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LITERATURAS EM DIÁLOGOS ATLÂNTICOS: A INFLUÊNCIA DA

LITERATURA BRASILEIRA NA ANGOLANA E UMA BREVE ANÁLISE


SOBRE VIRIATO DA CRUZ
Ana Luiza Fazolli1
RESUMO: A marginalidade do indivíduo assimilado é um fenômeno consequente de sua
própria condição a qual apresenta-se no limiar entre duas culturas e é incapaz de ultrapassar
as barreiras e integrar-se ao mundo do dominador, assim como é impedido de compartilhar de
seus privilégios e poderes. A assimilação pode ser entendida como um processo de adaptação
e acomodação à vida social e política do grupo dominante. As formas empregadas para a
execução desse processo são variáveis, podendo ser realizadas através da linguagem e a
imposição de um discurso dominante, do acesso e controle do conteúdo da educação formal,
do estabelecimento de uma moral e normas sociais. A proposta desse artigo é, através do
referencial teórico dos estudos pós-coloniais, discutir as influências entre duas culturas
subalternas - a brasileira e a angolana - naquilo que se refere aos seus projetos de
independência literária - e, por consequência da forma como esses projetos foram
encaminhados, também uma independência linguística e cultural. Os literatos empenhados
nessa proposta, ao proporem uma nova linguagem literária, seja uma língua brasileira ou uma
língua angolana, conjugaram a possibilidade de uma nova forma de existir e afastaram-se do
dilema entre embranquecerem-se (civilizarem-se) ou desaparecerem.
PALAVRAS-CHAVE: História literária; Estudos pós-coloniais; Viriato da Cruz.
ABSTRACT: The marginality of the assimilated individual is a phenomenon consequent of
their own condition which presents itself on the fine line between two cultures and is unable
to overcome the barriers and integrate the dominant's world, likewise is prevented from
sharing their privileges and rights. The assimilation can be understood as a process of
adaptation and accommodation to social and political life of the dominant group. The forms
used for the execution of this process are variable and can be performed through language and
the imposition of a dominant discourse, access and control of formal education's content, the
establishment of a moral and social norms. The purpose of this article is, through the
theoretical framework of postcolonial studies, discuss the influences between two subaltern
cultures - Brazilian and Angolan - in what refers to its projects of literary independence - and,
as a consequence of how these projects were referred, also a linguistic and cultural
independence. The intellectuals who engaged in this proposal, by proposing a new literary
language, either a Brazilian language or an Angolan language, have combined the possibility
of a new way of living and moved away from the dilemma of neither become white (become
civilized) or disappear.
KEYWORDS: History of literature; Postcolonial studies; Viriato da Cruz.

Os trânsitos entre os territórios lusófonos são objeto de estudo em seus


diferentes períodos; iniciam-se com as expedições além-mar portuguesas que
difundem a língua em terras nos continentes africano, americano e asiático, e vão até
os dias de hoje. Sob o aspecto cultural, esse diálogo atual se torna claro quando
observamos a presença de autores africanos em nossas livrarias - tais como Pepetela,
Ondjaki, José Eduardo Agualusa, Paulina Chiziane, Mia Couto. Sobre esse último
pode-se ainda ressaltar sua presença na Feira Literária Internacional de Paraty em
2007, na qual debateu na mesa de nome "Terras" com o romancista baiano Antônio
Torres.
1
Bacharel em História, faz mestrado em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de
Campinas. É bolsista FAEPEX. Contato: afazolli@me.com
A vontade de saber mais sobre esse trânsito motivou o moçambicano de
nacionalidade portuguesa, porém residente no Brasil há mais de trinta anos, Victor
Lopes a dirigir em 2001 o documentário Línguas: vidas em português. A produção
mostra em suas tomadas cenas do cotidiano em diferentes países - Portugal, Brasil,
Índia (Goa), Moçambique, Angola - e relatos da relação das personagens com a
língua. Há ainda a participação de intelectuais como Mia Couto, João Ubaldo Ribeiro
e José Saramago. Torna-se explícita a função da língua enquanto produtora de cultura,
em certa sequência o lusitano Saramago diz sobre a comunidade lusófona: "São
pessoas que apesar de falarem português, não falam a mesma língua". Está aí
implícito uma distinção que vai além da análise vocabular e busca a linguagem
enquanto entidade viva, que circula, modifica-se e traz consigo uma bagagem
histórica e cultural de seus falantes.
O dinamismo da língua portuguesa é uma característica interessante e pode ser
atribuída ao trânsito atlântico. A linguagem enquanto elemento cultural é definida por
John K. Thornton (THORNTON, 2000, p. 285) como o método mais importante para
se identificar uma cultura por razão da sua rigidez estrutural e do seu conteúdo.
Apesar da, em geral, estabilidade, o idioma originário da metrópole diante da
circulação no Atlântico configurou peculiaridades à língua em cada uma de suas
colônias. Isso, pois o tráfico de pessoas gerou um trânsito excepcional entre seus
integrantes: com os produtos, materiais e escravos viajavam procedimentos, hábitos,
formas de estar no mundo (CHAVES, 2005, p. 227). Esse movimento não se restringe
aos séculos mais afastados do nosso, mas desde o final do século XVIII incluem
também a literatura, a música e o esporte.
Com essa circulação viajaram referências brasileiras, que no século XX
colaboram em formar, nas ainda colônias portuguesas africanas em que estabelece
diálogos, sentimentos de uma cultura nacional nas elites nativas através do
fornecimento de parâmetros que se contrapunham ao modelo lusitano. Aos olhos
dessa elite, o Brasil se projetava como uma sociedade que já havia passado pelas
mesmas limitações da realidade colonial e apresentava nas suas manifestações
culturais sua identidade.
Durante a primeira metade do século XX ocorreu no Brasil uma corrente de
pensamento e criação artística determinada por Modernismo, a qual discutia a respeito
de o que seria o povo brasileiro. Os intelectuais empenhados nesse debate
manifestavam uma busca pela verdadeira essência da nação, pois essa viam ainda
culturalmente muito ligada à Portugal e à Europa de maneira geral:
Apresentado, em 1916, a 'Revista do Brasil', Júlio Mesquita
escreveria em editorial:
Ainda não somos uma nação que se conheça, que se
estime, que se bate, ou, com mais acêrto, somos uma
nação que ainda não teve o ânimo de romper sòzinha
para a frente numa projeção vigorosa e fulgurante da
sua personalidade. Vivemos desde que existimos
como nação, quer no Império quer na República, sob
a tutela direta ou indireta, se não política ao menos
moral do estrangeiro. Pensamos pela cabeça do
estrangeiro, vestimo-nos pelo alfaiate estrangeiro,
comemos pela cozinha estrangeira e, para coroar essa
obra de servilismo coletivo, calamos, em nossa
pátria, muitas vêzes, dentro dos nossos lares, a língua
materna para falar a língua do estrangeiro!
(MARTINS, 1965, p. 138)
A partir dessa percepção, os artistas se engajaram em produzir aquilo que
consideravam uma nova forma de fazer arte (MARTINS, 1965, p. 13). Nessa busca
pelo novo, a cultura popular foi eleita como tema, isso, pois, era ela lugar de tradição
alternativa à da alta cultura. Por fazer referência às "experiências, prazeres, memórias
e tradições do povo", era normalmente era associada àquilo que Bakhtin (HALL,
2008, p. 322) chamou de vulgar - e daí surge sua contraposição à cultura da elite.
A busca por uma produção nacional foi o que motivou Tarsila do Amaral a
colocar em suas obras temáticas de sua infância na fazenda do interior paulista e
escolher cores caipiras (GOTLIB, 1983, p. 12), já na literatura a nacionalização
linguística (MARTINS, 1965, p. 149) foi marca do distanciamento com a matriz
européia. Nas letras, os autores procuraram inserir marcas da oralidade, ou a língua
brasileira. Através de suas obras, esses intelectuais vinculavam posições, por vezes
também críticas sociais as quais só poderiam ser expressas através de um estilo que
contemplasse a época e contexto vividos pelo Brasil. Segundo Raul Bopp:
Em séculos que se seguiram ao Descobrimento, o espírito da
metrópole, com uma tirania purista, dominava as parcas
elites cultas do país. (...)Por isso estivemos sempre
desacertados das conjunturas sociais.
Fomos épicos numa fase da vida colonial, em que não havia
nada de épico a se exaltar. (...) Fomos líricos com a
insurreição mineira. (BOPP, 2012, pp. 125 - 126)
A partir da década de 1920, os artistas procuram exprimir em suas obras um
vínculo maior com a consciência nacional. Para isso, elegem as camadas mais pobres
da sociedade e suas manifestações culturais como marcos de uma identidade mestiça e
brasileira. Era comum esses intelectuais estarem politicamente engajados e utilizarem
da literatura para articular suas ideias de Brasil. A construção de uma cultura nacional
colabora com a criação de um país mais forte e coeso, pois amalgama diferenças e
cria uma identidade comum aos cidadãos.
Uma nação não é apenas uma entidade política, mas também uma comunidade
simbólica que influencia a concepção que fazemos de nós mesmos e nossas ações
(HALL, 2000, pp. 49 - 50). Essa questão foi de extrema importância não somente no
contexto brasileiro, mas comum as sociedades contemporâneas ao longo dos séculos
XIX e XX, inclusive em países ainda sob o sistema colonial, como Angola
(BRICHTA, 2012, p. 18). Nesse sentido, a produção cultural cumpriu uma função de
criar um lugar simbólico comum. Certa vez, ao ser questionado sobre o papel das
letras nas lutas pela independência na África portuguesa, o literato angolano Pepetela
afirmou terem sido os primeiros nacionalistas justamente poetas, jornalistas e
ficcionistas (LIBERATO e PAIVA, 2011). Para ele, as filosofias de libertação tiveram
seu início primeiro em movimentos culturais para depois tornarem-se movimentos
políticos. Isso é nítido no caso da revista Mensagem, cujo grupo de escritores também
seriam formadores do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Essa
publicação angolana dos anos de 1950, que tinha entre seus nomes Agostinho Neto,
António Jacinto e Viriato da Cruz, possuía a frase eleita como mote "Vamos descobrir
Angola". Eles, fundadores da moderna poesia de Angola, utilizavam como temática a
valorização de elementos nativos através da evocação de imagens associadas à
natureza e às formas de cultura popular: a mulemba, o imbondeiro, as frutas da terra,
as músicas, as danças. Através de um discurso que afirmava as diferenças entre os
africanos e os europeus, os poemas desnaturalizavam a situação em vigor e aludiam à
hipótese de transformação.
O debate a respeito da ordem social em Angola tem início ainda no século
XIX quando a elite africana começou a dinamizar através das letras discussões sobre
o lugar da cultura angolana e seus aspectos linguísticos, históricos e etnográficos. O
debate continua e se aprofunda no século XX, com a circulação das produções
modernistas brasileiras. São vários os autores angolanos que admitem terem lido e se
inspirado nas histórias contadas por autores como Jorge Amado e Graciliano Ramos,
dentre eles pode-se citar Pepetela (LIBERATO e PAIVA, 2011).
A língua escrita em comum, assim como o passado colonial e aspectos da
cultura popular que o trânsito atlântico já havia cambiado em experiências anteriores,
tornou atraente a literatura modernista aos intelectuais angolanos. Assim como os
literatos brasileiros haviam proposto fazer uma nova literatura, a produção escrita em
Angola passou por uma reformulação em que buscava-se uma identidade que pudesse
ser contraposta àquela imposta por Portugal:
Assim, o modernismo brasileiro, definido por Mário de Andrade como a
fusão de três princípios fundamentais - a estabilização de uma consciência
nacional, a atualização da inteligência artística brasileira e o direito
permanente à pesquisa -, surge como um espelho em que os angolanos
gostavam de se mirar, procurando, contudo, sua própria face. (LIBERATO C.
e PAIVA, F., 2011).
O processo relatado por Júlio Mesquita de uma adequação cultural dos
cidadão brasileiros aos costumes portugueses também era comum em Angola, com a
existência de uma categorização intermediária, entre o branco e o indígena,
considerada assimilada. Essa categoria foi decretada juridicamente em 1926 através
do Estatuto Político, Civil e Criminal do Indígena - com nova versão em 1929 e
consagrada constitucionalmente pelo Ato Colonial - o qual dividia a população
natural da colônia e limitava quanto ao usufruto de certos benefícios da sociedade
européia (BRICHTA, 2012, p. 4). Através dessa lei, dividia-se juridicamente os
africanos entre nativos e assimilados, sendo esses sujeitos à lei comum e os primeiros
obedientes de suas próprias leis e costumes. A divisão era feita através de critérios
culturais, os assimilados constituíam uma elite empoderada pelo sistema colonial que
era capaz de dominar e reproduzir padrões culturais portugueses, enquanto os nativos
eram "indivíduos da raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e
costumes, se não distinguiam do comum daquela raça"(RODRIGUES, 2003, p. 45). A
assimilação foi um artifício para a ascensão social de uma pequena parcela da
população nativa, contribuindo para a manutenção da lógica colonial e a
desvalorização da cultura do dominado. O intelectual angolano vivia assim no
encontro entre dois mundos distintos, não se reconhecendo plenamente em nenhum
deles (BRICHTA, 2012, p. 44).
Essa elite nativa tinha como característica essencial o domínio da escrita,
instrumento do colonizador o qual fizeram uso esses intelectuais para divulgar suas
ideias, uma vez que os dialetos africanos possuíam uma predominância da linguagem
oral. Linha de cisão entre civilização e barbárie, a escrita era uma das características
que situava essa elite em um patamar intermediário entre o mundo europeu e o nativo,
no qual o primeiro seria o desejável - e inalcançável. Alguns teóricos, como Vicente
Ferreira (RODRIGUES, 2003, p. 44), defendiam que o "indígena assimilado" não
conseguiria desvincular-se de sua mentalidade nativa, apenas a encobriria com hábitos
europeus. Dessa forma, o processo de assimilação seria necessariamente lento, e o
negro permaneceria como inferior.
A marginalidade do indivíduo assimilado é um fenômeno consequente de sua
própria condição a qual apresenta-se no limiar entre duas culturas e é incapaz de
ultrapassar as barreiras e integrar-se ao mundo do dominador, assim como é impedido
de compartilhar de seus privilégios e poderes. A assimilação pode ser entendida como
um processo de adaptação e acomodação à vida social e política do grupo dominante.
As formas empregadas para a execução desse processo eram variáveis, podendo ser
realizadas através da linguagem e a imposição de um discurso dominante, do acesso e
controle do conteúdo da educação formal, do estabelecimento de uma moral e normas
sociais. Leo Spitzer, autor do livro Lives in Between, escreve sobre sua própria
experiência de exclusão:
I was socialized, politicized, and educated to become part of
the dominant culture, and I was rewarded by its institutions.
But, having already been profoundly inscribed in childhood
with the history and culture of a people who had been
defined as "other", and who had been persecuted and
marginalized, I also never felt totally absorbed by this
process. (SPITZER, 1989, p. 10)
Em seu livro, Leo Spitzer traz ao leitor três estudos de casos em que
indivíduos passaram por situações de marginalidade. Apesar das particularidades de
cada caso, inclusive a própria de Spitzer, o autor aponta para uma estrutura social
comum que permite a existência de situações de marginalidade. Essa seria
caracterizada pela existência de ao menos dois estratos sociais, no qual um seria
subalterno ao outro, e a existência conjunta de dois fatores: 1) O estrato social
dominante teria controle ao acesso as esferas sociais, tais como a política, direitos
legais e inserção em associações e instituições; 2) A existência de uma barreira que
concomitantemente impedisse ao estrato social inferior de adquirir os mesmos
privilégios do grupo dominante, porém estimulasse a adoção dos valores culturais do
dominador. A assimilação requeria o aprendizado de novos símbolos e a redefinição
de antigos, dentre eles a linguagem e os credos e práticas religiosas. O processo
também incluía uma modificação na forma de se portar e aparecer em público, as
quais procuravam ser as mais similares possíveis as do grupo dominante. Essa
tentativa de imitar as maneiras do outro foram descritas no livro Pele negra máscaras
brancas, nele Fanon traz ao leitor exemplos dos esforços da elite antilhana que ia à
França em falar o francês da forma mais européia possível. O perfeccionismo vinha
de um desejo de desvencilhar-se da imagem do nativo:
Todo povo colonizado - isto é, todo povo no sei do qual
nasceu um complexo de inferioridade devido ao
sepultamento de sua originalidade cultural - toma posição
diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura
metropolitana. (FANON, 2008, p. 34)
O próprio título da obra é bastante emblemático em relação ao que era na
prática o exercício da assimilação: uma tentativa contínua de tentar se tornar parte do
grupo dominante, ou ao menos deixar-se passar por. De acordo com o sociólogo
Milton M. Gordon (SPITZER, 1989, p. 28), o processo de assimilação pode ser
dividido em três níveis dependendo de como se deu a integração. O primeiro deles é a
aculturação, seguido por assimilação estrutural e, por fim, a fusão quando através de
casamentos entre membros de diferentes grupos os assimilados deixavam de ser
diferenciáveis do grupo dominante. Em Angola, o terceiro nível de absorção da
cultura européia pelos nativos não era colocado em prática, enquanto o segundo via-se
cada vez mais restrito após a instalação do colonialismo.
A consciência da imobilidade desse lugar intermediário se refletiu na literatura
na busca por ressaltar características culturais tradicionais, anteriores a colonização ou
que não haviam sido contaminadas. No entanto, vale ressaltar que o intelectual
assimilado não abandona sua posição intermediária, ele passa a se esforçar por ser ao
mesmo tempo europeu e negro. Isso, pois, se por um lado ele busca os valores
culturais de uma tradição nativa, por outro esse intelectual não abandona o universo
cultural e social a que está habituado. É sintomático que sua própria produção não é
feita visando dialogar com a maioria da colônia, mas com os 10% que também estão
inscritos no processo de assimilação e a comunidade internacional. Sobre o uso de
línguas européias na poesia africana, Michel Leiris (FANON, 2008, p. 42) aponta
ainda para uma função legitimadora da integridade do escritor negro diante dos
brancos. Ao utilizar uma linguagem emprestada esse literato estaria se afirmando
como civilizado, a par da sociedade moderna e, assim, digno de ter suas ideias
consideradas. O negro embranquecido não era visto como negro pela sociedade
européia, mas como um branco com cor e, por isso, era passível de diálogo.
Antes da instalação do colonialismo no final do século XIX, a elite angolana
era composta por descendentes de europeus e africanos, formada após séculos de
presença portuguesa em Angola, que contribuíam como intermediários no tráfico de
escravos. Com o início do período colonial essa elite se viu em situação de
decadência, seu poder econômico e político tornaram-se subalternizados em relação
ao dos colonos portugueses:
Perante a hegemonia europeia, ia-se esbatendo a distinção
social entre os elementos das antigas elites e os demais
africanos. Nestas circunstâncias, tendia a tratar-se todos os
africanos de igual forma, ou, pelo menos, por critérios que
acentuavam a sua inferioridade, de todos eles, face aos
europeus. (RODRIGUES, 2003, p. 73)
Como consequência dessa decadência surgem discursos reivindicativos em
relação ao poder colonial. A primeira geração de escritores nativos angolanos
desenvolveu suas atividades através da imprensa periódica, que tem início em 1845
com o jornal Boletim Oficial, o primeiro de Angola (BRICHTA, 2012, pp. 14 - 15). É
esse o grupo que inicia a proposta de uma literatura própria e começa fomentar o
debate sobre a ordem social. Os debates posteriores aos d'Os Velhos Intelectuais de
Angola trazem de forma mais evidente a consciência da natureza do colonialismo e o
desligamento que ela produzia das sociedades com sua cultura nativa, esse é o caso da
Geração de Mensagem que busca uma identidade possível através da seleção de
"sinais positivos de uma visão de mundo própria do meio que queriam libertar"
(CHAVES, 2005, p. 62).
Nesse contexto, a cultura popular se tornou importante como identificadora
dessa consciência da diferença entre os valores do ocidente e as matrizes angolanas. O
termo cultura pode ser entendido como o conjunto de elementos dinâmicos que
compõem uma sociedade (THORNTON, 2000, p. 279), dentre eles foram
selecionados alguns como representativos de um coletivo que se pretendia apresentar
homogêneo, sob a forma de um signo cultural. Esse universo simbólico a partir da
década de 1950 toma corpo através de mobilizações de caráter explicitamente
nacionalista, em que muitos desses escritores tornaram-se protagonistas nas lutas
políticas pela libertação de Angola do domínio colonial.
A criação de um universo simbólico pautado na cultura popular e expresso na
literatura através da apropriação da linguagem originalmente européia e a inserção de
formas de expressão e vocabulário típicos são características comuns as formações
das identidades angolana e brasileira. A escolha da linguagem, enquanto idioma e
suas variantes coloquial e popular, são escolhas realizadas que no contexto de
sociedades culturalmente marginalizadas expressam uma postura de seus agentes. O
emprego de certa sintaxe, morfologia ou língua apresenta-se como a apropriação de
uma cultura e as formas de existir desse universo que lhe são implícitas. Quando
tratando sobre a linguagem, Fanon escreveu: "Nada mais sensacional do que um
negro que se exprime corretamente, pois, na verdade, ele assume o mundo branco"
(FANON, 2008, p. 48). Seguindo essa lógica, diante de uma literatura que faz a
escolha por abandonar o português europeu, correto, e traz em oposição a inserção de
elementos da linguagem oral local, o intelectual agente dessa produção marca uma
posição de diferenciação de seu universo cultural e o europeu. Ao propor uma nova
linguagem, seja uma língua brasileira ou uma língua angolana, esse literato está
conjugando a possibilidade de uma nova forma de existir e afasta-se do dilema entre
embranquecer-se (civilizar-se) ou desaparecer.
Nesse sentido, quando em 1961 o poeta Viriato da Cruz escreve o poema
Makèzú sua atividade literária tem inteira ligação com seu papel político:
- "Não sabe?! Todo esse povo
Pegô um costume novo
Qui diz qué civrização:
Come só pão com chouriço
Ou toma café com pão...

E diz ainda pru cima,


(Hum... mbundo kène muxima...)
Qui o nosso bom makèzú
É pra veios como tu"

- "Eles não sabe o que diz...


Pru qué qui vivi filiz
E tem cem ano eu e tu?"

- "É pruquê nossas raiz


Tem força do makèzú!..." (FERREIRA, 1988, p. 165)
Nesse poema, ao trazer a prática do consumo de makèzú em oposição ao café
da manhã, assim como a mescla da língua kimbundo e a transcrição da linguagem
oral, Viriato da Cruz posiciona-se como favorável a uma produção cultural e prática
social voltada às formas de ser e estar tradicionais - ou eleitas como formas
tradicionais e típicas - da terra e como crítico da imitação dos hábitos coloniais.
Makèzú traz uma série de referências à cultura banto, a própria palavra
makèzú, que significa nozes de cola, é importante como elemento religioso e social. A
avó Ximinha representa a tradição que passa pela nova geração sem ser ouvida - a
busca por seguir padrões portugueses é perseguida em detrimento dos hábitos
alimentares, religiosos e sociais nativos. A adoção desses padrões europeus é
apresentada com tom irônico na poesia e termina com uma valorização da cultura
ancestral, onde se encontraria a verdadeira felicidade.
Essa valorização é frequente, no poema Namoro, Viriato da Cruz tece a
história de Benjamim que de diferentes formas busca conquistar uma moça que lhe
agrada, porém falha em suas tentativas. Ele apenas obtém sucesso quando deixa-se ser
espontâneo e dança rumba, voltando-se as tradições de seu território. Já no poema Sô
Santo, a história contada através da poesia é de um homem que ao adotar hábitos e
costumes estrangeiros, trai ao seu povo em benefício dos europeus e, assim, atrai a ira
de Sandu, espírito protetor do povo bantu, e termina sua vida na miséria:
Sô Santo...
Lá vai o sô Santo...
Bengala na mão
Grande corrente de ouro, que sai da lapela
Ao bolso... que não tem um tostão.

Banquetes p´ra gentes desconhecidas


Noivado da filha durando semanas
Kitoto e batuque pró povo cá fora
Champanha, ngaieta tocando lá dentro...
Garganta cansado:
'coma e arrebenta
e o que sobra vai no mar...'

Lá vai...
descendo a calçada
A mesma calçada que outrora subia
Cigarro apagado
Bengala na mão...

...Se ele é o símbolo da Raça


ou vingança de Sandu... (FERREIRA, 1988, p. 166)
Viriato da Cruz não só trazia aos seus poemas o português da fala oral,
elementos próprios do vocabulário nativo - e com eles, toda a carga cultural da língua
-, e temáticas com referência direta à realidade vivida pelos colonos. Trazia também o
vislumbre de um modo de viver mais feliz e compatível aos nativos, que para ser
alcançado passava por um retorno às matrizes culturais históricas da colônia. A
própria ideia de se ter uma história anterior a colonização é em si um posicionamento
político em que o poeta aponta para um civilização negra. Isso, pois, os nativos da
colônia teriam um passado histórico próprio produtor de sua cultura - posicionamento
que vai na contramão do projeto de assimilação, já que esse previa entre seus
processos de aculturação a perda de um senso coletivo de passado histórico. Esse
passado histórico era importante para a criação de pertencimento e discernimento de
um lugar comum ao coletivo natural da colônia, e assim, também relevante para o
projeto de libertação de Angola.
Viriato da Cruz foi, além de literato, um dos líderes na luta pela libertação de
Angola, tendo inclusive ajudado a fundar o importante MPLA, do qual na década de
1960 tornou-se Secretário-Geral e, porém, por desentendimentos internos, se afastou
ainda na mesma década. O movimento teve início ao final da década de 1950, e
transformou-se em partido político após a Guerra de Independência (1961 à 1974).
Com a conquista da independência, em 1975, o MPLA passou a governar o país e
permanece no poder até hoje. Os poemas citados foram todos publicados em várias
publicações na década de 1950, e reunidos pela primeira vez no único livro de Viriato
da Cruz, Poemas, de 1961, portanto, diante de uma tensão política explícita - o que
apenas contribui em inflamar suas reinvindicações de uma valorização da cultura
nacional em detrimento da portuguesa.
É em todo caso curioso observar que Viriato da Cruz enquanto nativo que
havia assimilado os modos de ser e estar no mundo típicos europeus também passava
pelos mesmos dilemas de outros contemporâneos marginalizados. Apesar da luta
política e cultural ativa por uma reapropriação e ressignificação de Angola pelos
angolanos, essas atividades eram desenvolvidas concomitantemente com uma
negociação interna entre as duas consciências - aquela assimilada e a nativa. Em um
contexto de luta pela independência, a contestação e não aceitação de uma identidade
negra e européia era importante para demarcar as diferenças entre uma e outra. Ou se
era negro ou europeu e, na impossibilidade de tornar-se o Outro, lutava-se pela
liberdade de buscar um Eu autêntico. De certa forma, a luta desses intelectuais
empenhados na libertação do domínio colonial era para que o negro entrasse para a
dialética do Eu e do Outro. Lewis R. Gordon, ao escrever o prefácio de Pele negra
máscaras brancas, aponta para uma crítica presente nas discussões sobre racismo e
colonialismo quanto a inserção do negro no conceito de alteridade. O racismo
enquanto ciência no século XIX e seus desdobramentos políticos e sociais, como as
políticas de embranquecimento, justificavam a colonização da África pelo homem
branco. Como efeito, o negro não era enxergado como semelhante ou passível de ser
encaixado em um discurso de alteridade.
Parte desses intelectuais comprometidos com a bandeira da valorização de
símbolos da cultura popular angolana, incluindo Viriato da Cruz, criaram a revista
Mensagem em Julho de 1951 (FERREIRA, 1988, p. 93). Mais do que um órgão
literário, a publicação pretendia tornar-se um verdadeiro órgão cultural na promoção
das produções comprometidas com a tradição nativa. Apesar da vida curta, a revista
foi importante para a abertura de novos rumos para, principalmente, a poesia. Isso,
pois, são definidas linhas importantes da nova poesia angolana, como a relação com a
terra, espaço geográfico em que a união do povo se realiza.
No primeiro número da revista é apresentado um texto que traz as ideias
pensadas sobre a produção cultural que eles pretendem dar impulso com a publicação:
Mensagem será, - nós o queremos! - o marco iniciador de um
Cultura Nova, de Angola por Angola, fundamentalmente
angolana, que os jovens da nossa Terra estão construindo.
(...) Urge criar e levar a Cultura de Angola além fronteiras,
na voz altissonante de nossos poetas e escritores; na paleta e
no cinzel seguro dos nossos artistas plásticos; ao som dos
acordes triunfais da nossa música que os nossos músicos e
compositores irão buscar aos férteis motivos que a nossa
Terra grande e maravilhosa, lhe oferece. (FERREIRA, 1988,
pp. 91 - 92)
Décadas antes, em 1924, havia sido publicado pelo jornal Correio da Manhã o
Manifesto da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade. É interessante perceber como
alguns pontos em ambos os textos convergem, indicando que há uma situação comum
- de reformulação da produção cultural, que se volta para o popular - que emerge
diante de sociedades que passaram e passam por um processo de colonização:
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre
nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos
estéticos. (...) Contra o gabinetismo, a prática culta da vida.
(...) A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e
neológica. A contribuição milionária de todos os erros.
Como falamos. Como somos. (...) Uma única luta - a luta
pelo caminho. Dividamos: poesia de importação. E a Poesia
Pau-Brasil, de exportação. (...) O Brasil profiteur. O Brasil
doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no
movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.
(ANDRADE)
Ambas literaturas passam por um momento de reformulação que tem íntima
ligação com uma percepção por parte das elites do lugar marginal que ocupam diante
das culturas européias.
A análise conjunta desses processos culturais históricos na constituição das
identidades angolana e brasileira na literatura vai de encontro a uma perspectiva
histórica que busca enxergar o Atlântico como espaço histórico integral. Dessa forma,
"Estados, relações de produção, classes sociais, etnias não são concebidas como
independentes nem da economia-mundo nem uma das outras" (TOMICH, 2004, p.
225), e é o mar o agente criador dessas relações. Esse viés de estudo surge em
oposição às abordagens nacionalistas ou etnicamente absolutas, pois suscita uma
visão histórica transnacional e intercultural em que os diálogos vão além das
fronteiras coloniais ou nacionais.
Diante do contexto de subordinação e domínio colonial e sociedades
capitalistas emergentes, as trocas atlânticas contribuíram para que territórios nessas
situações forjassem suas próprias identidades. As características que permitiam a
aproximação, como os elementos culturais semelhantes, eram eles mesmos
consequências do trânsito atlântico, fossem eles resultantes da diáspora africana ou do
legado europeu. Apesar da cultura ser por definição um elemento mutável, no caso
dessas sociedades marginais a transformação de elementos culturais em práticas
estéticas é uma forma de afirmação e defesa da identidade. O que ocorreu em um
segundo momento é que, se por uma lado essa cultura foi libertária, por outro ela pode
por vezes instaurar processos em que indivíduos tem de estar constantemente
provando sua autenticidade. Pensando no século XXI, podemos citar o esforço de
alguns autores africanos em libertar o imaginário internacional do estigma do
continente culturalmente exótico e à parte dos avanços civilizatórios. Não tão
diferente, o Brasil possui seus estigmas relacionados a exuberância natural e a
sexualidade de seus habitantes. Assim, apesar dos avanços, é preciso assinalar que a
saída do estado de marginalidade ainda é um caminho em percurso.
Referências:
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<http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf >. Acesso em 10 set. 2015.
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LÍNGUAS: vidas em português. Direção: Victor Lopes. Brasil, 2004. (105 min.)
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SPITZER, Leo. Lives in Between: Assimilation and Marginality In Austria, Brazil,
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THORNTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo atlântico:
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TOMICH, Dale. 2004. O Atlântico como Espaço Histórico. In História Atlântica.
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