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MIRA MATEUS, Maria Helena.

Se a língua é um factor de identificação cultural, como se


compreende que a mesma língua identifique culturas diferentes? In: CARDOSO, Suzana
Alice Marcelino; MOTA, Jacyra Andrade; MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (Orgs.)
Quinhentos Anos de História Linguística do Brasil. Salvador: Secretaria da Cultura e
Turismo, Coleção Apoio, 2006.

Wilhelm von Humboldt foi um dos primeiros filósofos a pensar as relações entre
língua e cultura. Ele defende que as palavras são objetos reais e as relações gramaticais
fornecem nexo. O casamento de ambas influencia no desenvolvimento das ideias e na
elaboração do pensamento abstrato.
Existe uma dialética que impulsiona o pensamento abstrato entre a língua e a cultura,
que é o pensamento caracterizador de uma nação. O nível superior de uma língua não está
condicionado apenas pelo mérito cultural, como também contribui para o desenvolvimento do
pensamento através da forma gramatical.
Houve uma época em que os intelectuais norte-americanos defendiam com veemência
que os povos não industrializados tinham sistemas linguísticos, culturais e de pensamento tão
complexos e válidos como os povos considerados mais avançados, perspectiva que se opunha
ao determinismo biológico que amarrava os povos a uma hierarquia sócio político-econômica
decorrente das respectivas características genéticas.
Toda língua é um vasto padrão sistemático, diferente de outras, e são culturalmente
ordenadas as formas e categorias para fazer a personalidade comunicar e analisar, estabelecer
relações e expressar sua consciência. Ele diz que “pensamento é uma questão de língua” é
uma generalização incorreta da ideia mais correta, que seria “pensamento é uma questão de
diferentes línguas”.
Sapir, por outro lado, em sua obra que surgiu em 1921, diz que a relação entre língua,
raça e cultura não implica uma interdependência. Ele afirma que é fácil provar que um grupo
de línguas não tem necessariamente qualquer correspondência com um grupo racial ou uma
área cultural. Ele diz que línguas intimamente cognatas, às vezes até uma única língua,
pertencem a círculos de cultura distintos, enquanto línguas sem parentesco nenhum podem
partilhar de uma só cultura, sem qualquer relação de causa e efeito entre língua e cultura.
Todas as línguas provam o nível idêntico de complexidade cultural atingido pelas
comunidades que as falam, independentemente de sua maneira de interpretar a realidade. Foi
a partir daí que a linguística gerativista começou a utilizar os fatos das línguas particulares
para identificar os princípios da gramática universal. Essa teoria se baseia na convicção de
que o homem possui uma faculdade particular da linguagem, um tipo de organização
intelectual exclusiva. Isso afastou as características particulares do comportamento de uma
sociedade (cultura) dos interesses dos linguistas.
O espaço de discussão sobre as relações entre língua e identificação cultural tem sido
progressivamente preenchido pelas preocupações dos sociolinguistas no que diz respeito às
questões de variação linguística. Existem fatores internos e externos intervenientes nessa
variação que supõem interação entre fatores linguísticos (cognitivos e inatos) além de fatores
sociológicos.
O início da colonização do Brasil pôs em contato o português europeu do século XVI
com a língua falada pelos habitantes da terra recém-descoberta. Na época, os indígenas eram
em número muito superior aos portugueses que, durante muitos anos, se viram obrigados a
aprender a nova língua. A missionação dos jesuítas reforçou a necessidade de aprendizagem
da língua dos indígenas falada ao longo do litoral — uma das chamadas “línguas gerais —,
utilizada pelos catequizados simultaneamente com o português.” Desde cedo, porém, e até ao
século XIX, os barcos de traficantes de escravos não cessaram de deixar na costa brasileira
incontáveis grupos de negros cujo número veio a ultrapassar rapidamente o dos primitivos
habitantes da terra, os indígenas.
Algumas circunstâncias, como a emigração de portugueses para o Brasil e a
transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro no século XIX, forçaram a utilização
do português e a sua extensão progressiva aos falantes das línguas gerais. Do contato do
português com as línguas dos nativos e com os crioulos africanos resultaram, naturalmente,
várias influências na língua dos colonizadores.
O fato de as fronteiras políticas de Portugal serem as mais antigas da Europa
contrariou uma variação mais profunda provocada por fatores exteriores, a qual foi
sobrelevada pela ação de fatores internos à própria língua.
De um ponto de vista estritamente linguístico, não há como provar que as diferenças
nos mais diversos níveis entre duas formas de falar próximas (PB e PE) obrigam que essas
formas de falar passem a ser consideradas como duas línguas distintas. A manutenção dessas
variedades no enquadramento do que se denomina uma língua é, em última análise, uma
opção política. Ou seja, o termo “Português”, que cobre as variedades socioletais, dialetais e
nacionais que convivem em Portugal e no Brasil, deve ser entendido como importante
instrumento de coesão entre povos e como afirmação política e econômica num contexto
envolvente transnacional. A língua, porém, não é tão somente um fator de importância
político-econômica. É um fator de identificação cultural.
Duas formas de comportamento: linguística e cultural. As duas resultam da interação
das capacidades cognitivas e emocionais do homem e das orientações comportamentais que
advém do contexto social. A atividade linguística realiza-se pela natureza da fala, que é uma
abstração até ser concretizada na produção linguística de cada indivíduo. De igual modo a
cultura cobre uma abstração, mas realiza-se por diversas formas de comportamento, com
fronteiras menos definidas. Em resumo, a atividade linguística de cada indivíduo contribui
para a autopercepção e para a identificação do indivíduo. É, na realidade, um fator de
identificação cultural, mas no uso, e pelo uso, que dela faz o indivíduo, e não apenas por
pertencer a uma comunidade que utiliza aquela língua.

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