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A IMPORTÂNCIA DAS NARRATIVAS ORAIS NAS PRÁTICAS

EDUCATIVAS: POR UMA PROPOSTA CURRICULAR


DECOLONIAL

Helena Vitória Nascimento dos Santos1

RESUMO: O presente artigo objetiva analisar a relevância das narrativas orais no


ambiente escolar e na descolonização curricular, considerando para tanto, em três
seções, a significância da oralidade para o fortalecimento e pertença das comunidades
tradicionais brasileiras e africanas conforme os estudos de Alves (2011); Costa (2015) e
Finnegan (2006); a relevância do processo de transmissão e circulação de histórias orais
dentro das práticas educacionais segundo Gomes (2017) e Rosa (2017) e a importância
das narrativas orais para valorização das identidades cultural, social, racial e étnica
contemplando a proposta pedagógica decolonial, indicada por Lima (2010) e Potiguara
(2021). Ao fim serão considerados aspectos importantes para pensar uma proposta de
currículo decolonial pautado nas oralidades enquanto produção de memória e
manifestação de distintas culturas constituintes do povo brasileiro.
.
Palavras-chave: Narrativas orais. Práticas educacionais. Currículo escolar decolonial.

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

Ao pensar na evolução da humanidade, um dos quesitos comumente lembrados


segundo a pesquisadora Ruth Finnegan (2006) é o processo de codificação escrita
historicamente definido como um marcador identitário responsável pela distinção entre
sociedades desenvolvidas e primitivas entre pessoas letradas e não-letradas.
Esta percepção demonstra como o papel da escrita, desde a produção em papiros
até a máquina de impressão do alemão Johannes Gutenberg2 no século XV, modificou o
comportamento e o status de distintos grupos sociais (hierarquizados) e como a
oralidade e as narrativas de tradição oral foram colocadas à parte, subalternizadas.
Por este motivo, nota-se a tentativa de apagamento cultural dos coletivos
pautados na oralidade e a sua reivindicação ao reafirmar a pertença identitária na
produção da literatura oral e na constituição das memórias dos povos.

1
Pedagoga, contadora de histórias e discente do Programa de Pós-Graduação de Estudos em Linguagens
– PPGEL pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I - Salvador. E-mail:
helenavitoria18@hotmail.com.
2
A invenção da imprensa e consequentemente a máquina de impressão tipográfica fomentaram a
evolução da escrita e o modo de circulação e transmissão de notícias e histórias como se vê na
atualidade (ROSA, 2017).
A partir deste olhar emerge a necessidade de trazer para o campo da pesquisa a
discussão sobre a importância da oralidade no contexto das comunidades tradicionais
brasileiras e africanas, a fim de analisar e confrontar o panorama de obscuridade no qual
a escrita foi convencionada como único registro legítimo dos saberes e a literatura oral
colocada como mostra de primitivismo.

2. A IMPORTÂNCIA DA ORALIDADE NAS COMUNIDADES TRADICIONAIS


BRASILEIRAS E AFRICANAS

Antes da existência da escrita, as comunidades tradicionais transmitiam seus


conhecimentos e memórias por meio da oralidade. Todavia, na atualidade ainda é
possível encontrar grupos sociais diversos que possuem uma rica e plural cultura oral,
que mantém vivas memórias entre os mais novos do corpo social, ou melhor: “As
sociedades ágrafas ou acústicas não fazem uso da escrita e a forma que têm de preservar
suas histórias, suas tradições e sua cultura é a memória. A maneira de fazer com que
essas histórias cheguem até outras pessoas é a oralidade”. (ALVES; ESPÍNDOLA;
MASSUIA, 2011, p. 97).
Em contraponto a este pensamento, a perspectiva eurocêntrica e colonial
determina a escrita e, consequentemente, a literatura impressa como mostra autêntica de
civilização dos diferentes povos e condição necessária para a criação de novas
epistemologias. Este posicionamento institui uma barreira de inferiorização entre os
saberes das comunidades de tradição oral e aquelas que utilizam a escrita como base de
difusão de conhecimentos e valores.
Entretanto, Finnegan (2006) expõe que a alfabetização e a cultura escrita são
impostas ao mundo, naturalizadas e estabelecidas como as únicas formas de registrar os
fatos históricos e produzir ciência. O discurso colonizador e as epistemologias impostas
por ele, faz dos outros modos de pensar tradição, costumes, organização econômica,
relação com o meio-ambiente e a experiência humana, expressões inautênticas.
Comprovação dessa segregação é a afirmativa de Finnegan ao indicar que as
populações iletradas ou semiletradas não deixam de transmitir suas ideias e filosofias
literárias pela falta da escrita, porém, mesmo assim, têm suas manifestações
deslegitimadas, marginalizadas e diminuídas.
Ao que a autora novamente salienta, que este corpo social marginalizado
apresenta as gerações subsequentes convenções literárias e de letramento tão
importantes quanto à do mundo escrito e, assegurando que estabelecem na oralidade
aspectos próximos ao arcabouço da literatura impressa, com alicerces bem moldados,
socialmente instituídos e com performances codificadas para distintas práticas. Ou
melhor dizendo, fundam-se estruturas para compor o que se chama de literatura oral e
sua organicidade:
Os indivíduos, tanto em sociedades letradas quanto em não-letradas,
crescem imersos em uma atmosfera na qual formas literárias existem
para moldar os pensamentos, aguçar o entendimento e prover um meio
pelo qual se possa transmitir as ideias e a filosofia. [...]
Não é mais possível, portanto, aceitar a velha imagem do “primitivo”
(ou do não-letrado) como inconsciente e alienado, incapaz de
contemplar o mundo com afastamento intelectual, uma imagem
transmitida a nós (talvez inconscientemente) por meio de nossas
associações desses atributos à falta de letramento e, por conseguinte,
imaginamos, de literatura. (FINNEGAN, p. 76-77, 2006).

Doravante, nesta compreensão, percebe-se o quanto a produção das oralidades é


bem estabelecida e como os distintos coletivos sociais se organizam material, histórica,
política e religiosamente ao redor da literatura oral. As literaturas orais são combinadas,
traduzidas, compartilhadas e transmutadas em estruturas complexas e organizadas e o
parecer de Finnegan (2006) é desenvolvido como modo de compreender o enredamento
que compõe tal manifestação, considerada mutável e identitária.
O caráter de mudança conforme a pesquisadora tem como prática parte de uma
construção de narrativas, provérbios, poesias orais e cantigas de amor, tradicionalmente,
que passam não somente pelo crivo do artista/compositor que as entoa, como também
pela plateia que as ouve e interage.
Em outros termos, aqui acredita-se que os textos orais são construídos
coletivamente mediante a significância e a reação observada entre os pares. Além disso,
não somente suas comunidades como outras distintas colaboram com a criação
comunitária do acervo literário oral, a citar os narradores africanos que não ficam
restritos as contribuições culturais apenas do seu povo e têm liberdade para procurar
inspirações em todo o continente africano ou os cantores iugoslavos que modificam
seus poemas de acordo com o interesse da plateia ouvinte.
Este marcador da variabilidade é parte da identidade de coletivos étnicos plurais,
porque ao contrário da literatura impressa, restrita ao escrito, a oral mune-se
esteticamente das multiplicidades culturais para demarcar, identificar, assimilar,
distinguir, modificar e aproximar cada técnica, temática, conjuntura e corpo social no
qual está inserida, considerando os tempos históricos, valores e criando elos linguísticos
e comunicacionais.
No caso brasileiro, fruto da miscigenação entre os povos originários, africanos e
europeus, a mutabilidade ocorre em uma conjuntura macro, ao analisar os rizomas da
matriz linguística e os impactos na literatura oral dentro das comunidades tradicionais,
reinventadas na denominada cultura fronteiriça.
A perspectiva de culturas fronteiriças defendida por Lotman (1996) e
apresentada pela estudiosa Edil Costa (2015) é conceituada como fruto do contato
exterior entre diferentes grupos sociais com a consequente mistura cultural interior, na
qual são criados estratagemas de reelaboração, filtragem e adaptação das culturas locais.
Logo, no Brasil, exprime-se a forçosa aproximação do colonizador europeu ao
impor sua cultura aos indígenas e africanos, no estabelecimento de adequação e
alteração linguística pelo domínio escravista e na relativização das manifestações
culturais divergentes, desrespeitando os aspectos comunicacionais violentamente e
apagando as desconexões com a sociodiversidade.
Tal assimilação gerou perda das individualidades de cada corpo social e no
contato feroz entre os povos originários, africanos (afro-diaspóricos) e europeus,
firmou-se a tentativa de aniquilamento sociocultural dos primeiros e o privilégio do
último. A língua, como produto de poder reforçou a configuração de hegemonia dos
povos colonizadores com a falaciosa ideia de primitivismo e incapacidade intelectual
dos grupos fundamentados na oralidade.
Nessa conjuntura, a ideia de superioridade da língua e da escrita é
pseudojustificada com a infundada inferiorização dos grupos sociais orais e na
validação das únicas histórias a serem narradas: as do opressor branco e europeu, em
detrimento dos demais coletivos.
Por este motivo, a oralidade é tão relevante para as sociedades africanas e para
as comunidades tradicionais brasileiras, em especial indígenas e quilombolas, pois há
nela modos de combater o silenciamento imposto pelo processo de
colonização/escravização sofrido; dar voz aos membros das coletividades, reafirmar os
costumes, valores, saberes e histórias, de (re)construir marcadores identitários das
ciências dos povos, salientar a filosofia ancestral e democratizar a apropriação e
pertencimento dos envolvidos nas práticas culturais.
Porque a oralidade é, sobretudo, um caminho possível para as comunidades
tradicionais não fenecerem a despeito de todo o sistema de opressão atribuído. Ela
realimenta a memória, a história e fortalece a consciência coletiva dos mais distintos
grupos socioculturais e étnicos.

3. TRANSMISSÃO E CIRCULAÇÃO DE HISTÓRIAS ORAIS DENTRO DAS


PRÁTICAS EDUCACIONAIS

Antes das histórias irem morar nos livros, elas moravam na boca do
povo e foi desse jeito que elas se espalharam pelo mundo... Aqui, na
nossa terra brasileira, não foi diferente. Foi passando de pai para filho
que as histórias foram perpassando as gerações e o próprio tempo. [...]
Depois, muito tempo depois, as histórias foram se espalhando pelo
mundo. Surgiram os contadores de histórias e então apareceram os
griôs, que são os antigos contadores de histórias africanas e que, ainda
hoje, exercem um papel fundamental em algumas comunidades do
continente africano. Os griôs tem um compromisso muito especial,
que é o de narrar às tradições e os acontecimentos de seu povo.
(ROSA, p. 51-54, 2017).

Acima Rosa (2017) nos diz que as histórias e narrativas foram propagadas no
Mundo oralmente, no entanto, a transmissão e circulação dos contos populares,
mitologias e lendas de tradição oral dentro do ambiente escolar sofrem com barreiras
estabelecidas devido a supervalorização da cultura escrita e dos registros impressos
dentro das salas de aula. Isto se dá porque o sistema de ensino no Brasil tem por
preocupação maior a alfabetização dos estudantes com ênfase no primeiro ciclo do
Ensino Fundamental I, respectivamente, do primeiro ao terceiro ano.
É notável, que o principal foco da educação brasileira e realidade perceptível nas
salas de aula é o imperativo fortalecimento da escrita e da leitura como objetivo
elementar da escolarização e mecanização das habilidades de ler e escrever.
As histórias orais, neste cenário, apresentam-se dentro do currículo escolar
atreladas a folclorização das narrativas de diferentes comunidades tradicionais africanas
e brasileiras aqui podemos citar: ribeirinhos, ciganos, quilombolas, indígenas etc. E os
textos orais como parlendas, cantigas, trava-língua, reprodução/repetição para a pura e
simples sonorização rítmica, análise fonológica e (de) codificação silábica.
Comprovando tal situação no ambiente escolar se nota a restrita ocorrência, das
histórias orais, em especial, mitologias e lendas, parte das histórias e memórias dos
grupos étnicos indígenas normalmente limitadas ao mês de abril (“dia do índio”) e os
contos de tradição Iorubá ou popular usualmente apresentados somente nos meses de
agosto e novembro, no mês do “folclore” e da “consciência negra”.
O fato das narrativas serem apresentadas apenas em períodos sazonais
demonstra que o calendário letivo e o currículo escolar dão um lugar de menosprezo e
fetichismo às culturas orais e às identidades destes corpos sociais.
Apesar do advento da Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003 e 11.645, de 10 de
março de 2008 que alteram a LDB 9394/1996 e tornam obrigatório o ensino de história
e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas públicas e privadas do Brasil, as
produções orais das sociedades ameríndias e africanas são expostas de modo
estereotipado e em períodos pontuais, ao invés de fazer parte do projeto político e
pedagógico (PPP) no transcorrer do ano letivo. Ou seja, para estes grupos sociais é
permitida a relativização, o que entra em contradição com a maneira pela qual as
culturas europeias são ensinadas/aprendidas nas instituições de ensino.
O cenário educacional se torna um ambiente empobrecido, por não oportunizar
as histórias orais durante todo o ano letivo e não debater a produção e a importância da
oralidade nas comunidades tradicionais.
Uma consequência direta desta práxis é a transmissão e manutenção do mito3 do
negro e do indígena como seres estereotipados: exoticizados e tipificados em textos
didáticos e conteúdos literários lecionados que negam a humanidade destes sujeitos
(GOMES, 2017). Desde os livros escolares até a língua falada, o colonizador é
privilegiado em comparação com as culturas indígenas e africanas.
É essencial compreender que esta proposta educacional de negação da
diversidade é, conforme a doutora e educadora Nilma Lino Gomes, fruto do pensamento
colonial, positivista e normativo, que determina serem os “saberes das emergências”,
como categorias infecundas, inferiores e menores com o intuito de instituir: “uma
produção de não existência sempre que determinada entidade é desqualificada e tornada
invisível, ininteligível ou descartável de modo irreversível.” (GOMES, 2017, p. 41).

3
A concepção de mito trazida no presente projeto de intervenção é a do pesquisador Roland Barthes no
livro: Mitologias, com tradução de Rita Buorgemino e Pedro Souza. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2001.
Não se pretende dizer, como já alerta Edil Costa (2015), que os textos orais são
livres de reprodução de preconceitos e discriminações ou são superiores a outros tipos
textuais, porque isto é uma falácia. Não há purismo em uma sociedade pautada nas
opressões raciais, sociais, de classe, de gênero e sexualidade e não se anseia diminuir
outras expressões intelectuais e artísticas. Porém, entende-se que, para se ter uma
educação que respeite a pluralidade étnica e social dos distintos coletivos humanos, é
imprescindível que todas as possibilidades de manifestação cultural sejam apresentadas,
colocadas à disposição para serem analisadas e debatidas com oportunidades igualitárias
e não somente uma representação sobre as demais, como superior ou correta.
É necessário combater fervorosamente o que Gomes (2017) denomina como
monocultura dos saberes para romper com a perspectiva de homogeneidade do
conhecimento e unicidade dos campos de aprendizagens, visto que não há uma legítima
e única expressão cultural e o papel da literatura, seja escrita ou oral, não deve ser o de
reprodução da colonialidade, mas sim de vias concebíveis para distintas conjunturas.
Contribuindo para esse cenário ideal a escritora e pesquisadora Sônia Rosa, diz
que: “Compartilhar essas histórias oriundas da tradição oral, quer seja na vida, quer seja
na escola, é uma maneira de não as deixar morrer, já que todas elas fazem parte do
acervo da nossa memória nacional, isto é, da nossa própria identidade.” (ROSA, 2017,
p. 51).
Em outros termos, a escola ao negar aos educandos os estudos a respeito das
oralidades recusa parte da memória que constitui o povo brasileiro e com isso
inviabiliza a construção identitária plural, uma vez que a instituição escolar é um dos
lugares onde os sujeitos têm acesso aos diferentes saberes e também é a organização
fomentadora de conflitos de poder ao representar ideologias e hierarquizar
epistemologias.
As práticas pedagógicas reprodutoras de silenciamentos evidenciam a urgência
em romper com sistemas de ensino e diretrizes curriculares cristalizadas e enfatizar uma
agenda descolonizadora, na perspectiva memorialística de reivindicação das alteridades
e concretude das experiências dos povos.
Pensar em uma proposta multicultural permite compreender o quanto o ato de
contar histórias, conforme Rosa (2017), está atrelado a uma profunda ligação emocional
com as comunidades ou melhor dizendo: “Contar histórias, esta ação tão simples e
singela, fez e faz uma grande diferença para a humanidade e, assim, tal qual um abraço,
nunca perderá sua importância e sua pertinência nas relações humanas.” (ROSA, 2017,
p. 57).
As histórias orais compõem as identidades e afetividades das comunidades
tradicionais e ao invés de serem folclorizadas no ambiente escolar, podem e devem ser
narradas, ensinadas e discutidas como parte da manifestação e expressão cultural e
popular dos povos porque, assim, cada geração guardará para si e para as próximas,
narrativas da sua própria vida e dos seus antepassados.

4. A IMPORTÂNCIA DAS NARRATIVAS ORAIS E UMA PROPOSTA


PEDAGÓGICA DECOLONIAL

Pensar nos currículos escolares e na produção de conhecimentos requer uma


análise a respeito do contexto de exploração e apropriação violenta que compõe o
retrato do Brasil, pois é histórico o processo atroz de colonização/escravização ao qual
os povos originários e sociedades africanas foram submetidos e as implicações deste em
diferentes âmbitos como: religioso, territorial, linguístico, social e intelectual.
Por este motivo, trabalhar a partir do entendimento de uma política educacional
decolonial é urgente para validar um sistema de ensino que fortaleça as raízes
multiculturais brasileiras (afro-diaspóricas e ameríndias), de forma que apresente ações
educativas com foco nas concepções destes grupos sociais minorizados e conceba a
organização e cultura de grupos de tradição oral enquanto possível caminho para a
quebra de estereótipos e fetichismos.
Contudo, qual seria o primeiro passo a ser percorrido para atuar com as
oralidades na esfera da sala de aula? Uma das portas a ser aberta é a do diálogo entre o
docente e os estudantes a respeito da importância da oralidade nas comunidades
tradicionais e o fundamental papel dos narradores como mediadores da linguagem e
memória do povo.
Segundo Costa (2015), refletir sobre a função do contador de histórias é perceber
como este indivíduo conecta o público com a estética, com a cultura e com a tradução
estilística de diferentes coletivos, adaptando informações e criando termos linguísticos
mais apropriados a cada situação. No ambiente educacional, investigar como em cada
sociedade se apresentam distintos tipos de narradores e os papéis sociais exercidos pelos
mesmos, é um caminho interessante para fortalecer a ideia da literatura oral como fonte
cultural e identitária.
Caberia mencionar, por exemplo, de que modo na África Ocidental pré-colonial
os domas, coletivo dos mais nobres diélis4/griôs tradicionalistas, transmitiam/tem as
histórias de grandes impérios africanos e suas tecnologias para entender a África
representada positivamente, em contraponto, com a concepção alienante de
miserabilidade, e mediante a ligação ancestral, que a sustentava os impérios/reinados,
antes da colonização: “O doma, às vezes chamado também de béléntigui, é o título do
griô mais importante entre os tradicionalistas. Ele carrega consigo os segredos mais
profundos; conhece a origem da vida e as verdades tradicionais, além da história das
linhagens.” [...] (LIMA; HERNANDEZ, 2010, p. 45).
Quando um educador salienta em sua práxis a forma potente dos narradores
orais representarem suas comunidades, tal qual uma biblioteca viva de tradições,
saberes, ciências, espiritualidades e filosofias, ele reafirma e legitima no discurso
escolar o lugar de importância da produção cultural de outros povos e contradiz a
concepção de primitivismo, atraso intelectual e desumanidade: “Os griôs podem ter o
conhecimento de mais de mil contos ou ser peritos na arte dos provérbios. Eles são
treinados para aprofundar os saberes sobre a natureza secreta, seja a humana, a animal
ou vegetal.” (LIMA; HERNANDEZ, 2010, p. 26).
Outra nuance a ser considerada é a análise das narrativas e histórias orais, pois,
como indica Finnegan (2006), os textos orais influenciam a elaboração do discurso
escrito de autores contemporâneos, indivíduos-fruto dos costumes, das identidades, dos
usos, dos valores, das peculiaridades e da rica oralidade das comunidades. Esta
inspiração é observada nos livros para infâncias de literatura indígena, nos quais, as
mitologias, a organização territorial, a filosofia, a tecnologia etc. de variados grupos
étnicos são apresentados com riqueza de detalhes, por membros do próprio coletivo.

4
Termo de origem Mali que significa sangue e representa o narrador que transmite as histórias das
famílias, clãs e linhagens dos Impérios africanos no transcorrer do tempo. O vocábulo difere do
conceito de griô, instituído no século XV, pelos franceses, para determinar uma espécie de criado do rei
e contador de histórias (LIMA; HERNANDEZ, 2010). Ambas as terminologias são utilizadas no livro:
Toques do Griô, memórias sobre contadores de histórias africanos, de Heloísa Pires Lima e Leila Leite
Hernandez, 2010.
Assim, outras cosmovisões são expostas às crianças: desde o mito criacionista
do mundo, rompendo com a imposição cristã, até os segredos e sagrados das florestas e
dos rituais religiosos de cada livro indígena que se conecta as memórias étnicas do
seu/sua autor/a, as práticas tradicionais e narrativas orais apreendidas dentro das aldeias
e no contato com os mais velhos.
Como afiança Eliane Potiguara (2019), a produção literária indígena é uma
proposta de autoimagem ancestral e coletiva baseada na oralidade:
Essa Literatura deve ser incentivada através da Educação Indígena, no
dia a dia das escolas, para que os próprios indígenas sejam realmente
os interlocutores de suas culturas, tradições e visões de vida. No
entanto, outro aspecto de fundamental importância há de se
considerar. É a tradicionalidade do discurso oral pelos componentes
mais idosos, idosas e pajés da comunidade que não pode, de forma
alguma, ser ignorado. Na realidade, esse discurso é a base sólida, é a
conceituação, são os princípios primordiais étnicos que fundamentam
essa tradição e que fundamentarão a escrita, a partir de valores
linguísticos próprios de cada povo indígena. Hoje, nossos livros
didáticos, literários ou poéticos refletem esse pensamento. Que a
sociedade não indígena nas escolas, nas salas de aula possam utilizar
nossos materiais didáticos e publicações várias. Há diversos escritores
indígenas que estão fazendo trabalhos maravilhosos. (POTIGUARA,
2019)5.

Em outros termos, a oralidade compõe a identidade das comunidades indígenas e


sua visão de mundo. Tal percurso deve ser experienciado pelos educandos.
Quando se pensa em uma proposta decolonial é imprescindível que a escola se
abra ao diferente, abrace-o e saia da zona de conforto indo ao encontro das
manifestações culturais. É importante que neste cenário, o gestor escolar conceba a
instituição de ensino como um lugar de emancipação, a partir da desconstrução de
sistemas opressivos de ensino e emergência de novos pontos de vista à luz dos
movimentos sociais e culturais estabelecendo pontes de combate ao racismo, ao
patriarcado, ao etnocídio, ao capitalismo global e criando possíveis e diversificados
modos de pensar e constituir conhecimentos.
Assim como também o corpo docente precisa se engajar e provocar os seus
discentes a investigar e analisar aspectos como os vocábulos presentes nas literaturas
orais de matriz africana e indígena, compreender os significados dos tipos de

5
Disponível em: <https://revista.catedra.puc-rio.br/index.php/literatura-indigena-e-nativa-vem-das-
entranhas-da-terra/> Acesso em 10 de jan de 2022.
textualidade oral, aprofundar a constituição do pretuguês - marca das africanidades na
língua brasileira segundo Lélia Gonzalez (2020) - e compreender as
modificações/transições das narrativas ao longo do tempo e no contato com outros
povos e públicos.
As grandes personalidades dos contos populares como Câmara Cascudo, Mestra
Selma do Coco, Mãe Beata, Ebomi Cici, Mestre Jorge Conceição e a boiada multicor, a
griô Lilian Pacheco, o repentista e mestre cordelista Bule-Bule e outros, precisam ser
estudadas nas escolas dentro dos planos anual, bimestral e semanal pela grande
contribuição que exerceram/exercem na cultura popular oral.
Somente assim é possível romper a reprodução sistemática de uma literatura
fragmentada na escola e serão articulados os aspectos (linguísticos, raciais, étnicos, de
gênero, territoriais, artísticos, históricos, etc.) da pluralidade, dos diferentes grupos
sociais e aproximações das múltiplas realidades, em um ambiente de afeto e
acolhimento conectado a outros mundos possíveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Pensar a relevância da literatura oral e do ato de narrar, incluindo seus elementos


como: performance, enunciação, corpo, voz e público é compreender a oralidade,
enquanto produção cultural mutável, identitária e de legitimação dos povos, sem deixar
de reconhecer as múltiplas tentativas de aniquilação desta expressão por meio do projeto
colonial opressor.
É imprescindível, identificar a urgência de tal manifestação ser protegida e
incorporada nas diretrizes educacionais brasileiras, nos parâmetros curriculares e no
projeto identitário das escolas, como modo de romper com a reprodução de estereótipos
e silenciamentos e dá voz às multiplicidades culturais que compõem as comunidades
tradicionais constituintes das sociedades africanas e brasileiras.
E a partir dos questionamentos levantados analisar os possíveis caminhos para a
construção de uma pedagogia multicultural, com foco em uma práxis que respeite os
coletivos diversos e a importância do narrador, das histórias contadas e das
personalidades inseridas na prática das oralidades. Deste modo, torna-se palpável a
proposta de um currículo educacional decolonial e alcança-se a necessária valorização
das sociodiversidades.
REFERÊNCIAS
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Oralidade, fantasia e infância: Há lugar para os contos de fadas na escola? In.: SOUZA;
Renata Junqueira de; FEBA, Berta Lúcia Tagliari (org.). Leitura literária na escola:
reflexões e propostas na perspectiva do letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras,
2011.

BRASIL. Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Disponível em: <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 20 dez
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em:
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FINNEGAN, Ruth. O significado da literatura em culturas orais. In: QUEIROZ, Sônia.


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GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções


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POTIGUARA, Eliane. Literatura Indígena e nativa vem das entranhas da Terra. Revista
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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, 2019. Disponível em:
https://revista.catedra.puc-rio.br/index.php/literatura-indigena-e-nativa-vem-das-
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