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Centro de Humanidades
Unidade Acadêmica de Letras
Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa
Componente curricular: Literatura indígena brasileira
Docente: Hélder Pinheiro
Discente: Clarice Winnie Almirante Costa
Boa Vista – PB
CAGNETI, Sueli de Souza; PAULI, Alcione. Garimpando e comentando fontes para a
sala de aula. In: Trilhas literárias indígenas para a sala de aula. 1.ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
“Livros que começam com a voz. Os povos indígenas querem ouvir a própria voz. A
escrita, grande aliada das classes dominantes, paradoxalmente, torna-se a oportunidade
de reversão para os dominados. Eivada das diferentes falas silenciadas, funciona como
uma arma que, através de cada frase ou palavra desacostumada, detona com um certo
poder: a língua enquanto instituição. É por isso que devemos inscrever os livros escritos
pelos índios no campo da política.” (p. 91).
“Como discurso político, o livro demanda e provoca uma escuta. Antes da posse dos
instrumentos da escrita, os índios não puderam impor sua fala, porque não havia
condições de possibilidade para uma leitura do texto oral. Agora, as falas contidas nos
livros indígenas recém-publicados encontram, embora transformadas, a forma visível.
Os próprios índios passam a configurar, através das formas impressas (letras e
desenhos), seus traços culturais e suas diferenças mais marcantes, como resíduo, às
vezes, como desvio (détour).” (p. 91).
“No processo de apropriação da escritura nos moldes ocidentais, atualmente, penso que
os textos produzidos pelos índios (...) constituem uma nova opção semiótica, diferente
das práticas tradicionais, mas também diferente da escrita alfabética. Se as práticas
escriturais autóctones servem para armazenar dados, fixar uma visão de mundo já
consagrada, arquivar as práticas e representações da sociedade, sendo que o exercício do
pensamento, a exploração do porvir, a prática filosófica pertencem tradicionalmente à
esfera oral, com a nova prática literária – escrevendo suas histórias e seus pensamentos,
sua poesia – os indígenas podem estar operando uma profunda mudança na sua vida
social. A escritura assume nessas sociedades também o lugar da crítica, dos
questionamentos. A escritura (...) permite o desenvolvimento de uma atitude mais
reflexiva frente à História, à sociedade, ao mundo.” (p. 92).
“Nãinecü: a palavra ticuna de difícil pronúncia para nós. A floresta toda. Será que agora
a ouviremos? Quando tantas palavras estranhas chegam na cidade vindas diretamente
das matas e dos sertões – textos de índios –, textos recém-publicados em português, mas
também em outras diversas línguas, estaremos, portanto, aptos a enxergar e escutar as
vozes dos passarinhos, as cores do verde, as muitas qualidades das onças, tantos
tamanhos macacos? É para isso que os índios estão escrevendo, desenhando e
aprendendo a fazer lindos livros.” (p. 93).
“(...) o que se coloca é uma situação de escuta (...). Não mais o cientista com sua
necessidade de lançar sobre o desconhecido sua luz, mas o sujeito que, através de sua
própria fala, mobiliza uma ação dispersa e fragmentada – fruição da arte ou atenção
flutuante do analista. O que se manifesta, nessa relação reflexiva e, ao mesmo tempo,
semiótica, nessa invenção tateante de uma democracia linguística, são histórias e versos
que emergem de uma espécie de inconsciente nacional, recalcado pela historiografia
oficial. Por baixo do tapete verde-amarelo com que se cobriu a república brasileira,
esconderam-se as idiossincrasias do diverso e do fragmentado.” (p. 94).
“Nossa paisagem é o próprio monumento erigido pela literatura indígena: o traço que
ela significa é recuperado/marcado por debaixo. Uma espécie de transfiguração das
matas desmatadas, das caças extintas, dos peixes ausentes nas águas poluídas, a
literatura como ecologia aparece nos livros de histórias (...) e nos livros de poesia.
Deixar o grito, forjar a palavra, não renunciar ao imaginário nem às potências
subterrâneas, mas armar uma duração nova, enraizada na emergência de vozes e corpos
até então recalcados; a escrita pode ser revolucionária.” (p. 94).
“É pelo ato conjunto de escrever, “pensar, discutir, coletar informações e desenhos,
criar e experimentar exercícios, avaliar os resultados”, que as comunidades indígenas
pretendem se apropriar dos seus próprios conhecimentos. A grande espoliação praticada
contra os autóctones pelos estrangeiros, através da assimilação, significou o não
reconhecimento dos seus saberes, que, sem escrita no papel, não configuravam
propriamente a ciência, nem a história, nem a filosofia.” (p. 100).
“(...) a melhor ideia de colocar na pauta ideias que, sem serem fruto de elaboração da
razão discursiva desenvolvida por meio da escrita, são antes figurações de um
conhecimento adquirido pelas convivências é por meio do verso. Essa suposição advém
do fato de que a maior parte dos textos escritos pelos índios, na maioria jovens
professores, referentes a concepções teóricas, considerações filosóficas, maneiras de
pensar, ou seja, a investigação sobre o real, constituem formas “enversadas”, como
dizem os xacriabás.” (p. 102).
“Os poetas indígenas situam seus textos escritos, sintonizando-os com as formas verbais
e os falares de sua comunidade, alinhando seus pensamentos aos dos mais velhos e aos
dos espiritualmente designados para emitir ideias (xamãs, pajés, caciques, chefes de
clãs) e captando os padrões sonoros de sua língua (transmitindo-os inclusive nas
traduções para o português). As convenções reguladoras da tradição escrita são
assimiladas pelos recém-alfabetizados poetas, mas de forma a não destituírem sua
poesia das singularidades advindas das diferenças culturais.” (p. 107).
“Para ler os textos publicados até agora pelos índios, acredito ser preciso adotar o
princípio da leitura plural, como querem os semióticos sensíveis à dimensão
performativa da linguagem. Enxergar nas suas imagens a fonte de uma filosofia que,
inclusive, poderia se constituir como tal, em suas escolas. Os múltiplos sentidos
contidos nas imagens, nos escritos e nos desenhos é que permitem a leitura dos que
ignoram quase tudo sobre as diversas culturas, as diversas línguas indígenas.” (p. 107-
8).