Você está na página 1de 23

A cultura brasileira como miscigenação

Apresentação
A ideia de miscigenação é um mito que atua como estratégia de negação das etnias não europeias.
O mestiço, assim, enquadrava-se na ideologia de branqueamento, que visava a eliminar as cores
indesejáveis do país. Somos, de fato, um país permeado de diversidade cultural.

Nossa cultura é híbrida. São diversas as expressões culturais articuladas à identidade brasileira. Não
há subtração cultural. Elementos culturais indígenas, afro-brasileiros e europeus congregam o
mesmo universo. Apesar de a cultura da elite branca, dominante desde a colonização, provocar
efeitos de hegemonia, a cultura popular que corresponde ao volume maior de brasileiros carrega o
hibridismo como realidade nacional. É nessa complexidade cultural que nossa identidade foi
construída.

Para desmistificar a ideia do Brasil como campo inclinado à miscigenação, você vai estudar, ao
longo desta Unidade de Aprendizagem, o processo complexo de formação da cultura brasileira, a
ideia do triângulo racial brasileiro que se funde superando o atraso cultural, bem como os aspectos
fundamentais da diversidade cultural do Brasil.

Bons estudos.

Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

• Reconhecer a complexidade da formação cultural brasileira.


• Desenvolver uma abordagem sobre o chamado triângulo racial no intuito de desmistificá-lo.
• Identificar aspectos da diversidade cultural brasileira.
Infográfico
No Infográfico, você vai ver que a cultura brasileira como miscigenação é um mito, visto que a
brasilidade corresponde à diversidade cultural e étnica. A presença do mestiço não configura a
subtração dos elementos indígenas e africanos, muito menos indicia qualquer democracia racial.
Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para
acessar.
Conteúdo do livro
É importante pensar o Brasil no campo da diversidade étnica e cultural. Não há uma
homogeneidade cultural ou identitária. Somos resultado de cultura híbrida, sem qualquer superação
de uma cultura sobre outra. Desde os tempos da colonização, nosso país carrega a presença de
diversas culturas e povos que aqui já habitavam, de diversas etnias africanas deslocadas
compulsoriamente para o Brasil e de imigração branca de diversas regiões da Europa e, também, da
Ásia. Cada uma das etnias, à sua maneira, tem contribuído para a construção de características
peculiares à nossa sociedade, conforme você vai ver no capítulo A cultura brasileira como
miscigenação, parte integrante da obra Antropologia e cultura.
ANTROPOLOGIA E
CULTURA

Wilian Junior Bonete


Cultura brasileira
como miscigenação
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Reconhecer a complexidade da formação cultural brasileira.


„„ Desenvolver uma abordagem sobre o chamado “triângulo racial” no
intuito de desmistificá-lo.
„„ Identificar os aspectos da diversidade cultural brasileira.

Introdução
O Brasil é um país com grande diversidade étnica e cultural, e não é
possível dizer que há uma homogeneidade na constituição de sua iden-
tidade. Pelo contrário, desde os tempos da colonização, nosso país tem
sido marcado pela presença de vários povos que se distribuíram ao longo
do território. Cada uma das etnias, à sua maneira, tem contribuído para
a construção de características peculiares a nossa sociedade, conforme
veremos nesse texto.

A complexidade da formação cultural brasileira


Quando as frotas portuguesas chegaram ao território que hoje denominamos
Brasil, eles encontraram diversos grupos de indígenas que habitavam as vastas
regiões do litoral e desconheciam a propriedade privada e a acumulação do
trabalho social. Os portugueses desenvolveram diferentes formas de contato
e estabeleceram diferentes relações com os indígenas, a fim de conhecê-los
e aprender os modos de sobrevivência nessas terras até então desconhecidas.
Com o passar do tempo, os portugueses obrigaram os indígenas a desen-
volver o trabalho compulsório, e é justamente nesse contexto que uma grande
parcela da população indígena é dizimada, uma vez que não estavam habituados
ao trabalho pesado e forçado. Além disso, temos também a presença da Compa-
192 Cultura brasileira como miscigenação

nhia de Jesus disseminando o cristianismo, sobretudo para os indígenas, a fim


de garantir a eles a “salvação em Cristo” por meio do exercício da catequese.
Os jesuítas espanhóis passam então a defender esses grupos indígenas até a
coroa portuguesa proibir esse tipo de escravidão.
Ocorre que a partir de meados do século XVI os portugueses iniciaram
o tráfico de africanos para suprir as demandas de trabalho (escravo) aqui
no Brasil. Ressalta-se que esse modo de trabalho compulsório já havia sido
experimentado pelos portugueses nas ilhas de Açores e da Madeira e percebeu-
-se que era muito lucrativo, e por isso, houve o investimento dessa forma de
mão de obra nas fazendas e engenhos de açúcar no Brasil. É desse modo que
os africanos passam a fazer parte do processo de formação da sociedade
brasileira (FAUSTO, 2006).
Diante disso, já podemos perceber que diversos costumes, línguas, crenças e
diferentes formas de vivência foram articulando-se, e formaram, assim, a base
de nossa cultura. Vejamos que, por intermédio da presença africana, houve a
inserção de diferentes elementos culturais, como os ritmos e tambores, os jogos
de capoeira, religiões como Umbanda e Candomblé, diferentes culinárias e
costumes que passaram a integrar o cotidiano dos núcleos urbanos brasileiros.
Com os portugueses, estabeleceu-se o idioma português como sendo ofi-
cial em terras brasileiras. Em que pese, nosso idioma possui diferenças com
relação ao falado em Portugal, uma vez que muitas palavras indígenas foram
incorporadas em nossa gramática, como, por exemplo, anhanguera, caatinga,
biboca, caipira, dentre outras. Além da língua, os portugueses trouxeram uma
série de instrumentos confeccionados em ferro, como o machado, espadas,
facões ou armas de fogo que não eram conhecidos dos indígenas.
A partir dessas três matrizes étnicas e suas relações de cruzamento (mis-
cigenação), surgiram outros grupos denominados mestiços, como: o mulato
(mistura do negro com o branco); o mameluco (mistura do índio com branco)
e o cafuzo (negro com o índio). Com o passar dos tempos, e a chegada de
imigrantes vindos de vários lugares do mundo, a cultura brasileira foi sendo
transformada.
Todavia, ressalte-se que não havia um equilíbrio quanto a esse processo
de miscigenação. Por exemplo, no Nordeste brasileiro, havia uma maior con-
centração de escravos africanos devido aos engenhos e canaviais. Com isso,
a relação entre europeus e africanos foi mais intensa. Já em São Paulo, a
mistura das etnias foi mais intensa entre europeus e indígenas, já que havia
uma concentração menor de africanos por essa região.
É interessante pontuar que, no final do século XIX, sobretudo após a
abolição da escravidão, o Brasil recebe um grande fluxo de imigrantes vindo
Cultura brasileira como miscigenação 193

de diversos lugares do mundo. Nesse sentido, alemães, italianos, japoneses,


libaneses, ucranianos, sírios, coreanos, japoneses, trouxeram, para a sociedade
brasileira, novos elementos culturais.
As áreas do sul e do sudeste brasileiro são as que mais receberam imi-
grantes. No Sul, chegaram alemães, italianos e poloneses, e o interior de São
Paulo destacou-se com italianos e japoneses. A cultura africana, por exemplo,
está muito presente na cidade de Salvador, na Bahia. A cidade tem uma das
maiores populações de origem africana do mundo. As características da cul-
tura africana podem ser vista na dança, na culinária e na religião. A cidade
de São Paulo é formada por pessoas de várias origens. Na cidade paulista,
é possível encontrar um número maior de culturas. É em São Paulo que se
concentra o maior número de italianos e de seus descendentes, principalmente
nos bairros do Brás, do Bixiga e da Mooca. A colônia japonesa se concentra,
principalmente, no bairro da Liberdade (MACIEIRA, 2016).
Desse modo, é possível conceber que a cultura brasileira é marcada pela
diversidade, ampla e, ao mesmo tempo, rica. Tal riqueza, por outro lado, gera
um grande problema: a questão da discriminação. Parte da população que vive
no Brasil sofre com o preconceito desencadeado pela cor de pele e não é raro
a cultura europeia ser considerada superior a outras culturas e modos de vida.
É interessante pensar que, após a abolição da escravidão no Brasil, em 1888,
a condição dos negros no país foi, e ainda é, tema de estudos sociológicos,
antropológicos e historiográficos. A inexistência de conflitos raciais, aberto
no período pós-abolição, levou muitas pessoas a pensar que a sociedade cami-
nhava e desenvolvia-se de maneira harmônica em termos raciais, corroborando
a ideia de uma democracia racial (SALAINI, 2009).
É importante destacar que, no pensamento brasileiro, a ideia de mis-
cigenação não foi sempre vista como algo importante ou característico
de nossa identidade. Elisangela Ferreira (2012) nos apresenta um rol de
intelectuais que desenvolveram diferentes visões sobre esse assunto, durante
o século XIX, e todos eles possuem, em maior ou menor grau, ideias de
cunho preconceituosas.
Para Silvio Romero, por exemplo, a mestiçagem seria apenas uma fase
transitória no Brasil e que o processo de branqueamento levaria em torno de
seis ou sete séculos. Para Nina Rodrigues, no lugar da unidade, deveria haver
uma institucionalização e legalização da heterogeneidade, através da criação
de instituições jurídicas, isto é, a criação de um código penal para os brancos e
um código penal para os negros (FERREIRA, 2012). Durante parte do século
XIX, teorias como essas surgiram para justificar o domínio europeu sobre os
indígenas e os africanos.
194 Cultura brasileira como miscigenação

Enfim, conhecer a história de uma nação significa resgatar e preservar a


tradição e a memória daqueles que contribuíram para que chegássemos ao
momento atual. Trata-se de uma oportunidade de estabelecer compreensões a
respeito de nossa própria identidade. Para os alunos, por exemplo, conhecer
diferentes visões do mundo é fundamental para se quebrar a ideia de uma
história única ou repleta de estereótipos.
É importante frisar que a diversidade cultural é repercutida diretamente
nas relações sociais e a escola vem a se caracterizar como um espaço propício
para a manifestação dessas diferenças. Considerando o contexto multicultural
do Brasil, a Lei 11.645/08, que torna obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena, mostra-se uma aliada na discussão acerca do tema
da diversidade cultural (LEAL, 2013).
A não aceitação ou não reconhecimento das diversidades existentes no
país gera conflitos que podem vir a desdobrar-se em problemas identificados
nas manifestações de violência física e verbal e no desrespeito às diferenças.
Sendo o Brasil um país diverso, as variações manifestam-se em diferentes
setores sociais, característica de uma sociedade heterogênea no tocante ao
contexto de sua formação cultural (LEAL, 2013).

Figura 1. A diversidade cultural é uma das grandes marcas do povo brasileiro.


Fonte: Quinteiro, 2014.
Cultura brasileira como miscigenação 195

Sobre os conceitos de Raça e Etnia


A discussão em torno do tema raça e etnia é um dos debates mais constantes na socie-
dade contemporânea. Sobretudo porque essa questão está no cerne dos conflitos que
o mundo vem atravessando, seja por causa das guerras entre os povos, os constantes
conflitos étnicos no oriente médio, por exemplo; seja por causa da exclusão social pela
qual alguns grupos raciais passam em diversos países, aqui no Brasil, negros e índios,
nos EUA os latinos, dentre outros.
O conceito de raça está intimamente relacionado com o âmbito biológico, as
diferenças de características físicas que fazem daquele grupo social um grupo particular.
Pode-se compreender melhor o que se quer dizer quando fala-se de raça quando se
atenta para as questões de cor de pele, tipo de cabelo, conformação facial e cranial,
ancestralidade e genética. O conceito de Etnia está relacionado ao âmbito da cultura,
os modos de viver, costumes, afinidades linguísticas de um determinado povo criam
as condições de pertencimento naquela determinada etnia. Pode-se compreender
melhor as questões étnicas a partir dos inúmeros exemplos que enchem a televisão
de manchetes, como os eternos conflitos entre grupos étnicos no oriente médio que
vivem em disputa política por territórios ou por questões religiosas.
Fonte: Raça e etnia. ([200-?]).

A ideia do “triângulo racial” brasileiro e sua


desmistificação
Estudamos a complexidade da cultura brasileira, a diversidade cultural tão
peculiar que marca o nosso país. Em seguida falamos que, em todo esse pro-
cesso, o elemento contraditório reside justamente na presença dos preconceitos
raciais. Um olhar retrospectivo pode nos revelar que isso não é algo novo. Desde
o século XVII, segundo o antropólogo Roberto da Matta (1986), viajantes
que passaram pelo Brasil, cientistas e teóricos afirmaram que o atraso no
desenvolvimento do Brasil residiria na mistura das “diferentes raças”, sendo
o único caminho o “branqueamento” da população.
A partir desse momento, fundamentado na obra de Roberto da Matta, O
que faz do Brasil, Brasil? (1986), iremos estudar acerca do mito denominado
triangulo racial. Tal mito pressupõe que existia uma coexistência pacífica
das três matrizes étnicas aqui no Brasil, uma espécie de homogeneidade,
sem discriminação ou hierarquização, uma espécie de democracia racial,
conforme podemos notar na obra de Gilberto Freyre, Casa Grande &
Senzala (1963).
196 Cultura brasileira como miscigenação

Gláucia Murinelli (2012) comenta que a atribuição do mito da democracia


racial à obra de Freyre provém de sua interpretação de que a intensa misci-
genação da população, em uma sociedade paternalista como a brasileira,
resultou na constituição de uma sociedade na qual prevaleceram a empatia
entre as raças e a amenidade das relações entre senhores e escravos. Fato que
teria sido decisivo para uma convivência racial, se não harmônica, pelo menos
acomodada entre os diferentes grupos sociais.
O trabalho de Freyre, como destacado, deu ênfase ao caráter paternalista
e ao processo de acomodação dos conflitos da sociedade brasileira (MAT-
TOS; RIOS, 2005 apud MURINELLI, 2012). Desse modo, se por um lado o
antropólogo foi revolucionário quanto ao seu olhar cultural, ao evidenciar de
modo incisivo as raízes africanas e a importância delas na cultura brasileira,
por outro foi conservador ao descrever a relação entre senhores e escravos na
conformação de uma sociedade praticamente isenta de discriminação racial,
em virtude da intensa miscigenação entre os grupos (MURINELLI, 2012).
Segundo Roberto da Matta (1986), um triângulo racial consiste em um
empecilho para se ter uma visão histórica e social da nossa formação como
sociedade. É que, quando acreditamos que o Brasil foi feito de negros, índios
e brancos, estamos aceitando sem muita crítica a ideia de que esses povos
se encontraram de modo espontâneo, em uma espécie de carnaval social e
biológico. Porém, segundo o autor, nada disso é verdade. O fato é que o Brasil
é uma sociedade hierarquizada, que foi formada dentro de um quadro rígido
de valores discriminatórios.
Os portugueses já possuíam uma legislação discriminatória contra judeus,
mouros e cristãos, muito antes de terem chego ao Brasil. Quando aqui che-
garam, apenas ampliaram estes preconceitos. A mistura das raças, conforme
descritas no mito do triângulo racial, foi uma forma de esconder injustiças
sociais contra negros, índios e mulatos, pois, situando no plano biológico
uma questão profundamente social, econômica e política, deixava-se de lado
uma problemática mais básica da sociedade (MATTA, 1986). Mas, por quê?
De fato, conforme aponta Roberto da Matta (1986), é mais fácil dizer que
o Brasil foi formado por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da
democracia racial, do que assumir que, em nossa sociedade, opera-se por meio
de gradações e que, por isso mesmo, pode admitir, entre o branco superior e o
negro pobre e inferior, uma série de critérios de classificação. Assim,

[...] podemos situar as pessoas pela cor da pele ou pelo dinheiro. Pelo
poder que detêm ou pela feiúra de seus rostos. Pelos seus pais e nome
de família, ou por sua conta bancária. As possibilidades são ilimitadas, e
Cultura brasileira como miscigenação 197

isso apenas nos diz de um sistema com enorme e até agora inabalável
confiança no credo segundo o qual, dentro dele, “cada um sabe muito
bem o seu lugar” (MATTA, 1986, p. 40).

Nesse sentido, é preciso compreender que, sim, inúmeros grupos participaram


da formação cultural da sociedade brasileira, e que ocorreu um processo de
miscigenação. Porém, isso não deve ser aceito sem um olhar crítico e reflexivo. A
presença de diferentes etnias no Brasil e seus estabelecimentos na sociedade não
ocorreram de modo pacífico, harmônico, mas sim permeado por lutas e embates
contra o preconceito e as desigualdades geradas por esse mesmo processo.
Roberto da Matta (1986) postula ainda que, em nossa ideologia nacional,
temos um mito de três raças formadoras. Não se pode negar o mito. Mas o
que se pode indicar é que o mito indica uma maneira muito sutil de esconder
uma sociedade que ainda não se sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas
possibilidades de classificação.

Sobre a identidade brasileira


O antropólogo Roberto da Matta faz uma abordagem interessante acerca da identidade
brasileira. O autor elabora uma distinção entre o brasil com b minúsculo e o Brasil com
B maiúsculo. Acompanhe:
O “brasil” com o b minúsculo é apenas um objeto sem vida, autoconsciência ou
pulsação interior, pedaço de coisa que morre e não tem a menor condição de se re-
produzir como sistema; como, aliás, queriam alguns teóricos sociais do século XIX, que
viam na terra — um pedaço perdido de Portugal e da Europa — um conjunto doentio e
condenado de raças que, misturando-se ao sabor de uma natureza exuberante e de um
clima tropical, estariam fadadas à degeneração e à morte biológica, psicológica e social.
Mas o Brasil com B maiúsculo é algo muito mais complexo. É país, cultura, local geo-
gráfico, fronteira e território reconhecidos internacionalmente, e também casa, pedaço
de chão calçado com o calor de nossos corpos, lar, memória e consciência de um lugar
com o qual se tem uma ligação especial, única, totalmente sagrada. É igualmente um
tempo singular cujos eventos são exclusivamente seus, e também temporalidade que
pode ser acelerada na festa do carnaval; que pode ser detida na morte e na memória e
que pode ser trazida de volta na boa recordação da saudade. Tempo e temporalidade
de ritmos localizados e, assim, insubstituíveis. Sociedade onde pessoas seguem certos
valores e julgam as ações humanas dentro de um padrão somente seu.
Não se trata mais de algo inerte, mas de uma entidade viva, cheia de auto-reflexão
e consciência: algo que se soma e se alarga para o futuro e para o passado, num
movimento próprio que se chama História. Aqui, o Brasil é um ser parte conhecido e
parte misterioso, como um grande e poderoso espírito.
Fonte: Matta (1986, p. 9).
198 Cultura brasileira como miscigenação

Aspectos da diversidade cultural brasileira


Renato Pfeffer (2013), ao citar o sociólogo Norbert Elias (2007), aponta que as
sociedades poderiam ser conhecidas através da análise de seus costumes. Os
hábitos e comportamentos sociais permitem compreender como cada sociedade
percebe a si mesma e como ela é percebida por outras. Neste sentido, diversos
intelectuais como Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Euclides da Cunha, dentre
outros, empreenderam diferentes interpretações, por vezes excludentes entre
si, sobre a identidade nacional.
Gilberto Freyre, por exemplo, elabora uma apologia da mestiçagem e
da colonização portuguesa no Brasil. Ele defende a ideia de que o espírito
comerciante dos portugueses teria facilitado a convivência deles com outras
etnias, e esse fato teria sido fundamental para a riqueza cultural do país.
Oliveira Vianna, por sua vez, defende a superioridade racial ariana e mostra-
-se apreensivo diante do caráter mestiço da população. Acaba se tornando o
apóstolo da purificação da raça brasileira através de uma nova miscigenação
com os europeus. Nessa mesma direção, Euclides da Cunha apresenta a raça
brasileira, como enfraquecida pela miscigenação. Este intelectual destaca
a impossibilidade de o Brasil ser tão desenvolvido quanto um país de “raça
pura”. E mais, ainda procurou o entendimento do país através das categorias
litoral e sertão. Um sertão o qual às vezes aparece como paraíso, às vezes,
como purgatório (PFEFFER, 2013).
Mas como temos abordado até aqui, o Brasil é um país complexo cul-
turalmente. Como afirma Domenico De Masi (2000), o Brasil é um lugar
que consegue misturar beleza, sofrimento, abundância, fome, riso alegre e
lágrimas tristes.
No Brasil, ainda podemos encontrar um universo religioso fortemente
marcado pela diversidade de estilos e sistemas religiosos, variando os cultos
e as éticas delas derivadas. Algumas correntes claramente abertas ao diálogo,
outras mais sectárias. Frente a esse universo, ocorre hoje um amplo direito de
escolha individual para fazer-se religioso (PFEFFER, 2013).
Cada indivíduo pode escolher sua religião ou criá-la através de um feixe
que lhe seja significativo. Na verdade, esse processo não é atual, pois já estava
presente no passado colonial do país. Naquele momento, assim como hoje,
cada indivíduo pode fazer interações de sentido entre as diversas religiões,
em busca de uma espiritualidade pessoal ou optar por pertencer a mais de
uma religião. Muito mais que membro de uma religião específica, o brasileiro
possui um espírito religioso (PFEFFER, 2013).
Renato Pfeffer (2013, p. 118-119) tece uma importante consideração:
Cultura brasileira como miscigenação 199

[...] a mestiçagem cultural brasileira se faz por uma interação recíproca


entre culturas que se encontram historicamente. Essas culturas se afe-
tam mutuamente gerando o aporte de coisas valiosas. Muitas vezes, os
símbolos culturais do outro não foram respeitados, porém, a cultura do-
minante nunca conseguiu ser hegemônica. Identidades são preservadas
e continuam a interagir com outras em uma constante mestiçagem. O
resultado do processo é a manutenção de um Estado multicultural que
preserva um pluralismo cultural respeitoso e harmonioso. O sincretismo
no Brasil tornou- se agente da civilização. Somos um país híbrido, o que
nos dá identidade e o que pode ser nossa contribuição específica para o
mundo. Aprendemos a fundir códigos de uma maneira alegre e festiva,
o que gerou uma profunda confraternização de valores e sentimentos
das culturas religiosas que compuseram o país.

Por fim, é conveniente enfatizar que a cultura se manifesta de maneira


diversa e tem como de pano de fundo a formação do Brasil, enraizada por
uma pluralidade cultural, que tem como base as matrizes africanas, indígena
e europeia, que demarcam a origem do cenário multicultural do país.
Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identida-
des que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade.
Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural
é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para
a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e
deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e
futuras. (Artigo n. 1 da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural)
(UNESCO, 2002).
200 Cultura brasileira como miscigenação

1. Segundo Roberto da Matta (1986), que a cultura brasileira é complexa,


no Brasil, por muito tempo vigorou devido às várias etnias que aqui
a existência do chamado mito do se estabeleceram. Um dos pontos
“triângulo racial”. De acordo com centrais acerca da cultura brasileira,
o autor, não é possível negar o no que tange à religião, é:
mito, que na prática: a) a homogeneidade religiosa,
a) mostra que o Brasil é uma visto que apenas o catolicismo
composição de três matrizes é a vertente religiosa que
étnicas (indígena, africana aqui predomina desde as
e europeia), e que houve épocas do Brasil colônia.
uma harmonia e equilíbrio b) a democracia religiosa, uma vez
em suas convivências. que todas as religiões podem ser
b) compreende criticamente desenvolvidas sem que exista
que o Brasil é formado por preconceitos ou resistências.
três matrizes étnicas, e propõe É uma das marcas do Brasil.
uma ação reflexiva sobre os c) o sincretismo religioso. Em
preconceitos na sociedade. outros termos, é a mistura de
c) consiste em uma forma de diferentes elementos religiosos,
expressão das desigualdades por exemplo, o catolicismo e
raciais que aconteceu, no Brasil, as divindades africanas, etc.
apenas entre os africanos e d) o seletismo religioso que
afrodescendentes, devido à prevê a necessidade de
escravidão nos engenhos. abertura de diferentes igrejas
d) refere-se à ideia de que no Brasil e vertentes religiosas.
apenas os indígenas e africanos e) a pluralidade de deuses,
conviveram pacificamente, pois porém, a presença apenas do
ambos foram oprimidos pelos catolicismo e do protestantismo
portugueses (europeus). O mito na sociedade brasileira.
consiste justamente em achar 3. A manutenção da identidade de um
que foram os portugueses grupo está relacionada com o cultivo
que desencadearam o de aspectos culturais. Algumas
preconceito racial. das formas de manutenção do
e) consiste em uma profunda construto de uma etnia são:
reflexão crítica sobre a a) A gravação digital de costumes
composição da cultura para que possam ser preservados
brasileira, pois apresenta as para a posteridade.
desigualdades sociais como b) Os costumes e as tradições,
fenômenos que atrasaram o como comemorações
desenvolvimento da sociedade. que evocam as memórias
2. O Brasil é um país rico em sua coletivas ou reforçam mitos
diversidade cultural. Pode-se dizer que constituem o arcabouço
Cultura brasileira como miscigenação 201

interpretativo do grupo. político e econômico de


c) O tombamento local de uma determinada
origem de uma etnia. sociedade.
d) A popularização e 5. A identidade de um
comercialização de elementos determinado país, por exemplo,
culturais, como artesanato, o Brasil, constrói-se:
produtos industrializados. a) por meio de dados empíricos
e) Manutenção da culinária e específicos de cada região.
edifícios arquitetônicos. Geralmente são coletados por
4. Podemos afirmar que meio dos censos do IBGE.
a diferença entre raça b) pelo fato de a identidade
e etnia consiste em: estar relacionada estritamente
a) A raça estar relacionada apenas aos símbolos da pátria,
aos povos não europeus, como bandeira, hino e
enquanto os povos europeus instituições políticas.
são vistos como étnicos. c) pelo fato de a identidade de um
b) A raça estar relacionada à povo ser marcada apenas pela
cor da pele e aos costumes sua culinária, música e etnia.
de um determinado povo. d) pelo fato de a identidade de
c) O conceito de raça estar um país ser algo amplo, que
relacionado aos aspectos envolve aspectos culturais,
biológicos e físicos, e o conceito memória coletiva, política,
de etnia estar relacionado às aspectos socioeconômicos,
características culturais de modos de vida, cotidiano,
um determinado povo. celebrações, festas, dados
d) A diferença residir na politização estatísticos, dentre outros.
dos diferentes povos. e) pelo fato de a identidade
e) A raça estar relacionada a ser algo estritamente
todo o ser humano, enquanto relacionado a números e dados
que etnia refere-se ao aspecto quantitativos populacionais.
202 Cultura brasileira como miscigenação

DE MASI, D. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.


FAUSTO, B. História do Brasil. 12. ed. São Paulo: EDUSP, 2006.
FERREIRA, E. Refletindo sobre o conceito de miscigenação no Brasil. Trabalho de conclusão
de curso (Licenciatura em Pedagogia) - Universidade Estadual da Paraíba, Paraíba, 2012.
LEAL, A. Introdução à reflexão histórica do contexto da diversidade cultural no Brasil
e a manifestação da diversidade no ambiente escolar. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE
HISTÓRIA, 27., 2013. Anais... Natal, 2013.
MACIEIRA, G. O povo brasileiro e seu país: diversidade cultural e miscigenação de raças.
Abril Educação. 2016. Apresentação de Power Point.
MATTA, R. da. O que faz do Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
MURINELLI, G. R. Narrativas de futuros professores de história sobre os afrobrasileiros no
contexto do pós-abolição: um estudo em meio a lei federal 10.639/03. Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012.
PFEFFER, R. A contribuição do sincretismo brasileiro para a construção de uma ética
global. Conjectura: Filos. Educ., Caxias do Sul, v. 18, n. 2, maio/ago. 2013.
QUINTEIRO, W. Diversidade Cultural como Instrumento de Desenvolvimento. 2014. Dis-
ponível em: <http://wilsonquinteiro.blogspot.com.br/2014/05/diversidade-cultural-
-como-instrumento.html>. Acesso em: 13 nov. 2017.
RAÇA e etnia. Info Joven. [200-?]. Disponível em: <http://www.infojovem.org.br/
infopedia/descubra-e-aprenda/diversidade/raca-e-etnia/>. Acesso em: 6 out. 2017.
SALAINI, C. Desigualdades étnico-raciais no Brasil. In: DESIGUALDADES de gênero, raça
e etnia. Curitiba: IBPEX, 2009.
UNESCO. Declaração universal sobre a diversidade cultural. 2002. Disponível em: <http://
unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso em: 6 out. 2017.

Leituras recomendadas
ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007.
FREYRE, G. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1963.
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MATTOS, H.; RIOS, A. L. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-
-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
Dica do professor
A Dica do Professor destaca a importância da compreensão da miscigenação brasileira como fato e
mito. A miscigenação é um fato porque somos uma nação de percentual de mestiços importante,
mas, quando há a ideia de que a miscigenação representa a síntese das três raças e a democracia
racial, ela atua como mito e ideologia de branqueamento.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.
Na prática
É importante, para a compreensão da cultura brasileira como miscigenação, olhar os espaços sociais
do país a fim de identificar a forte mestiçagem, que é, de fato, relevante. No entanto, isso apenas
revela uma gradação de cores de pele, o que não indicia qualquer ideia de democracia racial
brasileira. O mito da síntese racial na figura do mestiço, centrado na ideia do Brasil como
miscigenação, apenas revela uma bruma que ofusca a realidade dura de crescente desigualdade
racial, bem como ofusca nossa imensa diversidade cultural e étnica.

Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!


Saiba +
Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor:

Assita à entrevista do Canal Futura com a professora do


Departamento de Antropologia da USP Lilia Moritz Schwarcz,
uma das autoras do livro Brasil: uma biografia.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

A construção da identidade brasileira constituiu-se como um


processo histórico, cultural e político desde a Independência,
em 1822.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

O artigo O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda apresenta a


biografia do autor e explicita as teses centrais da obra Raízes do
Brasil.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

Você também pode gostar