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Referência: GRAÚNA, G.

Contrapontos da literatura indígena contemporânea no


Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.

A literatura indígena contemporânea é um lugar utópico (de sobrevivência), uma variante do


épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas (escritas)
ao longo dos mais de 500 anos de colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena
contemporânea vem se preservando na auto-história de autores e autoras e na recepção de um
publico-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no
universo de poemas e prosas autóctones (p. 15).
Identidades, utopia, cumplicidade, esperança, resistência, deslocamento, transculturação,
mito, história, diáspora e outras palavras andantes configuram alguns termos (possíveis) para
designar, a priori, a existência da literatura indígena contemporânea no Brasil [...] (p. 19).
Nesses moldes, a literatura brasileira tem se revelado mais excludente do que se caracteriza
pela convivência solidária na abordagem de temas relacionados ao índio, ao negro, ao judeu, à
mulher, à criança, ao homossexual e ao idoso, entre outros segmentos que a sociedade
dominante rotula de minorias. Passando o olhar pela geografia dos excluídos, por exemplo, as
minorias são os milhões de desempregados, maiores e menores abandonados, sem teto, sem
terra, sem vez, sem voz, espalhados pelo país (p. 44).
O estudo da representação do negro e do índio na literatura requer uma abordagem específica.
De maneira como o assunto vem sendo trabalhado, sobretudo nas escolas dominantes, o
processo de formação político, social, econômico e cultural imposto aos povos indígenas a
africanos continuará sendo ignorado. A expressão artística do ameríndio e do africano sugere
uma leitura das diferenças, pois o ato de conhecer o outro implica o ato de interiorizar a
história, a auto-história, as nossas raízes (p. 46-7).
Em se tratando de literatura indígena, as definições, os conceitos esbarram na questão do
reconhecimento, no preconceito literário estampado no mascaramento das polêmicas
doutrinais. No cânone, essa literatura não aparece mencionada; seu lugar te, sido, até agora, a
margem. Poucos se dão conta de sua pulsação (p. 55).
Apesar da falta de seu reconhecimento na sociedade letrada, as vozes indígenas não se calam.
O seu lugar está reservado na história de um outro mundo possível. Visando à construção
desse mundo, textos literários de autoria indígena tratam de uma série de problemas e
perspectivas que tocam na questão identitária e que devem ser esclarecidos e confrontados
com os textos não indígenas, pois trata-se de uma questão muito delicada e muito debatida
hoje entre os escritores indígenas (p. 55).
Nesse sentido, podemos afirmar que a literatura dos ressurgidos compõe uma das faces do
movimento literário indígena no Brasil (p. 57).
Nesse sentido, partindo de Ortiz (1978), supomos que será válido acolher o termo
transculturação que, segundo o próprio Ortiz, parece mais apropriado que o vocábulo
aculturação para designar/explicar o processo de trânsito de uma cultura a outra e suas
repercussões sociais de todo gênero (p. 58).
O que resta, hoje, em termos de cultura que se possa falar de uma literatura indígena?
Segundo Boudreau (1993), a literatura escrita do ameríndio é um fenômeno cultural recente
porque surge das decepções acumuladas após a invasão europeia. [...] Dessa forma, assegura
Boudreau, os autores ameríndios expressam a sua visão de mundo e a valorização de sua
“indianidade”, exercitada há séculos, no amor à terra. É desse amor que a literatura indígena
se alimenta para configurar um espaço de denúncia contra dirigentes políticos e as forças
multinacionais que continuam ignorando as nações ameríndias (BOUDREAU, 1993, p. 4).
Nos códigos das cidades letradas, a literatura indígena e a literatura africana (oral, ou escrita)
não ocupam as vitrines porque problematizam as diferenças, subvertem a noção predominante
que é a de rotular as literaturas extraocidentais de discurso subliterário (p. 66).
No campo da literatura e dos estudos culturais, o hífen pode adquirir outras configurações,
pois se trata simplesmente de um sinal gráfico horizontal que une e/ou separa palavras; mas
trata-se do interdito configurando uma zona de conflito, de intermediação. As entrelinhas do
texto literário dão conta de que a hifenização (em contraposição ao sentido denotado nos
dicionários e nas gramáticas) sugere um signo de múltiplas significações, de hibridações(p.
68).
Um dos traços caracterizadores da literatura indígena converge à noção de auto-história,
fundamentada por Sioui. Na tipologia de gênero (ocidental), a noção de auto-história
(extraocidental) tende a configurar um recorte do híbrido, isto é, uma categoria à qual
pertencem ou nela estão inseridos os ensaios, os textos autobiográficos, os artigos, os
depoimentos, os relatos, as entrevistas, as cartas, as ilustrações, até os e-mails e outras formas
de expressão que os (as) escritores(as) indígenas e descendentes utilizam para falar das
diferenças culturais, imprimindo vez e voz aos seus personagens, a sua indianidade (p. 70).
Estudar a periodização das literaturas indígenas, dicionarizar seus autores é uma
perspectiva futura. A priori, permitimo-nos afirmas que o conjunto de manifestações literárias
de autoria indígena produzida no Brasil sugere dois momentos singulares: o período clássico
referente à tradição oral (coletiva) que atravessa os tempos com as narrativas míticas e o
período contemporâneo (de tradição escrita individual e coletiva) na poesia e na “contação de
histórias” com base em narrativas míticas e no entrelaçamento da história (do ponto de vista
indígena) com a ficção (em fase de experimentalismo) (p. 74).
O conceito de propriedade intelectual indígena implica um conjunto de diferentes
manifestações de diferentes etnias. No campo literário, as manifestações apresentam uma
dinâmica que si instala ora no fazer coletivo, ora no fazer individual dos textos. Essa dinâmica
alude à passagem entre oralidade e a escrita que alguns estudiosos preferem classificar de
orature, isto é, oratura [...] (p. 86).
Dessa forma, o escritor indígena é levado pelas circunstâncias a produzir uma literatura
alternativa, independente ou, para sermos mais precisos, uma literatura de sobrevivência,
considerando esta uma das características do movimento literário indígena dos anos 1990(p.
89).
Se as narrativas míticas são para os povos indígenas uma forma de resistência, os poemas
também o são, pois a poesia (na cosmovisão indígena) vem confirmar a luta identitária,
reafirmando os laços de amor à terra (p. 107).
Se na estética indígena a poesia urbanizou-se ou modernizou-se, ora nos mares da internet,
ora nos velhos caminhos do papel e tinta, isso não quer dizer que os poetas indígenas
contemporâneos tenham quebrado o compromisso que firmaram com a cultura e o
pensamento do seu povo (p. 115).
O ato de compartilhar o pensamento indígena por meio da literatura, como fazem esses
autores, configura uma identidade literária que se mantém pela solidariedade nas ocasiões
em que eles se reúnem também para realizar oficinas de literatura (p. 138).
A história do Saci verdadeiro configura uma das especificidades do discurso literário indígena
que é, entre outras, a constante referência à espiritualidade ancestral, como forma de criticar a
banalização do discurso que o outro faz no que diz respeito ao pensamento indígena (p. 152).
A questão identidade/alteridade convoca-nos a repensar o direito à diferença para entender o
outro e compreender melhor a nós mesmos. Esse processo, que só existe pela consciência de
nos tornarmos outro sendo nós mesmos (Meliá), converge à visão dos escritores e escritoras
indígenas no Brasil e em outras partes da América Latina (p. 154).
A literatura indígena contemporânea tem procedência na rebeldia que nasce também da
exclusão (p. 169).
A literatura indígena contemporânea no Brasil faz parte da luta identitária, com base no saber
coletivo que é testemunho também de uma expressão maior: a pajelança. É dessa perspectiva
que os parentes indígenas veem a intuição como mensageira da alma (p. 170).
Uma leitura das diferenças possibilita compreender uma literatura que expande o seu grito que
é dos mais excluídos e que ao mesmo tempo tece a esperança de que todos possam refletir as
necessidades dos povos indígenas e seus descendentes; uma delas toca diretamente à questão
da diáspora indígena. Ao contrário do que se pensa, essa diáspora existe e vem se estendendo
à medida que as terras indígenas são invadidas por missionários duvidosos, madeireiros,
posseiros, ALCAs e outras indesejáveis companhias que vêm deslocando os povos indígenas
e seus descendentes, jogando-os na marginalidade e negando-lhes o papel de sujeitos da
própria história (p. 171-2)
Entre os indígenas de várias partes do mundo, a palavra é um elemento sagrado. Na visão
Guarani, por exemplo, a palavra tem alma. Palavra e identidade se confundem; palavra que
passa de pai para filho, dos avós para os netos; palavra carregada de água, palavra que vinda
da terra, palavra aquecida pelo fogo, palavra tão necessária quanto o ar que se respira; palavra
que atravessa o tempo (p. 173).

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