


Se em latim não havia o artigo definido, também não existia o indefi-
nido um e seu feminino uma. Essas formas originaram-se do numeral latino
unus, una, tomado ao acusativo, com perda do m final e posterior queda do
n intervocálico:
uno > ũnu > ũ > um una > ũa > uma

No feminino, verificou-se a troca da linguodental n pela bilabial m,


fato explicável porque também é labial a vogal u.
Os plurais ũus, ũas, depois uns, umas, foram criados analogicamente
na fase arcaica da língua.

9.3.3. O pronome da terceira pessoa


Em latim só havia dois pronomes pessoais de caso reto:
1ª. pessoa – ego 2ª. pessoa – tu

O pronome português da terceira pessoa resultou do emprego do de-


monstrativo latino ille, illa acompanhando as formas verbais da terceira
pessoa: ille > êlle > ele e illa > ella > ela, tomadas ao nominativo
Os plurais eles, elas formaram-se mais tarde, pelo processo analógico
de acrescentar s ao singular.

9.3.3.1. As formas oblíquas o, a, os, as


As formas oblíquas o, a, os, as originaram-se do acusativo, com os
mesmo fenômenos já expostos no caso do artigo definido:

135
José Pereira da Silva
illu > elo > lo > o illa > ela > la > a
illos > elos > los > os illas > elas > las > as

As formas la, lo e seus plurais são usadas ainda quando a terminação


verbal tem r, s, ou z, porque nesses casos o l do pronome, não ficando entre
vogais, conservou-se e agiu, por assimilação regressiva, sobre a consoante
final do verbo, criando uma consoante geminada que depois se reduziu a
simples: fazer-lo > fazel-lo > fazê-lo; mandas-lo > mandal-lo > manda-lo;
diz-lo > dil-lo > di-lo.
Há também assimilação, mas nesse casso progressiva, quando a for-
ma verbal termina em fonema nasal: fazem-lo > fazem-no.

9.3.3.2 A forma oblíqua lhe


A forma oblíqua lhe originou-se do dativo latino: illi > li > lhi > lhe
O plural lhes foi criado, por analogia, no período arcaico do portu-
guês.
Consoantes palatais. – Já vimos. (tópico 3.6.4.9) que os sons palatais
não existiam em latim e foram criados pelo português em situações várias:
li > lh – filiu > filho cl > lh – veclu > velho
cl > ch – chave > chave pl > ch – plorare > chorar
di > j – hodie > hoje si > j – basiu > beijo

136
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
QUESTIONÁRIO
1. As conjugações verbais portuguesas correspondem a quais conjugações
do latim clássico?
2. Qual a formação do futuro do presente e do futuro do pretérito?
3. Dar a justificação histórica da mesóclise na língua portuguesa.
4. Qual a origem do infinitivo pessoal?
5. Por que se diz que o infinitivo flexionado é um idiotismo do português?
6. Qual é o caso lexicogênico da língua portuguesa? Por que é assim cha-
mado?
7. Por que o plural em português é feito com s?
8. Dar dois vestígios, no português, dos casos: nominativo, genitivo, dativo,
ablativo.
9. Qual o caso que deu origem aos patronímicos portugueses?
10. A 1ª, 2ª e 3ª declinações do latim vulgar correspondem a quais do latim
clássico?
11. Por que o português representa o feminino com a e o masculino com o?
12. O que ocorreu com os nomes de gênero neutro do latim clássico?
13. As conjugações verbais portuguesas correspondem a quais do latim
Ccássico?
14. Qual a formação do futuro do presente e do futuro do pretérito?
15. Dar a justificação histórica da mesóclise na língua portuguesa.
16. Qual a origem do infinitivo pessoal?
17. Por que se diz que o infinitivo flexionado é um idiotismo do português?

137
José Pereira da Silva

138
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

10. FATOS DEVIDOS À ANALOGIA

Estudando a analogia, o Professor Sousa da Silveira (SILVEIRA,


1934) define-a como sendo “uma força que atua, ou transformando uma
coisa para a pôr de acordo com outra com a qual tem relação real ou supos-
ta, ou criando uma forma nova de conformidade com um tipo ou paradigma”.
E aquele ilustre professor exemplifica: O verbo português pedir ori-
gina-se de petĕre, passando para a 4ª conjugação latina: petĕre > petire >
pedir.
A forma vernácula impedir é palavra erudita, tomada ao latim impe-
dire e, portanto, sem qualquer parentesco com o português, pedir. Tanto is-
so é verdade que na linguagem arcaica as duas formas eram independentes:
petio > peço e impido, impida etc.
O povo, encontrando semelhança (analogia) entre os dois verbos,
julgou que impedir fosse derivado de pedir e passou a conjugar aquele por
este: impeço, impeça, impeças etc. (Cf. 10.9)
A analogia que Rodrigo de Sá Nogueira (1937) vê como “apenas
uma causa, que se baseia no princípio da associação de ideias”, atua hoje no
falar do povo como atuou no passado, pois que é força sempre presente e ir-
resistível.
Quando uma criança diz fazi e cabeu, conjuga essas formas verbais
por outras já conhecidas, como dormi e correu.
O povo, hoje, fala plantaforma, ao invés de plataforma, cedendo à
analogia com planta, vocábulo mais comum e conhecido. Em outro tempo,
a mesma força levou à formação de resposta, adulterando reposta (do latim
respos(i)ta, por analogia com o verbo responder).
Hoje, a fala popular adultera sacristão em sancristão, levado pela in-
fluência de são ou san(to), do mesmo modo como em outras épocas adulte-
rou foresta em floresta levado pela influência de flor.
Podemos então dizer que “analogia é fenômeno psicológico que leva
o povo a modificar uma palavra por semelhança, real ou aparente, da for-
ma ou do significado, com outra”.

139
José Pereira da Silva
Foi grande no passado – e de certo modo continua a ser ainda hoje –
a força da analogia na transformação da língua, de tal forma que só pela sua
influência podem ser explicados muitos fatos de fácil comprovação.
Por seu caráter imprevisto, assistemático e irregular, a analogia é
uma das mais frequentes causas perturbadoras da normalidade da evolução
fonética.

10.1. O INFINITIVO SABER


Em latim, para exprimir a ideia de saber, ter conhecimento, havia o verbo
scio, scire, e para exprimir o de saber, ter sabor, havia o verbo sapere. Contudo
esta última forma também se empregava com o sentido da primeira, o que aliás
perdura em sábio e sapiente, mas a par há sabor e insípido, em que perdura o se-
gundo sentido. Na formação das línguas românicas sapere prevaleceu sobre scire
no ocidente. (SÁ NOGUEIRA, op. cit.).

10.2. O INFINITIVO PODER


A forma latina posse não poderia dar poder em português. Esta últi-
ma forma foi construída sobre a raiz pot, que predomina aparentemente no
verbo latino e está presente em quase todas as formas: potes, potest, potes-
tis; poteram, poteras; potui, potuisti; potueram, potueras; potuissem, po-
tuisses etc.
Ter-se-ia, então, criado a forma, potĕre em vez de posse, donde, por
analogia ainda, teríamos potēre e poder.

10.3. A FORMA ESTOU


A forma latina sto não devia sofrer, na passagem para o português,
mais do que o desenvolvimento do e inicial: *estô. Como, porém, as demais
pessoas tem a na sílaba tônica, a 1ª passou a tê-lo por analogia: sto > *stao
> estou. (O ditongo au evolui para ou em português: auru > ouro; tauru >
touro.)

10.4. A FORMA ESTEJA


Do latim stem, primeira pessoa da presente do subjuntivo de stare, só
poderia resultar, por evolução natural, estê. A forma esteja surgiu por ana-
logia com seja.

140
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
10.5. A FORMA ESTIVE
É fora de dúvida que o latim steti só poderia dar estede. O português
estive resulta, segundo alguns autores, da analogia com tive.

10.6. A FORMA SOU


O latim sum – 1ª pessoa do presente do indicativo – só poderia dar
em português som, que realmente existiu na língua arcaica. A atual forma
sou teria resultado da analogia com estou. (Cf. 10.3)

10.7. A FORMA É
A 3ª pessoa do presente do indicativo latino est só podia dar em por-
tuguês es, graças à sistemática queda do t final.
A redução de es a é vem a ser produto da analogia, por duas razões:
1º porque o s final é característica da segunda pessoa do singular; 2º porque
nenhuma terceira pessoa do singular tem s final.

10.8. A FORMA SOIS


O latim estis, segunda pessoa do plural do presente do indicativo,
não poderia ser o étimo de sois. As formas sumus e sunt, entre as quais se
encontrava estis, devem ter influído para que se criasse, por analogia, a
forma *sutis, com o mesmo radical das duas outras e com a terminação dos
verbos regulares. A evolução de *sutis seria normal: *sutis > sodes > soes >
sois.

10.9. DESPEDIR, EXPEDIR, IMPEDIR,


MENTIR, EXPEDIR, IMPEDIR, ARDER
A conjugação normal desses verbos foi, em outro tempo, despido,
expido, impido. Conforme dissemos antes, a ideia de que eles seriam deri-
vados de pedir levou o povo a conjugar aqueles verbos por este e assim te-
mos, por analogia a peço, despeço, expeço, impeço.
No antigo português, os verbos mentir, sentir, arder, de mentire, sen-
tire, ardere, tinham, na primeira pessoa do indicativo e em todas do subjun-
tivo, um ç, oriundo da evolução fonética dos grupos ti e de + vogal: mentio
>: menço; sentio senço; ardeo > arco. Depois, por analogia com as outras
pessoas do indicativo, passaram a menço > mento; senço > sento; arço > ar-
do. Mais tarde, deu-se a metafonia: minto, sinto etc.

141
José Pereira da Silva
10.10. PARTICÍPIO DA SEGUNDA CONJUGAÇÃO
Os verbos da segunda conjugação, no período arcaico, faziam o par-
ticípio em udo e, assim, eram correntes as formas recebudo, conheçudo. A
partir do século XVI, por analogia com os verbos da terceira conjugação
(ferido, fingido), os verbos da segunda passaram a fazer o particípio em ido:
recebido, conhecido, vencido.
Na linguagem jurídica ainda se mantém, por tradição, o particípio ar-
caico e é, comum escrever-se teúdo em lugar de tido e manteúdo por mantido.

10.11. DESLOCAMENTO DA ACENTUAÇÃO EM FORMAS VERBAIS


A acentuação tônica na 1ª e na 2ª pessoas do plural, do imperfeito e
do mais-que-perfeito do indicativo, bem como do imperfeito do subjuntivo,
em português, recuo da penúltima sílaba para a antepenúltima, por analogia
com a tonicidade das três pessoas do singular dos mesmos tempos.
O acento tônico do pretérito imperfeito do verbo esse latino era:
éram, éras, érat, erámus, erátis, érant. Em português o acento da primeira e
segunda pessoas do plural, por influência das demais, passou a ser: éramos,
éreis.
A palavra campa, portuguesa, deveria ser pronunciada campa, de
acordo com o seu étimo latino campana. Mas por analogia a campo, deslo-
cou o acento tônico.

INDICATIVO
IMPERFEITO MAIS QUE PERFEITO
amabam > amava amaveram > amara
amabas > amavas amaveras > amaras
amabat > amava amaverat > amara
amabamus > amávamos amaveramus > amáramos
amabatis > amáveis amaveratis > amáreis
amabant > amavam amaverant > amaram

IMPERFEITO DO SUBJUNTIVO
amavissem > amassem > amasse
amavisses > amasses > amasses
amavisset > amasset > amasse
amavissemus > amassemus > amássemos
amavissetis > amassetis > amásseis
amavissent > amassent > amasse

142
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
10.12. FEMININOS ANALÓGICOS
A própria maneira como se indicam os gêneros em português já é re-
sultado da analogia: a desinência o é o resultado da evolução do acusativo
da 2ª declinação latina – u (m) – na qual os nomes eram predominantemente
masculinos, do mesmo modo como a desinência a provém do acusativo da
1ª declinação – a (m) – na qual quase todos os nomes eram femininos.
A tendência para essa generalização era sensível já no latim, e tanto
isso é verdade que nomes femininos da 2ª declinação, como socrus e nurus,
passaram à 1ª, transformados em socra e nora. Mais frequente ainda foi a
transformação com substantivos femininos da 3ª declinação, que não termi-
navam em a e aos quais o latim vulgar emprestou depois desinência da 1ª
declinação: bicorne > bicorna > bigorna; pulĭce > pulĭca > pulga; nepte >
nepta > neta.
Já mostramos no lugar próprio (tópico 8.4) que muitos nomes neu-
tros, tomados ao singular, foram adaptados ao masculino, com a terminação
o, mas deram uma forma também para o feminino, tomada ao plural, onde
eles terminavam em a. É o caso de braço e braça, ovo e ova, fruto e fruta,
lenho e lenha.
Aconteceu, porém, que muitas palavras, embora originariamente não
estivessem nesse caso, tomaram também, por analogia com aqueles nomes,
duas formas, uma para o masculino e outra para o feminino, como acontece
com barco e barca, poço e poça, ramo e rama, veio e veia, cabeço e cabe-
ça, madeiro e madeira, saio e saia, bolso e bolsa, caldeiro e caldeira etc.
No português, arcaico eram uniformes os substantivos e adjetivos
terminados em or, ol, ante, ês, e se podia dizer indiferentemente um pastor
ou uma pastor; meu senhor ou minha senhor; homem espanhol ou mulher
espanhol. Ainda no século XVIII, Antônio Dinis da Cruz e Silva escrevia “a
nossa português, casta linguagem”.
português(a), infant(e/a), senhor(a), espanhol(a).
A partir do século XV, fez-se sentir a ação da analogia e aqueles
nomes, antes uniformes, passaram a formar o feminino com o acréscimo da
desinência a: pastor, pastora; senhor, senhora; espanhol, espanhola; por-
tuguês, portuguesa.

10.13. PLURAIS ANALÓGICOS


Já tivemos ocasião de mostrar, no lugar oportuno, que certos plurais
em português têm formação analógica e não provieram do latim:

143
José Pereira da Silva
eles – formou-se com o acréscimo de s ao singular português ele e não po-
de originar-se do nominativo plural latino que era illi. (Cf. 9.3.3)
estes – forma-se com o acréscimo de s ao singular português e não pode
originar-se do acusativo plural latino que era istos.
lhes – O pronome lhes não existia em latim, como já foi mostrado: illi > *ili
> lhe. O plural lhes formou-se com o acréscimo de s ao singular, por
analogia com as demais palavras da língua. (Cf. 9.3.3.2)

10.14. CINCO, OITENTA, NOVENTA


No português de outros tempos dizia-se cinque (latim quinque), po-
rém o modelo de quatro, que termina em o, transformou-o em cinco.
Para igualar-se a septuaginta e nonaginta, entre os quais se encon-
trava na série numérica, octoginta, entre os quais se encontrava na série
numérica, octoginta transmudou-se em octaginta > oitaenta > oiteenta >
oitenta.
De nonaginta só se poderia ter noenta. No latim vulgar deve ter-se
criado *novaginta, sob a influência de novem.

144
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

11. FORMAÇÃO DO VOCABULÁRIO PORTUGUÊS

O que foi estudado até agora permite que se tenha uma ideia a respei-
to da maneira como se formou e se enriqueceu, para chegar até nós, a língua
portuguesa.
A maior contribuição da língua é latina, mas muitos outros povos, an-
tes e depois dos romanos, concorreram para formar e ampliar o vocábulo do
pequenino reino fundado um dia por Dom Afonso Henriques na faixa oci-
dental da Península Ibérica.
Ainda hoje podem ser encontradas palavras de procedência vária no
idioma de Portugal, que se misturam com os vocábulos sabidamente de ori-
gem latina, de tal modo que seria justo fazer-se a seguinte divisão para efei-
to de estudos:
a) vocábulos pré-romanos: ibéricos, celtas, fenícios, cartagineses,
gregos etc.
b) vocábulos latinos
c) vocábulos pós-romanos: provençais, germânicos, árabes, france-
ses, italianos, asiáticos, africanos, americanos, ingleses etc.
Nem sempre é fácil uma diferenciação precisa, rigorosa, dada a ma-
neira como se misturam dentro do vocabulário os elementos de determinado
grupo. É o que acontece, por exemplo, com os vocábulos de origem grega.
É fora de dúvida que colonos gregos habitaram a Península Ibérica antes
dos romanos e lá fundaram colônias prósperas como Sagunto e Sevilha
(primitivamente chamada Hispalis), mas as palavras que nessa fase vão
atingir o vocabulário da Lusitânia ficarão, depois, forçosamente perdidas na
fala dos colonos latinos, uma vez que, por várias razões, o léxico de Roma
estava cheio de elementos tomados ao grego.
Em todo caso, em um trabalho como este, mais de informação didáti-
ca, não importam as indagações profundas e minuciosas, bastando apenas
lembrar quais as contribuições de que se formou o léxico português e como
foram elas recebidas.

145
José Pereira da Silva
11.1. VOCÁBULOS PRÉ-ROMANOS
11.1.1. Elementos ibéricos
Os iberos foram os mais antigos habitantes de que se tem notícia na
Península Ibérica. Como não há documentos literários deixados por eles, o
que deles conhecemos, no vocabulário, é tomado dos nomes próprios, de
inscrições lapidares, de moedas, de palavras citadas por autores gregos e la-
tinos, e do falar vasconço, conservado ao noroeste dos Pireneus como últi-
ma lembrança das derradeiras tribos ibéricas puras.
São de origem ibérica, além de nomes de rios como Tagus (Tejo),
Anas (Guadiana) e Lima, nomes comuns como lousa, arroio, páramo, vei-
ga, nava, bezerro, barro, abóbora, cama, sapo, sarna, morro, modorra,
carrasco, bizarro, esquerdo, baía, balsa. Como elementos morfológicos,
são de origem ibérica os sufixos arra, erro, urro, orro, que tanto aparecem
isolados (bocarra, naviarra, cigarro) como combinados ao sufixo ão: can-
zarrão. (Cf. 1.6.1.2)

11.1.2. Elementos celtas


Os celtas chegaram à Península Ibérica provenientes da Gália primi-
tiva, e acabaram formando com os habitantes que lá encontraram a mescla
conhecida pela designação de celtiberos.
Houve grande contribuição céltica em nomes de lugares, quase todos
com a terminação briga, que em celta significava castelo: Conimbriga
(Coimbra) Setóbriga, Lecóbriga, Arcóbriga, Bragança.
Entre os substantivos comuns são positivamente de procedência cél-
tica: saio, saia, bragas, cogula, camisa, grama, raio, touca, carpinteiro,
beijo (latim baseu), mina, duna, roca, peça, bico, carro, caminho, cambaio,
cerveja, seara, légua, brio, grenha, cambiar, eiva, eivado. (Cf. 1.6.1.1)

11.1.3. Elementos fenícios e cartagineses


Os vocábulos de origem fenícia devem ter chegado à Península em
duas ocasiões diferentes: primeiro diretamente, levados pelos próprios fení-
cios, cerca de 12 séculos antes de Cristo; mais tarde, por intermédio dos car-
tagineses, descendentes daqueles, aproximadamente no século II a.C.
Apesar dessa duplicidade de influências, e a despeito também de te-
rem deixado na Península colônias florescentes como Gades > Cádis e Car-
tagena, fenícios e cartagineses legaram ao vocabulário português muito

146
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
poucas palavras, entre as quais podem destacar saco, barca, mapa, nata, su-
fete e, segundo Adolfo Coelho, Lisboa.

11.1.4. Elementos gregos


É certo que os gregos, navegadores tão audazes quanto os fenícios,
após terem semeado colônias no sul da Itália e da França, chegaram à Pe-
nínsula Ibérica cerca do século VII antes da era Cristã. Apesar disso, porém,
os vocábulos que, a partir dessa época, teriam entrado no léxico da Ibéria,
graças às relações comerciais e militares entre os helênicos e os primitivos
habitantes, ficaram perdidos, certamente diluídos dentro do vocabulário la-
tino, no qual era imensamente grande o número de palavras de procedência
grega. Convém não esquecer que Roma, não apenas viu a sua cultura nascer
à luz da influência helênica, principalmente depois da tomada de Tarento,
mas também viveu sempre sob essa influência, mesmo depois que as legiões
romanas conquistaram a Grécia e as colônias gregas.
Por causa dessa circunstância, não e possível conhecerem-se vocábu-
los gregos entrados no léxico peninsular, e particularmente no de Portugal,
antes da chegada dos romanos, sendo mais abundantes ainda os que se di-
fundiram depois da introdução do cristianismo na antiga Ibéria.
São de proveniência grega: filosofia, teatro, academia, liceu, escola,
alfabeto, pergaminho, carta, hora, relógio, época, clero, batismo, batizar,
pároco, bíblia, evangelho, anjo, esmola, órfão, diabo, ermo, esfera, diocese,
paróquia, anjo, apóstolo, bispo, crisma, bolsa, cara, cola, governar etc.,
além dos sufixos ia, essa, ismo, ejar, izar.
Mais tarde, e até nossos dias, os estudiosos e os cientistas continua-
ram a recorrer ao grego para formar os neologismos de que se valem para a
linguagem técnica. São os chamados helenismos. Entre os termos novos, as-
sim formados, temos: microscópio, telêmetro, telefone, telégrafo, fonógrafo,
anódino, protoplasma, homeopata, fonema, fonética, bibliófilo etc.

11.2. VOCÁBULOS LATINOS


É fácil ver, pelo que foi estudado nos capítulos anteriores, que os vo-
cábulos latinos constituem a parte mais importante do léxico português,
donde ter-se afirmado, no início do livro, que o português representa o esta-
do atual do latim vulgar.
Aliás, não é o vocabulário o que caracteriza uma língua, mas sim a
estrutura morfológica e sintática. Passam os séculos, entra a língua portu-
guesa em contato com os mais diversos idiomas, alguns até bastante exóti-

147
José Pereira da Silva
cos, como os asiáticos e africanos, mas nada se perde do caráter profunda-
mente latino da fala lusitana. Antes até são as palavras estranhas sobrevin-
das à língua com o passar dos anos, que se submetem à disciplina que o por-
tuguês herdou do latim, e aceitam as flexões de gênero e número próprias
dos nomes portugueses ou os acidentes verbais que caracterizam as conju-
gações. Eis por que o romeno, apesar de possuir um altíssimo percentual de
palavras de origem eslava, continua a ser língua românica; o inglês, porque
conte perto de oitenta por cento de palavras de origem latina, não deixa de
ser língua anglo-germânica; e o persa, cujo vocabulário básico é totalmente
semita, não renega sua origem indo-europeia.
Que se veja, para exemplo, o que acontece às palavras semitas entra-
das na língua. Por três vezes povos de origem semítica – fenícios, cartagine-
ses, árabes – invadiram a Península, mas apesar disso, e embora o último
deles mantivesse a ocupação durante quase oito séculos, a influência deles
se fez sentir apenas no vocabulário, sem contribuição na fonética, na morfo-
logia e na sintaxe.
É importante notar-se que, embora seja grande o número de palavras
estrangeiras incorporadas ao português, são latinos todos os nossos prono-
mes (pessoais, possessivos, indefinidos, demonstrativos, relativos), os nu-
merais, os advérbios, as preposições e as conjunções.
Os elementos latinos da língua portuguesa compreendem dois gru-
pos: 1) vocábulos populares; 2) vocábulos eruditos. (Cf. 7.4)
Os vocábulos populares representam o cerne do léxico português, re-
sultam da evolução natural do latim vulgar, alterado de maneiras múltiplas.
Os vocábulos eruditos foram trazidos diretamente do vocabulário la-
tino, pelos estudiosos, para atender às necessidades da linguagem científica
ou se buscaram às obras dos grandes escritores romanos para servir à beleza
e propriedade do estilo literário.
Flama: flamma > flama; Auscultar: auscultare > auscultar; Solitário: soli-
tariu > solitário.
Os vocábulos semieruditos são as que entraram na língua nos pri-
mórdios da época literária, sofrendo, ainda, algumas transformações fonéti-
cas, porém menores que as populares.
Humanidade: humanitate > humanidade
A permanência do i pretônico denuncia influência erudita enquanto
que a sonorização das surdas intervocálicas é uma influência popular.

148
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
11.3. VOCÁBULOS PÓS-ROMANOS
11.3.1. Elementos germânicos
O grosso dos vocábulos germânicos incorporados ao português apa-
rece depois que os visigodos ocupam a Península, mas antes disso muitas
palavras de procedência gótica já tinham sido incorporadas ao latim vulgar,
graças aos contatos de múltipla modalidade que os romanos mantinham
com os germanos; relações de fronteira, guerras, inclusão de recrutados ou
de mercenários nas legiões. Em muitos escritores latinos já aparecem, sob
forma alatinada, inúmeros vocábulos germânicos como bando, bramar, al-
bergue, elmo, trégua, guarda, harpa, carpa, branco, liso, morno, fresco,
gravar, trepar, burgo, adubar, arreio, agasalho, canivete, rico.
Depois das invasões dos visigodos, o número de vocábulos góticos
incorporados à fala peninsular aumenta consideravelmente, e são quase to-
dos referentes à arte militar, a utensílios, a usos e costumes: arauto, arrear,
arreio, esgrima, barão, banho, sopa, grupo, esquife, luva, droga, banco,
dardo, espeto, feltro, galardão, guerra, guia, jardim, lista, laca, escaramu-
ça, espora, marco, marechal, roca, roubar, trégua, sítio, roupa etc. Os qua-
tro pontos cardeais: norte, sul, leste e oeste. Alguns nomes próprios: Ataul-
fo, Frederico, Godofredo Álvaro, Elvira, Branca, Fernando, Geraldo, Gui-
lherme, Rodrigo, Teles, Rui.

11.3.2. Elementos árabes


A influência árabe no falar da Península não é tão grande como deve-
ria ser, considerados os quase oito séculos de dominação. Além de se limitar
exclusivamente ao vocabulário, não vai muito além de mil palavras, na sua
maioria relativas à agricultura, à botânica, ao comércio. Essa reduzida ex-
pansão é devida, sem a menor dúvida, à origem semítica dos árabes, bem
diversa da descendência indo-europeia dos povos que por primeiro e mais
fundamente habitaram a Península. (Cf. tópico 1.5.2 e SILVA, 1996)
A maioria das palavras árabes existentes em português é fácil de
identificar por causa do artigo al que apresentam e cujo l é assimilado
quando vem antes de r, z, c, d: azeitona; arroz, açougue; acelga, aduana,
acicate, adarga, armazém, arrabalde etc. A influência é tão sistemática que
determinou a arabização de vocábulos latinos como alporão e alperche (de
porão e pêssego). (Cf. ANEXO 2, p. 193-195)

149
José Pereira da Silva
11.3.3. Elementos provençais e franceses
A nacionalidade portuguesa nasceu ao abrigo da casa de Borgonha, e
essa circunstância ligava Portugal às influências da França, o que gerou os
primeiros passos da literatura portuguesa na imitação da poesia provençal.
Daí resultou que, desde os primeiros anos de vida, a língua falada pelos por-
tugueses apresenta apreciável número de palavras provençais e francesas,
número que cresce sempre mais porque foi grande e constante, século após
século, a irradiação da cultura francesa para Portugal. Justamente porque a
contribuição é constante e ininterrupta, as palavras de origem francesa exis-
tentes na língua portuguesa compreendem dois grandes grupos:
1º – palavras entradas em épocas remotas e que foram definitivamente in-
corporadas ao nosso léxico, às vezes sem alteração da forma primiti-
va: chapéu, libré, assembleia, genebra, linhagem, manjar, dama,
joia, loja, chaminé, maré, alegre, anel, jogral, trovador etc.
2º – palavras de aquisição mais recente e que conservam ainda a forma
francesa ou foram adaptadas ao português: comitê, detalhe, toalete,
atelier, assassinato, abajur, plissê, tricô, buquê, cabina, chance, go-
vernante, greve, maquete, menu, nuance, omelete, chofer, felicitar,
fetichismo, placar, apartamento, aleia, ancestral, avalancha, aveni-
da, banal, bicicleta,blague, cabotagem, cachenês, chassis, restau-
rante, revanche, silhueta, creche, debacle, deboche, ecran, elite, en-
velope, feérico, flanar, fuzir, frapê, pose, reclame, valise, vitrina etc.

11.3.4. Elementos ingleses


São numerosas as palavras anglicanas incorporadas ao português,
graças às estreitas relações comerciais e políticas que sempre existiram en-
tre Inglaterra e Portugal. Algumas perderam a forma primitiva, outras con-
servam-na total ou parcialmente: bar, bife, brigue, clube, dândi, escoteiro,
esporte, gim, futebol, iate, grumete, jóquei, júri, lanche, basquetebol, dólar,
recital, bonde, grogue, macadame, panfleto, piquenique, pudim, repórter,
revólver, rum, sanduíche, teste, túnel, turfe, uísque, além da avalanche da
terminologia tecnológica que vem desabando ultimamente dos Estados Uni-
dos sobre todo o mundo.

11.3.5. Elementos italianos


A grande influência da Itália em Portugal se faz sentir a partir do sé-
culo XVI, quando autores portugueses, como Sá de Miranda, levam para a
terra de Camões as belezas da literatura peninsular. Daí por diante, graças às

150
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
comunicações artísticas e às relações comerciais, a língua de Dante está
sempre presente no vocabulário português. São de origem italiana: na lin-
guagem artística: adágio, alegro, andante, ária, bandolim, barcarola, can-
tata, cavatina, contralto, crescendo, dueto, maestro, moderato, piano, pizi-
cato, quinteto, serenata, solfejo, sonata, soprano, tenor, traviata, alerta,
balcão, violoncelo, boletim, festim, fiasco, gazeta, piloto, poltrona, tômbola,
aquarela, caricatura, madrigal, arlequim, carnaval, confete, palhaço, pas-
tel, porcelana, camarim, cenário, concerto, soneto etc. Na linguagem mili-
tar: alarme, alerta, anspeçada esquadrão, bandido, esdrúxulo, piloto, fraga-
ta, galera, mosquete, sentinela etc. Na culinária: banquete, macarrão, ta-
lharim, mortadela, salame, salsicha etc.
Vale a pena lembrar que, se deconsiderarmos a recente linguagem
técnica da informação, o italiano é a terceira língua, logo depois do francês
e do latim, em quantidade de termos exportados como empréstimos para ou-
tras línguas, em todo o mundo.

11.3.6. Elementos espanhóis


A origem comum e a vizinhança, além de ligações políticas estreitís-
simas em certas épocas, foram fatores que estabeleceram ligações linguísti-
cas muito íntimas entre Portugal e Espanha. São cerca de quatrocentos os
vocábulos espanhóis correntes em português e entre eles vale destacar: cas-
tanhola, fandango, pandeiro, amistoso, apetrecho, mochila, colcha, faça-
nha, camarilha, caudilho, deslumbrar, vislumbre, bombacha, galã, manti-
lha, ojeriza, cordilheira, endechas, hediondo, neblina, novilho, peseta, pi-
rueta, realejo, rebelde, trecho etc.

11.3.7. Elementos alemães


As palavras do alemão moderno introduzidas no português são pou-
cas, quase todas da linguagem científica e algumas de uso artístico: níquel,
zinco, cobalto, bismuto, valsa, gás, manganês, cultura, vagão, vermute etc.

11.3.8. Elementos asiáticos


Era natural, depois da conquista da Ásia pelos portugueses, que o
contato com os povos do Oriente, durante séculos, trouxesse para o vocabu-
lário lusitano inúmeras palavras novas, tanto do japonês, como do chinês,
do hisdustânico ou do malaio. São asiáticas: sândalo, nirvana, pijama, nan-
quim, chávena, chá, tufão, junco, manga (a fruta), banzo, micado, gueixa,
mussumê, samurai, jasmim, bazar, laranja, paraíso, tafetá, tulipa, turbante,

151
José Pereira da Silva
anil, azul, bule, bambu, catre, jangada, jaca, pires, biombo, leque, quimo-
no, ganga, avatar, jambo, suarabácti, divã etc.

11.3.9. Outros elementos:


1– Russos – bolchevique, czar, czarina, escorbuto, estepe, rublo, soviete,
troica, vodca.
2– Poloneses – mazurca, polca.
3– Turcos – casaca, caviar, cossaco, gaita, horta, paxá, sandália.
4– Holandeses – escuma, quermesse.
5– Africanos – banana, banjo, girafa, macaco, moleque, zebra.
6– Americanos:
a) Chile – abacate, cacau. b) Antilhas – canoa, colibri, furacão, tabaco.
c) México – tomate, batata. d) Peru – alpaca, charque, mate, vicunha.
e) Brasil – a contribuição brasileira será estudada posteriormente.

QUESTIONÁRIO
1. Dar a procedência das seguintes palavras: guerra, arroio, caminho, bar-
ca, anjo, refém, álgebra, jogral, vitrina, pandeiro, bar, gás, escorbuto,
quermesse, banana, furacão, abacate, batata, anil, bule, chá, sândalo.
2. Definir e exemplificar: palavras populares, eruditas e semieruditas.
3. Definir e exemplificar latinismos e helenismos.

152
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

12. O PORTUGUÊS NO BRASIL


CONTRIBUIÇÃO BRASILEIRA PARA O LÉXICO DA LÍNGUA

Descoberto o Brasil, o idioma português foi para aqui trazido pelos


colonizadores.
Como bem acentua o Professor Antenor Nascentes,
Uma língua não se espalha através de uma região sem alterar-se aqui e ali.
Assim aconteceu ao latim quando foi introduzido nas diversas províncias do Im-
pério Romano. Outro tanto se deu com o português na sua expansão da margem
esquerda do Minho à direita do Guadiana e mais tarde pela Ásia, Oceania, África
e América. (NASCENTES, 1960)
Era mais que natural que a língua portuguesa, transportada para o
Brasil, ao calor de outro clima, manejada por grupos humanos bem diversos
daqueles que habitam Portugal, acabasse por apresentar características no-
vas, próprias do meio a que devia servir e que a fariam diferente da língua
falada no país de onde provinham os colonizadores, em mais de um aspecto.
De começo ganhou o português difundido no Brasil uma característi-
ca dominante à qual aludem todos os estudiosos: uma suavidade que não se
nota na fala portuguesa. O falar português é áspero, enérgico, quase rude; o
brasileiro é suave, doce. Para um grande foneticista português, o caráter len-
to da nossa dicção arrastada contrasta com a energia do falar português.
(VIANA, 1892)

Não existe nenhuma “Língua Brasileira”


A língua oficial do Brasil é a portuguesa. Não existe nenhuma “lín-
gua brasileira”.
A fim de opinar a respeito da denominação do idioma nacional, con-
forme determinava o artigo 35 do Ato das Disposições Transitórias apenso à
Constituição Brasileira de 1946, o Ministro da Educação e Saúde nomeou
uma comissão de professores, escritores e jornalistas, a qual aprovou una-
nimemente o seguinte PARECER, de autoria do eminente Professor Sousa
da Silveira, relator da Comissão:

153
José Pereira da Silva
Sr. Ministro:
A comissão, designada por V. Exª, com a aprovação do Sr. Presidente da Re-
pública, para cumprir a determinação contida no art. 35 do Ato das Disposições
Transitórias, apenso à Constituição dos Estados Unidos do Brasil promulgada em
28 de setembro do corrente ano, tem a honra de trazer ao conhecimento de V. Exª
o resultado dos seus trabalhos.

BREVE RETROSPECTO HISTÓRICO


Descoberto o Brasil pelos portugueses em 15000, tomada posse da terra em
nome do Rei de Portugal, e iniciada anos depois a colonização, a língua portugue-
sa foi trazida para cá, e se foi pouco a pouco propagando.
Encontrou-se, como era natural, com a língua dos índios; e, durante algum
tempo, foi mesmo o tupi falado em maior proporção do que o português.
Não tardou, porém, que se verificasse um princípio linguístico que se tem re-
conhecido como verdadeiro; postas em contato duas línguas, uma instrumento de
uma civilização muito superior à civilização a que a outra serve, esta cede o seu
terreno à primeira. Assim, o português, expressão de uma civilização mais adian-
tada, triunfou sobre o tupi.
Desde os primeiros tempos da nossa história, já apareciam escritas em portu-
guês, obras relativas ao Brasil; e toda a nossa literatura, de então para cá, tem sido
vazada em língua portuguesa.
Os nossos mais altos escritores, uns com maior, outros com menor apuro esti-
lístico, estes aproximando-se mais, aqueles menos, do padrão ideal da língua lite-
rária, todos escreveram em português. Assim o fizeram José Bonifácio, João
Francisco Lisboa, Odorico Mendes, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casi-
miro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varela, Gonçalves de Magalhães, Porto-
Alegre, Manuel Antônio de Almeida, Alencar, Macedo, Machado de Assis, Aluí-
sio de Azevedo, Joaquim Nabuco, Eduardo Prado, Rui Barbosa, Taunay, Afonso
Arinos, Euclides da Cunha, Raul Pompeia, João Ribeiro, Olavo Bilac, Alberto de
Oliveira, Raimundo Correia, Vicente de Carvalho, etc., etc.
A própria literatura nossa regional exprime-se numa língua que, apear de tu-
do, não deixa de ser a portuguesa; e o falar dialetal da nossa gente inculta é, na
essência, língua portuguesa.
Alguns dos grandes escritores brasileiros, como Rui Barbosa, João Ribeiro e
Raimundo Correia, que no princípio da sua carreira literária, embora escrevessem
em português, se afastavam um pouco do tipo linguístico, esforçaram-se depois
por acompanhá-lo de mais perto, e conseguiram tornar-se modelos da mais for-
mosa vernaculidade.
É a língua portuguesa aquela em que nós, brasileiros, pensamos; em que mo-
nologamos; em que conversamos; que usamos no lar, na rua, na escola, no teatro,
na imprensa, na tribuna; com que nos interpela, na praça pública, o transeunte
desconhecido que nos pede uma informação; é, por assim dizer, a nossa língua de
todos os momentos e de todos os lugares.

154
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

CONSIDERAÇÕES LINGUÍSTICAS
É inteiramente falso dizer-se que, assim como do latim vulgar transplantado
para o ocidente da Península Ibérica resultou o idioma português, assim do portu-
guês trazido para o Brasil resultou a língua brasileira.
Proceder desse modo é comparar fatos diversos, e a conclusão a que se chega
percorrendo semelhante caminho, será, forçosamente, errada.
O latim vulgar levado para o ocidente da Península Ibérica e adotado por lín-
gua própria pelas populações que lá habitavam – de civilização inferior à dos ro-
manos –, esteve longo tempo sem escrever-se; e, depois da queda do Império
Romano do ocidente, ficou entregue à ação das forças naturais de evolução e dife-
renciação; quando, mais tarde, foi adotado como língua escrita, estava muitíssimo
diversificado do padrão latino da língua clássica, conservado nas obras dos gran-
des escritores romanos e imitado pelos escritores do baixo latim.
Comparando esse latim vulgar com o antigo latim dos documentos, literários
ou não, ele apresenta diferenças de estrutura fonética, de morfologia e sintaxe,
que constituem características suficientes para torná-lo uma nova língua, inde-
pendente do latim, embora dele derivada.
Com o português transplantado para o Brasil, outros, bem outros, são os fa-
tos. Nunca ficou em abandono igual ao do latim vulgar na Península Ibérica; ao
contrário, esteve sempre em contato com o da metrópole, onde a literatura atingiu
alto cume no século XVI e continuou no seu desenvolvimento florescendo até os
nossos dias. Frei Vicente do Salvador, nascido no Brasil, escrevia em português a
sua História do Brasil; o Padre Antônio Vieira pregara, no Brasil, muitos dos
seus sermões; Morais, nascido no Brasil, compunha o seu Dicionário da Língua
Portuguesa; brasileiros iam a Portugal e formavam-se na Universidade de Coim-
bra; D. João VI, com A SUA CORTE, VEIO PARA O Rio de Janeiro e aqui per-
maneceu por mais de uma década. Os nossos grandes poetas épicos Santa Rita
Durão e Basílio da Gama; outros ilustres poetas nossos, como Cláudio Manuel,
Alvarenga Peixoto etc., escreviam em excelente língua portuguesa, com os olhos
sempre voltados para os monumentos literários de Portugal.
Os estudos linguísticos, sérios e imparciais, aplicados ao Brasil, fazem-nos
concluir que a nossa língua nacional é a língua portuguesa, com pronúncia nossa,
algumas leves divergências sintáticas em relação ao idioma atual de além-mar, e o
vocabulário enriquecido por elementos indígenas e africanos e pelas criações e
adoções realizadas em nosso meio.
Ainda mais: esses estudos, à proporção que se ampliam e se aprofundam, re-
duzem a lista dos brasileirismos, mostrando que alguns deles existem em dialetos
portugueses (parecendo que de Portugal nos vieram) e que, se outros podem ser
admitidos como inovações nossas, podem também considerar-se relíquias brasi-
leiras de arcaísmos portugueses.
As palavras brasileiras são iguais às portuguesas na sua composição fonética,
apenas diferindo na pronúncia; os nomes de números são os mesmos em Portugal
e no Brasil; as conjugações são as mesmas, num e noutro país; as mesmas são
também as palavras gramaticais: os pronomes (pessoais, possessivos, demonstra-
tivos, relativos, interrogativos, indefinidos), os artigos, os advérbios (de tempo,
modo, quantidade, lugar, afirmação, negação), as preposições e as conjunções.
Em geral é o mesmo o gênero gramatical, cá e lá; são as mesmas as regras de

155
José Pereira da Silva
formação do plural; o mesmo o sistema de graus de substantivos e adjetivos; os
mesmos os preceitos de concordância nominal e verbal; quais na totalidade dos
casos é a mesma a regência dos complementos dos nomes e dos verbos; o mesmo
o emprego de modos e tempos, e a mesma a estrutura geral do período quanto à
sucessão das orações e a ligação de umas com outras.
Lemos e compreendemos tão bem uma página de Eça de Queirós, quanto
uma de Machado de Assis; e, quando, em escrito de autor brasileiro ou português,
desconhecemos o significado de qualquer palavra, recorremos, salvo tratando-se
de algum termo muito restritamente regionalista, a um dicionário da língua portu-
guesa; nunca o brasileiro, para ler, compreendendo, um jornal ou livro português,
precisou de aprender previamente a língua de Portugal como se aprende uma lín-
gua estrangeira; não há dicionário português-brasileiro, nem brasileiro-português,
como há, por exemplo, dicionário português-espanhol e espanhol-português; a
gramática da língua nacional do Brasil é a mesma gramática portuguesa.
Afirmações idênticas a essa que acabamos de fazer, não teriam lugar se com-
parássemos o português com o espanhol, não obstante serem línguas românicas
parecidíssimas uma com a outra: é que espanhol e português são línguas diversas,
ao passo que é a mesma língua a que se fala e escreve no Brasil e a que se fala e
escreve em Portugal.
Quando os linguistas tratam da geografia das línguas românicas, incluem a
língua do Brasil no domínio do português; e nas estatísticas relativas ao número
de pessoas que falam as grandes línguas do globo, o povo brasileiro figura entre
os de língua portuguesa.

CONCLUSÃO
À vista do que fica exposto, a Comissão reconhece e proclama esta verdade:
o idioma nacional do Brasil é a língua portuguesa.
E, em consequência, opina que a denominação do idioma nacional do Brasil
continue a ser: língua portuguesa.
Essa denominação, além de corresponder à verdade dos fatos, tem a vanta-
gem de lembrar, em duas palavras – língua portuguesa – a história da nossa ori-
gem e a base fundamental da formação de povo civilizado.
Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1946.

De que resultam essas diferenças?


De fatores vários, dependentes do clima, da alimentação e da raça –
os fatores que mais influem na fala humana – e aos quais se juntam certas
tendências herdadas do falar dos índios e dos africanos escravos.
Não obstante apresentarem, o português do Brasil e o de Portugal,
algumas diferenças entre si, essas diferenças não são suficientes para se
considerar uma língua brasileira em contraposição à língua portuguesa,
pois, como disse Adolfo Coelho “a língua do grande império da América
Meridional não se afasta senão nalgumas peculiares de importância secun-
dária do português da Europa”.

156
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
Em que consistem as diferenças entre a fala do Brasil e de Portugal?
Tais diferenças são de três ordens, principalmente: fonética, sintática
e semântica.

12.1. DIFERENÇAS FONÉTICAS


Há em Portugal fonemas que se desconhecem no Brasil; os timbres
vocálicos lusitanos raramente se confundem com os brasileiros, embora
guardem estreita correspondência; entre nós, as sílabas átonas têm mais ou
menos a mesma duração que as tônicas, enquanto que, na fala ultramarina,
elas são proferidas com tal rapidez, que não se chega quase a distinguir niti-
damente que vogais encerram.
Limitamo-nos a apreciar as principais diferenças fonéticas, uma vez
que o presente trabalho, de orientação didática, não comporta o estudo pro-
fundo de minúcias.
1) O falar brasileiro não aceita vogal aberta antes de consoante nasal.
Dizemos Antônio, não António; colônia, não colónia; dêmos, e não démos.
Por essa razão é que só artificialmente será aberto no Brasil, como é em
Portugal, o a tônico da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do in-
dicativo da 1ª conjugação: fechamos, não fechámos; andamos, não andámos
etc.
Desconhecemos o â quase ê dos portugueses: Maria, bacia.
2) São também fechadas ou reduzidas, no Brasil, vogais resultantes
de antigas crases e que, por isto, são abertas em Portugal.
vàdio em Portugal
vagativu > vaadio >
vadio no Brasil
pàdeiro em Portugal
panatariu > paadeiro >
padeiro no Brasil
mòrdomo em Portugal
maiordomo > maordomo > moordomo>
mordomo no Brasil
predigar > prègar em Portugal
praedicare >
preegar > pregar no Brasil

3) A vogal e pretônica, no Brasil, tem pronúncia normal ou soa como


i: fechar > fechar, redondo > redondo, menino > minino.
Em Portugal geralmente desaparece: f’char, r’dondo, m’nimo
O mestre português Agostinho de Campos assinalou muito bem que
não se pode apurar ao certo qual a escrita mais conveniente, se Terroso,
Tarroso ou Torroso, uma vez que “a acentuação forte da sílaba tônica pro-

157
José Pereira da Silva
duz o empalidecimento ou a atrofia das átonas ou subtônicas” (Revista de
Cultura, n° 103).
4) Também o i pretônico não sofre alteração da pronúncia normal
brasileira, mas desaparece na fala portuguesa:
No Brasil: militar, vizinho, ministro
Em Portugal: m’litar, v’zinho, m’nistro
5) A vogal o, pretônica, seja inicial ou interna, é fechada na pronún-
cia brasileira: orelha, ondulação, porteiro, coroa
Em Portugal soa como u ou desaparece: urelha, undulação, purteiro,
c’roa
6) O ditongo ei é proferido, no Brasil, de duas maneiras: às vezes,
como e+i – lei, sei, mandei – às vezes, principalmente antes de j e de r, co-
mo ê – bêjo, pêxe. Em Portugal ele é sempre âi: lâi, primâiro, bâijo, pâixe.
Soa também ãi, na fala portuguesa, o ditongo grafado em, ens, e que
no Brasil dizemos ẽi: também (tambẽi e tambãi), ninguém (ninguẽi e nin-
gãi) etc. Que se leia esta quadra de Tomás Ribeiro:
Triste de quem der um ai
Sem achar eco em ninguém,
Felizes os que têm pai,
Mimosos os que têm mãi.
7) O ditongo ou, na fala popular, descuidada, no Brasil, é dito ô –
couve > côve, louco > lôco, trouxe > trôsse, ouro > ôro; as pessoas cultas
dão aos ditongos a sua pronúncia real: louco, touro, ouro, trouxe. Em Por-
tugal o comum é a alternância ou > oi: couve, louco, mas oiro, toiro, tesoi-
ro.
8) É comum, na fala portuguesa, a intercalação de um i para separar
o hiato: a i água, foi a i aula. Tal fenômeno jamais ocorre no Brasil.
9) No trato das consoantes, é sistemática em Portugal, a alternância b
> v – v > b, jamais verificada no Brasil, uma vez que não temos o b fricati-
vo intervocálico: bou (vou); vurru (burro); biste (viste); bento (vento).
10) É também sistemático, no falar lusitano, o aparecimento de um i
paragógico depois do l e do r finais: Manueli (Manuel); soli (sol); doutoiri
(doutor); deberi (dever), fenômeno jamais verificado no falar de pessoas
cultas do Brasil e, na linguagem popular, somente em poucas regiões.
11) Em certos encontros consonantais, é frequente, no falar brasilei-
ro, a epêntese de um e ou i, fato que não ocorre na fala lusitana: abissoluta-
mente, por absolutamente; adivogado ou adevogado, por advogado, e até
mesmo Edigar, por Edgar.

158
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
12) Não ocorre no Brasil a nasalidade que o pronome átono apresen-
ta em Portugal depois de não, quem, bem e outras nasais: Não no viram;
Quem no mandou? Bem no mostram.
13) Os pronomes átonos me, te, se, lhe, inteiramente desprovidos de
acentuação em Portugal (m’, t’, s’, lh’) soam no Brasil mi, ti, si, lhi, o que
determina, como veremos a seguir, alterações sintáticas de vulto.

12.2. DIFERENÇAS SINTÁTICAS


Estas sumaríssimas observações se referem, é claro, à língua culta de
ambos os países, à chamada LÍNGUA PADRÃO.
Há diferenças sintáticas, na linguagem brasileira, que não merecem
referência porque só existem no falar do povo sem cultura. É o caso, entre
outros, do emprego do pronome de terceira pessoa, ele(s), ela(s), como ob-
jeto direto: Vi ele, Encontramos ela etc. Outras, porém, são comuns mesmo
entre pessoas de boa situação sócio-cultural, e dessas vale a pena destacar:
1) Colocação do pronome oblíquo no começo da oração: Me traga um jor-
nal. Me empresta o livro. Tal uso jamais se encontra no falar português,
mesmo entre os indivíduos de menor cultura. Para essa tendência concorre,
sem dúvida alguma, o fato de ser o pronome totalmente átono para os por-
tugueses (m’, t’, s’, lh’) e tônico para os brasileiros (mi, ti, si, lhi), de modo
que entre nós pode formar uma sílaba por vezes mais forte do que o verbo
(mi vende, mi traz), enquanto que em Portugal ele vive na dependência da
tonicidade verbal (venda-m’, traga-m’).
João Ribeiro encontrava para isso também uma razão sentimental:
Traga-me, venda-me, dizia ele, é uma ordem, soa com arrogância; me traz,
me vende, é um pedido, traduz ternura.
Vale a pena lembrar que é uma tendência muito brasileira usar o pre-
sente do indicativo pelo imperativo, mesmo nas negações: Me traz o livro
ou Não vem cá.
2) O brasileiro, lembra Antenor Nascentes na obra citada, não intercala pa-
lavra alguma entre o pronome oblíquo e o verbo, ao passo que o português
interpõe o advérbio não ou os pronomes retos:
A música que não se tocou é a minha (no Brasil)
A música que se não tocou é a minha (em Portugal)
3) É raro, muito raro mesmo, que no falar brasileiro se combinem os pro-
nomes me, te, lhe, nos, vos, com o, a, os, as, recurso frequente no uso lusi-
tano:

159
José Pereira da Silva
A sua carta? Ele não ma deu – diz-se em Portugal.
A sua carta? Ele não me deu – dizemos no Brasil, com supressão do
objeto direto.
4) Ainda a respeito dos pronomes o, a, os, as: não se costuma, no Brasil,
combiná-los com a segunda pessoa do singular ou com qualquer das três
pessoas do plural, como é comum no falar lusitano:
– Ama-lo tu? – perguntar-se-ia em Portugal, fazendo a combinação
amas + o = ama-lo
– Tu o amas? – preferir-se-ia no Brasil.
O mesmo se pode dizer das outras combinações: amamo-lo (amamos
+ o); amai-lo (amais + o); amam-no (amam + o); di-lo (diz + o); trá-lo (traz
+ o).
5) É comum no Brasil o uso da preposição em com os verbos de movimen-
to: Ir na cidade; Chegar na janela.
6) O português usa o infinitivo regido de a nas construções em que o brasi-
leiro prefere o gerúndio: O navio está a chegar, dirá um português; O navio
está chegando! exclamará um brasileiro.
Aliás, não é apenas nesses casos que o uso da preposição estabelece
diferença entre o falar brasileiro e o de Portugal. Que se vejam os seguintes,
abaixo:
Em Portugal No Brasil
Cheiro A alecrim Cheiro DE alecrim
Cedeu A grande pena Cedeu COM grande pena
Casa coberta A zinco Casa coberta DE zinco
Escangalhou-se A rir Escangalhou-se DE rir
Luvas pespontadas A preto Luvas pespontadas DE preto
Sentar-se AO trono Sentar-se NO trono
Estava À janela Estava NA janela

12.3. DIFERENÇAS SEMÂNTICAS


São inúmeros os vocábulos que têm, no Brasil, significado diverso
daquele que apresentam em Portugal. Vale a pena lembrar alguns, na rela-
ção de Renato Mendonça em O Português no Brasil:
Em Portugal ................... No Brasil Em Portugal ........ No Brasil
elétrico ............................... bonde animatógrafo .......... cinema
sopeira .............................. criada trem ........................ carro
moço .................................. carregador pastelaria ................ confeitaria
esquadra............................. delegacia bicha ....................... fila
revisor ................................ fiscal tabaco ..................... fumo
inspetor (de veículo) ......... sinaleiro rapariga ................. moça

160
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
guarda-freio ....................... motorneiro piúga ...................... meia (vestuário)
barco .................................. navio impedido ................ ordenança
paródia ............................... pândega carapinhada ............ refresco
desgarrada ......................... desafio (canto) neve ........................ sorvete
combóio ............................. trem rebuçado ................. bala
bica .................................... cafezinho talho ........................ açougue

12.4. CONTRIBUIÇÃO BRASILEIRA PARA O LÉXICO DA LÍNGUA


O português teve na língua tupi forte rival durante os primeiros sécu-
los da colonização.
Ocupavam, com efeito, os povos da raça tupi o litoral quase todo, por cerca
de seiscentas léguas, donde haviam expelido outros povos, sem dúvida conquista-
dores antes deles, e que, por sua vez, tiveram de ceder diante de forças mais nu-
merosas e aguerridas; dominavam ainda o vale do Paraná-Paraguai na sua média
zona, onde se limitavam com outras nações de procedência andina e lançavam co-
lônias através dos vales do Araguaia, Tapajós e Madeira, alcançando o Amazo-
nas, cujo curso disputavam e partilhavam com outros povos. (SAMPAIO, 1928)
Era natural, diante da importância dos povos de fala tupi, que os por-
tugueses, e principalmente os jesuítas, se aproveitassem do prestígio desses
ameríndios para estender e afirmar a conquista da nova terra.
O tupi foi a língua da catequese, a tal ponto que Anchieta, com a
gramática que dele escreveu, procurou sistematizá-lo e pô-lo ao alcance dos
missionários que se entregavam à tarefa de civilizar os silvícolas. Ele foi
também a língua da expansão e da conquista, porque dele se serviam os
bandeirantes na aventura gigantesca a que se lançavam à procura de ouro e
pedras e de que resultou o domínio do território brasileiro. Não é por outra
razão que Teodoro Sampaio afirma, na obra citada:
No Brasil, porém, deve-se a sua mais notável expansão aos próprios conquis-
tadores europeus, às numerosas expedições ou bandeiras que penetraram nos ser-
tões para descerem escravos índios e para a pesquisa do ouro; deve-se principal-
mente à catequese que tornou geral esse idioma bárbaro e o cultivou.
Principalmente durante os dois primeiros séculos de colonização, o
indígena se ligou de maneira múltipla à obra do colonizador: foi guia para a
conquista da terra, mão-de-obra para os trabalhos da lavoura, auxílio precio-
so nas lutas contra o estrangeiro invasor, serviçal nas atividades domésticas,
companheiro, criado e amigo. E os portugueses precisaram aprender a ma-
nejar a língua daqueles de quem dependeram muitas vezes, língua que foi
para a intimidade dos lares graças à união dos reinóis com as índias e que os
bandeirantes usaram amplamente para denominar os acidentes geográficos,
os rios e as cidades nascentes na heroica aventura do desbravamento.
Segundo o Padre Carlos Teschauer, da Companhia de Jesus,

161
José Pereira da Silva
Até o começo do século XVIII a relação do tupi para o português era de 3:1.
Em algumas capitanias, como São Paulo, Amazonas e Pará, ainda muito tempo
depois predominava o tupi. No Rio Grande do Sul, ainda há meio século se falava
o tupi em diversas regiões, especialmente nas do Ocidente.
Fatores vários, entre os quais sobreleva a luta dos jesuítas contra a
escravização do indígena, trouxeram ao Brasil o africano, já há muito usado
como escravo em Portugal. Coube, então, ao negro tomar, aos poucos, o lu-
gar do índio em todas as atividades: na lavoura, na mineração, nas ativida-
des domésticas, na criação dos filhos do senhor branco. Começa, desse mo-
do, a aparecer no vocabulário brasileiro a contribuição africana, menos
abundante do que a ameríndia, não há dúvida, mas, ainda assim, viva, sen-
sível e, o que é mais importante, indispensável atualmente.
Por tudo isso, enriqueceu-se o idioma de grosso cabedal de palavras
índias e africanas, que, dicionarizadas, andam por volta de dez mil. No en-
tanto, a maioria só tem vigência regional; poucas se incorporaram ao uso
vivo da língua corrente. O relicário dos nossos tupinismos são os nomes de
lugares (topônimos).
Andam em cerca de dez mil os vocábulos indígenas e africanos in-
corporados ao português no Brasil. Além dessas, algumas dezenas de pala-
vras nos vieram – veiculadas quase todas pelo espanhol – de outras línguas
americanas, através das estreitas relações que no sul do país sempre manti-
vemos com os povos do Prata, entre os quais podem ser destacados:

12.4.1. De procedência indígena


Antropônimos: Araci, Jaci, Araci, Jucá, Oiticiara, Guarani, Cotegi-
pe, Baraúna, Ceci, Guaciara, Jacira, Jandira, Jupira, Juraci, Jurema, Ira-
cema, Moema, Paraguaçu, Paranaguá, Peri, Ubirajara etc.
Topônimos: Cambuquira, Guanabara, Ipanema, Iperoígue, Itatiaia,
Itu, Jacarepaguá, Jurujuba, Niterói, Paquetá, Pará, Paraná, Pernambuco,
Tietê, Guaratinguetá, Maracanã, Caju, Icaraí, Pavuna, Ceará, Sergipe,
Aracaju, Jundiaí, Catanduva, Botucatu, Uruguai etc.
Na fauna: arara, araponga, saúva, sabiá, jararaca, cupim, capivara,
curió, gambá, lambari, cutia, gambá, jaburu, jacaré, juriti, maracanã, pa-
ca, quati, saracura, sucuri, tamanduá, tatu, urubu etc.
Na flora: abacaxi, buriti, caju, pitanga, capim, carnaúba, caroba,
caruru, cipó, guabiroba, ipê, jabuticaba, jacarandá, mandioca, sapê etc.
Alimentos, utensílios, crenças, fenômenos: arapuca, caipora, iara, moque-
ca, carijó, xará, taba, peteca, oca, curupira, jacá, moqueca, pirão, saci,
caipira, piracema, pororoca, tipiti, urupema etc. (Cf. ANEXO 1)

162
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
12.4.2. De procedência africana
Topônimos: Bangu, Carangola, Muzambinho, Caxambu, Cubango,
Guandu, Quilombo etc.
Crenças: candomblé, Exu, Iemanjá, macumba, mandinga, muamba,
zumbi etc.
Alimentos: aluá, cuscuz, cachaça, munguzá, quibebe, quindim, quitu-
te, vatapá.
Flora e fauna – dendê, jiló, camundongo, macaco, marimbondo etc.
Utensílios e costumes – maxixe, batuque, caximbo, berimbau, tanga
etc.
De línguas americanas não-brasileiras: cacique, canoa, batata, fura-
cão, xucro, condor, mate, pampa, gaúcho, tomate, abacate, chocolate, xícara.

QUESTIONÁRIO
1 – Dentre as diferenças entre o Português do Brasil e o Português Euro-
peu citar duas na fonética, duas na sintaxe, duas no vocabulário.
2 – Separar as palavras de origem africana das de origem tupi: lambari, ji-
ló, jacá, caipira, marimbondo, piracema, jacaré, muamba.
3 – Temas para discussão: “O dialeto brasileiro”; “A língua brasileira”.

163
José Pereira da Silva

164
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

13. ARCAÍSMOS

Chamam-se arcaísmos palavras ou maneiras de dizer de outros tem-


pos, que caíram em desuso.
“Consulte-se a obra de qualquer escritor antigo, e logo se encontrará
uma multidão de palavras ou expressões cuja forma ou sentido são hoje in-
teiramente desconhecidos”. (COUTINHO, 1962).
As expressões da língua, as mutações são lentas. Darmesteter expli-
ca-os assim: «Uma geração de homens, num dado momento, começa a
abandonar tal palavra, representando por outra a ideia que ela designa; a ge-
ração seguinte conhecê-la-á ainda menos, e virá um instante em que ela só
será conhecida dos velhos que, dentro em pouco, a levarão consigo para o
túmulo».

13.1. A QUE SE DEVEM OS ARCAÍSMOS?


A um conjunto de fatores, a maior parte das vezes independentes da
vontade popular, que tanto pode ocorrer isolada como simultaneamente.
Frequentemente, o objeto, a instituição, o costume, que a palavra de-
signa deixam de existir e ela, perdendo a razão de ser, torna-se arcaica. É o
caso de catapulta, arma de guerra hoje inexistente; de ouvidor, função judi-
ciária extinta; almotacel, cargo administrativo de outros tempos; bucelário,
espécie de agregado que existiu entre os godos; alfageme, antigo fabricante
de armas.
Outras vezes, é a simples simpatia do povo, tão inconstante e inexpli-
cável para tudo, que se apega a um sinônimo deixando caducar outro. Foi
assim que astúcia tomou o lugar de arteirice; depressa substituiu asinha;
pungente veio traduzir o sentido de punçante.
Não raro, a limitação do sentido para um vocábulo torna arcaica ou-
tra acepção, como aconteceu com físico, indicando, em outro tempo, o mé-
dico de hoje, e manha, que já indicou dote de espírito.
O eufemismo: manceba (concubina), parir (dar à luz), tratante (nego-
ciante), feder (cheirar mal).
Já houve vocábulos que foram abandonados, arcaizando-se, porque
eram parecidos com outros e com eles podiam gerar confusão. Assim acon-
teceu com o antigo cá, que além de figurar como conjunção (quia > ca) e

165
José Pereira da Silva
como comparativo (quam > ca), ainda podia ser confundido com o advérbio
de lugar cá (aqui). O mesmo ocorreu com u (advérbio: huc > hu > u), fácil
de confundir com a vogal; e como osso (substantivo urso) cuja confusão
com o atual osso era bastante natural.

13.2. PORQUE DEVEM SER EVITADOS OS ARCAÍSMOS


Apenas por uma questão de clareza, pois quem escreve ou fala deve
procurar ser entendido e, por uma atitude de respeito àqueles a quem se di-
rige, não se tem o direito de empregar formas superadas, incompreensíveis.
Nem se pode dizer que o arcaísmo constitua erro, tanto assim que muitos
escritores, como Castilho, Machado de Assis e Rui Barbosa, além de outros,
procuraram e procuram, por elegância, rejuvenescer formas da língua pas-
sada. Rui em A Réplica, defendeu essa atitude ao afirmar que “insigne ser-
viço fazem os bons escritores à sua língua reempossando-a no gozo de vo-
cábulos e torneios antigos”.
Além de que, deve-se reconhecer, o conceito de arcaísmo é bastante
variável; varia com a região e varia com os escritores. Em certas regiões
brasileiras são correntes, ainda hoje, vocábulos e construções em desuso, na
língua literária atual, mas que foram correntes há quatrocentos anos.
O entonces do nosso caboclo está nos versos de Gil Vicente:
Blasfemei entonces tanto,
Que meus gritos retiniam
Pola serra. (Auto da Alma)
O pitoresco ninguém não viu dos nossos sertões aparece em outro
passo do mesmo autor:
Já ninguém
Não se preza da vitória
Em se salvar. (Auto da Alma)
Até mesmo a tão grotesca combinação mas porém, que provoca risos
quando usada pelo povo, aparece em Camões:
O corpo nu
Por não ter ao nadar impedimento,
Mas porém de pequenos animais,
Do mar todos cobertos, cento e cento.
(Os Lusíadas, VI, 18)
Duarte Nunes de Leão, na sua famosa obra Origem da Língua Portu-
guesa, apresenta como arcaizadas e, portanto, em abandono ao tempo dele
(1606), palavras como albergar, aquecer, aturar, confortar, desempenhar,
falha, finado etc., vivas e correntes ainda hoje.

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
13.3. COMO SE DIVIDEM OS ARCAÍSMOS
Podem os arcaísmos ser léxicos, ou de palavras, e sintáticos, ou de
construção, fonéticos e morfológicos. Os primeiros são constituídos por vo-
cábulos em desuso atualmente; os segundos representam combinações sintá-
ticas que foram correntes somente no passado.

12.3.1. São arcaísmos léxicos:


aguça – por pressa mandadeiro – mensageiro astroso (infeliz)
abondo – suficiente mentres – enquanto u (onde)
ardideza – valentia. palmeirim – peregrino empero (apesar de)
coita – sofrimento, dor sages – prudente postumeiro (último)
chus – mais vianda – carne fiúza (confiança)
ende – daí velas – vigias esguardar (olhar)
filhar – tomar leixar – deixar adur (dificilmente)
contença – presença, porte segre – século ardideza (valentia)
festinar – apressar enfesto – íngreme medês (mesmo)
asinha – depressa Cafuso = por acaso changer (chorar, prantear)

Há gramáticos que consideram arcaísmos fiúza (confiança) e britar


(quebrar), vocábulos de uso diário entre nós, principalmente o segundo que
a cada passo se emprega ao falar em máquina de britar pedras, britadeira,
pedra britada.
Há no português atual, vocábulos derivados de outros arcaizados:
leixar (deixar) – desapareceu, mas ficou desleixar,
quisto (querido) – desapareceu, mas ficou benquisto e malquisto,
frol (flor) – desapareceu, mas ficou esfrolar,
guarida é lembrança do verbo guarir (abrigar)
aviltar lembra o substantivo vilta (injúria)
desavença é derivado de avença (acordo)
coitado formou-se de coita (sofrimento)
benquisto e malquisto formaram-se de quisto (querido)
diabrura e diabrete provém de diabro.

13.3.2. São arcaísmos sintáticos:


a) O emprego de duas negações preverbiais: “Ninguém não sabia”.
b) As formas tônicas dos pronomes pessoais usadas
como objeto direto: “Conhece ti mesmo”.
“desque vi ela...” (Cancioneiro da Vaticana,21)
“Ca eu nom temo ty...” (Apud EPIFÂNIO DIAS, SHP, 2ª ed., p. 71)

167
José Pereira da Silva
c) Indeterminação do sujeito feita pela palavra homem: “Omem non podia
mostrar”.
d) Uso de cujo como interrogativo: «Cuja é esta glória?»
e) Uso abundante de pleonasmos: «Oje em este dia». «Boas bondades».
f) Períodos extensos, colocação livre das palavras na frase, pouca acentua-
ção.
g) verbo no singular, concordando com sujeito coletivo no plural: “... mor-
reo grandes gentes”. (NUNES, 1943, p. 52)
h) particípio passado da voz ativa a concordar com o objeto direto, nos tem-
pos compostos: “As quais casas de nova tinha feitas” (NUNES, 1943, p. 67)

13.4. ARCAÍSMOS FONÉTICOS


O moderno ditongo final –ão era representado por om: amarom, divi-
som.
Era frequente o uso do hiato, que mais tarde se desfez por crase, ou
alargamento: seer (ser), poboo (povo), creo (creio), fea (feia).
Pronunciavam-se separadamente vogais que, com o correr dos tem-
pos, se vieram a fundir: seer (< sedēre), door (<dolōre), poboo (< popǔlǔ).
A contração dessas vogais começou a operar-se no século XIII, po-
rém a grafia, que é muito conservadora em relação à pronúncia, manteve
ainda por longo tempo a duplicidade delas.
O moderno sufixo vel tinha as formas vil ou bil: terríbil (terrível),
amávil (amável).
Permanecia a nasalização por síncope do n intervocálico: lũa(< luna),
vĩo (< vinu), pessõa (< persona), ũa.
Tal nasalidade se perdeu posteriormente, desenvolvendo-se ou não
um som de transição: lũa > lua, pessõa > pessoa, vĩo > vinho.

13.5. ARCAÍSMOS MORFOLÓGICOS


Os nomes terminados em or, ol, ês, ote, eram uniformes: mia senhor,
mulher espanhol, «a nossa português e casta linguagem» (Antonio Dinis da
Cruz e Silva).
O exemplo seguinte esclarece o emprego da palavra senhor como
feminina: “E o vilão que trobar souber, / que trob’, e chame senhor sa mo-
lher”. (Cancioneiro da Vaticana, 1924)

168
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
Algumas palavras tinham gênero gramatical diverso no português ar-
caico: fim, mar, mapa, planeta, cometa eram femininos. Tribo, coragem, lin-
guagem eram masculinos.
O particípio passado da segunda conjugação era em udo: perdudo
(perdido), temudo (temido), recebudo (recebido), conheçudo (conhecido).
Havia particípios passados em eito e eso: colheito (colhido), coseito
(cosido), maltreito (maltratado), despeso (despendido), defeso (defendido =
proibido).
usavam-se formas verbais foneticamente regulares, que foram depois
substituídas por outras, analógicas: estê (< stem) – substituída por esteja,
arço (< ardeo) – substituída por ardo, mouro (< morio) – substituída por
morro, conhosca (< cognoscat) – substituída por conheça, perdon (< per-
donet) – substituída por perdoe.
Alguns textos:
“ – Amygos, dade-me de comer e ajudade-me, ca eu mouro com
ffame.” (NUNES, 1943, p. 77).
– Tal companhon foi Deus filhar
no bon rei, a que Deus perdon,
que jamais non disse de non
a nulh’omen por lh’algo dar...
(Cancioneiro da Ajuda, 10245)
5) a segunda pessoa do plural tinha a desinência des exceto no preté-
rito perfeito do indicativo: amades (amais), devedes (deveis), partides (par-
tis), digades (digais), sodes (sois), quisessedes (quisésseis).

13.6. ARCAIZAÇÃO COMO RECURSO DE ESTILO31


Escritores clássicos, e até contemporâneos, têm explorado conscien-
temente a arcaização como recurso de estilo. Entre os contemporâneos so-
bressai Rui Barbosa, grande em todos os sentidos, para quem “insigne ser-
viço fazem os bons escritores à sua língua reempossando-a no gozo de vo-
cábulos e torneios antigos deixados esquecidos por injustos desprezos do
tempo” (Réplica, 1904, n° 491).
Eis alguns arcaísmos de autores contemporâneos:
1) avença = acordo:

31 Esse tópico foi integralmente extraído do livro Português no Colégio, do Professor Rocha Lima,.129-130.

169
José Pereira da Silva
De sorte que, por avença cordial entre todos, se deliberou...
(RUI BARBOSA In: BATISTA PEREIRA.
Coletânea Literária. São Paulo, 2ª ed., p. 274).
2) nado = nascido
— Tardaste muito!
Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!
(GONÇALVES DIAS, I-Juca-Pirama,
na Antologia de Manuel Bandeira, p. 76.)
3) pleonasmo da negação:
Dargo, o valente Dargo, a quem na guerra
Ninguém nunca jamais não viu as costas...
(GARRETT, Flores sem Fruto, 1848, p. 64)
4) acertar + de + infinitivo = acontecer, suceder:
Cada um dos presentes acertou de contar uma anedota.
(MACHADO DE ASSIS,
Brás Cubas, Garnier, 4ª ed., p. 150)
5) dizer de não = dizer que não;
Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não...
(RUI BARBOSA, Orações aos Moços,
São Paulo 1921, p. 12.)
6) homem (como sujeito indeterminado):
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto;
Uma ave negra, friamente a isto;
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: “Nunca mais!”
Machado de Assis, Poesias,
Jackson, vol. 27, 1938, p. 352.

QUESTIONÁRIO
1 – Que são arcaísmos?
2 – Como se explica a arcaização das palavras?
3 – Dar dois exemplos de arcaísmos léxicos, fonéticos, morfológicos e sin-
táticos.

170
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

14. BREVES TEXTOS ARCAICOS


PARA EXEMPLOS E COMENTÁRIOS
a) Textos com anotações

1. BARCAROLA
El-rey de Portugale33
32

barcas mandou lavrare35


e lá iran nas barcas migo36
mya 37 filha e noss’amigo.

Barcas mandou lavrare


e no mar as deytare,
e lá iran nas barcas migo
mya filha e noss’amigo.
(CUNHA, 1999, p. 237)

32 El-rey: el é forma arcaica do artigo definido masculino. Provém do latim ĭllǔ, através da seguinte cadeia foné-
tica: ĭllǔ > elo > el (com apócope do o em virtude da próclise).
Na língua atual, somente se usa antes do substantivo rei, mas outrora podia preceder outras palavras.
33 Portugale: Portugal. Do latim Portucale, pela sonorização do –c– e apócope do e.
Segundo o medievalista brasileiro, Professor Celso Cunha, o e paragógico que aí aparece deve explicar-se pela
tendência a evitar o final agudo no verso. (Cf. CUNHA, 1999: 213)
Idêntica paragoge de origem rítmica ocorreu com as palavras lavrare, portugueese, fazere, deytare e metere,
que se leem nesta “Barcarola”.
34portuguese: português. Do latim portucalense, através de: portucalense > portugaes > portuguees > portu-
guês. Houve sonorização do –c-, síncope do –l-, assimilação do a ao e, crase dos ee e queda da vogal final.
35lavrare: construir, fabricar (referindo-se a uma embarcação). Do latim laborare, pela síncope do o pretônico e
passagem normal do grupo intervocálico br a vr, como liberare > livrar.
36migo: comigo. Do latim mecum saiu a forma arcaica mego, a quall, conforme a opinião de muitos, teria pas-
sado a migo sob a influência de mi. No entanto, parece mais exato ligá-la diretamente a micum, palavra de que
não falta abonação no latim vulgar.
Nesta forma migo existe a preposição cum, representada pela sílaba go; tendo-se, porém, esquecido a compo-
sição da palavra, foi ela reforçada com a preposição com, donde comigo (com + migo).
37mya: minha. Forma proclítica do possessivo mia, pronunciada numa sílaba só e mais tarde reduzida a ma.
Era comum aparecer grafado mha.

171
José Pereira da Silva
2. EXEMPRO38 DHŨA MONJA

Foy em outro tenpo hũa39 monja devota, fre-


mosa40 de corpo e de coraçõ41, e antre42 as outras
fremosuras que avia43 tijnha44 muy fremosos
olhos.

38enxempro: exemplo. Do latim exemplu procedeu normalmente, na língua arcaica, a forma eixempro. A
par desta, com o desaparecimento da subjuntiva do ditongo, houve exempro.
Para a nasalação do e inicial deve ter concorrido a vogal nasal da sílaba seguinte.
39hũa: uma. O nosso artigo indefinido tem por étimo o numeral latino: una > ũa (também grafado hũa) >
uma.
40 fremosa: formosa. Metátese de fermosa, do latim formosa, com dissimilação do o-o em e-o: formosa >
fermosa (dissimilação) > fremosa (metátese).
41 coraçõ: coração. Do latim *coratione.
Várias terminações latinas convergiram para a forma ão:
a) one: leone > leõ > leão, dracone > dragom > dragão;
b) anu: granu > grão, paganu > pagão;
c) ane: cane > cã > cão, pane > pã > pão;
d) ǔdine: certitǔdine > certidõe > certidõ > certidão.
42antre: entre. Por ser proclítica esta preposição, pôde a sua sílaba inicial ser tratada como átona. Daí a
vacilação en-an, tal como acontece com antenatu > enteado ou anteado, ampǔlla > empola ou ampola,
anguila > enguia ou anguia.
A forma antre teve grande uso na língua; exemplos:
Ali, antre os meus cordeiros,
Soía dormir a sesta,
À sombra dos amieiros.
(Bernardim Ribeiro. Éclogas. Coimbra, 1932, p. 23).

Antre Sintra, a mui prezada


e serra de Riba-Tejo
que Arrábeda é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete n’água salgada,
houve um pastor e pastora.
(Cristóvão Falcão. Crisfal, nos “Textos Quinhentistas”, de Sousa da Silveira. Rio de Janeiro, 1945, p. 61)
43 avia: havia (= tinha).
44 tijha: tinha.

172
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
O senhor da terra a vyo45 e qujsea 46 aver per47
amores, mes48 nõ pode, e mandouha49 rroubar per
sua gente. E ella, quando os vyo, temeos50
muyto, e preguntouhos51 por que a amava seu se-
nhor mais que as outras. E elles rresponderom:
Senhora, por vossos olhos. E ella os fez logo thi-
rar, e enujou-lhos52 e mandou-lhe dizer que ha
avia o que desejava, que daquello fezesse 53 sua
voontade54. E ella amou mais perder fremosura
do corpo que ha55 da alma.
(VASCONCELOS, 1922, p. 51)

45 vyo: viu
46 qujsea: qui-la. É o pretérito perfeito de querer, que traz aglutinado a si o pronome pessoal átono a.
47 per: por. Na língua antiga havia per (do latim per) e por (do latim pro).
Em por se condensaram as funções sintáticas de uma e outra, de sorte que veio per a desaparecer, ex-
ceto nas locuções de per si, de permeio, e nas combinações com os artigos definidos e com os prono-
mes demonstrativos átonos (pelo, pela, pelos, pelas).
48 mes: mas. Do advérbio latino magis saiu o advérbio português mais, que passou a exercer também a
função de conjunção adversativa. “Durante muito tempo não sofreu ele qualquer distinção de forma num
e noutro caso, e ainda hoje não a sofre na língua do povo, mas depois, devido provavelmente à sua qua-
lidade de átono quando usado como conjunção, perdeu o i, ficando reduzido ao mas, exclusivo da língua
culta.” (NUNES, 1928: 219)
A forma que figura no texto, mes, parece “ser já uma evolução de mas” (Id., ib., p. 219, nota).
49 mandouha: mandou-a.
50 temeos: temeu-os.
51 preguntouhos: perguntou-os (= perguntou-lhes).
Preguntar é a forma mais antiga na língua e a que, ainda hoje, se usa em Portugal. No Brasil, escreve-
se e pronuncia-se perguntar. A origem é, talvez, *precuntare. Quanto à sintaxe do texto, observe-se que,
atualmente, este verbo se constrói com objeto direto de coisa e indireto de pessoa (perguntar alguma
coisa a alguém, perguntar-lhe algo).
52 enuyoulhos: enviou-lhos.
53 fezesse: fizesse.
54voontade: vontade. Do latim volǔntate, pela queda do –l-, mutação do ǔ em o e sonorização do se-
gundo i por estar intervocálico: volǔntate > voontade > vontade. Houve finalmente a crase dos oo.
55 ha: a. É o artigo feminino, que também aparecia grafado aa.
Exemplos:
“... quando o queria levar contra aa fonte.”
“... comendaram aa donzela a Deus”. (Augusto Magne. A demanda do Santo Graal. Rio de Janeiro,
1944, vol. III, p. 16)

173
José Pereira da Silva
3. O LOBO E O CORDEIRO

Conta-sse que o lobo bebia ũa vez em ũu rri-


beiro, da parte de cima, e o cordeiro bebia em
aquell medês56 rribeiro, da parte de fundo. Disse
o lobo ao cordeiro:
– Porque me luxas57 a augua e danas este rri-
beiro?
E o cordeiro rrespondeo e disse homildosa-
mente:
– Eu nom te faço enjuria, nem luxo o rrio,
porque a augua corre contra mim, e a augua he
mui clara; e pero58 sse a quisese abolver 59, nom
poderia.
Outra vez, o llobo braada60 forte e diz:

56medês: mesmo. Do nominativo latino ĭpse, precedido da partícula met, formou-se a palavra metĭpse,
donde, por evolução normal, se originou a forma arcaica medês: metĭpse > *medesse > medês. Essa
partícula met era um elemento de reforço, que muito frequentemente se pospunha aos pronomes pes-
soais. Originariamente pospositiva, “pasó a usar-se como um prefijo por medio de combinaciones como
semet ipsum, interpretado se metipsum” (Grandgent, 1928: 36)
57 luxas: sujas.
58 pero: ainda que, embora.
59 abolver: revolver, turvar.
60 braada: brada. De balatrat, com metátese do r: balatrat > baadra > braada.
Os aa, que depois se fundiram num só (brada), representam, aqui, a pronúncia como hiato. Muitas ve-
zes, porém, o redobro de vogais é mero expediente gráfico com que se assinala a tonicidade da sílaba.
Eis um exemplo:
Com isope espargeraas
E serey limpo muy breve;
Tu, Senhor, me levaraas
E minha alma leyxaraas
Muyto mais alva que a neve.
(Gil Vicente. Salmo de miserere mei Deus, extraído da edição de 1562)
Em espargeraas (= espargerás), lavaraas (= lavarás) e leyxaraas (= deixarás), os aa servem de mostrar
que são tônicas as sílabas em que eles figuram.
Cumpre notar que não havia, entretanto, rigor no marcar a tonicidade por meio da duplicação da vogal.
Nem todas as sílabas tônicas aparecem com a vogal dobrada, assim como às vezes se encontram com
redobro vogais átonas.

174
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
– Nom te avonda61 que tu me fazes enjuria e
dano, e ainda me ameaças?
E o cordeiro outra vez homildosamente rres-
pondeo:
– Nom te ameaço, mais eu me escuso com
boa razom.
E o llobo rrespondeo outra vez:
– Ainda me ameaças? Já ssemelhavill injuria
me fezeste62 tu e teu padre, ssom já bem sseis
meses.
O cordeiro disse:
– Ó ladrom, eu não ey tanto tempo!
E o lobo iroso disse:
– Oo maao63 rrapaz, ainda ousas de falar?
E foi-sse a ell e matou-ho e comê’o64.
(Apud SILVA NETO, 1942, p. 118)

61 avonda: basta.
62 fezeste: fizeste. Do latim fecĭsti. O i surgiu por influência da primeira pessoa do singular (fiz < fecĭ).
63 maao: mau. Do latim malu. Os aa indicam que a vogal é tônica.
64 comê’o: comeu-o.

175
José Pereira da Silva
b) Textos para comentário

14.1. CANTIGA DE AMIGO

Pera65 veer66 meu amigo,


que talhou preito67 comigo,
alá68 vou, madre;69
Pera veer meu amado,
que mig’á70 preito talhado,
alá vou, madre;
Que talhou preito comigo...
é por esto que vos digo:
alá vou, madre;
Que mig’á preito talhado...
é por esto que vos falo:
alá vou, madre.
(De El-rei D. Dinis – séc. XII,
apud Dr. J. Leite de Vasconcelos.
Textos Arcaicos)

65 pera = para.
66 veer = ver. Do latim videre.
67 talhou preito = combinou, prometeu.
68 alá = forma arcaica de lá, do latim illac.
69 madre = mãe.
70mig’á = o mesmo que migo há, isto é, tem comigo. O ponome latino mecum teria evoluído: mecu(m) >
micu > migo. Na sílaba go está a preposição latina cum. Perdida essa noção, voltou-se a ligar ao prono-
me a mesma preposição, donde com migo > comigo, formação que aparece no primeiro verso da tercei-
ra estrofe.

176
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
14.2. CANTIGA DE AMIGO

O anel do meu amigo


perdi-o sso-lo71 verde pinho,
e chor’eu, bela.
O anel do meu amado
perdi-o sso-lo verde ramo,
e chor’eu, bela.
Perdi-o sso-lo verde pinho,
por en72 chor’eu, dona virgo,
e chor’eu, bela.
Perdi-o sso-lo verde ramo,
por en chor’eu, dona d’algo,73
e chor’eu, bela.
(De Pero Gonçalves de Portocar-
reyro – Séc. XII, apud. Dr. J. Leite
de Vasconcelos. Textos Arcaicos.)

sso-lo = sob o. A respeito da consoante inicial dobrada, veja-se o que foi dito no capítulo A ORTO-
71

GRAFIA E A FONÉTICA HISTÓRICA.


72por en = por isso. En, às vezes escrito ende, é a transformação do latim inde. Mais adiante, no conto
O Rato da Cidade e o Rato da Aldeia, encontrar-se-á escrito poren.
73 dona d’algo = o mesmo que fidalga.

177
José Pereira da Silva
14.3. CANTIGA DE AMIGO

Preguntar74-uos75 quer’ eu, madre,


que mi digades76 uerdade,
se ousará meu amigo
ante uós falar comigo?
Poys eu migu’77 ey78 seu mandado,79
querria80 saber de grado
se ousará meu amigo
ante uós falar comigo?
Hirey,81 mya82 madr’, a la83 fonte
hu84 uan85 os ceruos do monte:
se ousará meu amigo
ante uós falar comigo?
(Pero Meogo, apud J. J. NUNES,
Crestomatia Arcaica)

74 preguntar = *precuntare > preguntar e, por metátese, perguntar.


uos = os sinais j e v, para indicar o i e o u consoantes latinas, só foram introduzidos no fim da Idade
75

Média. Até então, escrevia-se como está no texto: uos por vós.
76 digades = digais.
77 migu’ = comigo. Ver, a propósito, a nota acima sobre mig’á.
78hey = hei = tenho. A respeito da irregularidade gráfica, ver o que foi dito no capítulo A ORTOGRAFIA
E A FONÉTICA HISTÓRICA.
79mandado = recado, notícia. Note-se que ainda hoje é forma popular dizer-se “nem novas nem manda-
do”.
80 querria = queria.
81 hirey = irei.
82 mya = minha: mea > mia > mĩa > minha.
83 a la = à.
84 hu = onde, do latim huc ou ubi.
85 uan = vão.

178
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
14.4. BARCAROLA

Ondas do mar de Vigo,


se vistes meu amigo!
E ai, Deus, se verrá86 cedo!
Ondas do mar levado,
Se vistes meu amado!
E ai, Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amigo,
o por que eu87 suspiro!
E ai, Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amado
o por que ei gran cuidado!
E ai, Deus, se verrá cedo!
(Martim Codax. Apud ERNANI CIDADE.
Poesia Medieval, Cantigas de Amigo)

14.5. DA PROVINCIA DE TURQUYA

Turquya contem em sy pouoos de gente mesturada. S.


Gregos. Armenios. e Turcos. Os Turcos tem lingua propria. e
tem a ley do abominavel Mafomede. Som homẽs ydiotas e
rudos e de pouco entender. Viuem nos montes e nos valles
segundo que acham os paçeres. porque tem grandes manadas
de bestas e de guaados. Alli som os cauallos e os muus de
grande valor. Mas os Armenios e Greguos que hy som viuem
nas cidades e lugares, e estes obram muy nobremente em syr-
go. Tem muytas çidades, antre as quaaes som Gomo. Caçeria.
e Sebasta. onde o glorioso Sam Bras reçebeo ho seu martirio
por Jhesu Cristo, e som sogeitos a huũ dos reys Tartaros.
(Do livro de Marco Paulo, cap XIII,
edição de Francisco Maria Esteves Pereira,
conforme a impressão de Valentim Fernandes. Lisboa, 922)

86 verrá = virá.
87 o por que eu = aquele por quem eu.

179
José Pereira da Silva
14.6. LENDA DO REI LEAR

Este rrey Leyr nom ouue88 filho, mas ouue tres filhas muy fermosas e
amaua-as muito. E huum dia ouue sas rrazõoes 89 com ellas e disse-lhes que
lhe dissessem verdade, quall d’ellas o amaua mais. Disse a mayor que nom
auia cousa no mundo que tanto amasse como elle; e disse a outra que o
amaua tanto como ssy90 mesma; e disse a terceira, que era a meor,91 que o
amaua tanto como deue d’amar filha a padre. E elle quis-lhe mall porém, e
por esto non lhe quis dar parte no rreyno. E casou a filha mayor com o du-
que de Cornoalha, e casou a outra com rrey de Scocia, e nom curou 92 da
meor. Mas ella por sa93 vemtuira94 casou-sse melhor que nenhũa95 das ou-
tras, ca96 se pagou97 d’ella el-rrey de Framça, e filhou98-a por molher. E de-
pois seu padre d’ella99 em sa velhice filharam-lhe seus gemrros a terra, e foy
mallandamte, e ouue a tornar aa merçee100 d’ell-rrey101 de Framça e de sa fi-
lha, a meor, a que nom quis dar parte do rreyno. E elles reçeberom-no muy
bem e derom-lhe todas as cousas que lhe forom102 mester,103 e honrrarom-no
mentre104 foy uiuo; e morreo em seu poder.
(Do Nobiliário ou Livro de Linhagens do Conde d. Pedro.
Séc. XIII ou XIV. Apud Dr. J. Leite de Vasconcelos. Textos Arcaicos)

88 ouue = houve, teve.


89 ouue sas rrazõoes = teve suas razões, isto é, entendeu-se, conversou.
90 ssy = a si.
91 meor = menor, do latim minore > mior > meor.
92 curou = tratou.
93 sa = sua.
94 vemtuira = ventura, sorte.
95 nenhũa = nenhuma: nec una > ne ũa > neũa > nenhuma.
96 ca = porque: quia > *qua > ca.
97 pagou = agradou-se, gostou: pacare > pagar.
98 filhou = tomou: filiare > *filyar > filhar.
99... seu padre d’ella... = a frase tem de ser assim entendida: “depois, ao pai (dela), na velhice, os gen-
ros tomaram a terra”.
100ouue a tornar aa merçee = teve de merecer, pedir, a compaixão. Em aa não se processou ainda a
crase: a la > aa > à. Merçee é o resultado da evolução de mercede.
101ell-rrey = el-rei. Note-se o artigo arcaico el, resultado da evolução de illu > elo > el, com apócope do o
quando em próclise. A irregularidade gráfica ell e rrey já foi explicada a propósito de outros casos.
102 forom = foram.
103 mester = mister, necessários.
104 mentre = enquanto.

180
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
14.7. A DONA PEE DE CABRA

Dom Diego Lopes era muy boo105


monteyro106 e, estãdo hũu dia em sa ar-
mada e atemdemdo107 quamdo verria108 o
porco, ouuyo cantar muyta alta voz109
hũua molher em çima de hũua110 pena111 e
el foy pera lá e vio-a seer muy fermosa112
e muy bem vistida e namorou-sse logo
della muy fortemente e pregumtou-lhe
quẽ era e ella lhe disse que era hũua mo-
lher que mujto alto linhagem, e ell lhe
disse que, pois era molher d’alto linha-
gem, que casaria com ella, se ella quises-
se, ca ell era senhor daquella terra toda, e
ella lhe disse que o faria, se lhe prometes-
se que numca se santificasse,113 e elle lho
outorgou e e ella foi-sse logo com elle. E
esta dona era muy fermosa e muy bem
feita em todo seu corpo, saluando que
auia hũu pee forcado,114 como pee de ca-
bra. E viuerom gram tempo e ouuerom
dous filhos e hũu ouue nome Enheguez
Guerra e a outra foi molher e ouue nome
dona...
E, quando comiam de sũu115 dom Die-

105 boo = bom. De bonum > bõo > bom.


106 monteyro = que caça no monte.
107 atemdemdo = esperando.
108 verria = viria.
109 cantar muy alta voz = cantar em voz muito alta.
110 hũua = uma.
111 pena = penha, pedra.
112 vio-a seer muy fermosa = viu que era muito formosa.
113 que numca se santificasse = que nunca se benzesse.
114 saluando que auia hũu pee forcado = salvo em que tinha pé rachado (como pé de cabra)
115de sũu = “O port. arcaico sum ou sũu, nas locuções desaparecidas em sum, de sum, com sum, que
significavam juntamente, entre si, tem origem em sub ũnu” (Marques Leite, Língua Luso-Brasília, p. 299).

181
José Pereira da Silva
go Lopez e sa molher, assentaua ell apar
de ssy116 o filho e ella assẽentaua apar de
ssy a filha, da outra parte. E hũu dia foy
elle a seu monte e matou hũu porco muy
gramde e trouxe-o pera sa casa e pose-o
ante ssy hu117 sya118 comemdo com ssa
molher e com seus filhos, e lamçarom hũu
osso da mesa e veerom a pellejar hũu
alãao119 e hũua podenga120 sobre’elle em
tall maneyra que a podenga trauou ao alão
em a gargãta e matou-o. E Dom Diego
Lopes, quando esto vyo, teue-o por milla-
gre e synou-sse121 e disse:
– Santa Maria, vall!122 quem vio nunca
tall cousa?
(Apud J. J. NUNES. Crestomatia Ar-
caica)

116 a par de ssy = junto de si.


117 hu = ver nota sobre esta palavra na terceira cantiga de amigo desta antologia.
118sya = segundo J. J. Nunes, Crestomatia Arcaica, o mesmo que seia, siia, imperfeito do indicativo de
seer. Este verbo, de seder, sentar-se, confundiu-se em muitas formas com esse (ser). No texto, deve-se,
então, entender onde se sentava.
119 alaão = cão de caça.
120 podenga = feminino de podengo, cão maior do que o galgo.
121 synou-sse = persignou-se, benzeu-se.
122 vall = valha-me.

182
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
14.8. O RATO DA CIDADE E O DA ALDEIA

Comta-sse que hũa vez hũu rrato que


morava em hũa çidade, amdando a hũa
aldea omde morava outro rrato sseu ami-
guo, quamdo este rrato da çidade chegou
aa aldea omde morava, este rrato sseu
amiguo ouve com elle gramde prazer123 e
dey124-lhe a comer favas e triiguo e ervan-
ços, com doutros mamjares.
E depois que assaz comerom, o rrato
da çidade deu muytas graças ao rrato da
aldea de quamta cortesia lhe fezera, e rro-
gou-lhe que viesse aa çidade com elle aa
casa omde morava, que aly lhe emtendya
de dar muytas delicadas higuarias. Tamto
o rogou que o dicto rrato sse veo125 com
ell aa çidade.
E levou-ho a hũa cozinha omde mora-
va, na qual avia muytas galinhas e carne
de porco, com outros boos126 comeres; e
rrogou-lhe que comesse aa sua vomtade.
E estamdo elles assy comendo, sseguros,
a sseu talante127, chegou o cozinheyro e
abrio a porta da cozinha; e o rrato da çi-
dade, que ssabia o costume da casa, fugiu
loguo, e ho outro rrato, porque nom ssabia
o custume ficou. E o cozinheyro, amdan-
do em pos ell128 com hũu paao129 na maão

123 ouve com elle gramde prazer = teve grande prazer em vê-lo.
dey = a forma dei é bastante regular, pela evolução de dedit. A atual forma deu resultou da analogia
124

com outras da 2ª conjugação, como perdeu, temeu etc.


125 veo = veio.
126boos = bons. Às vezes entontra-se a forma bõo, porque na época ainda se mantinha a nasalidade re-
sultante da evolução bonu > bõo.
127 a sseu talamte = à vontade. A expressão é corrente ainda hoje.
128 em pos ell = atrás dele.
129 paao = pau.

183
José Pereira da Silva
pera o matar, feri’-o muy mall; empero130
fugiu-lhe e partio-sse muy mall ferido.131
E o rrato da çidade veemdo-o, cha-
mou-ho, que outra vez viesse a comer
com elle, e nom ouvesse medo; e o outro
rrato lhe respondeo:
– Amigo meu, ora fosse eu jajuum132
do comvite que me fezeste! A mym
praz133 mais de comer triiguo, favas e
hervamços em paz que galinhas e capões
com temor e periiguo de morte. A paz, a
quall ssempre tenho comiguo, me faz a
mym os meus comeres sseerem134 delica-
dos. E poren135 teus comeres guarda-os
pera ty, ca eu me comtento do que hey.
E, as palavras dictas136, partirom-se.
(Apud RODRIGUES LAPA – LEITE
DE VASCONCELOS. O Livro de Esopo)

130 empero = mas, porém.


131 mall ferido = ao contrário do que parece, significa seriamente ferido, gravemente ferido.
132ora fosse eu jajuum = jejum tem, na frase, função adjetiva, significando sem comer. Deve-se, então,
entender: estivesse eu ainda agora sem comer.
133 praz = verbo prazer, significando agradar, ser agradável: a mim agrada mais.
134meus comeres sseerem delicados = A afirmação é clara: A paz torna as minhas refeições delicadas,
agradáveis.
135 poren – deve-se entender por en, o que vale dizer por isso.
136 e as palavras dictas = entenda-se: ditas essas palavras.

184
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
14.9. RHEGRA SUA PERA Q UEM Q UISER
VIUER EM PAZ

Ouue, ve, & calla,


& viueras vida folgada:
tua porta çerraras,
teu vezinho louuaras,
quãto podes nã faras,
quãto sabes nã diras,
quãto ves nã julgaras,
quãto oues nã creras,
se queres viuer ẽ paz.
Seys coysas sempre ve,
quando falares, te mando,
de quẽ fallas, onde, & que,
& a quem, como, & quando:
nũca fyes nem perfyes
nem a outro enjuries,
nã estes muyto na praça,
nem terryas de quem passa,
seja teu todo o que vestes,
a rrybaldos nam doestes,
nam caualgaras em potro.
Nẽ ta molher gabes a outro,
nam cures de ser picam
nẽ trauar contra rrezam.
Assy lograras tas caãs
cõ tuas queixadas saãs.
(D. João Manuel. Cancioneiro geral.
Apud José Pereira Tavares.
Como se devem ler os clássicos.
Lisboa, 941, p. 22-23)

185
José Pereira da Silva
14.10. LIVRO DA ENSINANÇA
DE BEM CAVALGAR TÔDA SELA

Em nome de nosso senhor Jesu Cristo, com


sua graça e da virgem Maria, sua muy sancta
madre, nossa senhora: Começasse o livro da
enssynança de bem cavalgar toda sela que fez El-
rrey dom Eduarte de Portugal e do Algarve, e se-
nhor de Cepta, o qual começou em seendo iffan-
te.
Em nome de nosso senhor Jesu Cristo: Se-
gundo he mandado que todallas cousas façamos,
ajudando aquel dito que de fazer livros nom he
fim, por algũ meu spaço e folgança, conhecendo
que a manha de seer boo cavalgador he hũa das
principaaes que os senhores cavalleiros e scudei-
ros devem aver, screvo algũas cousas per que se-
ran ajudados pera a melhor percalçar os que as
leerem com boa voontade e quiserem fazer o que
per mym em esto lhes for declarado. E ssaybam
primeiramente que esta manha mais se acalça per
naçom, acertamento de aver boas bestas, e aazo
continuado dandar em ellas, morando em casa e
terra que haja boos cavalgadores e prezem os que
o ssom, que por saberem todo o que sobr’esto
aquy screvo nem poderem screver os que em ello
mais que eu entendem, nom avendo dello boa,
contynuada husança, com as outras ajudas suso
scriptas. Mas esto faço por ensynar os que tanto
nom souberem, e trazer em renembrança aos que
mais sabem as cousas que lhes bem parecerem, e
nas fallecidas enmendando no que screvo a ou-
tros podeerem avysar. E os que esta manha qui-
serem aver, helhes necessario que ajom as tres
cousas principaaes per que todallas outras ma-
nhas se acalçom, as quaaes som estas: grande
voontade, poder abastante, e muyto saber.
(El-Rei D. Duarte.
Edição de Joseph Piel. Lisboa, 1944)

186
Gramática Histórica da Língua Portuguesa

ANEXO 1
PALAVRAS PORTUGUESAS DE ORIGEM TUPI137

Abacatuaia, abacaxi, abaeté, abaetê, abaré, abaruna, abati, abativi, abiu, abi-
urana, abuna, abutua, acaboclado, açacu, açaí, acaiacá, acaipirado, açaizal,
açaizeiro, acaju, acajucatinga, acapu, acapurana, acará, acará-bandeira, aca-
racoro, acaracoroi, acaraobi, acarapeba, acarapitanga, acarapitinga, acari,
acaricuara, acariúba, acauã, açu, guaçu, acutiboia, acutipuru, aguapé, agua-
peaçoca, aguaraquiá, aí, aiapa, aiereba, aig, aipim, airi, airizeiro, ajajá, aju-
beraba, ajuru, ajuruaçu, ajuruatubira, ajurucurau, ajurucurica, ajuruetê, aju-
ruim, ajuruju, ambuá, ambuaçava, amendoim, amingua, amisaua, amoque-
car, amoré, amoreatim, amoreguaçu, amorepocu, anacã, anajá, anajé, anam-
bé, ananás, ananasal, ananaseiro, anani, anapuru, andá, andá-açu, andirá,
andirababapari, andiroba, andirobeira, angaturama, anguera, anhá, anhaíba,
anhauíba, anhaíbatã, anhangá, anhangaquiabo, anhangoera, anhanguiara,
anhuma, anhumapoca, anijuacanga, aninga, aningal, aniuá, anu, apapá, apa-
reíba, apé, apeíba, aperema, apiacá, apicu, apií, apitiuba, apuizeiro, aquê,
aquiqui, ará, arabutã, araçá, araçanhuna, araçari, aracati, araçazal, araçazei-
ro, araçoia, aracu, aracuã, araguaguá, araguaí, araguari, aramaçá, aramaré,
arapapá, arapari, arapiraca, araponga, arapongado, arapuã, arapuado, arapu-
ca, arara, arará, araramboia, araranin, araraúba, araraúna, arari, araribá, ara-
rica, ararimba, araroba, arasoare, ara(pa)soare, arataca, arataciú, araticum,
araticum-panã, araticunzeiro, aratu, aratuém, araturé, araueboia, arauiri,
araxá, araxixá, arirana, ariranha, aritara, aruaná, arubé, atá, ati, atiati, atin-
gaçu, atucanado, atucupá, aturá, aturiá, axuá, babaçu, bacaba, bacabeira, ba-
cu, bacupari, bacuparizeiro, bacurau, bacuri, bacuripari, bacurubu, bacutin-
gui, baeapina, baepeçu, baêvaû, baiacu, baitaca, batuíra, beiju, beribeba, bi-
aribi, biboca, bicuíba, bicuibeira, bicuibuçu, biguá, bijupirá, biribá, bocaiú-
va, bocima, boicinimpeba, boicininga, boiobi, boioçu, boioçupecanga, boi-
peba, boipiranga, boiquatiara, boitatá, boitauá, boitiapuá, boiúna, borarí,
bororê, boré, braúna, bubuia, buçu, buijeja, burahu, buranhém, buri, buriqui,

137 Esta lista foi extraída do Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem tupi, de Antônio Ge-
raldo da Cunha.

187
José Pereira da Silva
buriti, buritial, buritiral, buritirana, buritizal, buritizeiro, butiá, caamenbeca,
caancuam, caaobitinga, caapara, caapeba, caapeno, caapepena, caapiá, caa-
piranga, caapoã, caataia, caatimai, caatinga, caatingal, caatingano, caatin-
gueira, caatingueiro, caaxima, caba, cabajuba, cabatã, cabecê, cabiúna, ca-
boclada, caboclismo, caboclo, caburé, cabureíba, cacundê, caçununga, cacu-
ri, caetê, caferana, caiacanga, caiarara, caiçara, caiçu, caiçuma, caimbé, cai-
nana, caipira, caipiragem, caipora, caiporismo, caitetu, cajá, cajati, cajazei-
ra, cajazeiro, cajeiju, caju, cajuada, cajual, cajueiral, cajueiro, cajuí,
cajupeba, cajuzal, cajuzeiro, camaçari, camaíua, camapu, camará, camboa,
camboatá, camboatã, cambucá, cambucazeiro, cambuí, cametaú, camina,
camiranga, campinarana, campuava, camucim, camurim, camurupim, cana-
paúba, canarana, candiru, cangoeira, canguçu, canhambola, canhembora,
caninana, canindé, canitar, canjerana, capão, capim, capinação, capinado,
capinador, capinal, capinar, capinzal, capitari, capiúna, capivara, capixaba,
capoeira, capoeirão, capoeiro, capororoca, capuaba, capueruçu, cará, cara-
buçu, caracará, caracaraí, caraetê, caraguatá, caraguatal, caraíba, caraipé,
carajuru, caramuru1, caramuru2, caraná, carandá, carandazal, caranha, carão,
carapanã, carapanaúba, carapiaçaba, carapicu, carapina, carapinima, cara-
quopitam, carará, carataí, caraubeira, caraúna, caraúno, caraxué, carazal, ca-
ribé, carimã, carioca, cariperana, caripirá, carnaúba, carnaubal, carnaubeira,
caroba, caruara, carumã, carumbé, carunje, catanduva, catauari, catimpoei-
ra, catuaba, catulé, catulezeiro, cauaçu, cauim, caúna, cauré, caxiri, chayge,
chiriúba, chonta, cipó, cipoada, cipoal, cipotá, claraíba, coirana, coivara,
comandá, comandoí, congonha, copaíba, copaibeira, copaibuçu, copiar, co-
rimbó, corneíba, coroca, corocuturu, coruatatíua, craúba, criciúma, crueira,
cuandu, cuatá, cuati, cuatiara, cuatimundé, cuatipuru, cuaxinguba, cuia, cui-
aba, cuiada, cuiaíba, cuiapeua, cuiarana, cuica., cuidaru, cuieira, cuiejurimu,
cuiém, cuiemuçu, cuiepiá, cuietê, cuim, cuipeúna, cuipuna, cuíra, cuitezeira,
cuiú-cuiú, cujubi, cumari, cumaru, cumarurana, cumaruzeiro, cumaté, cum-
bira, cumbuca, cunambi, cunapu, cunauaru, cunduru, cunhã, cunhambira,
cunhamena, cunhamucu, cunhantã, cunhatainape, cupá, cupim, cupiúba, cu-
pu, cupuaçu, cupuaçuzeiro, cupuaí, curauabí, curaxirì, curcurana, curi, curi-
boca, curica, curicaca, curimã, curimatã, curió, curuá, curuanha, curuatá, cu-
rumim, curupaí, curupicaí, curupira, cururi, cururu, cururu-apé, cururupeba,
cururutimbó, cutia, cutitiribá, cutuba, cuxiú, descoivarado, eixuá, embaúba,
embaubeira, embautinga, embiara, embira, embirado, embirataí, embiricica,
embiriti, embiruçu, emboaba, enapupê, encaiporar, encoivarar, enduape, en-
guanxumado, ensamambaiado, ensapezado, enxu, enxuí, epené, ereiteuna,
ereitiuna, espipocar, gaitiepia, gambá, ganbiapiruera, gaponga, gapuiar, ga-
quara, garepe, gargaúba, gaturamo, gibato, graúna, grexiuruba, grumixama,
grumixameira, grupiara, guabiju, guabirana, guabiroba, guabirobeira, guabi-

188
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
ru, guacá, guacaré, guacucuiá, guacuri, guaí, guaiá, guaiaimbira, guaiamum,
guaiarara, guaibicuara, guaibicuaraçu, guaibicuati, guaihirabá, guainumbi,
guaipeva, guajará, guajaraí, guajeru, guaju-guaju, guajuvira, guamirim,
guaná, guanandi, guanandirana, guapeba, guapebeira, guapiú, guapuí, gua-
quaqua, guará, guarabebe, guarabu, guaracão, guaracema, guaraciaba, gua-
racu, guaraguá, guaraí, guarajuba, guarantã, guarapiapunha, guarapicica,
guarapicu, guarara, guararieí, guararimá,gararina, guarataiaçu, guaratimbó,
guaravira, guaraxaim, guariama, guariba, guaricanga, guaricuja, guaripoa-
pém, guariroba, guariúba, guaru, guaruçá, guaru-guaru, guarumá, guatambu,
guatapu, guaxe, guaxima, guaxupé, guigó, guirapanema, guirapuru, guira-
téu, guirateúna, guira-téu-téu, guiratinga, guirauaçu, guiraundi, guiraupia-
guara, guiri, guoazaranha, guoquy, guraputepoca, guri, guriatã, guriaz, goa-
riá, gurijuba, guronna, gurumarim, guturá, hain, hiá, iá, iara, iaroubi, ibabi-
raba, ibacamuci, ibamirim, ibanemixama, ibapuringa, ibaraè, ibarùba,
ibaxùma, iberàba, ibiaú, ibiboca, ibiboboca, ibijara, ibijaú, ibiraçanga, ibira-
cica, ibiraçoca, ibiracuá, ibiracuatiara, ibiracuatino, ibiracuí, ibiraigara, ibi-
raipu, ibiraitá, ibirajaca, ibiraobi, ibirapariba, ibirapaúba, ibirapeaponha, ibi-
rapeteruna, ibirapinima, ibirapiranga, ibirapiroca, ibirapocá, ibiraporomoca-
ci, ibirarema, ibiratinga, ibiraúna, ibiriba, içá, icica, icicariba, igaçaba, iga-
pó, igara, igaraçu, igarapé, igaraúna, igarité, ijija, imbé, imbu, imburana,
imbuzada, imbuzeiro, inambu, inaúba, indaiá, indaié, ingá, ingapenambi,
ingarana, ingazeira, ingazeiro, inimbó, intanha, inúbia, ipadu, ipê, ipeca,
ipecacuanha, ipecu, iperu, ipu, ipueira, ipupiara, irara, irerê, iriarana, iru,
iruçu, itã, itacaba, itacuatiara, itaicica, itaimbé, itaipava, itamembeca, itamo-
tinga, itaoca, itapicurú, itapuá, itaúba, ituá, ivirapema, jabebira, jabebirapi-
nima, jabota, jaburandi, jaburu, jabutapitá, jabuti, jabuticaba, jabuticabal,
jabuticabeira, jabutipeba, jacá, jacamim, jaçanã, jacarandá, jacarandatã, ja-
caré, jacarepinima, jacaretinga, jacareúba, jacarezada, jacina, jacitara, jacu,
jacuá, jacucaca, jacuguaçu, jacuíba, jacumã, jacumaíba, jacumaú, jacundá,
jacupema, jacuruaru, jacurutu, jacutinga, jaguacati, jaguacininga, jaguané,
jaguapeva, jaguapitanga, jaguapopeba, jaguar, jaguaracanguçu, jaguararua-
pem, jaguaretê, jaguaroba, jaguaruçá, jaguaruçu, jaguatirica, jajaboçui, ja-
maru, jamaxi, jandaia, jandiá, japá, japacanim, japarana, japaranduba, japa-
ti, japecanga, japeraçaba, japerujaguara, japicaí, japinabeiro, japu, jaquira-
naboia, jaracatiá, jaraqui, jararaca, jararacapeba, jararacuçu, jararaguaipi-
tanga, jataí, jataíba, jataicica, jataí-mondé, jataipeba, jataizeiro, jaticá, ja-
tium, jatobá, jatuaíba, jatuarana, jaú, jauaraicica, jauari, jauatí, jaueti, jeitivi,
jeju, jeneúna, jenipapeiro, jenipapo, jeniparana, jequi, jequiri, jequiriti, je-
quitibá, jequitiguaçu, jererê, jerimum, jerimuzeiro, jerivá, jeroqui, jetica, je-
ticuçu, jia, jiboia, jiboiaçu, jiquitaia, jirau, jitinga, jitiquera, jitirana, juá, jua-
rana, juazeiro, jucá, jucá,(pau,de), juçana, juçara, jucirana, juí, juiguaraiga-

189
José Pereira da Silva
raí, juijiá, juiperega, juiponga, jundiaíba, jupará, jupiá, juquiá, juquiraí, ju-
quiri, jurará, jurarapeba, jurema, juremari, juriti, jurubeba, jurubebal, juru-
cuá, jurugua, jurujuba, juruparã, jurupari, jurupencú, jurupenden, jurupoca,
jururu, juruva, kacum, lambari, lindirâna, macacaúba, macacica, macambi-
ra, maçaranduba, maçarandubeira, macaúba, macaubeira, macaxeira, macu-
caguá, macuco, macucu, maçunim, maguari, maira, mairia, majerioba, ma-
moá, manacá, manaíba, manaibaru, manaibuçu, manaitinga, manapuçá,
mandaçaia, mandacaru, mandaguari, mandi, mandioca, mandiocaí, mandio-
cal, mandioqueiro, mandubi, manduri, manduricão, mangaba, mangabal,
mangabarana, mangabeira, mangabeiral, mangabeiro, mangangá, mangará,
mangarito, maniçoba, maniçobal, maniim, manoiu, manima, manipueira,
maniveira, mapará, mapurunga, mará, maracá, maracajá, maracanã, maraca-
tim, maracuguara, maracujá, maracujazeiro, maraguigana, marajá, marajaí-
ba, marandová, maranduba, marapuama, margui, mari, maricá, marimari,
maririçó, maritacaca, marizeiro, maruim, marupá, marupiara, matamatá,
matapi, matarana, matintaperera, matiri, matuim, matupá, matupiri, matura-
qué, maturi, mejuare, membi, membiapara, membiguaçu, menhu, meru, me-
ruanha, metara, miaçaba, miapeatã, micuim, mindocuruera, mingau, mirim,
mirindiba, miuaná, miúva, mixira, moani, moçacara, mocitaíba, mocó, mo-
cororó, moqueação, moqueado, moquear, moquém, moracira, morubixaba,
mosuinha, moxiricuíba, mucaiúba, mucajá, mucajazeiro, muçambé, muci-
qui, muçuã, mucuíba, mucujê, muçum, mucunã, mucura, mucuracaá, muçu-
rana, mucuri, muiepereru, muirapuama, muiraquitã, mujanguê, mumbaca,
mumbuca, mundéu, mundururu, munguba, mungubeira, muquirana, mura-
juba, murehí, muremuré, murici, muriçoca, murucaia, murucu, murucututu,
murungu, mururê, mutá, mutirão, mutuca, mutum, mututi, nambiju, nanauí,
narinari, nhaçaruamembeca, nhambi, nhambucaru, nhandu, nhanduabiju,
nhanduaçu, nhanduí, nhanduvai, oca, ocara, oiti, oiticica, oiticoró, oitizeiro,
onaoraz, paca, pacamão, pacapeua, pacará, pacaré, pacavira, paçoca, paco-
va, pacoval, pacoveira, pacu, pacuã, pacuera, pacuí, pacupeba, paiauaru, pa-
jamarioba, pajé, pajelança, panacu, panapaná, panema, panemice, papa-
capim, papiri, paqueiro, paquinha, paracuuba, paraí, parapará, paraparaíba,
parari, parati, pari, paricá, parinari, pariparoba, pariri, parnaíba, paru,
pasendo, passaraíva, patacu, patativa, pati, patiguá, patioba, paturi, paxicá,
paxiúba, peaçaba, peba, peipeçaba, peiti, peitica, pepéua, pequi, pequiá, pe-
quirana, pequizeiro, perau, pereba, perereca, pererecar, periaz, peroba, pete-
ca, petimbabo, petume, peunha, peúva, pexarorém, piaba, piabanha, piaça-
ba, piaçoca, piaga, piapara, piau, picaçu, picaçurova, picaí, picarurú, picuá,
picuí, picuiguaçu, picuipeba, picuipitanga, picumã, picuruata, piguaja, pin-
dá, pindaíba, pindaibal, pindá-siririca, pindauaca, pindoba, pindobuçu, pi-
nima, pipira, pipoca, pipocar, pipupipuba, piquira, pirá, pirá-andirá, pirá-

190
Gramática Histórica da Língua Portuguesa
apapá, pirá-bandeira, pirabebe, piracambucu, piracanjuva, piraçaquém, pira-
catinga, piracava, piracema, piracuara, piracuaxiara, piracuca, piracuera, pi-
racuí, piracururu, piraém, piraguajura, piraí, piraiapeva, piraíba, piraiquê,
piraiucuri, pirajaguara, pirajuba, pirambeba, piramboia, pirambu, piramuta-
ba, piranambu, piranema, piranha, piranhatinga, pirapema, pirapetimbabo,
pirapitinga, pirapuã, pirapucu, piraputanga, piraquiba, piraquira, piraquiroá,
pirára, pirarara, pirarucu, pirá-tapioca, piraúna, piri, piriantã, pirimembeca,
piripiri, piripirioca, piririguá, piriuáca, piron, piruá, pissandó, pitanga, pi-
tangueira, pitauá, pitia, pitinga, pititinga, pitiú, pitomba, pitombeira, pitribí,
pitu, piúca, pium, piúna, pixaim, pixé, pixi, pixirica, pixuna, pixurim, poaia,
pocema, pococim, pocosi, pojuji, poracê, poranduba, poraquê, pororoca, po-
taba, poti, potiguaçu, potipema, potiquequiá, potó, preá, preguari, pritiuba,
pubo, puba, puçá, puçanga, puçanguara, punaré, pupunha, pupunheira, pu-
rupuru, putumuju, putunara, puxi, quaiaquaiais, quaparaiva, queiroá, quere-
juá, querico, quibuquibura, quicé, quintim, quipá, quiquió, quiri, quiriba,
quirimbaba, quiriri, quiriru, quixaba, quixabeira, rerimirim, reripeba, reriu-
çu, reruba, ressoca, saaçu, sabacu, sabiá, sabiacica, sabiapitanga, sabiapoca,
sabiaponga, sabiatinga, sabiaúna, sabijujuba, sacaí, sacaiboia, saci, sacuraú-
na, saguaritá, sagui, saí, saipé, saíra, sairé, saixê, sale, samambaia, samam-
baiaçu, samambaial, sambaíba, sambaqui, samburá, sanhaço, sanharó, sapé,
sapezal, sapezeiro, sapinhanguá, sapiranga, sapirão, sapiroca, sapiroquento,
sapopema, sapotaia, sapucaia, sapucaieira, sapuva, sarã, saracoma, saracura,
sarandi, sarapó, sarará, sariguê, sariguebeiju, sauá, sauacuri, sauiá, sauiatin-
ga, saúna, saúva, sauxaz, savitu, sebui, senembi, sepenica, sereíba, sericoia,
seriema, sernambi, sernambitinga, siaum, siri, siringaúa, sobaúra, soca, so-
caúna, socó, socoí, socoró, sororoca, suaçu, suaçuapara, suaçucanga, sua-
çuetê, suaçupitanga, suaçupucu, suaçutinga, suçuarana, sucupira, sucuri, su-
curijuba, sucuritinga, sucuuba, suí, suia, suindara, suiriri, sumaré, sumaúma,
sumaumeira, suraju, surubim, surucuá, surucuru, sururu, sururuzeiro, suum-
ba, taba, tabarana, tabaréu, tabaroa, tabatinga, tabebuia, taboca, tabocal, ta-
boquear, taboqueira, tabujajá, tacape, taçape, tacaranha, taciaí, tacibura, ta-
cicema, tacipitanga, tacumburî, tacupapirema, tacuri, taguaíba, taguaranha,
taiaçu, taiaçuetê, taiaçupita, taiaçutirica, taioba, taiobeira, taiobuçu, taioca,
taiuiá, tajá, tajacica, tajamembeca, tamanduá, tamaquaré, tamaracá, tamara-
na, tamatarana, tamatiá, tambaqui, també, tambuape, tamburupará, tamuatá,
tanajura, tananá, tangapema, tangará, tapacurá, tapanhoacanga, tapeis, tape-
jar, tapejara, tapera, taperá, taperado, taperebá, taperebazeiro, taperização,
tapiaí, tapicuru, tapinhoã, tapioca, tapiocano, tapiopuba, tapir, tapiranga, ta-
pireçá, tapiretê, tapiri, tapiruçu, tapiti, tapiucaba, tapiúja, tapupe, tapuru, ta-
quara, taquaral, taquaratinga, taquari, taquariço, taquarirana, taquariúba, ta-
quaruçu, taquerú, taquira, taraba, tarajaba, tararaca, tararucu, tarioba, taru-

191
José Pereira da Silva
mã, tarumaneiro, tarumazeiro, tataíra, tatajuba, tataoca, tatapecoaba, tata-
puiaçu, tatu, tatuapara, tatucaba, tatuguaxima, tatuí, tatupeba, tatupebuçu,
tatuquira, taturana, tauá, tauari, tauató, tauguape, taxi, taxizeiro, teiú, teiua-
çu, tejeçu, tembetá, terepomonga, teringuá, teú, teúba, téu-téu, ticuarapuã,
ticuaraúna, tié, tiguera, tijucal, tijuco, tijucupaua, tijupá, timbaúba, timbó,
timborana, timbu, timburé, timixira, timucu, timuna, tingacanga, tinguaciba,
tingui, tinguijada, tinguijar, tinhorão, tipirati, tipiti, tipoia, tiquaam, tiquara,
tiquarã, tiquira, tiriba, tiririca, titara, titarimbo, tobi, tocaia, tocaiar, tocaiei-
ro, tocandira, toré, toroupirá, tracajá, tracuá, traíra, trairamboia, trapiá, tra-
poeraba, tremembé, trocano, tubi, tubura, tucano, tucum, tucumã, tucuman-
zeiro, tucunaré, tucupi, tucura, tucurana, tuijuba, tuim, tuíra, tuiuiú, tuivire,
tumurupára, tunga, tungaçu, tupã, tupé, tupiana, tupuxuara, turu, turuçã, tu-
ruri, tururucari, tuxaua, uacã, uaçaçu, uacanuá, uacumã, uaiúa(de-), uapé,
uapi, uapuçá, uaracapurí, uariá, uarimá, uauaxí, uavaona, ubá, ubaém, ubaia,
ubaieira, ubapeba, ubapitanga, ubarana, ubatinga, ubaxainha, ubim, ubuçu,
uçá, uçururé, uéua, uiçu, uiraçaba, umari, umauari, umiri, umirizeiro, unaú-
na, upiúba, uraçu, urataí, urepe, uritinga, uru, uruá, uruana, urubu, urubutin-
ga, urubuzada, urucá, urucapi, urucatu, urucu, uruçuca, urucurana, urucuri,
urucuriá, urucurizeiro, urucuzeiro, urujaguara, urumaru, urumbeba, urumu-
tum, urundeúva, urupê, urupema, ururau, urutau, urutaurana, urutu, uxi, uxi-
zeiro, vapuí, varem, viatã, vieçacoatinga, vimojipaba, vipuba, vitinga, vivia,
vupapussa, xerimbabo, xexéu, zabucai

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa

ANEXO 2
PALAVRAS PORTUGUESAS DE ORIGEM ÁRABE138

Aba, abaci, abácida, abádida, abedale, abelmeluco, abelmosco, abencerra-


gem, abenuz, abexim, abroque, açacalar, açafata, açafate, acefelar, açafrão,
açaimo, acelga, acém, acepipe, acéquia, acéter, achaque, acica, acicate, aci-
tara, açôfar, açofeifa, açoite, açorda, açoteia, açougue, açubá, açúcar, açu-
cena, açude, adáçama, adafina, adail, adarga, adarme, adarve, adeleiro, adel-
fa, adiafa, adibe, adival, adixá, adobe, adua, aduana, aduar, adufa, adufe,
adúnia, afagar, agomia, aiassari, ailá, alá, alabão, alacil, alaçor, alaela, ala-
mar, alambique, alambre, alandalus, alaqueca, alarde, alarife, alaroça, alar-
ve, alaúde, alazão, albacar, albacara, albacora, albafar, albarda, albarrã, al-
barrada, albarraz, alberca, albetoça, alboque, albornoz, alboroque, albudeca,
albufeira, alcaçaria, alcacel, alcácer, alcachofra, alcáçova, alcaçuz, alcadafe,
alcáfar, alcaguete, alcaide, alcaima, alcade, álcali, alcamonia, alcânave, al-
cândora, alcântara, alcanzia, alcaparra, alcar, alcaravão, alcaravia, alcaria,
alcarraza, alcateia, alcatifa, alcatira, alcatra, alcatrão, alcatrate, alcatraz, al-
catruz, alcavala, alcoceifa, alcofa, álcool, alcorão, alcorce, alcorque, alcova,
alcoveto, alcrevite, alcunha, alçuz, alcuza, aldebarã, aldeia, aldrabão, aldra-
va, alecrim, alefriz, alefli, aletria, alfa, alface, alfadia, alfafa, alfageme, al-
faia, alfaiate, alfâmbar, alfândega, alfaneque, alfange, alfaque, alfaqueque,
alfaqui, alfaraz, alfarda, alfarém, alfarge, alfarrábio, alfarroba, alfavaca, al-
fazema, alfeça, alfeire, alféloa, alfena, alfenim, alferes, alfim, alfinete, alfí-
tena, alfitete, alfitra, alfobre, alfola, alfoli, alfova, alfombra, alforfião, alfor-
je, alforma, alforra, alforreca, alforria, alfóstico, alfoz, alfrezes, alfridária,
alfurja, algália, alganame, algar, algara, algaravia, algarismo, algarvio, alga-
zarra, álgebra, algema, algeroz, algibebe, algibeira, algodão, algol, algoz,
alguerque, alguidar, alheta, alicali, alicate, alicerce, alidade, alifate, alige-
num, alimangariba, alizar, alizari, aljamia, aljaravia, aljazar, aljofaina, aljô-
far, aljorce, aljuba, aljube, aljuz, almadia, almadraba, almadraque, almáfega,
almafre, almagre, almanaque, almandra, almanjarra, almanxar, almarada,
almargem, almarraxa, almece, almécega, almedina, almeia, almeirão, almei-
tiga, almeizar, almenara, almexia, almirante, almíscar, almóada, almoçábar,

138 Esta lista foi extraída do Léxico português de origem árabe, de João Baptista M. Vargens.

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José Pereira da Silva
almocádem, almocafre, almocela, almocreve, almoeda, almofaça, almofada,
almofala, almofariz, almofate, almofia, almofreixe, almofrez, almogama,
almogavre, almojama, almojávena, almôndega, almorávida, almorraram,
almotacé, almotolia, almoxarife, almuadem, almucábala, almucântara, al-
mude, almuinha, alnáibe, aloé, alparcata, alqueire, alqueive, alquequenje,
alquermes, alquibla, alquicé, alquiez, alquifa, alquilé, alquimia, alquiré, al-
quitão, alquitara, altair, aluá, aludel, alufá, alvaiade, alvanega, alvanel, alva-
rá, alvaraz, alvarral, alveitar, alvíssaras, alvitana, alvoroço, âmbar, amim,
anaco, anadel, anafa, anáfaga, anafaia, anáfega, anafil, andaime, andaluz,
anexim, anfião, anil, anta, anúduva, arabi, araca, aravia, argel, argola, arma-
zém, aroeira, arrabalde, arrabil, arraia, arraião, arrais, arrátel, arre, arrebi-
que, arrecife, arrequife, arriaz, arricaveiro, arrife, arroba, arrobe, arroz, ar-
senal, arzanefe, assassino, assumi, atabal, atabaque, atafal, atafera, atafona,
atalaia, atambor, atanor, atarracar, ataúde, até, atum, auge, aval, avaria, ave-
lório, averroísmo, avicenismo, axabeba, aximez, axorca, azaca, azáfama,
azagaia, azambujo, azaqui, azar, azaria, azarola, azebre, azeche, azeite, azei-
tona, azêmola, azenha, azerve, azeviche, aziar, azimute, azinhaga, azinha-
vre, azougue, azul, azulejo baba hanuche, babismo, babucha, badana, bafari,
bairro, balde, baldo, baque, bar, baraço, barda, barica da subá, barregana,
batafaluga, bedém, beduíno, beirute, beleua, beliz, benjoim, berbere, berin-
jela, bissimilai, bodoque, bolota, borni, caaba, cabaia, cabide, cabila, cacife,
cacifo, caciz, cádi, cadimo, cadoz, café, cafetã, cáfila, cafre, cafta, caima-
ção, calibre, califa, camsim, canana, cande, cadil, caneco, cânfora, capuz,
caravana, ceifa, ceitil, celamim, cenoura, cequim, ceroulas, cetim, chaabã,
chafariz, chaual, cherne, chifra, chué, chúmea, cifa, cifra, coraixita, cordo-
vão, cubeba, cuscuz, damasco, daroês, debalde, dinar, divã, djema, djim,
dulcada, dulrija, elche, elixir, embelecar, emir, enxaca, enxaqueca, enxara,
enxaravia, enxarrafa, enxávega, enxeco, enxerca, enxoval, escabeche, esfi-
ha, espinafre, estragão, falafel, falca, falifa, faluca, fanga, faquir, faraz, far-
roupo, fateixa, fatia, fazer sala, febra, felá, fez, folforinho, forro, fota, fula-
no, gafa, garrafa, gazel, gazela, gazua, gelba, gergelim, ginete, girafa, giz,
hadji, haique, haquim, harém, harmala, haxixe, hégira, homos, huri, ifrite,
imame, iradê, intifada, islame, jaez, jamada, jamada alula, jarra, jarro, jas-
mim, javali, jihad, julepo, laban, labna, laca, lacrau, laranja, leilão, lemano,
lezíria, lilás, lima, limão, loque, macana, maçalassi, maçari, madraçal, ma-
foma, magarefe, magazine, malê, mameluco, manchil, mandil, maneco las-
salana, maquia, marabuto, maravedi, marfim, maroma, maromba, maronita,
marrão, máscara, masmorra, mate, matraca, mesquinho, mesquita, mijadra,
mimbar, minarete, mirabe, miramolim, mitical, moçafo, moçárabe, moçua-
quim, mofatra, mogatace, monção, mosleme, moxama, mozmodi, muçul-
mano, mudéjar, mufti, muladi, múmia, mussurumim, muxarabiê, nababo,

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa
nácar, nacibo, nadir, nafar, nafé, nafta, názir, nesga, nochatro, nora, nuca,
olíbano, osga, osmanli, oxalá, papagaio, quermes, quibe, quilate, quintal,
rabadão, rabia alarrir, rabia alual, rabia atani, rajabe, rafadi, ramadão, real-
gar, rebato, rebite, recamar, récua, refece, refém, regueifa, rês, resma, reta-
ma, riel, rígel, rima, rincão, roque, rume, rusma, sacá, safar, sáfar, safári, sa-
faria, safeno, safra, sagena, saguão, salá, salamaleco, salamaleque, salepo,
saloio, sanefa, saramago, sega, sene, sica, simum, sirage, siroco, soda, sofá,
sucata, sufi, sultão, sumagre, suna, sura, surrão, tabaxir, tabefe, tabi, tabica,
tabique, tabule, taça, taforeia, tahine, taifa, taipa, talco, taleiga, talibã, talim,
tâmara, tamarindo, tara, tarbuche, tareco, tarefa, tareia, tarifa, tarima, tarim-
ba, tarrafa, tauxia, tecebá, tercenas, timbale, tiraz, toranja, tremoço, tripa,
tubel, tufão, turgimão, turqui, uale, ulemá, úsnea, vizir, xadrez, xairel, xale,
xamal, xáquima, xareta, xarope, xaveco, xelma, xeque, xerife, xiita, zaga,
zagal, zaino, zambuco, zarabatana, zaragatoa, zarcão, zarco, zegri, zênite,
zero, zirbo.

195
José Pereira da Silva

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Gramática Histórica da Língua Portuguesa

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