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TERRA SONÂMBULA: ENTRE O DITO E O DITADO

Cristina Mielczarski dos Santos (UFRGS)

Introdução

No cenário das literaturas luso-africanas, principalmente de Angola e Moçambique, diversos


temas sobressaem-se: o pós-colonialismo, as tradições orais, os nacionalismos culturais, a
negritude, as construções identitárias. Todas essas questões são pertinentes aos países em
re(construção), porque tanto Angola como Moçambique, recentemente, conquistaram sua
independência do colonialismo português. A identidade nacional é a principal fonte de
identidade cultural, sendo que se entende por identidade cultural o sentimento de identificar-
se com um grupo ou cultura, ou de um indivíduo, na medida em que ele é influenciado pela
sua pertença a um grupo ou cultura. Para complementar, Edward Said (2003, p. 49) assevera
que o nacionalismo é uma declaração de pertencer a algum lugar, a um povo, a uma herança
cultural. Ele afirma que uma pátria é criada por uma comunidade de língua, cultura e
costumes.

Conforme afirma Stuart Hall (2006, p. 51), em sua obra A identidade cultural na pós-
modernidade, a cultura nacional funciona como um sistema de representação, sendo
composta não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações.
Essa cultura, ao produzir sentidos sobre a nação, sentidos com os quais podemos nos
identificar, constroem, assim, identidades. Esses sentidos estão presentes nas estórias que são
contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens
que delas são construídas. Nesse contexto, é importante ressaltar o papel dos intelectuais no
processo de construção de uma identidade nacional. Nada melhor que a literatura para
representá-los, esses escritores possuem uma profunda consciência política, e, por intermédio
de abordagens estéticas absolutamente criativas, fazem parte do grupo de escritores
engajados, que através de seu trabalho com a literatura contribuem para divulgar, preservar a
história de seus países e produzir reflexões sobre ela. Na opinião de Afonso (2004, p. 35), os
escritores moçambicanos estão conscientes das contradições de um país que aglomera
diferentes heranças e que esses autores acreditam que a “literatura funciona como uma pedra
angular na construção da identidade nacional”. Ainda sob essa perspectiva, nas palavras de
Leite (2003, p.44), nota-se uma tentativa constante de partilha de um sentido de identidade
nas literaturas luso-africanas perante “as rupturas que o colonialismo determinou na psique
africana”. Tanto na literatura angolana, como na moçambicana, principalmente das últimas
décadas, os autores em suas obras questionam o valor das vertentes das culturas e poéticas
orais nos seus países.

De acordo com o contexto histórico, é importante mencionar que Moçambique tornou-se


independente de Portugal em 1975, passando, logo após, por uma Guerra Civil (1976- 1992).
Devido a isso, o país ainda está em fase de reconstrução. Sabe-se que através das narrativas
cria-se uma memória coletiva. O imaginário popular é repleto de contos, fábulas, lendas e
mitos que poderiam ser vistos como uma tentativa de reconstrução do passado por
intermédio de dados presentes hoje no mundo em que se insere a sociedade moçambicana. As
narrativas criam uma memória coletiva, cujas lembranças são selecionadas pelo povo que as
viveu.

Um recurso empregado pelos escritores africanos é o resgate da memória para a construção


da identidade pós-colonial. As teorias sobre o tema da memória são extremamente amplas,
entretanto a proposta é evidenciar dois elementos pertinentes à memória: num primeiro
momento, o emprego da carta ficcional, com a função de re(construir) a memória individual –
as cartas da personagem Farida para Virgínia –, recuperando os laços parentais da personagem
portuguesa. E, num segundo momento, aborda-se um representante da memória coletiva
africana, por intermédio do intertexto oral – o provérbio. Para ilustrar os elementos
convocamos a obra do escritor Mia Couto, Terra Sonâmbula (1992).

“Imbrincação” da memória coletiva e individual


A leitura atenta do romance evidencia uma série de aspectos relevantes: a oralidade, que está
na raiz da obra, o realismo animista, a linguagem, a expressão da força inventiva do autor, os
neologismos (uma marca sua), a ressignificação das palavras, as metáforas ímpares, as
transgressões das normas gramaticais. Sobressai-se o humor crítico que se manifesta tanto nas
histórias contadas como por intermédio da linguagem.

Para Bakhtin (1992, p. 291), “cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros
enunciados”. O teórico russo classifica os gêneros do discurso em dois: o primário (simples) e o
secundário (complexo). Na visão do autor os gêneros secundários do discurso – o romance, o
teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, etc. aparecem em circunstâncias de uma
comunicação cultural. Esses gêneros absorvem e transmutam os gêneros primários (simples)
de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal
espontânea. Dentro desse processo os gêneros primários transformam-se para adquirir uma
característica particular. A absorção e transmutação de gêneros levam-nos a pensar em
intertextualidade. Num sentido amplo, a intertextualidade se faz presente em todo e qualquer
texto, como componente decisivo de suas condições de produção, isto é, ela é condição
mesma da existência de textos, já que existe sempre um já- dito, prévio a todo dizer.

A intertextualidade pode ser classificada de duas formas: explícita e implícita. A explícita


ocorre quando há citação da fonte do intertexto (KOCH, 2006, p. 87), sendo essa resultante de
nossa memória social. E a implícita considera a manipulação que o produtor do texto opera
sobre o texto alheio, ou mesmo próprio, com o fim de produzir determinados efeitos de
sentido. Desse modo, referências, alusões, epígrafes, paráfrases, paródias ou pastiches são
algumas das formas de intertextualidade, de que lançam mão os escritores em seu diálogo
com a tradição.

Russel Hamilton (1988, p. 5) afirma que em Moçambique há tentativas de transmitir vários


aspectos da oralidade através da palavra escrita, resultando num tipo de fragmentação, como
é o caso de Mia Couto e de Ungulani BA KA Khosa, que reduzem um discurso escrito cuja
dinâmica simula a oralidade, não simplesmente no papel, mas também no espaço, sugerindo
imagens visuais e acústicas. Assim, Mia Couto recria a oralidade de que fala Hamilton através
de uma língua literária sustentada por uma exuberante criatividade lexical e uma sintaxe que
faz a ponte entre a oralidade e a pura invenção, em que o contexto comunicativo, estético,
possibilita a partilha da mensagem de ruptura.

Na acepção de Ana Mafalda Leite (2003, p. 46) os estudos dos gêneros, enquanto processo de
representação da oralidade africana nos textos literários, tem dedicado especial atenção à
caracterização de uma textualidade formal manifesta. Essa textualidade observa-se pela
detecção de técnicas narrativas, como o uso da máxima, do conto, de lendas e de mitos, pela
presença de certas expressões, como as fórmulas, ou ainda através de declarações de
intenções nas introduções, dedicatórias, títulos ou subtítulos. Além da textualidade formal
manifesta, na perspectiva de Leite (2003, p. 47), faz-se necessário captar uma textualidade não
manifesta, para aprofundar um trabalho analítico na área genológica. A autora apresenta um
conceito do ensaísta senegalês Mohamadou Kane (apud LEITE, 2003), que procurou detectar
as formas e significações originais do romance africano, examinando a sobrevivência da
tradição num contexto de modernização. Kane considera que elas são representativas das
formas tradicionais no romance: a estrutura linear da intriga, a mobilidade temporal e
espacial, a viagem iniciática, o caráter autobiográfico, a estrutura dialogical e a “imbrincação”
de gêneros (LEITE, 2003, p. 47, grifo meu).

José Ornelas (1996, p. 56)2 observou que o trabalho de Couto é caracterizado por um
hibridismo gerado através do cruzamento da voz e do escrito: “Couto altera o idioma que
ouve, tornando-o mais complexo através de dispositivos literários, e este processo reflete a
complexidade da sociedade moçambicana (tradução minha)”. Assim, sob a ótica da
“imbrincação” de gêneros, pode-se pensar na obra Terra Sonâmbula (1992), na qual se destaca
a carta e o provérbio, como já referido no texto.

Epístolas ou cartas
O termo “epistolar” tem sua origem no latim “epistolare”, referindo-se a cartas. Epístola pode
ser uma missiva entre entes queridos: família e amigos ou entre pessoas célebres. O termo
também é conhecido como um fragmento de uma carta apostólica ou outra passagem bíblica
que se dizia na missa, antes do Evangelho. Já a carta, propriamente dita, origina-se do grego
“chártes”, ou seja, escrito que se envia a outrem. Ambos os termos, na maioria dos dicionários,
estão classificados como sinônimos.

O termo “epístola” surgiu da seguinte forma:

[Do] sistema de correio antigo onde as correspondências escritas em papiro e em rolos eram
transportadas no lombo dos animais. Como as bolsas laterais onde se colocavam as
correspondências eram designadas de στολή (stole), logo duas estolas (uma de cada lado)
passou a designar-se epístola (ἐπι = epi = duas ou bi).

Desse modo, a carta ou a epístola é um texto basicamente destinado à comunicação entre


pessoas, identificado muito mais com um monólogo do que com um diálogo. Como sublinha a
autora portuguesa Andrée Crabbé Rocha (1965, p. 13), em A epistolografia em Portugal:

A carta é um meio de comunicar por escrito com o semelhante. Compartilhado por todos os
homens, quer sejam ou não escritores, corresponde a uma necessidade profunda do ser
humano. Communicare não implica apenas uma intenção noticiosa: significa ainda “pôr em
comum”, “comungar”. Lição de fraternidade, em que as palavras substituem actos ou
gestos, vale no plano afectivo como no plano espiritual, e participa, embrionária ou
pujantemente, do mecanismo íntimo da literatura – dádiva generosa e apelo desesperado,
ao mesmo tempo.

Outro aspecto importante a ser considerado sobre as epístolas é sua classificação quanto ao
gênero, identificado como autônomo, dinâmico e heterogêneo, nas palavras de Maria de
Fátima Valverde (2001, p. 2):

(...) na literatura epistolar, o ficcional e o funcional envolvem tanto uma dialéctica como
uma dicotomia. Compreender as diferentes interacções entre ficcionalidade e funcionalidade
no género epistolar obedece a um esforço de equilibrar a norma e a sua flexibilização,
características inerentes a todos os géneros literários. Ainda que possa ser subsidiário dos
estudos de história literária, numa relação esclarecedora, de afirmação e de informação,
entre autor e obra, julgamos ser o género epistolar um gênero autónomo que se impõe por
si mesmo como sistema aberto, dinâmico e heterogêneo.

Sobre a faculdade de o romance misturar diversos gêneros, José Luiz Fiorin (2006, p. 117-8),
com base na teoria de Bakthin, assim se posiciona:

O que dá um estatuto singular ao romance, fazendo dele um gênero diferente dos demais, é
que ele incorpora todos os outros gêneros, mesclando-os; alterna todos os estilos,
entrelaçando-os. Um romance apresenta diálogos de todos os tipos (a conversação
mundana, o batepapo de amigos, os colóquios dos amantes...), monólogos interiores,
ensaios, narrativas, cartas, fragmentos de diários, poemas líricos, proclamações oficiais,
memorando, etc. (grifo meu).

As cartas, portanto, podem aparecer sob diversas formas: enquanto romance epistolar, no
qual se utiliza uma técnica literária desenvolvendo a história por intermédio de cartas e, desse
modo, configura-se maior veracidade a uma narrativa; em correspondências entre escritores
famosos como as de Eça de Queirós a Oliveira Martins, de Fernando Pessoa a Mário de Sá-
Carneiro; sob a forma de cartas ficcionais como A Correspondência de Fradique Mendes, de
Eça de Queirós.

No âmbito ficcional, cita-se o exemplo da carta que Fradique a Guerra Junqueiro:

“Meu caro amigo: a sua carta transborda de ilusão poética. Supor, como você candidamente
supõe, que traspassando com versos (ainda mesmo seus e mais rutilantes que as flechas de
Apolo) a Igreja, o padre, a liturgia, as sacristias, o jejum da sexta-feira e os ossos dos mártires,
se pode ‘desentulhar Deus da aluvião sacerdotal’, e elevar o povo (no povo você decerto inclui
os conselheiros de Estado) a uma compreensão toda pura e abstracta da religião - a uma
religião que consista apenas numa moral apoiada numa fé — é ter da religião, da sua essência
e do seu objecto uma sonhadora ideia de sonhador teimoso em sonhos!” (QUEIRÓS, 1981, p.
117).

Nesse sentido, na perspectiva das autoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria
Velho da Costa, na obra Novas Cartas Portuguesas, afirma-se que a literatura é uma grande
carta a um interlocutor invisível, como se vê:

Pois que toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou
futura paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não interessa
tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não interessa
tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício. (COSTA, 1998, p. 11).

À arte de escrever epístolas ou formas registradas de correspondência escrita entre indivíduos


dá-se o nome de epistolografia, mas, por outro lado, a teoria e prática da escrita de cartas
ficcionais, os estudiosos chamam de epistolaridade. Entretanto, nesse momento, faz-se
necessário perscrutar e refletir sobre a capacidade representativa das missivas nos romances e
contos. Elas rompem com seu objetivo primeiro da comunicação de indivíduo a indivíduo, e,
nesse sentido, saem do individual para participar do coletivo: o tecido narrativo do romance
ou do corpo do conto. Dessa forma, as cartas sofrem uma transmutação, perdem o seu corpo
físico, e o seu objetivo de ser uma comunicação entre indivíduos para ser um diálogo entre o
narrador ou o personagem com o leitor, ou das mais variadas formas.

É importante frisar que em meio à enorme difusão de meios eletrônicos de escrita: com as
redes sociais como Orkut, facebook, twitter, chat de discussões, etc., as cartas tornam-se cada
vez mais obsoletas. Seu primeiro formato, envelope e papel, transmutou-se em meio de
comunicação virtual e, no entanto, na literatura, ela continua tendo o seu protagonismo.

As cartas salientam-se nas obras de Mia Couto, não só nos romances, como também nos
contos. O escritor emprega o gênero como partícipe da narrativa em várias obras: Terra
Sonâmbula (1992), A Varanda de Frangipani (1996), O último vôo do flamingo (2000), Um rio
chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), o conto “A lição de aprendiz” em
Cronicando (1991), o conto “A princesa russa” em Cada Homem é uma Raça (1998), o conto “O
coração do menino e o menino do coração”, em Contos do nascer da terra (2002), o conto “As
Cartas” em Na berma de nenhuma Estrada e outros contos (2003). Dentre tais narrativas, no
entanto, identifica-se apenas uma das inúmeras estratégias de como as cartas ou o gênero
espistolar é encontrado nos textos do escritor moçambicano.

Artificialização da memória – “fingindo o longe”

Em Terra Sonâmbula (1992), a Moçambique pós-independência é metonimizada por


intermédio de Matimati. Intercala-se um narrador onisciente na terceira pessoa e outro na
primeira pessoa, Kindzu. O país após uma devastadora Guerra Anticolonial (1965-1975) e uma
Guerra Civil (1976-1992) serve de cenário para esse romance. O “miúdo” Muidinga e o seu
obstinado protetor, o velho Tuahir, caminham sem rumo, fugindo do morticínio causado pelas
guerrilhas que lhes desestruturou a base material da existência – “a miséria faz conta era o
novo patrão para quem trabalhávamos” (COUTO, 2007, p. 17)4 – e a sua teia de relações
familiares e sociais. Encontrar os verdadeiros pais do miúdo, que foi recolhido por Tuahir num
campo de refugiados, é o propósito da viagem. Nesse contexto, evidencia-se a personagem
Farida, irmã gêmea de Carolinda, sozinha no mundo desde a morte da mãe – “a infância de
Farida ficou órfão” (TS, p. 73) –, a personagem vai morar na residência de um casal de
portugueses, Romão Pinto, dono de muitas terras, e Dona Virgínia, sua esposa, também
chamada de Virigínia, Virginha, Virgininha. O casal lhe ensina a escrever e a falar, e “corrigiam
as maneiras que trazia da terra” (TS, p. 73). Virgínia queria regressar a Portugal, no entanto,
Romão Pinto enchia-lhe de interdições; ler, ouvir rádio, cantar. Assim, Virginha começou a
criar um mundo de fantasias, movia o passado dentro do presente, a velha portuguesa
desenhava sobre velhas fotografias. A pedido dela, Farida escreve cartas, “falseando autorias”
(TS, p. 75), como se fosse os parentes da portuguesa:

Lentamente, a velha desdobrou os tempos, contando episódios de sua vida. Demorou dias,
em detalhes. A velha mirabolava?

- Por que conta tudo isso, mamã Virgínia?

- Porque quero que me passes a escrever.

- Escrever?

Era. Farida deveria enviar-lhe cartas, falseando autorias, fingindo o longe. Foi o que passou
a fazer, se entretendo a ser, de cada vez, um diferente familiar. Virgínia lia as cartas com
aquele soluço que é o tropeço do choro. (TS, p. 75)

No corpo da narrativa não se desvela o conteúdo das missivas, apenas o leitor sabe que Farida,
por meio das histórias de Virgínia, conhecendo um pouco o seu passado, recria-o. Farida é um
outro que fala de memórias que não são as suas, e ao mesmo tempo, quando Virgínia as lê,
causa um estranhamento na autora das cartas: “Farida escutava em tal embalo que se
desconhecia autora da missiva. Ou era a velha que inventava, refazendo a irrealidade do
escrito?” (TS, p. 75).

Um dos elementos mais importantes, que afirmam o caráter social da memória, é a linguagem.
As trocas entre os membros de um grupo se fazem por meio de linguagem. Lembrar e narrar
se constituem da linguagem. Como afirma Ecléa Bosi (1994, p. 56) em Memória e Sociedade, a
linguagem é o instrumento socializador da memória, pois reduz, unifica e aproxima no mesmo
espaço histórico e cultural vivências tão diversas como o sonho, as lembranças e as
experiências recentes. Segundo o sociólogo Maurice Halbwachs (2004, p. 71), existem as
memórias coletivas e as memórias individuais e essas duas memórias se entrelaçam com
frequência, especialmente “a memória individual para confirmar algumas de nossas
lembranças”. A lembrança, de acordo com Halbwachs (2004, p. 76-8), “é uma imagem
engajada em outras imagens”. Ou ainda:

[...] a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados
emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em
épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. (ibidem, p.
75-6)

Conclui-se, assim, que a Carta, o oposto ao relato oral, é uma metamorfose dentro do
processo narrativo do texto.

Provérbio
Na literatura africana, o intertexto básico da imaginação é a literatura oral. Conforme a opinião
de Abiola Irele (1990, p. 56) pode-se observar isto:

Apesar do indubitável impacto da cultura letrada na experiência africana e o seu papel na


determinação de novos processos culturais, a tradição da oralidade continua predominante,
servindo de paradigma central para vários modos de expressão no continente [...]. Neste
sentido primário, as funções da oralidade como matriz no discurso africano, e no que diz
respeito à literatura, o “griot” é a sua personificação no verdadeiro sentido da palavra. A
literatura oral representa assim o intertexto básico da imaginação africana. (grifo meu)

As marcas da oralidade apresentam-se em múltiplas formas em Terra Sonâmbula,


demonstrando características da língua falada e da narrativa oral africana. Um elemento que
se distingue, entre tantos, são as onomatopéias como se vê nestes trechos: “Se aproxima por
trás e dispara um puxado pontapé no animal. Um méééé se amplia pela noite.” (TS, p. 35),
Tuahir assusta-se ao ver um animal lambendo o rosto de Muidinga e dá um pontapé no cabrito
pensando que era uma hiena; “– É bonito de se ouvir: Túúúúú-úú.” (TS, p. 138), fala de Tuahir
recordando seu trabalho, no passado, na estação quando os comboios espalhavam os “fumos
mágicos”; “Depois, Junhito já nem sabia soletrar as humanas palavras. Esganiçava uns cóóós e
ajeitava a cabeça por baixo do braço.” (TS, p. 19): Kindzu contando sobre a metamorfose do
irmão Junhito. O recurso onomatopéico pode apresentar-se através do discurso direto, e
assim, traz a voz do personagem para o texto, ou por intermédio da voz do narrador, Kindzu.

É importante ressaltar também outro aspecto da oralidade que o romance apresenta – as


expressões idiomáticas do discurso oral: “Dentro desta solitária residência ela deveria colocar
o velho barco de meu pai, com seu mastro, sua tristonha vela. Seu dito, nosso feito.” (TS, p.
21), Kindzu seguindo o conselho do feiticeiro, logo após a morte do pai (Taímo), a expressão
conhecida “dito e feito” é empregada com acréscimos pronominais demonstrando que o
conselho foi aceito; “A barcaça não resistia, o caudal do rio a ver com quantos paus se desfaz
uma canoa.” (TS, p. 96), neste excerto o autor emprega o prefixo “des”; “Lembrei meu pai, sua
palavra sempre azeda: agora somos um povo de mendigos, nem temos onde cair vivos.” (TS, p.
119), da expressão “não tem onde cair morto”, observa-se o uso do antônimo (morto/vivo); “–
São bebedeiras politicamente incorrectas.” (TS, p. 128), acréscimo de prefixo “in”, brincando
com o “politicamente correto”; “Do menos o mal: de grão a grão o papa se enche de galinhas.”
(TS, p. 129), o personagem Quintino Massua, explicando o porquê dos cajueiros não florirem,
na fala do personagem o intertexto com o ditado cristalizado “de grão em grão a galinha enche
o papo; “Deveríamos ir ao bar, lá se encontrava o desditoso cujo.” (TS, p. 127), Kindzu à
procura de Euzinha, a busca de alguém que poderia ajudar a encontrá-la. Note-se, novamente,
o emprego do prefixo “des”, uma das marcas do autor no processo de criação lexical e o
acréscimo do sufixo “oso”.

Tanto com os recursos onomatopéicos, como com as expressões idiomáticas, vistas, no


entanto, apenas por um número reduzido de exemplos, verifica-se a voz popular no corpo da
narrativa. Embora o autor empregue múltiplos recursos tais como inversões, acréscimo de
sufixos ou até o sentido contrário das máximas, a sua intenção é sempre a de transmitir a
riqueza da oralidade. Na acepção de um dos mestres da cultura oral africana, Amadou
Hampaté-Bâ (1982, p. 185), essa tradição é uma rica fonte de aprendizado em múltiplos
sentidos, ela pode aos olhos de uma visão logocêntrica parecer desconcertante, mas aos olhos
dos africanos, não:

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos.
Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a
mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da
tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. (...) Ela é ao
mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história,
divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à
Unidade primordial.

Na esteira do que diz esse estudioso, Ruth Finnegan (1970, p. 393), na sua obra Oral Literature
in Africa, assinala que os provérbios, oriundos dessa riqueza da tradição oral, podem começar
uma história, sublinhá-la, terminá-la, talvez mais do que qualquer outra forma, condensam a
memória da oralidade e da tradição. Nesses termos, o elemento fulcral da oralidade é o
provérbio.

Entre os estudiosos da paremiologia, não há um conceito fechado sobre o provérbio, contudo,


pode-se afirmar que ele possui inúmeros traços que o definem: origem remota e anônima,
conteúdo metafórico, caráter diacrônico, valor semântico de verdade universal. Seu caráter
rítmico e sua formulação facilitam a memorização. É rico em imagens, que sintetizam um
conceito a respeito da realidade, uma regra social ou moral. Também conhecido como adágio,
dito, ditado, rifão, máxima. (ONG, 1998, HOUAISS 2001).

Como já salientado anteriormente, os provérbios pertencem ao repertório artístico da


textualidade oral e, frequentemente, são mencionados em textos escritos, explícita ou
implicitamente. Terezinha Taborda (2003, p. 181) observa que a citação dos mesmos nos
textos moçambicanos anuncia a “sua recusa à unidade, a sua construção polifônica e plural,
resultado do diálogo que estabelece com os vários repertórios textuais com os quais entra em
contato”. Nesse sentido, é pertinente aludir ao seu caráter poético, como o linguísta Roman
Jakobson sublinha em Linguística e Comunicação (2001, p. 8): “provérbio é, ao mesmo tempo,
uma unidade fraseológica e uma obra poética”.

Na prosa coutiana, tanto nos romances, como nos contos, os provérbios são um dos
intertextos com os quais o autor dialoga. Quer sejam portugueses, quer sejam moçambicanos,
eles são introduzidos segundo processos variados: nas epígrafes dos capítulos, no corpo
textual através das falas dos personagens por meio de discursos diretos e indiretos, ou mesmo
do discurso indireto livre. Em larga escala, os provérbios surgem sob uma forma diversificada
da estrutura cristalizada, podendo o personagem citar a fonte popular ou não: “Hospitaleiro, o
volumoso Abacar me ofereceu um espaço no balcão, a seu lado. Enquanto bebia,
desembolsava mais ditados: - No parar é que está o ganho!” (TS, p. 129); “Você sabe: em terra
de cego quem tem olho fica sem ele” (TS, p. 129), reformulado do original “em terra de cego
quem tem olho é rei”.

A recriação linguística não transparece apenas nos neologismos, mas também na maneira
como o autor articula a desconstrução dos provérbios. Denota-se, nesse sentido, que o seu
intuito é valer-se destes ditos populares para reforçar as ideias apresentadas, como um sinal
de sabedoria ou de crença cultural. Em Terra Sonâmbula, os personagens que mais empregam
o recurso proverbial e as máximas são os idosos, e os seus registros ligam-se ao universo rural.
No discurso de Tuahir: “O homem é como a casa: deve ser visto por dentro!” (TS, p. 88); na fala
de Taímo: “Quem não tem nada não chama inveja de ninguém. Melhor sentinela é não ter
portas.” (TS, p. 17); na de Nhamataca: “E adianta a lição: nenhum rio separa, antes costura os
destinos dos viventes.” (TS, p. 87).

Além disso, distinguem-se os termos proverbiais no corpo do romance, na voz dos jovens, na
narrativa de Kindzu: “Estava numa dessas situações em que nem a água é mole nem a pedra é
dura”, intertexto com “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.” (TS, p.141); no
pensamento de Muidinga, cavando o chão: “Esperto é o mar que, em vez de briga, prefere
abraçar o rocheco.” (TS, p. 88); Kindzu contando nas palavras de tia Euzinha, quando Farida
retorna à aldeia, outrora menina da terra, hoje mulher de visita: “A formiga incomoda é dentro
das roupagens” (TS, p. 79).

Segundo Ana Mafalda Leite (2003, p. 53): “Este tipo de gênero revela-se como uma
importantíssima forma de educação, de filosofia, permitindo fazer a ponte entre a sabedoria
dos mais velhos e o mundo moderno”. Os provérbios têm, assim, uma função pedagógica e
podem ser interpretados como sendo a voz do povo africano, refletindo a tradição ancestral. A
autora acrescenta que em Terra Sonâmbula a utilização de provérbios permite que o narrador
seja uma espécie de iniciador da história: “O provérbio parece ser uma das formas ideais para
preencher o papel de iniciador, que assume o escritor africano, à maneira do contador de
histórias, e ao mesmo tempo serve-lhe para caracterizar a mundividência dos mais-velhos, em
especial do mundo rural” (LEITE, 2003, p. 54).

Nos romances, o uso dos provérbios pelo autor tem a função de testemunhar e transmitir aos
mais novos, ou até mesmo a quem não conhece essas crenças, os valores e a cultura
tradicionais africanas. É relevante destacar que os ditos, as máximas, os provérbios, muito
embora sejam portugueses e moçambicanos, também fazem parte da cultura brasileira, sinais
das heranças coloniais e também dos processos interculturais.

Na obra de Mia Couto, há recorrência de alguns provérbios moçambicanos que pretendem


demonstrar o valor e a importância das máximas culturais no quotidiano da população. As
personagens proferem os ensinamentos proverbiais em situações ou acontecimentos
conflitivos. Ao trazer da memória esses conhecimentos, assumem o sentido de reflexão ou
questionamento das ações que ocorrem na narrativa, como se pode verificar nos seguintes
excertos: “A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. [...] O
sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos” (TS, p. 17), Kindzu lembrando a infância, após a
independência; “Quem não tem amigo é que viaja sem bagagem” (TS, p. 33), Kindzu recorda as
palavras do pai, ao deixar a cidade onde nascera; “A morte, afinal, é uma corda que nos
amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos” (TS, p. 121), comentário de Kindzu ao ver
um homem morto.

Ao narrar, resgata-se a memória coletiva e também a individual, e esse resgate contribui para
a construção da identidade pós-colonial. Nesse sentido, a utilização de provérbios é um
recurso de grande relevância na transmissão da cultura de tradição moçambicana. Ao mesmo
tempo, é uma valiosa ferramenta para re(criar) na narrativa as marcas da oralidade. Assim,
finaliza-se essa reflexão com as palavras de Maria Fernanda Afonso (2004, p. 120):

[...] na África, é inegável o empenho do criador literário contra todas as formas moles da
indiferença e da ataraxia, aparecendo como evidente a atitude deliberada de estabelecer um
vínculo entre a escrita e a emancipação nacional. Ao julgar-se a si próprio, ao interrogar-se
sobre o seu papel numa África em construção, o intelectual aparece como o administrador do
sentido da vida e da totalidade universal. Dir-se-ia que a omnisciência e a polivalência do grito
das sociedades tradicionais sobrevivem nos escritores, preocupados em desvelar através da
sua escrita no mundo a liberdade e a autonomia dos cidadãos. [...] a poesia e a narrativa
organizam-se em África como metáforas de países que procuram a sua identidade,
contribuindo para a instauração de um sentimento coletivo nacional.

A INVENÇÃO DA VERDADE: IDENTIDADE, HISTÓRIA E LINGUAGEM EM TERRA SONÂMBULA, DE


MIA COUTO Maria Perla Araújo Morais

Mia Couto encanta seus personagens e histórias de tal forma que tudo em seus romances se
rende à criação artística. Não há como não reconhecer a recente história de Moçambique,
bem como seu passado de colônia portuguesa nas obras desse moçambicano. Mas,
igualmente, não podemos deixar de observar a transformação poética a que essa mesma
história se submete nas mãos desse demiurgo. E dissemos demiurgo porque esse escritor
constrói tempos e espaços onde tempos e espaços estão dilacerados e silenciados.

Em Terra Sonâmbula, ao presente histórico, assolado pelo vazio da guerra, Mia Couto
sobrepõe um outro tempo, mais pleno de experiência humana. Nesse outro tempo, tradições,
ritos e lendas dialogam, numa espécie de sonho de um sonâmbulo que perambula por uma
região recolhendo os “restos” para singularizá-los. Há vários tempos dentro de um mesmo
tempo. Ao silêncio, o escritor comunga escrita e oralidade na criação de um território
linguístico que aponta para a resistência. Há vários registros dentro de um registro. À história
única como matriz da narrativa, Mia Couto articula, pelo menos, duas histórias, de igual
importância para o romance. Há várias histórias dentro da história.

Essa estratégia, a de sobrepor tempos, escritas e histórias, confere à narrativa um aspecto


excessivo através do qual o sujeito tenta se afirmar em diferentes frentes, evitando que seu
discurso mergulhe no esquecimento. Além disso, revela um sujeito complexo porque lida com
uma identidade labiríntica.
Dessa forma, nesse romance, é clara a relação entre Literatura e História, principalmente com
a história de Moçambique. Mia Couto quer resgatar a história em um momento crucial, o
período após a guerra civil moçambicana, para retirar daí, como estratégia contra o
esquecimento, o sublime ou o horror. Beatriz Sarlo nos ajuda a entender esse diálogo entre
Literatura e História:

Há textos literários (e não necessariamente realistas, aparentemente mais próximos de uma


trama referencial) que continuarão sendo entendidos em sua trabalhada e complexa relação
com a história. É possível que nem todas as chaves para sua compreensão estejam ali, mas
as indagações que abrem também precisam da história para buscar uma resposta. Deixam
suas perguntas abertas, provocam por meio delas. Um poeta, afirma Denise Levertov numa
paráfrase corrigida de Ibsen, é alguém que, de certo modo, registra as perguntas de seu
tempo. Portanto, ler pode ser a descoberta/reconhecimento dessas perguntas que fundam a
historicidade de um texto, e paradoxalmente, sua permanência. Para Levertov, o poeta não
procura repostas e sim perguntas: indaga sobre aquilo que, numa época, parece, além de
todo princípio de compreensão, a resistência que o horrível, o sinistro, o sublime, ou o
trágico opõem a outras formas do discurso e da razão. (SARLO, 1997, p.30)

Em Terra Sonâmbula, encontramos dois viajantes: o menino Muidinga à procura de seus pais e
o velho Tuahir que o acompanha. Na viagem, se refugiam em um machimbombo queimado em
uma estrada. Próximo ao carro, há vários corpos carbonizados e um que chama atenção por
ter sido morto a tiros. Não veem o rosto do homem, mas encontram próximo a ele uma mala
com vários cadernos. Os cadernos foram escritos pelo homem morto, Kindzu. O texto de Mia
Couto irá se estruturar a partir dessas duas histórias, inicialmente distintas, a dos viajantes e a
dos cadernos.

No começo da narrativa, o que temos é um ambiente de morte e de dois sobreviventes. A


leitura dos cadernos para os dois, aos poucos, traz um outro significado para o ambiente
inóspito onde estão. A estruturação do romance corrobora para isso, já que os capítulos são
produzidos aos pares: com relatos dos cadernos, em que encontramos a descrição da vida de
Kindzu, e com relatos dos dois viajantes. O passado dos cadernos de Kindzu, por isso, sempre
permeia o presente.

Muidinga e Tuahir vivem em um presente da narrativa, enquanto as histórias das cartas


remontam a um passado. Mas Mia Couto consegue presentificar o passado conferindo-lhe
uma vivência muito mais ágil e dinâmica do que a do presente. Há uma ressignificação do
passado na própria narrativa. O passado, retomado como escrita - retomado como ficção,
portanto - ressurge muito mais significativo, não só para os personagens que leem a carta, mas
para o próprio produtor dos cadernos.

Há nessa retomada uma luta contra o esquecimento, acompanhada por um desejo de que um
passado seja entendido, registrado e dialogue com o presente. Perscrutar o passado significa
entender o presente. Não só o excesso de histórias denuncia isso, mas, principalmente, a
recorrência ao relato escrito. É o próprio Kindzu, que, vivendo o seu presente, começa a
registrá- lo: “Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esferas e sofrências. Mas
as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do
presente. Acento a estória, me apago em mim. No fim destes escritos, serei de novo uma
sombra sem voz.” (COUTO, 2007, p.15)
A escrita garantirá a permanência para essa “sombra sem voz” que é Kindzu; para Muidinga,
será um remédio contra a escuridão, a desolação do seu presente, e preencherá o vazio do seu
passado:

Tuahir volta a insistir para que extinga o fogo. (...) Mas o miúdo resiste, tem medo do
escuro. A fogueirinha ajuda a vencer o medo. Ler os escritos do morto é um pretexto para ele
não enfrentar a escuridão. A decisão de Tuahir se impõe, reinam as trevas. (COUTO, 2007,
p.35)

A escrita preenche os espaços vazios, quer seja da guerra, quer seja da sombra que é Kindzu.
A escrita, local onde diferentes tempos se encontram, o de Muindinga e o de Kindzu, resgata
um tempo não-linear, nem homogêneo, nem vazio. Porque o passado contado nos escritos é
mais presente do que o próprio presente. Em alguns capítulos, chega a ser o único presente
possível. São os sonhos de Kindzu que fazem a estrada vazia, o machimbombo queimado e a
realidade desolada de Muindinga saírem do lugar. São esses mesmos sonhos que preenchem a
lacuna do passado de Muidinga de uma tal maneira que não dá para não associar ao passado e
ao presente de qualquer um que lesse os cadernos. Ou seja, os escritos retomam uma
consciência de si, tanto de Kindzu, de Tuahir, de Muidinga ou da própria nação.

A preocupação identitária permeia todo o livro, aliás como acontece com toda a obra de Mia
Couto. Moçambique é uma história a ser contada:

É aí, que Mia Couto deposita o seu grande projeto literário, o projeto de moçambicanidade,
o desvendamento da identidade de um país esquecido de si devido aos mecanismos
impostos pelo curso da História, pelo colonialismo, pela primeira e segunda guerras
coloniais, a tentativa de despertá-lo do desatento abandono de si. (TUTIKIAN, 2006, p.60)

Em um território devastado por sucessivas guerras como Moçambique, é necessário fazer as


pazes com o passado para se entender o que se é no presente. Por isso, o passado surge tão
vivo na narrativa de Terra Sonâmbula.

Numa terra submetida ao silêncio e ao divórcio com os antepassados, convocar o passado


equivale a dialogar com seu potencial espectral. O próprio Kindzu, em todos os seus
momentos de viagem, sempre é assombrado pelo espectro de seu pai. A figura do pai é
exemplar para mostrar a relação de Kindzu com a tradição: “O velho Taímo se explicou: eu não
podia alcançar nada do sonhado enquanto a sombra dele me pesasse. A mesma coisa se
passava com a nossa terra, em divórcio com os antepassados. Eu e a terra sofríamos de igual
castigo.” (COUTO, 2007, p.45)

Kindzu nunca se sentira muito integrado ao mundo a que pertencia. A sua escrita revela que,
desde pequeno, fora sempre alguém que vivera entre o mundo de seus pais - portanto, o
mundo de seus antepassados - e um mundo que se distanciava desse outro pela via crítica.
Esse trânsito faz Kindzu se sentir “perdido”: conjugar um tempo antes do tempo, o imemorial,
com esse tempo de uma modernidade é uma difícil tarefa para Kindzu. Por isso, durante toda a
sua narrativa, há um sentimento de estranheza. Ele era escolarizado, abandonando, portanto,
a cultura oral; aproximara-se de um indiano, de um monhé, Surendra Valá, visto com
preconceito pela cultura moçambicana; não acreditava naquilo que os olhos não viam:

Problema era eu. Minha família receava que eu me afastasse de meu mundo original.
Tinham seus motivos. Primeiro, era a escola. Ou antes: minha amizade com meu mestre, o
pastor Afonso. Suas lições continuavam mesmo depois da escola. Com ele aprendia outros
saberes, feitiçarias dos brancos, como chamava meu pai. Com ele ganhara esta paixão das
letras, escrevinhador de papéis como se neles pudessem despertar os tais feitiços que falava
o velho Taímo. Mas esse era um mal até desejado. Falar bem, escrever muito bem e,
sobretudo, contar ainda melhor. Eu devia receber esses expedientes para um bom futuro.
Pior, pior era Surendra Valá. Com o indiano minha alma arriscava se mulatar, em
mestiçagem de baixa qualidade. Era verdadeiro, esse risco. Muitas vezes eu me deixava
misturar nos sentimentos de Surendra, aprendiz de um novo coração. Acontecia no morrer
das tardes quando, sentados na varanda, ficávamos olhando as rédeas do poente reflectidas
nas águas do Índico. (COUTO, 2007, p.24-5)

O desconforto do ser fronteiriço faz com que Kindzu empreenda uma viagem que, na
realidade, será um convite a se pensar o que é Moçambique hoje.

Se na literatura portuguesa ouvimos esse convite em diferentes vozes, quer seja para
mergulharmos numa enigmática Portugal, quer seja no mar que era o latifúndio; se na
literatura brasileira também percebemos esse mesmo projeto no sertão rosiano, aqui Mia
Couto faz-nos mergulhar no sonho com todo o potencial de significados que essa palavra possa
ter: delírio, pesadelo, imaginação, desejo,... O clima onírico, principalmente o clima de um
sonâmbulo, por diversos motivos, é mais propício para se refletir sobre Moçambique. A cultura
fundada no mito, na lenda, na oralidade ou o passado silenciado pela colonização instituem o
sonambulismo como uma maneira exemplar de se metaforizar a nação.

Diante do conflito de tempos, Kindzu resolve deixar sua aldeia para se tornar um Naparama:
um guerreiro tradicional que lutava contra os fazedores da guerra. A narrativa de Kindzu,
portanto, revela um tempo de intolerância com os estrangeiros ou com os que são simpáticos
ao estrangeiro. Kindzu se vê como desterrado de sua terra e parte para uma viagem à procura
de uma temporalidade onde tempos se conjuguem e, por isso, se revelem. É hora de Kindzu ou
de Moçambique encontrar os diferentes tempos que os compõem.

A opção pela localidade da cultura, algo que definitivamente faz parte do projeto literário de
Mia Couto, revela-nos as complexas operações de identificação cultural dentro do território da
Nação. Por isso, são instrumentos fundamentais para se entender os jogos de poder que giram
em torno da narrativa nacional. Hommi Bhabha nos chama atenção para os tempos
suplementares que compõem essa narrativa:

O discurso do nacionalismo não é meu interesse principal. De certa forma é em oposição à


certeza histórica e à natureza estável do termo que procuro escrever sobre a nação ocidental
como uma forma obscura e ubíqua de se viver a localidade da cultura. Essa localidade está
mais em torno da temporalidade do que sobre a historicidade: uma forma de vida que é
mais complexa que “comunidade”, mais simbólica que “sociedade”, mas conotativa que
“país”, menos patriótica que patriae, mais retórica que a razão do Estado, mais mitológica
do a ideologia, menos homogênea que a hegemonia, menos centrada que o cidadão, mais
coletiva que o “sujeito”, (...) mais híbrida na articulação de diferenças e identificações
culturais do que pode ser representado em qualquer estruturação hierárquica ou binária do
antagonismo social. (BHABHA, 1998, p.199)

Dessa forma, investigando o local da cultura, podemos visualizar uma forma mais significativa
e mais complexa do tempo histórico do que aquele que geralmente faz parte da narrativa
oficial da nação. Qual, então, a herança de Kindzu? Como fazê-la significativa no presente?
Qual história e identificação são possíveis para um sujeito que vive entre dois mundos? Kindzu
prefere resistir. Mas sua resistência se localiza na construção de um “continente” dentro de
um continente, ou seja, na construção de uma identidade labiríntica.

A estranheza de viver entre dois mundos deve ser superada e encarada como especificidade,
porque, como diz um feiticeiro nos sonhos de Kindzu,

(...) esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós.
Agora, a arma é a vossa única alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os sonhos são
vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de
estranhos. (COUTO, 2007, p.201)

Nessa viagem à procura de si, é importante o encontro com alguns personagens enigmáticos e
cuja existência parece se aliar ao terreno do espectral, como Farida. Assim como Kindzu, Farida
circula por dois mundos: desde pequena, fora separada de sua família e passara a viver com
uma família de portugueses.

Pensava nas semelhanças entre mim e Farida. Entendia o que me unia àquela mulher: nós
dois estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da
nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só
sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho no nosso futuro. Culpa da
Missão, culpa do pastor Alonso, de Virgínia, de Surendra. E sobretudo culpa nossa. Ambos
queríamos partir. Ela queria sair para um novo mundo, eu queria desembarcar numa outra
vida. Farida queria sair da África, eu queria encontrar um outro continente dentro da África.
Mas uma diferença nos marcava: eu não tinha a força que ela ainda guardava. Não seria
nunca capaz de me retirar, virar costas. Eu tinha a doença da baleia que morre na praia, com
olhos postos no mar. (COUTO, 2007, p.92- 3)

Farida tinha uma irmã gêmea e, de acordo com a tradição, as crianças deveriam ser
sacrificadas. Mas sua mãe não lhe dá esse destino; prefere, antes, fingir a morte da irmã de
Farida (na realidade, ele é dada a uma família que não poderia ter filhos) e Farida, depois da
morte da mãe, vai morar com um casal de portugueses. Nessa casa, Farida passa a ser
assediada pelo português, um importante senhor de terras da região e, mesmo fugindo de
casa, não consegue evitar a violência sexual e acaba grávida de um menino. No final da
narrativa, acabamos descobrindo que esse menino, fruto de encontro violento, entre Farida e
Romão, é o próprio Muidinga.

Metáfora do encontro violento entre a terra e Portugal, Muidinga é um errante, um andarilho,


que, assim como Kindzu, tenta entender quem é nessa viagem. Todos os caminhos, até mesmo
na viagem de Muidinga, a qual, na realidade, é uma fuga da guerra, levam a consciência de si.

Descobrir-se é um imperativo em Moçambique. Não há outra história a escrever. Descobrir-se,


às vezes, equivale saber que faz parte de um pesadelo. Mesmo aqueles que não sabem do
pesadelo já estão fazendo parte dele. Nesse novo continente dentro do continente é preciso
saber lidar com esse mundo de pesadelo também. Escamoteá-lo é não entender a terra
sonâmbula.

Assim, todos, um a um, vão entendendo como pertencem à terra sonâmbula ao longo da
narrativa. Às vezes para mergulhar em um pesadelo pior, como Surendra; outros para
entender como pertencem ao pesadelo, o caso de Muidinga, e outros para pertencerem ao
mundo dos sonhos, como Tuahir e Kindzu, no final da narrativa.
Nesse intercâmbio de sonho e realidade, nesse sonambulismo que caracteriza a terra, Mia
Couto vai criando uma identidade em vertigem, em que todos os personagens e histórias se
complementam para fazerem parte da mesma história. Algo que, num primeiro momento,
poderia ser visto como uma qualidade intrínseca do romance, enquanto gênero, ou como uma
coincidência fortuita, no texto de Mia Couto ganha outro significado. Fazer parte das mesmas
histórias é uma estratégia do romance do escritor moçambicano para produzir uma narrativa
que é o tecido das várias ruínas que encontramos no país. Todas fazem parte da história de
qualquer um.

Esse entrecruzamento de histórias também se faz presente no entrecruzamento dos


personagens e de instâncias aos pares na narrativa. De acordo com Inocência Mata, Mia Couto
em seus romances atualiza através de “constantes polarizações complementares (nunca
excludente): tradição/modernidade, oratura/escritura, voz/letra, velho/novo, campo/cidade,
região/país/, local/global, mesmo/outro, e suas mestiças combinações” e acaba construindo
uma “verdadeira sinfonia do diálogo entre diferentes” (MATA apud FONSECA e CURY, 2008,
p.9)

Mas essa sinfonia do “diálogo entre diferentes” vai muito além da questão temática. Sua
repercussão é estrutural, propiciando ao texto de Mia Couto um diálogo com o gênero
romance. É o que acontece, por exemplo, quando o escritor trabalha questões de oralidade e
escrita. A diferença entre as duas instâncias é pontual para o nascimento do romance. Para
Walter Benjamin:

A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta
da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de
prosa- contos de fadas, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral
nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da
experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora
as coisas narradas á experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do
romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas
preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá- los. (BENJAMIN,
1985, p.201)

O crítico enfatiza que a diferença entre as narrativas orais e os romances modernos estaria na
segregação do romancista. Como segregado, não fala nem é escutado exemplarmente. Nas
narrativas orais, pelo contrário, as experiências são compartilhadas pela comunidade e o que
se conta faz parte de um repertório cultural intercambiável. As professoras Maria Nazareth
Soares Fonseca e Maria Zilda Ferreira Cury acreditam que Mia Couto consegue trabalhar o
romance a partir das narrativas orais, por isso estaria se apropriando de um gênero e
atualizando-o:

(...) a produção literária de Mia Couto, adotando o romance, gênero de origem claramente
européia, consegue fazer dele uma expressão africana. O diálogo com diferentes expressões
do universo da oralidade o aproxima da tradição de contar histórias, dos rituais de cantos e
falas, dos mitos e das lendas. (FONSECA e CURY, 2008, p.12)

De fato, em Terra Sonâmbula, com muita propriedade, se tecem histórias que não estão a
serviço do romance, enquanto gênero. Quando observamos a história de Siqueleto, a história
de Farida, a história do pai e da família de Kindzu, enfim as diversas histórias dos personagens,
constatamos que o escritor não está querendo incorporar “as coisas narradas” às experiências
de seus ouvintes. Não é esse tipo de identificação que ele pretende; é, antes, uma troca de
experiência proporcionada pelo universo da oralidade ao qual pertencem essas histórias.

Existe, entretanto, um aspecto que apontamos como principal para essa apropriação do
gênero romance por parte de Mia Couto. Walter Benjamin esclarece que a arte de narrar
estaria em vias de extinção, pois “é como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos
parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.” (BENJAMIN, 1985,
p.197) A privação seria vaticinada pelo fluxo de informações incessante, as quais nunca
chegam a ser nem se baseiam na experiência. Depois da guerra mundial, continua Benjamin,
observou-se que os soldados voltavam mais pobres da experiência do campo de batalhas. Algo
normal porque “nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a
experiência estratégias da guerra de trincheiras.” (BENJAMIN, 1985, p.198)

A guerra esvazia as experiências comunicáveis por vários motivos: quer seja pela mudança
drástica que impõe ao ambiente, quer pela mudança que impõe ao indivíduo. Como resultado
de embates políticos e econômicos, a guerra impõe limites extremos, de onde o homem só
pode sair mudo.

Em Mia Couto, é também de dentro de uma situação extrema que os personagens falam.
Depois da revolução portuguesa de 1974, Moçambique proclama sua independência no ano
seguinte, mas mergulha no clima de guerrilhas, a chamada segunda guerra colonial. Terra
sonâmbula se passa na década de 80, em que “a seca e a guerra civil provocam a fome em
grande escala.” (TUTIKIAN, 2006, p. 63).

Os personagens fazem alusão ao ambiente colonial, principalmente na figura do português


Romão Pinto. Seu antigo empregado, Quintino, mesmo com o patrão já morto, não consegue
se livrar da subserviência. O rapaz resolve ajudar Kindzu a chegar ao campo de refugiados,
lugar onde provavelmente o filho de Farida poderia estar, porque: “Afinal ele também queria
fugir. Um fantasma lhe perseguia, confessou. Um fantasma? Sim, o espírito de seu antigo
patrão colonial”. (COUTO, 2007, p.143)

A independência e o que se seguiu são representados pelo português Romão Pinto. O narrador
nos fala:

Aconteceu quando Quintino decidiu visitar a velha casa onde trabalhara como empregado
doméstico. Ia ver se ainda sobravam os valiosos bens dos patrões. Não usaria a palavra
roubar. Talvez nacionalizar. Nacionalizar uns bens a favor do povo original. Entrou na antiga
casa, violando portas e janelas uma campa falecida. Porque ali mesmo, no chão da cave,
tinha sido enterrado Romão Pinto, chefe de família, dono da casa e seu patrão. Falecera nos
conturbados tempos da Independência, tempo que calamitaram a vida do português.
(COUTO, 2007, p.143)

Outras passagens aludem ao passado recente de Moçambique, mas o que nos interessa
destacar é que, da situação extrema, que é a guerra, a narrativa de Kindzu, de Muidinga, de
Tuahir, de Farida consegue ser intercâmbio de experiências. Por ainda receber os influxos da
oralidade, todos mergulhamos no sonambulismo da terra para apreciarmos como o gênero
romance pode dialogar com a experiência. Todos, um a um, fazem parte do mesmo sonho, da
mesma história exemplar.

Terra Sonâmbula é um exercício de resistência e de existência. Primeiro pela atualização do


gênero romance, ao fazer do registro oral o principal influxo do texto; depois porque institui
uma realidade em que o insólito é um acontecimento natural e, por fim, porque impõe à
língua outra sintaxe.

O jogo inusitado entre essas duas instâncias, a oralidade e a escrita, cria palavras que apontam
para realidades alternativas ao presente histórico ou pensamentos que subvertem a realidade
pragmática. Expressões como “Seu dito, nosso feito”, “ontem, quando eu morrer”; palavras
como “palavraram”, “brincriações”, “desexistir”, “sonhambulante” e outras mostram como
Mia Couto subverte a lógica do já dito, dialogando com o gênero romance também por esse
aspecto ao aproximá-lo da poesia.

A escrita das cartas, ou seja, de um gênero dentro de outro gênero, aponta para urgência
comunicativa dessa terra sonâmbula. O excesso de relatos se deve, principalmente, pela
ausência deles no presente histórico. Silenciada pelos mais diversos mecanismos do poder,
quer seja o poder colonial, quer seja o ocasionado pela guerra civil, Moçambique é um
território cuja história oficial deve ser desconstruída e suplantanda por esses diferentes
relatos. É como acontece com Muidinga: ele só começa entender quem é depois do seu
encontro com as cartas.

Quando Tuahir e Muidinga encontram as cartas de Kindzu, é o menino que tem curiosidade
em lê-las. Até aquele momento, o menino encontrava-se sem saber ao certo quem era e qual
era o seu nome verdadeiro. Ali, o único que poderia lhe oferecer respostas era Tuahir, mas
eram respostas vagas e, por vezes, inventadas, para que o menino não permanecesse na
dúvida, na inquirição. Invenções que, num mundo por criar, poderiam ser verdade. O primeiro
entendimento que as cartas despertam no menino é o fato de ele saber ler. Depois,
percebendo as cores do mundo de Kindzu, tenta reproduzi-las em seu mundo e percebe que
sabe escrever:

As colorações que devia haver na vila de Kindzu antes da guerra desbotar as esperanças?!
Quando é que cores voltariam a florir, a terra arco-iriscando? Então ele com um pequeno
pau rabisca na poeira do chão: “AZUL”. Fica a olhar o desenho, com a cabeça inclinada sobre
o ombro. Afinal, ele também sabia escrever? Averiguou as mãos quase com medo. Que
pessoa estava em si e lhe ia chegando com o tempo? Esse outro gostaria dele? Chamar-se-ia
Muidinga? Ou teria outro nome, desses assimilados, de usar em documento? Mais uma vez
contempla a palavra escrita na estrada. Ao lado, volta a escrevinhar. Lhe vem uma outra
palavra, sem cuidar na escolha: “LUZ”. Dá um passo atrás e examina a obra. Então, pensa:
“a cor azul tem o nome certo. Porque tem as iguais letras da palavra ‘luz’, fosse o seu
feminino às avessas.” (COUTO, 2007, p.37)

A passagem, retirada do capítulo “Letras dos sonhos”, mostra um tratamento singular com a
escrita e com a palavra. A escrita e palavra, no ambiente de Muidinga, criam uma realidade. A
palavra não nomeia simplesmente, mas torna-se a própria coisa. O que se cria com a palavra
remete a um tempo em que Muidinga pode ser sujeito da história, porque a cria. Nessa
invenção, o menino questiona se gostará de um Muidinga que lhe chegará por meio da escrita.
Pergunta se, até mesmo, esse Muidinga que chega tem outro nome.

“Muidinga” é o nome que o velho Tuahir lhe dá. O nome pertencia ao filho mais velho de
Tuahir, “ido e esvaído nas minas de Rand.” (COUTO, 2007, p. 54) Nome assimilado, nome
dado. Provavelmente não era seu nome, porque para o miúdo o nome nascia com a própria
coisa, o nome era a própria coisa.
A vivência do nome é diversa àquela que simplesmente nomeia. Aqui, resgata-se uma criação
da coisa com o próprio nome, porque se quer criar uma realidade, não simplesmente nomeá-
la, registrá-la ou entendê-la. Episódio que ratifica essa vivência do nome é o capítulo “Lição de
Siqueleto.” Siqueleto é um personagem que aparece na história de Muidinga e Tuahir, quando
o velho resolve enganar o menino e propõe andarem sem, na realidade, saírem do lugar. Os
dois acabam caindo em uma armadilha feita por Siqueleto, único de seu grupo que resistia à
fome e à guerra. Os outros tinham partido. Siqueleto ficara para “semear” gente para permitir
a existência da sua aldeia. Quando Siqueleto notou que Muidinga sabia escrever, pediu, em
sua língua, que o menino escrevesse seu nome em uma árvore, porque:

Ele queria aquela árvore de parteira de outros Siqueletos, em fecundação de si. Embevecido,
o velho passava os dedos pela casca da árvore. E ele diz: -Agora podem-se ir embora. A
aldeia vai continuar, já meu nome está no sangue da árvore. (COUTO, 2007, p.69)

Kindzu se filia à linguagem antes do nome: “Desde a morte de meus pais me derivo sozinho,
órfão como uma onda, irmão das coisas sem nome” (COUTO, 2007, p.22) Portanto, essa
filiação antes das coisas terem nome é a filiação ao Verbo: de onde tudo foi criado.

En Dios el nombre es creador porque es verbo, y el verbo de Dios, solo en el nombre, por ser
íntimamente idêntico al verbo creador, es el puro médio del conocimiento. Es decir que Dios
ha hecho las cosas cognoscibles en sus nombres. Pero el hombre las nomina a medida del
conocimiento. (BENJAMIN, 1970, p.146)

Mia Couto, ao coletar as ruínas das histórias existentes, recolhe-as para brilharem mais uma
vez, com todo o fulgor de quem, na realidade, está construindo um mundo. No final do
romance, Kindzu vê seus escritos nas mãos de Muidinga, que, na realidade, era Gaspar, filho
de Farida. Percebe, então, que suas letras foram capazes de criar a própria terra sonâmbula:

Então, com o peito sufocado, chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por
uma segunda vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não
do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por
uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão
transformando em páginas da terra. (COUTO, 2007, p.204)

O mergulho em vertigem nos próprios pesadelos, na realidade espectral que caracteriza a terra
propiciou-nos observar que a invenção que recebe influxos da oralidade, do sonho, do verbo,
em um mundo por criar, muitas vezes, é a única realidade possível. Moçambique é uma
história a ser escrita, agora com tempos e espaços diversos que instituem uma identidade de
complexas trocas culturais.

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