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Autorização Decreto nº 9237/86. DOU 18/07/96. Reconhecimento: Portaria 909/95, DOU 01/08-95
RESUMO
Este trabalho se pôs a pesquisar bibliograficamente a literatura escrita por mulheres indígenas desde seu
prelúdio em meados da década de 1970. Por considerá-la basilar para perscrutar a movimentação entre os
indígenas no fortalecimento de suas lutas pessoais, políticas e pessoais. Nesse sentido, tal análise
objetivou reconhecer a luta através da escrita, indo em encontro ao fortalecimento dos direitos que há
séculos vêm sendo vilipendiados. Para tanto, foi preciso, conjuntamente, analisar o discorrer do
Movimento Indígena que esteve alinhado na constituição de uma literatura que dava voz aos indígenas
que, até então, eram narrados por outros sujeitos, aquém de compreensão pessoal do ser indígena.
Destarte, compreendeu-se que a literatura escrita por mulheres indígenas está em ascensão na
contemporaneidade, pois conflui diretamente para o resgate de culturas marginalizadas, indivíduos
silenciados, no sobrelevar de suas vozes. Nesse ínterim, o conhecimento dessas escritas é fundamental
para que a sociedade se una ao processo de valorização das culturas indígenas em nosso território.
ABSTRACT
This work set out to bibliographically research the literature written by indigenous women since its
prelude in the mid-1970s. For considering it fundamental to scrutinize the movement among indigenous
people in the strengthening of their personal, political and personal struggles. In this sense, this analysis
aimed to recognize the struggle through writing, meeting the strengthening of rights that have been
vilified for centuries. Therefore, it was necessary, jointly, to analyze the discourse of the Indigenous
Movement that was aligned in the constitution of a literature that gave voice to indigenous people who,
until then, were narrated by other subjects, beyond a personal understanding of the indigenous being.
Thus, it was understood that the literature written by indigenous women is on the rise in contemporary
times, as it directly converges to the rescue of marginalized cultures, silenced individuals, in the raising of
their voices. In the meantime, knowledge of these writings is essential for society to join the process of
valuing indigenous cultures in our territory.
Esse cenário foi marcante para que a literatura surgisse com a indígena Eliane
Potiguara, do povo Potiguara da Paraíba. Em seu poema inaugural, “Identidade
Indígena” de 1975, podemos enxergar a amplitude do resgate ancestral da memória
entre os povos “desplazados” (POTIGUARA, 2019). Foi ela, portanto, que fomentou o
alicerce para a literatura escrita por indígenas, e sobretudo, através do GRUMIN criado
em 1987, organização criada por ela para estabelecer entre homens e mulheres o acesso
à educação, informação para formação de opiniões, etc. Dessa maneira, se entende que a
autora participa até os tempos atuais como inspiração, para as novas gerações de
escritores e militantes indígenas, e não só no campo subjetivo pois atua ativamente no
embate por uma sociedade mais justa.
Bem como é traçado por Rita Olivieri Godet (2018), Potiguara foi precursora da
literatura indígena, para posteriormente surgir Graça Graúna, ambas do povo Potiguara.
Godet assinala sobre a primeira coletânea de poemas de Potigura, Canto Mestizo de
1999, enquanto a segunda escreveu Tessituras da Terra em 2001. Graúna (2013)
sublinha as diferenças entre essas descendências. Narra a dispersão que se deu entre os
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De acordo com Graça Graúna (2013, p. 26), foi na década de 1970 que marca o surgimento das
organizações e movimentos em defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas.
Potiguara no século XVI para além da Paraíba, circunscrevendo os estados da Paraíba e
o Ceará. Nisso, se deu a migração e isolamento desse povo falante do tupi. Embora
existam essas disparidades, as duas escritoras se encontram na/pela resistência indígena,
a partir de suas escritas e, suas existências.
Este convívio foi imputado pela necessidade de busca de autonomia política, por
exemplo, e, portanto, inevitável quando se pretende manter um diálogo com os não-
indígenas acerca dos direitos que são atravancados diariamente. “Minha cara de ‘índia’
não se transformou” remete ao poema “Brasil” de Potiguara (2019). Nele, enquanto se
questiona “o que faço com minha cara de índia” se entrevê em seguida a resposta: as
marcas no rosto, os segredos, a história neste “ventre sagrado”, jamais se apagará. A
face, outrora manchada de dor e sangue, vivifica o fortalecimento da auto história e da
memória coletiva. Os cânticos hoje são gritos de guerra pois foi preciso trazê-los para o
embate crivado pelo secular etnocídio descrito por Davi Kopewana (2015).
Noutro poema intitulado “Ser indígena – Ser omágua” pode ser assinalado numa
espécie de labareda sem fim o intuir de Kambeba em meio ao “reviver” da memória de
seu povo, da sua identidade que foi diluída na história. Quando o eu-lírico reafirma
“Sou Kambeba e existo sim” é pungente sentir e, de fato, incorporar a ideia da
existência do ser indígena em sua subjetividade. Existe “No toque de todos os
tambores”, “no sangue derramado que ainda colore essa terra que é nossa”. O soar que
ecoa da “dança guerreira”, simboliza o “sopro de vida” restante e que penetra cada um
dos Kambeba. O sangue esvaído mancha a terra, invade seu interior, para dela nascer
corpos marcados pelo sofrimento, todavia latentes em reviver suas histórias a partir de
ritos, de seus cânticos e danças, de “seu clamor a Tupã”.
“E na dança dos tempos” procura-se manter e reviver os saberes dos guardiões
da floresta, “refúgio e morada” para o ser indígena que se sente parte integrante da
natureza. Pois se vive nela, sendo ela ao mesmo tempo, como mais um animal que vive
e se alimenta da mesma Terra. Portanto, pensar numa biosfera, numa ecologia descrita
pelos ocidentais se tornam noções precárias para compreensão da vida do indígena e sua
relação com a natureza. O elo mantido é tão fortalecido à medida em que se vive nela,
respeitando-a. Ailton Krenak (2020) fala dessa perspectiva outra de vida, que enxerga
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LEGIÃO URBANA. Índios. São Paulo: EMI: 1986. SUPORTE (4,23 min).
nosso meio, como sendo parte de nossa existência. Não existe, dessa forma, um meio
ambiente paralelo a nós. Ele subsiste conjuntamente, e somos interpelados por ele.
No poema “Silêncio Guerreiro” há a manifestação de uma peculiar maneira de
salvaguardar os “sabres milenares”, a partir do silêncio em que neste estado existe a
chance de compreender melhor a si próprio e sua realidade. Não se trata, dessa forma,
da contraproducente desordem natural a que nós, não-indígenas, estamos submetidos,
calcada no barulho exterior e, posteriormente, interior. Barulho este que ensurdece, nos
enche de culpa e autojulgamento, de entraves existenciais. O silêncio, pois, para os não-
indígenas é quase impossível de ocorrer. Porque não há tempo para tal evento. E esse
tempo transcorre de forma linear e com um fim bem determinado entre nós. Enquanto
para os indígenas a vida se dá num espaço circular de apreensão. Não se pretende
chegar a um objetivo pré-estabelecido, meramente material, porque as questões
primordiais se voltam ao espírito.
Esse poema remete a belíssima história “Meu vô Apolinário” de Daniel
Munduruku (2009), narrativa centrada no avô de Daniel, ancião e mestre sobre os
conhecimentos ancestrais de seu povo. Para tanto, o jovem Daniel pôde se situar numa
(re) identificação como indígena, paulatina aos encontros transcorridos entre ele e seu
avô. A partir do encontro no rio, em que lhe foi solicitado escutar o que rio tinha a lhe
dizer, Daniel passou a ser inserido numa espécie de ritual de amadurecimento. A priori,
pouco apreendeu, todavia, a paciência marcou essa experiência. Esteve adentro da
floresta a ouvir os cantos/cânticos dos pássaros e descobrindo seus significados. O
silêncio descrito por Kambeba significou em Munduruku o prelúdio para uma iniciação
sobre o ser indígena. O eu-lírico no poema fala do “silêncio da minha flecha” porque é
preciso silenciar o corpo para se lutar efetivamente contra o inimigo, para “frear o
homem branco, defendendo nosso lar”. Vê-se, então, que Kambeba aborda questões
ulteriores ao que seria uma iniciação. Destarte, Munduruku e seu avô representam esse
momento de autoidentificação com uma identidade dispersa e, que, por isso foi preciso
o retornar ao limiar de sua história e de seu povo.
Graça Graúna (2013), filha do povo Potiguara do Rio Grande do Norte, se situa
como escritora doutora, e também poeta. A partir de alguns poemas contidos em sua
obra Tear da Palavra de 2007, Rita Olivieri Godet (2018) discorre acerca do
transculturalismo na obra supracitada. Surge, então, a noção de reterritorialização
simbólica, pensando sobre como Graúna teve que se reconstruir culturalmente para se
firmar como indígena, numa manifestação já tida como findada. Ou seja, reterritorializar
seria demarcar seu próprio corpo num espaço-tempo de autoafirmação simbólica. No
livro referido de Graúna há a construção poética que alinha as apreensões sobre “as
paisagens urbanas à memória do território indígena”. Da mesma forma feita por
Kambeba em que se pensa as delimitações existentes a partir desse novo situar.
Paisagens estas que se mesclam e, cada qual retém sua significativa relevância na
construção da existência e, portanto, da construção poética. Olhar e apreender o espaço
situacional, senti-lo como refratário de seus movimentos interiores também é marca em
o Tear da Palavra.
Godet considera a escrita indígena como uma “poética da alteridade” dando
vazão a fazedura a partir das experiências em espaços dissonantes, potencializando as
escritas migrantes. O que se relaciona com o teor descrito por Kambeba quando se
enxergou noutro espaço, fora da aldeia, e que, por isso, sujeita a imposições sociais
como a negação identitária, tratando-a numa condição ambivalente. Além disso, se
insere o conceito de entre-lugar que perpassa a vida de Graúna enquanto mulher que
precisa se reconstruir na sua identidade, tendo em vista a “expropriação territorial” e
cultural. Isto é, sentindo-se lesada, usurpada em seus direitos, se inscreve como
resistência em si num espaço construído entre identidades vilipendiadas e impostas. Um
entre como uma ponte que aparta e aproxima, à revelia.
No poema “Legado”, o eu-lírico revela sua reaproximação com sua face oculta,
em êxtase foi de encontro ao que antes se escondia. A “lua cheia”, marca de uma nova
reconfiguração interior, momento de efervescência e de produção, rompe com a neblina,
isto é, com o que antes obscurecia sua mente, seu espírito. A lua interior (AGUIAR,
s.d.), portanto, resplandece para possibilitar a construção dos sonhos em suas maiores
sutilezas. Contrapondo-se a “desesperança” circunvizinha, que teima em perpassar a
existência. Nesse sentido, o eu-lírico marca sua passagem, num legado de perseverança
para manutenção da aproximação com a nossa face oculta. Isto é, de onde pode renascer
a identidade perdida mesmo com toda a opressão imposta.
No poema “Serra do Mar” (GRAÚNA, 2007, p.23 apud GODET, 2018, p.40)
encontram-se questões sobre os espaços sociais e suas “realidades regionais e
continentais” diante das pressões impostas pelo sistema capitalista que marca a
paisagem. Esse espaço em questão é a Serra do Mar situada entre o Espírito Santo e o
sul de Santa Catarina. Nele pode ser visto através da topografia, as diferentes imagens a
partir da inserção do humano que descontruiu um espaço natural para refletir a
“poluição” e a “violência nas ruas” e os seus esquemas de estratificação social. Mesmo
assim, resiste a “voracidade do vento” que ainda está lá. Sugere, portanto, uma reflexão
sobre os modos de vida e existência à que estamos sujeitando a natureza. Segundo
Krenak (2020), característica destes tempos autodestrutivos. No entanto, a natureza
impõe seu voraz ruído diante da destruição e o cerceamento em suas dimensões. Esse
vento que ressoa as vozes dos espíritos da mata que trazem consigo o silêncio preciso
para soerguer as respostas e desconcertos presentes em cada mitologia indígena.
Nela se baseiam sua existência, alinhando, por exemplo, o entendimento sobre a
formação do Universo e do homem numa ótica dissonante à do Ocidente. Representam,
pois, a íntima ligação entre a natureza-homem que não é estreitada, já que se pretende o
sentido de marcação da temporalidade através das histórias advindas da oralidade,
simbolizando uma dimensão que engrandece cada povo. Nesse meio, podemos perceber
marcações sobre a chamada Mãe-Terra que é como bem sugeriu a antropóloga Betty
Mindlin, uma “Terra Grávida” (1999). Pois dela nasce a vida para todos os seres, e essa
noção perpassa a cosmogonia da maioria dos povos indígenas, a partir da falta de
contato com muitos deles. Nessa perspectiva subentende-se a importância da mulher
indígena. Ela gera a vida que dará continuidade a um povo. Trata-se de uma dimensão
atemporal e inquestionável. Dela nascerá a propagação de uma cultura que não se deixa
arrefecer a partir da labareda existente em seus ritos, cânticos, flamejando as vozes
ancestrais.
Enquanto noutro poema de Graúna, “Era uma vez”, retrata a invasão portuguesa
e o recorte que se deu em nosso território a partir da ganância daqueles estrangeiros que
chegaram aqui “grávidos de malícia”, “sedentos de guerra”, afrontando civilizações,
povos inteiros que passaram a chorar pela propagação da fome, da miséria, de um fruto
amargo que ia nascendo em uma terra banhada de sangue. Numa tendência ao
apagamento e aculturação dos povos indígenas, traçou-se sobre populações inteiras a
“esterilização” do Ventre Sagrado descrito por Kambeba. Desse modo, o espaço se
modificou, plastificaram a natureza, segundo Graúna. Construíram uma ideia arbitrária
sobre a natureza e a vida pautada na exploração de ambas, vilipendiadas em sua
essência. No entanto, ao final dos versos, o eu-lírico enxergou ao longe “um curumim
sonhando com Yvy-Marãey formosa”. Num símbolo potente diante da permanência do
fortalecimento das culturas indígenas apesar das injustiças seculares e mesmo com ela,
revivendo a partir dos curumins, das mulheres em seus ventres, dos homens e anciãos
que reconstroem em si novas realidades e possibilidades para manutenção de um povo
inteiro. Isto é, a coletividade é marco para compreensão da dimensão da cosmogonia
indígena numa amplitude diante da marcação identitária.
Em Graúna (2013) é feito um apanhado sócio-histórico do Movimento Indígena
à Literatura Indígena. A autora trabalha com as ideias construídas em nossa história
sobre a formação identitária a partir da literatura, ao discorrer sobre as obras e
personagens de José de Alencar. Além de tratar da diáspora indígena a partir da “poética
de exílio” vivenciada por Eliane Potiguara e suas vivências na corrida pela busca de sua
identidade atravessada pela migração forçada de seu povo em meio a luta pela
afirmação dos direitos indígenas, sobretudo de direito à terra. Potiguara ressalta a
mulher indígena na sua “identidade quase-invisível” numa condição de enfrentamento
às injustiças inscritas desde os tempos de colonização em que a mulher indígena foi
posta como um “objeto-valor” segundo Lopes (apud GRAÚNA, 2013, p.108). A partir
do poema “Agonia dos Pataxó Hã-Hã-Hãe” publicado em 2002, Potiguara expressa
sobre o que o século de morte imputou às mulheres indígenas: a negação de sua
sexualidade e maternidade, “espoliada” em sua condição de dor e solidão porque
“Nossos maridos morreram” e, desta forma, só lhes resta gerar e parir filhos doentes.
Esse cenário denuncia as circunstâncias obscuras a que essas pessoas estão submetidas
nesta “agonia de séculos”.
Nesse existir decolonial alicerçado numa história de etnocídio encontra-se a
primeira cordelista indígena Auritha Tabajara do povo homônimo do Ceará. A partir do
seu poema “Iracema sem chão” (OCA BABEL, 2019) vê-se o eu-lírico introduzindo o
ato de amar que não será colonizado por que de arte vai se armando. Ressalta que o
corpo da mulher indígena foi esvaziado e que busca há cinco séculos “um amor
ancestral”. Apesar do processo assimilacionista imposto pela fé cristã na tentativa de
aniquilar com a língua e a crença indígena, de assassinar também a “força feminina”
que detém um “sagrado poder” nas tessituras do nascimento na floresta donde podemos
enxergar as raízes frondosas expandidas que representam a vida resisti em viver. Pois as
raízes do corpo-mulher estão para o corpo de uma árvore que vive, que encontra forças
para se sustentar na Terra Cunhã que é espaço para o “o rio de lágrimas”, mas que “luta,
raiz forte da terra!!!! Mesmo que te matem por ora” (POTIGUARA, 2019, p.81).
Uma raiz que não finda, portanto, que gera vida bem como cita o eu-lírico de
“Iracema sem chão”, vida que fica dispersa, se perde infelizmente como Kawenne se
perdeu, ou morreram como Vitória e Cauê para somente ficar Ana por perto. Nisso
subentende uma história, de perdas e reencontros, de espera sobretudo, pelos filhos
perdidos, parentes distantes, pela terra negada. Dessarte, o eu-lírico salienta que não é
como Iracema, corpo sem “história pra lembrar”, nem tampouco história que leva a
recriar. Assim, o eu-lírico resisti a violência, a discriminação, vivendo em meio a
“desigualdade e persistência” de forma a valorizar seu existir pungente de narrativas
fixados na memória. Portanto, não se trata de uma indígena objeto como foi Iracema de
José de Alencar porque ela possui o chão, e mesmo que não seja físico, sabe onde pisar.
Mesmo que inexista terra, uma aldeia, subsiste a memória que resgata a identidade para
fazer o retorno necessário de apropriação do que lhes foi saqueado.
A mulher indígena, isto posto, “grita ao mundo a tua história” no chamado com
as irmãs parentes para beber da “fonte verdadeira” na qual encontra-se “palavras doces
ternas”. Para um recomeço candente para reflorescer o corpo junto ao canto dos
passarinhos. Se despedindo de toda a malha suja, adentrando na mata para execrar o
silêncio “e corre – criança – feito garça”. Libertando-se, pois, para a autoafirmação
latente: “sou uma mulher guerreira! Sou uma mulher consciente!”. Palavras estas ditas
no poema “Mulher” de Eliane Potiguara (2019, p. 83) e que reafirma a luta e
persistência fundamentais na poética indígena.
No poema “Sou Auritha cordelista” há a afirmação concisa do eu-lírico, Auritha,
como mulher indígena cordelista. Nessa condição narra os preconceitos por além disso,
ser nordestina. Posto isto, cita os preconceitos a partir da pobreza imposta a essa região,
segregando um espaço em que quem usa o maracá é visto com desdém porque não se
aplica ao indígena cristalizado na memória nacional. Isto é, não pode usar tecnologia
pois não seria mais aquele índio romântico do século XVI. Porém Auritha reafirma que
isso não influi mais em seu viver porque sabe de fato qual sua missão, como diria
Potiguara (2019). Assim, esses artefatos culturais provenientes do homem branco são
usados como aporte para fazer com essa sociedade reconheça os povos indígenas em
suas diferenças e realidades. Visto que o imaginário popular está pautado em
preconceitos é notório que o próprio indígena escreva a história de seu povo juntamente
a sua auto-história, pois estão imbrincadas.
Julie Dorrico, do povo Macuxi de Roraima, se encontra como escritora e poeta
em que vêm atuando de forma perspicaz no circuito da literatura indígena
contemporânea. Com seu livro intitulado “Eu sou Macuxi e outras histórias” (2019)
temos o poema “Não há fronteiras para o pertencimento” em que sobressai o
entendimento de pertencimento identitário relacionando diversos povos indígenas
existentes em nosso território, demonstrando nossa multifacetada cultura étnica a partir
do entendimento que existem 305 povos indígenas no Brasil segundo o IBGE (2010).
De “um porto a outro, de norte a sul” encontram-se os “Kaingang, omágua/kambeba,
pankararu”, dentre tantos outros citados nos versos. Nesse panorama o eu-lírico
perscruta as imagens que lhe ressoa através dos “sons dos maracás” e também do
“silêncio dos olhos dos meus parentes amarelos”, isto é, o silêncio se corporifica.
“Nessa vida e em tantas outras Eu sou”, para dizer que o grito entre os povos
ressurgidos ecoará intermitentemente.
Em “As bananeiras do meu quintal” o eu-lírico resgata a memória da infância,
permeada pelas brincadeiras entre as “bananeiras, o coqueiral, os ingazeiros, eu cresci”
(2019, grifo nosso). Nesse crescimento circunscreve o tornar-se planta que floresce e
morre, naturalmente. No meio das plantas tornou-se uma, fortificando uma amizade, a
correr pelo mato como “gente-árvore”. Nessa memória o eu-lírico tinge o cenário de
êxtase com o irmão ao encontrar uma sucuri que não só o devorou por ele ser magro de
mais. Dando a entender que o animal se liga a uma dimensão maior sobre o que pensa
ser somente uma presa. Noutro dia, uma cobra chamou o irmão para tomar banho de rio,
ele não aceitou. Donde viria tamanha sorte? Num construto imagético quase fantástico,
pode-se entender a íntima ligação com a natureza. Assim, o eu-lírico só desejava correr
pelo quintal, pisar no chão de terra, entremeado pelos medos e alegrias que pode surgir
nessa fase e que envolvem todo o restante da vida.
Dorrico (2020) destaca a literatura indígena contemporânea com textos
indispensáveis como o do artista e ativista Jaider Esbell com a tentativa de “leitura de
realidade/mundo” para suplantar a ideia de “indígenas- filhos das plantas”,
correlacionando ao poema “As bananeiras do meu quintal” de Dorrico. Num
pensamento para “des-voluir” o processo imposto pela colonização, Esbell suscita que
voltemos a subir em árvores, numa construção da “autonomia no tempo presente”.
Numa instância global discorre sobre a repulsa que a natureza se manifesta contra nós.
Demonstrada as peculiares ambivalências na qual vivemos como permanecer
escrevendo em papéis de árvores envenenadas por nós mesmos. Esbell reflete sobre o
surgimento da literatura indígena, em que diz:
Se a literatura nasce na borda do abismo ela deve servir
unicamente para criar e distribuir asas para regressamos, pois essa
curiosidade insana de querer cruzar é nosso algoz enquanto
humanidade. Ela deve nos dar, digo, nós que nós ajuntamos em sua
biqueira respingados pelos descuidos, deve nos dar um relatório, a
impressão de nossa auto demanda. (DORRICO, 2020, p. 22)
Para ir além da subserviência imposta, Esbell rompeu com os paradigmas
construídos secularmente sobre o corpo indígena através, sobretudo, da Arte Indígena
Contemporânea para destituir o simulacro que impossibilita a criação artística, isto é, os
preconceitos que estigmatizam, cristalizam o indígena como um só, um índio
despossuído de atividade na atualidade. Seria, assim, apenas um sujeito estagnado no
tempo, de direitos, sobre si mesmo e sua terra. Sem embargo, “Teima meu coração em
filtrar e, limpando sementes, careço de terra fértil para germinar.” O autor indígena
makuxi, portanto, entende que existem sementes por nosso território e afora, no entanto
necessita-se de um espaço físico e não somente, simbólico que se possa construir e
reconstruir, quando possível, uma cultura para alicerçar a vida dos povos indígenas.
Dorrico (2018) aborda outras falas em ensaios de autores indígenas como Tiago
Hakiy, Ailton Krenak, Olívio Jekupé, Cristino Wapichana, entre outros. Para compelir
as filosofias de vida de autoria indígena em que são leituras e releituras sobre mitos,
ideologias, em que estamos submetidos, não deixando que o “esquecimento abissal”
impelido aos povos indígenas seja preponderante bem como disse Hakiy que nos orienta
o pensamento sobre oralidade das narrativas indígenas transpostas, posteriormente, aos
livros. Bem como fez Márcia Wayna Kambeba, em que a escrita serve ao envolvimento
de “sentimento, memória, identidade, história e resistência”.
De acordo com a autora há o peso ancestral da literatura, pois acredita-se que
quem escreve “recebe influências de espíritos ancestrais”. Nisso, descortina a ideia de
que na espiritualidade há vida, como uma sobrevida que tangencia daqueles que
ficaram. Por isso, a arte de escrever se inscreve como um ato potencial para contribuir
nas aldeias numa catalogação de narrativas dos anciãos, por exemplo. Dessa forma,
surge a oportunidade que os não-indígenas e outros povos possam ter contato com a
cultura em questão. Kambeba evidencia o uso da literatura indígena na formação
escolar, levando concepções outras de mundo, em que pode se conhecer as curas
espirituais e físicas possíveis, “o tempo do rio”, dentre outras dinâmicas que podem ser
exploradas no ambiente escolar. A autora, contudo, fala do déficit nos livros didáticos
por não serem escritos por indígenas, o que gera inúmeras problemáticas na construção
do ensino e prática pedagógica.
Tensiona daí a educação poética que pode possibilitar a denúncia sobre os
problemas políticos e sociais referentes aos povos indígenas, bem como visto através
dos poemas aqui apresentados. Através da literatura, portanto, se entrevê nas narrativas
a mitologia indígena, as expressões artísticas reconhecidas, porque o uso da palavra
“representa a imagem guardada na memória dos saberes”. Kambeba, assim, faz um
convite a literatura indígena, “com lágrimas e sorrisos, com informação e denúncia”, tão
urgente para contribuir na construção de vidas em sociedade com justiça e equidade.
3 METODOLOGIA
4 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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