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Jorge Caê Rodrigues

IMPRESSÕES DE IDENTIDADE:
Um olhar sobre a imprensa gay no Brasil

Editora da Universidade Federal Fluminense


Niterói, RJ – 2009
Copyright © 2010 Jorge Caê Rodrigues
Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense - Rua
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É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.
Normalização: Caroline Brito de Oliveira
Edição de texto: Maria das Graças C. L. L. de Carvalho
Revisão: Icléia FreixinhoIcléia Freixinho e Tatiane de Andr
Capa: Samuel Otaviano e Jorge Caê Rodrigues (sobre capa dos jornais Nós por Exemplo e ENT&)
Editoração eletrônica: Marcos Antonio de Jesus
Projeto gráfico: José Luiz Stalleiken Martins
Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo
Conversão para ebook: Freitas Bastos
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação - CIP

R 696
Rodrigues, Jorge Caê
Impressões de Identidade: um olhar sobre a imprensa gay no Brasil / Jorge Caê Rodrigues —
Niterói: EdUFF, 2010.
190 p. : il. ; 23 cm. — (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)
Bibliografia. p. 185
ISBN 978-85-228-0544-0
1. Imprensa 2. Cultura I. Título II. Série
CDD 070.48

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


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Heraldo Silva da Costa Mattos
Humberto Fernandes Machado
Juarez Duayer
Livia Reis
Luiz Sérgio de Oliveira
Marco Antonio Sloboda Cortez
Renato de Souza Bravo
Silvia Maria Baeta Cavalcanti
Tania de Vasconcellos
SUMÁRIO
Capa
Projeto e-books
Folha de Rosto
Créditos
Dedicatória
Agradecimentos
Prefácio
Urgência e ousadia
Introdução
1. A literatura comparada e o design gráfico como espaço
plural
2. Os leitores e suas diferentes identidades
Capítulo I - Primórdios da imprensa gay nos Estados Unidos e no
Brasil
1.1 A imprensa gay nos Estados Unidos
Vector
Advocate
1.2 A Imprensa No Brasil
1.3 A imprensa nanica
1.4 Cultura e civilização, elas que se danem, ou não10
1.4 Surge uma imprensa gay no Brasil
Capítulo II - O primeiro lampião é aceso
2.1 Nasce uma cultura gay organizada (?)
2.2 Um lampião na esquina
O número zero do Lampião
De cabo a rabo
Pelas esquinas do jornal: a linguagem verbal
A primeira impressão é a que fica
O contorno do Lampião: a linguagem gráfica
As capas
2.3 Acabou o gás. O Lampião se apagou
Capítulo III - O prazer tornou-se risco de vida
3.1 Nós, por Exemplo
O número 1
Nós somos apenas vozes
Nós somos apenas nós
3.2 Codinome Beija-Flor
3.3 Um novo Entendido
Capítulo IV - Gran luxo super
4.1 We Are Queer, We Are Here
4.2 Uma Revista Sui Generis
Força na patolada
Ousadia indispensável
4.3 ↑←↓→ Ou Vortex
4.4 Ver mais longe
4.5 Arte Final
Conclusão
Posfácio
Referências
Ao movimento homossexual brasileiro, e especialmente ao Grupo Arco-Íris de
Conscientização Homossexual.
E, por tudo, ao John McCarthy.
AGRADECIMENTOS
Este livro não seria possível sem a colaboração de Nelson Feitosa,
Sylvio de Oliveira, Dolores Rodrigues, Adão Iturrusgarai, André Villas-
Boas, Felipe Taborda e Antonio Moreira, que gentilmente me concederam
um pouco do seu tempo para as minhas entrevistas. Muito obrigado.
Às minhas irmãs, Laide, Malu e Calu, por tudo.
Um muito obrigado especial ao professor James Green, que orientou
meus caminhos durante minha estadia na Brown University. Muito
obrigado mesmo!
A Jim Van Buskirk, diretor do Centro Gay e Lésbico da Biblioteca
Pública de San Francisco.
A todo o staff do One Archive, em Los Angeles, principalmente a
Ashley.
A Adalia Selket, que me hospedou e aturou meu banzo durante meu
tempo em San Francisco.
Ao meu amigo Luiz Carlos Freitas, que leu os originais e deu dicas
excelentes.
Ao meu querido sobrinho Samuel Otaviano, que contribuiu na
confecção da capa.
Ao LabCult da Esdi/UERJ.
Ao meu querido John McCarthy, por ter me ajudado muito a chegar até
aqui.
E gostaria de fazer um agradecimento especial ao meu amigo Aldo
Victorio, pela confiança e lealdade de tantos anos. Ao professor Luiz
Antonio Luzio Coelho, que muito me ajudou na minha carreira acadêmica
e, claro, ao professor Mário César Lugarinho, meu orientador, que com sua
generosidade dirigiu horas para ir até Jacarepaguá nos meus momentos de
desespero, e que soube com sua simpatia e carinho me acolher e me
incentivar quando, por muitas vezes, me senti inseguro no Instituto de
Letras. Muito obrigado, mil vezes!
E, por último, à Capes, pelo apoio financeiro durante toda a pesquisa
que resultou neste livro, e pela oportunidade de realizar parte dela nos
Estados Unidos.
PREFÁCIO
Urgência e ousadia
A pesquisa de Jorge Caê Rodrigues é resposta a um desafio a ele
lançado por mim, na ocasião de seu ingresso no curso de doutorado do
Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, em 2004. Diante da sua ansiedade de pesquisa, perguntei-lhe
sobre a propriedade de tal investigação no âmbito da área de letras e
linguística. Caê foi então ambicioso e sagaz, atencioso e meticuloso,
perspicaz e astucioso. Mais do que sua tese de doutoramento, Impressões de
identidade é resposta urgente aos tempos em que vivemos.
A cada dia, mais e mais brasileiros fazem de suas orientações sexuais
meio e fim da construção de suas identidades sociais e, diante desse fato, o
Estado e os governos, através de suas instituições, são inquiridos por
demandas legítimas de indivíduos e de organizações sociais que buscam a
promoção dos direitos civis dessa parcela significativa da sociedade.
Das inúmeras instituições sociais brasileiras, a Universidade foi, durante
muito tempo e por inúmeros motivos, uma das mais silenciosas e inativas,
já que mantinha em condições restritas e restritivas qualquer pesquisa
acerca do tema da orientação sexual. É preciso notar que, se num primeiro
momento, foram as ciências médicas que se dedicaram mais detidamente ao
assunto, foi a psicologia, ao lado da antropologia, que deu andamento à
pesquisa do tema para além dos modelos normativos que balizaram a
pesquisa científica no Brasil até, pelo menos, o fim da década de 1970.
Notórias ficaram as pesquisas de Néstor Perlongher (Unicamp, 1986), sobre
a prostituição masculina em São Paulo, ou de Hélio R. S. Silva (UFRJ,
1992, iniciada em 1975), sobre travestis do Rio de Janeiro, ambas
antecedidas pelos trabalhos seminais de Luiz Mott, na década de 1980.
Durante a última década do século XX, quando o paradigma científico
das Humanidades já se encontrava plenamente em crise, pondo de lado
definitivamente as condições intrínsecas do objeto pesquisado, podemos
encontrar investigações mais amplas que buscavam verificar o
entrelaçamento dos fenômenos culturais e sociais que envolvem a
orientação sexual. A década se iniciou com a publicação da pesquisa de
Jurandir Freire Costa (UERJ, 1992), que lançaria novas luzes sobre o tema,
na medida em que fazia a revisão do estatuto médico e psicanalítico da
homossexualidade masculina pela via histórica, literária e filosófica, a que
se seguiram pesquisas como as de Marcelo S. Bessa (1996) ou de Fernando
de Sousa Rocha (1993), ambas desenvolvidas na PUC do Rio de Janeiro.
Apenas no apagar das luzes do século XX é que se pode dizer que o
tema ganha uma nova ênfase, já que se começava a articular redes mais
dinâmicas de intercâmbio de pesquisas e pesquisadores. A vulgarização de
novas tecnologias de informação propiciou o acesso do pesquisador
brasileiro a novas linhas de pesquisa que se organizavam, principalmente
nas universidades da América do Norte, e, consequentemente, a uma vasta
bibliografia internacional. O contato foi fecundo e, na universidade
brasileira, deu origem a várias pesquisas em torno do tema. A grande
demanda da comunidade científica nacional levou, em junho de 2001, na
Universidade Federal Fluminense, à fundação da Associação Brasileira de
Estudos da Homocultura, que pretende reunir, em seus congressos bienais,
pesquisadores e membros da sociedade civil que lidam, de alguma forma,
com os temas da orientação e da diversidade sexual.
Vale notar que foi necessária a confecção do neologismo “homocultura”
para designar os fenômenos sociais e culturais concernentes aos indivíduos
e grupos sociais que se identificam a partir de uma orientação sexual
diversa, visto que se verificava que o campo de abrangência das pesquisas
daquela comunidade científica era totalmente novo diante dos paradigmas
vigentes naquele momento. Ainda controverso, o termo busca uma
significação ampla que sustente o campo de investigação propício, desde as
manifestações individuais às coletivas, instituindo novas identidades e, por
conseguinte, novos sujeitos.
É a esta urgência que a pesquisa de Jorge Caê responde.
Muito se discute acerca da formulação de um sujeito, capaz de chamar
para si o sentido que institui a Ciência, que dela não seja apenas o objeto de
análise, mas também aquele que, a partir do objeto, seja capaz de gerar um
saber sobre si, tornando-se objeto de si mesmo. É com esta perspectiva que
podemos introduzir Impressões de identidade.
Impressões de identidade é o resultado de uma investigação vigorosa
acerca da formação da imprensa gay no Brasil, entre os anos de 1978 e
1995, em que se levam em consideração, não apenas em paralelo, mas
como parte constituinte do processo, os movimentos sociais, políticos,
culturais e históricos que envolveram os periódicos em questão e a própria
formação da identidade gay contemporânea no Brasil. Assinala-se que a
pesquisa abrange todo o material presente nos periódicos analisados, isto é,
desde o conteúdo dos artigos, seções e colunas diversas até o projeto
gráfico, conformando uma análise precisa da aliança entre o conteúdo e as
opções gráficas e estéticas de cada jornal ou revista, o que revela, num
quadro maior, as estratégias necessárias de apelo ao leitor.
Partindo do jornal O lampião da esquina, 1978-1981, e chegando à
publicação da revista Sui generis, 1995-2000, Caê traça o mapa da memória
mais recente do que se denomina, genericamente, comunidade gay
brasileira. Mapa que serve tanto ao pesquisador, em busca de informações e
análises mais precisas para além da mera descrição, quanto ao leitor menos
comprometido com as atividades acadêmicas. É como mapa da memória e
carta de navegação da história recente que a pesquisa de Caê ganha seu
maior relevo – posto que a identidade gay, no fim da década de 1970, é
completamente diversa daquela que se encontra 10, 20 ou 30 anos depois,
seja nas páginas dos jornais e revistas brasileiros, identificados com o
público gay, seja nas ruas, como indivíduos, seja nas formas de
representações artísticas ou da própria indústria cultural. Os periódicos são
imagem e corpo desta comunidade, são formados por suas demandas e
formam as suas demandas. Curiosas são as cartas trocadas com as redações
em cada momento histórico diverso, porque revelam essas demandas –
afinal, a pergunta inicial que os editores de O lampião devem ter feito a si
mesmos – “o que se quer ler num jornal voltado aos homossexuais?” – seria
por eles mesmos respondida. Inventar esse leitor de O lampião, que tinha
circulação nacional, era também criar esse homossexual brasileiro que
emergia do armário durante o fim da Ditadura Militar. Talvez por isso as
tantas linhas editoriais tentadas pelo jornal. De igual maneira, os pequenos
periódicos mais regionais, como o Nós, por exemplo, que circulou no Rio
de Janeiro entre as décadas de 1980 e 1990, tenham feito a mesma pergunta.
E, principalmente, o projeto mais bem acabado, mais ambicioso e mais
duradouro, a revista Sui generis, foi o que mais fundo buscou a resposta, na
medida em que construiu um leitor gay brasileiro a que a imprensa gay
contemporânea, impressa ou digital, decididamente, muito deve.
Mas o trabalho de Caê deixa-nos questões que ainda urgem ser
respondidas, porque a memória por ele palmilhada nos indica isso. O
sentido político de O lampião da esquina, diluído no glamour e no erotismo
das páginas da imprensa gay contemporânea, obriga-nos a nos perguntar
sobre o sentido que se vai imprimindo ano a ano à história da comunidade
gay brasileira: construímos a maior passeata gay do mundo, mas os seus
efeitos são invisíveis no dia seguinte; preferimos a festa ao massacrante
cotidiano da luta pela emancipação social e política? Pensamos na
visibilidade da comunidade, festiva e celebrativa, mas deixamos de lado a
visibilidade do indivíduo que é o seu direito incontornável de cidadania?
Construímos um dos mais ambiciosos programas de prevenção e tratamento
da AIDS no mundo, mas deixamos de lado a memória e a reflexão acerca
da epidemia que já atingiu quatro gerações de homossexuais brasileiros?
Onde, enfim, a ousadia pelo engajamento? A pesquisa de Jorge Caê é,
enfim, a ousada e necessária resposta, justiça à memória daqueles que,
corajosamente, imprimiram suas identidades em nossa história mais
recente.
Mário César Lugarinho
Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO
Resposta
Maysa
Ninguém pode calar dentro em mim
Essa chama que não vai passar
É mais forte que eu
E não quero dela me afastar
Eu não posso explicar como foi
E como ela veio
E só digo o que penso
Só faço o que gosto
E aquilo que creio
Se alguém não quiser entender
E falar, pois que fale
Eu não vou me importar com a maldade de quem nada sabe
E se alguém interessa saber
Sou bem feliz assim
Muito mais do que quem já falou ou vai falar de mim
Em 1982 tive a oportunidade de assistir à Parada do Orgulho Gay da
cidade de San Francisco. Era minha primeira viagem àquela cidade e para
fora do Brasil. Lembro-me que um sentimento de alegria misturado a uma
euforia me deixaram perplexo perante o que via e ouvia. Era uma liberdade
que eu não conhecia. Milhares de gays e lésbicas, respeitando suas
diferenças, marchavam com um orgulho que eu me esforçava para
compreender.
Anos depois, em 1995, eu fiz parte da organização da XVII Conferência
Internacional de Gays e Lésbicas no Rio de Janeiro. Centenas de gays e
lésbicas de várias partes do Brasil e do mundo se reuniram durante oito dias
em um hotel de Copacabana para discutir suas formas e estratégias de luta
pela igualdade de direitos em diferentes partes do mundo. Na solenidade de
abertura da conferência, num salão tomado de homens e mulheres de
diferentes gerações por todos os cantos, a mesma emoção que tinha
conhecido 13 anos antes envolvia-me novamente. Só que, naquele
momento, liberdade e orgulho eram palavras que já conhecia e
compreendia.
Em 2003, entrei para o programa de Pós-graduação do Instituto de
Letras da Universidade Federal Fluminense, no qual comecei a pesquisar
um assunto que me é muito próximo – os periódicos da imprensa gay.
Em 2005, voltei à Califórnia, desta vez em função da minha bolsa
sanduíche concedida pela Capes. Durante minha estadia na Brown
University, meu orientador, professor James Green, aconselhou-me a visitar
e a pesquisar em dois locais muito importantes para a história do
movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) americano: a
Biblioteca Pública de San Francisco, onde se encontra o The James C.
Hormel Gay and Lesbian Center; e o One National Gay and Lesbian
Archives, localizado em Los Angeles e afiliado à University of Southern
California.
O One tem o maior acervo de publicações GLBT. Lá entrei em contato
com um surpreendente volume de informações sobre a história gay.
Centenas de publicações, que vêm sendo editadas ao longo das últimas
cinco décadas, abordam os mais variados conteúdos. O arquivo guarda
desde trabalhos acadêmicos até publicações de cunho pornográfico.
Los Angeles, e mais precisamente West Hollywood (uma pequena
cidade dentro da grande Los Angeles), é uma espécie de “Oz” para a
comunidade gay. Assim como em San Francisco, Amsterdan e outras
cidades do mundo, em West Hollywood os gays e as lésbicas desfrutam de
benefícios que em outras partes ainda estão brigando para conseguir.
A pluralidade de identidades que circulam pela cidade pode ser vista nas
várias capas das publicações estampadas numa loja do Santa Monica
Boulevard (ver figura 1). Durante o ano de 2005, existiam nos Estados
Unidos mais de 55 diferentes periódicos para a comunidade LGBT que são
vendidos em bancas. Além destes, existe um outro tipo de publicação: os
periódicos que são distribuídos gratuitamente. Estas publicações são
encontradas em cafés, bares e em alguns restaurantes. O grande número de
anunciantes faz com que a publicação sobreviva sem precisar do assinante
ou do comprador esporádico. Já encontramos no Rio de Janeiro alguns
jornais feitos desta maneira. Como lá fora, os jornais aqui são distribuídos
em pontos específicos frequentados por homossexuais.
Figura 1 - Stand de revistas GLBT de uma loja no Santa Monica Boulevard, Los Angeles

No Brasil e no Rio não temos uma imprensa gay como a dos Estados
Unidos. Apesar de já ter mais de 30 anos o lançamento da primeira
publicação gay brasileira, o investimento nesta área é ainda muito parco.
Compreendo como imprensa gay as publicações periódicas que orientam
sua linguagem verbal, assim como a linguagem gráfica, para leitores que se
identificam como homossexuais. Assim como uma “imprensa afro”
congregaria publicações dirigidas às pessoas que se identificam como
afrodescendentes.
Este livro é o resultado da minha pesquisa e de um enredamento de
vários interesses meus, tanto no plano intelectual, como no afetivo. Minha
formação e atuação profissional é de designer, e no campo do design tenho
especial interesse pelos objetos produzidos pela cultura de massa. Minha
formação e atuação cidadã, por outro lado, me levou a participar do início
do movimento homossexual brasileiro. Fui integrante do Grupo Somos-Rio
e do Grupo Auê. Estive presente no primeiro Encontro Nacional de Grupos
Gays e Lésbicas, que aconteceu em São Paulo, em 1980, e fui um dos
fundadores do Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual, grupo
que desde 1993 trabalha pelos direitos de gays e lésbicas. Desta forma,
sinto-me à vontade para investigar os discursos apresentados nas
publicações dirigidas ao público homossexual na, por vezes, tímida, mas
expressiva, imprensa gay carioca.
1. A literatura comparada e o design gráfico como espaço
plural
Karl Erik Schollhammer nos diz que:
O campo da Literatura comparativa é um “campo expandido” que continua abrindo-se para
outras áreas, outras disciplinas e para um leque de temas não estritamente literários,
recolhidos às vezes sob o rótulo de “Estudos Culturais”, que cruzam as fronteiras
tradicionais entre as ciências humanas, sociais e exatas (2001: 28).
A partir dessa afirmação, pergunto: como situar o design nesse campo?
Eu acredito que a própria natureza do objeto propicia esta inserção. Um
periódico é feito de textos e imagens – elementos textuais e não textuais –
que obedecem a um ordenamento estético-formal determinado pelo
designer. O design gráfico cumpre, assim, seu papel de promover uma
espécie de interlocução, um diálogo entre o objeto e o usuário. Gustavo
Bomfim nos diz que “o design é uma práxis que confirma ou questiona a
cultura de uma determinada sociedade” (2000: 150). Impossível negar que
vivemos hoje numa sociedade cada vez mais dominada pela cultura da
imagem. Nos diferentes aspectos da “aldeia global”, a cultura visual é de
extrema importância. Conforme afirma Maurizio Vitta:
O objeto, no nosso sistema, é, ao mesmo tempo, um signo de identificação social, um
instrumento de comunicação, uma imagem para uso, um simulacro opressivo, um fetiche e
uma ferramenta. O design só pode ser um instrumento de análise social, uma área de
intervenção na vida cotidiana, uma linguagem, uma moda, uma teoria da forma, um
espetáculo, um fetichismo, uma mercadoria. (Vitta, 1989: 35)
E podemos ver os periódicos como um dos objetos do mundo da cultura
material que sintetizam todos esses atributos. Angela McRobbie, analisando
Jackie, uma revista para adolescentes femininas dos anos 1970, diz que a
revista “[...] é um sistema de mensagens, um sistema de significados e
portador de uma certa ideologia, a qual lida com a construção da
feminilidade adolescente”. A revista, segundo a autora, “opera para
conquistar e moldar o consentimento dos leitores para com um determinado
conjunto de valores” (McRobbie, 1991: 82).
Acompanho o pensamento de McRobbie e estendo sua afirmação para
as revistas segmentadas para o público gay. Os periódicos dirigidos às
questões homoeróticas também espelham as dúvidas, lutas e valores desta
comunidade. E acredito que os periódicos façam parte da rede de
informação de grande parte da comunidade gay que vive ainda
clandestinizada, de certa forma invisibilizada no dia a dia da sociedade.
As histórias e estórias desses periódicos, além dos processos de criação
das possíveis identidades do sujeito, serão a investigação que nosso trabalho
pretende realizar na imprensa dirigida ao público gay. A investigação das
tensões forma/conteúdo de alguns importantes periódicos gays terá como
elemento central o próprio design identitário formulado por e para este
grupo.
Em grande parte do planeta, os anos 1960 foram marcados pela
emergência dos movimentos sociais das minorias – mulheres, negros e
homossexuais –, cada qual à sua moda, ou melhor, criando suas formas,
lutando para afirmar sua cidadania. Os homossexuais, que até então viviam
suas vidas invisíveis para a sociedade e isolados dentro da sua própria
comunidade, passam a exibir um novo padrão histórico de
homossexualidade. Gays e lésbicas iniciam um movimento de emancipação
como forma de negar a posição inferior que a sociedade hegemônica lhes
tinha reservado. Este novo movimento acabou por constituir uma nova
“cultura gay”.
Este trabalho pretende averiguar os desdobramentos da cultura gay, que
toma vulto a partir dos anos 1970, refletidos nas publicações periódicas que
trataram e tratam de suas questões e que surgem no Brasil a partir do fim
daquela década. Pretendi documentar a formação desta imprensa específica
e observar a relação entre a ideologia expressa no discurso verbal destes
periódicos e no discurso gráfico apresentado em suas páginas.
O levantamento desses objetos é necessário à pesquisa por propiciar
uma maior compreensão da possível construção de uma identidade gay
nacional e da história da imprensa gay no Brasil. Para a análise do discurso
(linguagem) verbal, recorri aos editoriais e, em alguns casos, às
reportagens; para analisar o discurso (linguagem) gráfico, abordo o design
gráfico desenvolvido para os periódicos e as mudanças visuais ocorridas ao
longo da sua existência, aqui apoiado na ideia barthesiana de que “a
imagem se transforma numa escrita, a partir do momento em que é
significativa [...] Entendendo que por linguagem, discurso, fala, etc., toda a
unidade ou toda a síntese significativa, quer seja verbal ou visual” (Barthes,
1993, p. 132-3. Grifo do autor).
Há muito se discute a homossexualidade de diferentes formas e com
múltiplas abordagens. Dentro dos “novos movimentos sociais” que
emergiram durante os anos 1960, o movimento gay foi aquele que talvez
mais dificuldades teve para se estabelecer, ou nas palavras de Stuart Hall
(2000), para encontrar sua “política de identidade – uma identidade para
cada movimento”. Como em toda forma de legitimação, foi necessário criar
todo um aparato de valores, ideias e discursos. E os periódicos, entre as
várias formas de mídia da sociedade moderna, levam estas informações de
forma direta e acessível.
Não tenho dúvida de que a imprensa desempenha um papel muito
importante na sociedade. Como nos diz Woer e Gregorius: “The printed
medium makes our affiliation visible. Many people display their favorite
magazine on coffee tables to signal their attitudes to others” (1998: 25).1
Ainda podemos ver os periódicos como contadores de estórias
(storytelling). Aqueles que recriam o mundo para o leitor e criam um senso
de comunidade.
Parafraseando Schollhammer, minha abordagem se situa na relação
entre o que o texto “faz ver” e o que a imagem “dá a entender” para
delinear o projeto/design do regime representativo de um determinado
momento histórico e cultural. O design desempenha também um papel de
tradutor e mantenedor da sociedade na qual ele se inscreve. O designer
italiano Alberto Alessi fala que o design tende mais para arte e poesia do
que para tecnologia e mercado (apud Couto & Oliveira, 1999). Na nossa
sociedade, os objetos assumem cada vez mais o papel de interlocutores dos
indivíduos, expressando valores, status e personalidade. Alessi se refere à
tensão que teve origem no século XVIII, quando a mecanização trazida pela
primeira revolução industrial vai criar a distinção entre a esfera artística e a
esfera produtiva, tensão esta que se intensificará no século XIX,
configurando uma separação de atividades até então vistas como unas. A
partir daí vamos ter as chamadas “arte pura”, enaltecendo o espírito, e a
“arte aplicada”, feita para a produção, para a esfera econômica. As pessoas
compram objetos visando ao prazer intelectual ou espiritual.
Na área das ciências humanas e sociais, cada vez mais os estudos
tendem a ser interdisciplinares, uma vez que isolar uma disciplina de outra
significa deixar de lado um saber que pode ser imprescindível para a
compreensão do objeto em questão. A necessidade de interdisciplinaridade
na produção do conhecimento funda-se no caráter dialético da realidade
social – que é, ao mesmo tempo, una e diversa – e na natureza
intersubjetiva de sua apreensão.
O conhecimento que se constitui se amplia ou se modifica, não decorre
de uma arbitrariedade racional ou abstrata. Advém da própria complexidade
da forma através da qual o homem se constrói enquanto ser social e
enquanto sujeito e objeto de conhecimento social.
2. Os leitores e suas diferentes identidades
As grandes mudanças gráficas nos periódicos gays aparecem
paralelamente à necessidade da afirmação e das possíveis manifestações da
homossexualidade.
Dentro da proposta do professor Schollhammer – “uma abordagem aos
Estudos Culturais a partir da relação entre discurso e visibilidade” (2001:
28) –, e com a hipótese de que há uma mudança no design gráfico que
acompanha a mudança dos desejos e expectativas dos leitores, proponho-
me a fazer uma análise comparativa entre o discurso verbal (a partir dos
editoriais e das reportagens dos periódicos gays), e o discurso visual (a
partir dos elementos estéticos-formais destes objetos). Com isso, pretendo
mostrar como estas mudanças refletem a construção e afirmação das
inúmeras facetas identitárias da cultura gay.
O conceito de identidade será trabalhado dentro da perspectiva dos
Estudos Culturais. Isto é, o conceito de identidade não é fechado. A
identidade se dá através da diferença. Uma identidade depende, para existir,
de algo fora dela: quer dizer, outra identidade. De acordo com Stuart Hall,
As identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez
mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente
construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser
antagônicos (Hall, 2000: 108).
A identidade é marcada pela diferença e construída por meio de
símbolos. Outra questão importante para os Estudos Culturais é a dinâmica
dos sistemas simbólicos. Conforme afirma Kathryn Woodward:
É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e àquilo que somos. A representação é compreendida como um processo
cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais
ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que eu poderei ser?
Quem eu quero ser? (2000: 17).
A representação é vista, neste caso, como um sistema de signos. Ela
expressa-se por meio de diferentes linguagens, tais como as artes plásticas,
a fotografia, o cinema, a literatura, o design, além de circular também pela
vida cotidiana e o mundo do trabalho.
A despeito de a produção teórica a respeito da identidade gay ser vasta,
e de esse tema guardar estreita relação com o trabalho aqui apresentado, não
a restringirei a nenhuma teoria específica, mesmo porque a discussão de
qualquer uma destas não caberia nas páginas deste livro.2 O que interessa à
pesquisa aqui apresentada é que pessoas que têm exigências comuns
tendem a experimentar vivências coletivas e, desta forma, a criar um
fortalecimento a partir da noção de pertencimento (Goffman, 1983). Dito de
outra forma, muitos homossexuais partilham das mesmas vivências, dores e
alegrias, e, consequentemente, se reconhecem nas necessidades do coletivo,
no qual, neste caso, se inserem ou se identificam como pertencentes.
Também procuro evidenciar que a identidade gay é um aspecto da
identidade de um indivíduo. Como disse Trevisan (2000: 40): “[...]
[homossexual] será um adjetivo a mais num conjunto inevitável de
qualificativos, que definirá alguém como homossexual além de brasileiro
ou inglês, nordestino ou gaúcho, jovem ou velho, alto ou baixo, etc.”
Não é demais afirmar que
a homossexualidade é uma infinita variação sobre um mesmo tema: o das relações sexuais e
afetivas entre pessoas do mesmo sexo. [E] ... que não há nenhuma verdade absoluta sobre o
que é homossexualidade e que as ideias e práticas a ela associadas são produzidas
historicamente no interior de sociedades concretas e que são intimamente relacionadas com
o todo destas sociedades (Fry & MacRae, 1983: 7-10).
Muito embora este livro não se ocupe centralmente de uma nova
discussão sobre o universo da homossexualidade, pretendo, como já
afirmei, fortalecê-la com a investigação do design.
Segundo Foucault (1988), as questões que envolvem sexo e sexualidade
humana foram motivo de exaustivos estudos das esferas de poder a partir do
século XVIII. As liberdades comportamentais, “uma certa franqueza,
discursos sem vergonha, anatomias mostradas”, tudo isso se cala a partir do
século XVII. A repressão à sexualidade vai estar intimamente ligada às
relações de poder e saber. No século XVIII dá-se a multiplicação dos
discursos sobre o sexo, não só no campo do fazer, descobrir, ensinar, como
também no exercício do poder:
[...] é a primeira vez em que, pelo menos de maneira constante, uma sociedade afirma que
seu futuro e sua fortuna estão ligados não somente ao número e à virtude dos cidadãos, não
apenas às regras de casamentos e à organização familiar, mas à maneira como cada qual usa
seu sexo. O sexo não se julga, administra-se (Foucault, 1988: 9,22,27 e 28).
Esta administração do sexo e dos papéis socialmente criados e impostos
a cada indivíduo quase nunca vai estar de acordo com o desejo e a
orientação sexual de cada um. E algumas práticas sexuais, entre elas a
sodomia, foram vistas, revistas, discutidas e analisadas à luz de “controle
pedagógico e tratamentos médicos”. E o sujeito ator dessas práticas passa a
ser visto como uma persona: o homossexual, trazendo consigo as ideias de
homossexualismo e homossexualidade (a prática e o caráter do
homossexual). Conforme afirma Jurandir Costa (1992: 44), “A atual divisão
dos homens em homossexuais e heterossexuais é tão arbitrária e datada
quanto qualquer outra”. E tão pobremente reducionista.
Este mesmo autor propõe que os termos “homossexualismo” e
“homossexualidade” sejam substituídos pelo termo “homoerótico”, cunhado
em 1911, por F. Karsh-Haak e utilizado por Sandor Ferenczi, psicanalista
contemporâneo de Freud. As palavras “homossexualismo” e
“homossexualidade” carregam consigo o preconceito, pois elas remetem ao
vocabulário científico-moral dos séculos XVIII e XIX, quando foram
criadas, e desta forma sua utilização reforçaria tal preconceito
institucionalizado. Homoerotismo, segundo Costa, é uma noção mais
flexível e que descreve melhor a pluralidade das práticas ou desejos dos
homens same sex-oriented (Ver Costa, 1992; e Nunan, 2003). Sem
desprezar esta contribuição, usarei os termos “homossexual”, “gay”, e
“homossexualidade” indistintamente. A palavra homossexualismo
aparecerá sempre que os periódicos estudados a ela assim se referirem.

“A mídia impressa torna nossa afiliação visível. Muitas pessoas colocam sua revista predileta sobre a
mesa de centro para demonstrar suas atitudes para os outros” (1998: 25).
A esse respeito, ver: Goffman (1983); Fry & MacCrae (1983); Costa (2002), e Nunan (2003).
CAPÍTULO I
PRIMÓRDIOS DA IMPRENSA GAY NOS
ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL
1.1 A imprensa gay nos Estados Unidos
A década de 1950 foi uma das mais retrógradas na história para os gays
norte-americanos. As posições do Senado e as posições anti-homossexuais
do senador Joseph McCarthy fizeram do período um dos mais repressivos
para a comunidade homossexual. Porém, dentro do processo histórico, as
relações da economia capitalista, a industrialização, a socialização da
produção e o crescimento urbano criavam um contexto no qual o desejo
homossexual começava a se manifestar e a se constituir em identidades
mais definidas, seja no âmbito pessoal, seja socialmente. Segundo John
D’Emilio: “Conforme homens e mulheres que se sentiam atraídos por
pessoa do mesmo sexo foram assumindo uma autodefinição de
homossexual ou lésbica, começavam a buscar outros como eles, e aos
poucos foram criando uma vida de grupo” (D’Emilio, 1998: 22).
O alistamento de milhares de homens e mulheres nas forças armadas
americanas durante a Segunda Guerra Mundial traz intensas mudanças na
expressão sexual destes recrutas. Centenas de homens e mulheres que
sentiam atração por pessoas do mesmo sexo de repente encontram-se sós,
longe de seus familiares, tendo à sua volta somente homens ou somente
mulheres. Esta situação acabou proporcionando uma atmosfera na qual,
ainda que de maneira camuflada ou escondida, eles puderam manifestar
seus desejos homoeróticos. De acordo com D’Emilio, as condições
incomuns da guerra permitiram que os homossexuais se expressassem mais
facilmente:
As pessoas que já chegaram a uma autodefinição como homossexual ou lésbica
encontraram melhores oportunidades durante a Segunda Guerra para conhecer outros como
eles. Ao mesmo tempo, aqueles que experimentavam uma forte atração pelo mesmo sexo,
mas se sentiam inibidos de agir, subitamente tinham relativamente mais liberdade de iniciar
um relacionamento homossexual (D’Emilio, 1998: 24).
Ao fim da guerra e depois de terem vivido experiências muito pessoais,
a volta dos recrutas (homens e mulheres) ao cotidiano de suas pequenas
cidades de origem não será tranquila. Muitos deles não conseguem se
adaptar ao ambiente hostil prevalecente nas pequenas cidades. Nova York,
Los Angeles e San Francisco serão algumas das grandes cidades nas quais
eles vão tentar se estabelecer como cidadãos plenos. E, neste caso, a
identidade sexual não podia mais ser negada.
É neste contexto de mudanças e afirmações que surge em Los Angeles
aquele que viria a ser o primeiro periódico feito por e dirigido a uma
comunidade homossexual, neste caso específico, para as lésbicas. Em 1947,
uma jovem secretária, usando o pseudônimo de Lisa Ben (anagrama de
LESBIAN), lança o jornal Vice-Versa.
Rodger Streimatter, em seu livro Unspeakable: The Rise of The Gay and
Lesbian Press in America (1995), nos fala do jornal de Lisa Ben, uma
lésbica californiana. Ele era feito de forma artesanal. Ela datilografava
usando o recurso do papel carbono. Lisa Ben fazia 12 cópias, as quais
distribuía pessoalmente, pedindo que após a leitura o jornal fosse passado
adiante.
Segundo Streitmatter, o Vice-Versa parecia mais um trabalho acadêmico
do que um jornal. De acordo com o autor,
essa aparência comunica um forte sentido de precisão, muito diferente das imagens não-
conformistas e aleatórias, comuns entre publicações de movimentos sociais. Essa forma
altamente convencional sugere que uma outra característica a distinguir a imprensa gay e
lésbica seria um forte compromisso com a forma e a aparência (Streitmatter, 1995: 16).
Streitmatter e D’Emilio falam da importância dos primeiros periódicos
para a vida dos gays e das lésbicas. Streitmatter diz que
o feito mais importante foi que as revistas, de fato, falavam. Criavam um espaço nacional
para os homossexuais, uma arena na qual lésbicas e gays poderiam, pela primeira vez, falar
um tom acima de um sussurro sobre assuntos fundamentais de suas vidas. As revistas
davam a uma minoria oprimida uma chance de exprimir pensamentos que antes haviam
sido barrados do discurso público. Os leitores admiravam a coragem exibida pelos editores
(Streimatter, 1995: 18).
D’Emilio atesta que “este esforço pioneiro de publicar revistas sobre a
homossexualidade trouxe ao movimento gay sua única vitória significativa
durante os anos 1950” (D’Emilio, 1998: 115).
Os primeiros periódicos impressos de forma industrial e distribuídos
nacionalmente nos Estados Unidos vão surgir também na Califórnia. Em
1953 foi fundada a One; em 1955, a Mattachine Review; e, em 1956, a The
Ladder. Estas três publicações se mantiveram por mais de 12 anos.
Em 1950 existia em Los Angeles a Mattachine Society. Esta sociedade
secreta tinha sido criada por um grupo de homossexuais, com fortes
tendências esquerdistas, para discutir o papel do homossexual na sociedade.
Eles enfatizavam a contribuição que os homossexuais tinham dado à
sociedade, e além disso participavam de programas assistenciais, tais como
doação de sangue, doação de roupas em hospitais etc.
Durante esses primeiros anos, a visão dos homossexuais era uma visão
para dentro de si próprio. Existia uma culpa internalizada em grande parte
da comunidade homossexual. O papel da Mattachine Society era procurar
soluções para seus “problemas” na medicina e/ou na lei, ao mesmo tempo
que pediam tolerância para a sociedade.
Talvez, para os fundadores da One, isso não fosse algo consciente
naquela época. Mas, de alguma forma, eles deviam saber que transpor a
barreira das reuniões secretas para a comunicação em público foi um ato de
profundo impacto político. E o mais importante é que estes periódicos
constituíram o primeiro foro público onde gays e lésbicas puderam pela
primeira vez discutir assuntos fundamentais para sua vida. Estas
publicações pioneiras estavam preocupadas não só com o conteúdo, mas
também com a aparência.
Aos poucos desaparece o mimeógrafo e as pequenas publicações
começam a usar a impressão off-set, o que contribui para dar aos jornais
uma aparência mais profissional. O processo de impressão off-set possibilita
novos desafios no design dos periódicos. De acordo com Streitmatter:
[...] outra característica das publicações dos anos 1950 que refinou um elemento introduzido
pelo seu predecessor girava em torno do design. Ben demonstrou um compromisso forte
para com a aparência de sua revista, e os fundadores de One e The Ladder levaram esse
compromisso adiante, usando elementos gráficos arrojados e imagens cativantes para tornar
o design um dos elementos mais distintivos das publicações. One enfatizou ainda mais o
visual ao introduzir imagens sugestivas de homens, destinadas a se tornar um ingrediente
básico da imprensa gay (Streitmatter, 1995: 49).
Em janeiro de 1953, um grupo de amigos que vinham se encontrando
secretamente com intuito de discutir um “problema” que os atingia resolveu
lançar a revista One. O problema deles era a homossexualidade de cada um,
que já não sabiam como esconder. Segundo Streitmatter, eles estavam
cansados de falar para si próprios. Era chegado o momento de falar com
outras pessoas.

Figura 2 - Capas e páginas internas da One. Elegante e sofisticada, a revista foi um marco para o
movimento gay norte-americano.

One torna-se o marco principal da imprensa gay nos Estados Unidos e a


referência para um estudo sobre essa imprensa no Ocidente. Os ensaios
pessoais dominavam a linha editorial da revista. Mensalmente ela aparecia
trazendo um editorial, descrições de projetos de pesquisa pertinentes à
comunidade gay e lésbica (apesar de a revista ser essencialmente
masculina), lista de livros recentemente publicados, artigos sobre a
homossexualidade e cartas do leitor. A revista proporcionava aos leitores
uma visão positiva do mundo gay.
Outro fator importante para o sucesso da revista foi o audacioso projeto
gráfico. Assumindo a ideia de que gays (na sua maioria) têm bom gosto e
são refinados, os editores não medem esforços para imprimir uma revista
moderna, vibrante e de fácil leitura. Conforme afirma Streitmatter,
One era superdramática em termos de design. Consoante o alto nível de bom gosto e estilo
que muitos homens gays possuem, os fundadores insistiam que sua revista tivesse
composição tipográfica e fosse impressa em vez de datilografada e mimeografada. Essa foi
uma decisão ousada, uma vez que a revista não possuía nenhuma fonte consistente de
receita além dos bolsos de seus fundadores. Mas esses homens viam como essencial a
impressão profissional para a reprodução apropriada do projeto gráfico forte e moderno, e
que virou marca registrada da revista. Esse projeto gráfico refletiu o passo audacioso
tomado pelos fundadores ao criar a primeira publicação gay de ampla circulação dos
Estados Unidos (Streitmatter, 1998: 23).
No Brasil, conforme veremos nos próximos capítulos, a preocupação
com o design gráfico não vai ser ponto importante para o primeiro jornal
gay feito de forma industrial, e lançado em 1978. Embora o design gráfico
atue na área de comunicação, facilitando uma estreita relação com quem o
consome, as pessoas que começaram a história da imprensa gay no Brasil,
talvez por falta de recursos, ou porque simplesmente estavam mais
preocupadas em assumir uma postura política, não deram muita importância
para esta questão.
Nos Estados Unidos, a década de 1960 se inicia com a eleição de um
jovem democrata católico – John Kennedy – que mobilizou a nação com
seu carisma e comprometimento na luta pelos direitos dos negros. Foi uma
década que também veio a ser marcada pelo início da Guerra do Vietnã e
pela morte prematura do presidente.
A década trouxe um período de grandes transformações sociais, não só
nos Estados Unidos como no mundo. No seu decorrer, assistimos a um
fenômeno de dimensões psicológicas, sociais e culturais até então nunca
visto. Seu destaque sociológico reside na confluência de ideias, oriundas
das mais diferentes esferas, que vão colaborar para configurar o imaginário
revolucionário daquele período. O emprego maciço dos novos meios de
comunicação e os satélites de telecomunicação, entre outros fatores, afetam
de forma profunda as relações entre jovens. Como descreve Heloísa
Buarque de Hollanda:
Nos Estados Unidos, as contradições da Guerra do Vietnã davam lugar a um forte
movimento de resistência pacifista. A deserção e a desobediência civil assumiam dimensões
de radical atitude política. Surgia uma Nova Esquerda, valorizando o domínio da
problemática pessoal ou de lutas até então tidas como secundárias – a liberação sexual, a
luta dos negros, das mulheres, as reivindicações minoritárias. O movimento hippie
fervilhava, chocando a sisudez ocidental, inconformada diante da sujeira e da
promiscuidade dos jovens de cabelos crescidos que faziam do erotismo, da sensualidade e
da liberdade comportamental suas armas para combater a violência do way-of-life
industrializado. O uso da droga como busca de uma nova sensibilidade, o amor livre, a
preferência pela expressão artística em detrimento do discurso político, assumiam um
sentido “contracultural” que empolgava toda uma geração, não só nos EUA mas em
diversos países (1982: 69).
Ou ainda, conforme Streitmatter:
A contracultura deu sua contribuição mais significativa para o movimento da liberação gay
ao desafiar a definição convencional de comportamento sexual aceitável. Pois, no contexto
da revolução sexual que irrompera como parte do movimento da contracultura, a
homossexualidade não mais estava sendo considerada – ao menos por alguns segmentos da
sociedade norte-americana – como um desvio drástico da sexualidade normal (Streitmatter,
1998: 92).
Fortalecidos pela luta de outros grupos considerados minorias (negros,
mulheres e estudantes), os homossexuais começam a tomar uma atitude
diferente daquela dos anos 1950, durante a qual o “armário” era o lugar
ideal para discutir seus desejos.3 Os homossexuais que alcançam uma
maturidade sexual e política na década de 1960 não vão tolerar o que
Christopher Isherwood nomeou – “a ditadura heterossexual” (apud
Streitmatter, 1998: 51). Eles vão se espelhar nas manifestações públicas dos
outros grupos e vão para as ruas. O armário ficou pequeno, quente e
abafado. Chegou a hora de ir para as esquinas e praças; chegou a hora de
chamar a atenção da sociedade.
Junto com esta nova atitude, desponta uma nova geração de publicações.
Jornais e revistas assumem um novo rumo: a militância política. E já não
olham só para si, para a comunidade gay, mas para fora, para os outros. A
“questão” da homossexualidade não é um problema para os homossexuais.
O problema é a sociedade que ainda teima em querer mudá-los, escondê-los
ou negá-los. Se os afro-americanos, as mulheres e os estudantes tinham
conseguido um lugar na agenda nacional, agora chegou o momento dos
gays e lésbicas. Desta forma os homossexuais adotam uma estratégia do
assumir-se e brigar pelo seu espaço em todos os lugares da sociedade, dos
bares ao seio familiar. E os periódicos começam a surgir por todo o país,
não só nas grandes cidades, como também nas pequenas. De acordo com
Streitmatter,
uma vez que os líderes gays reconheciam que uma comunicação interna efetiva é essencial
para que uma organização articule sua ideologia, desenvolva uma consciência política entre
seus membros, aumente de tamanho e se sustente, estabeleceram que produzir publicações
seria um elemento central na sua estratégia de mudança social (Streitmatter, 1998: 53).
Entre os periódicos desta “segunda fase” vou me ater a dois: a Vector e o
Advocate. Vector foi a publicação mais importante na Costa Oeste dos
Estados Unidos e Advocate a publicação de vida mais longa na história da
imprensa gay americana.
Vector
A revista Vector foi fundada em dezembro de 1964, na cidade de San
Francisco, por uma organização que lutava pelos direitos dos gays, a
Society for Individuals Rights. O periódico destaca-se das outras
publicações primeiramente pelo seu formato. Ele adota um formato mais
confortável de ler e manusear: o tamanho do papel-carta. Podemos observar
que a mudança é muito importante, pois essas revistas começam a ficar
mais próximas das publicações da grande imprensa, assumindo uma
aparência mais profissional. E isto é o que acontece quando, um ano após
seu lançamento, passam a ser impressas em papel couché e a empregar uma
segunda cor na impressão, deixando para trás em definitivo a aparência de
um jornal estudantil. Conforme assinala D’Emilio, “Vector, a revista mensal
da SIR, era vendida em bancas pela cidade inteira. Seu formato atraente, em
papel couché, incluía notícias sobre o progresso dos direitos gays, como
também sobre entretenimento e fofoca para garantir um apelo amplo”
(D’Emilio, 1998: 191).
Além disso, a Vector expande o conceito de militância gay. Para a
revista, qualquer evento que envolva abertamente a comunidade
homossexual é uma ação social. Em outras palavras, a dança, a ida ao teatro
ou ao boliche, os bares, os passeios nos parques públicos servem como
declaração política. De acordo com Streitmatter, “A Vector foi, portanto, a
primeira publicação a reconhecer que não haveria revolução até que os
ativistas encorajassem um maior número de gays a sair dos bares e tomar as
ruas” (Streitmatter, 1995: 65).
Ao longo de sua trajetória, que findou em 1976, a Vector discute
assuntos tais como: “Homossexualidade como crime” (jan, 1965); “Sexo
em espaços públicos” (mai, 1967); “São os homossexuais doentes?” (jan,
1969); “Casamento gay” (1970); “Gay em Cuba” (mai, 1971); “A igreja é o
opressor” (jun, 1972); “Pais gays” (nov, 1972); “Transexual” (set, 1975).
Estas matérias demonstram como a revista se preocupava em mapear os
interesses pessoais e coletivos da comunidade.
Como veremos mais adiante, alguns desses temas estarão estampados
nas capas do primeiro periódico brasileiro. São assuntos que habitavam e
ainda habitam o imaginário da comunidade gay, não só a americana como a
brasileira. A preocupação em agradar ao leitor é uma constante nos
editoriais do periódico. Com o título de “Your Magazine”, o editorial de
novembro de 1970 da Vector demonstra esta preocupação:
Uma das maiores dificuldades em editar uma revista é que o editor tem que determinar o
que interessa a você, o leitor, coletivamente. [...] A resposta que encontramos foi dar
alguma coisa para cada um. A revista agora está bem equilibrada, baseada na nossa
premissa de quem seja o leitor da Vector. Neste número você irá encontrar uma declaração
por um ativista gay adolescente, nosso Guia Gay completo, descobrir o que acontece num
fórum sobre sexo e drogas, [...] e uma discussão franca sobre o “chato” (o carrapato, não o
tipo que nos entedia...) (Vector, nov, 70: 6).
Como eles gostavam de repetir, “Vector é uma revista feita para e por
homossexuais lidando com a única coisa que nossos leitores têm em comum
– sua homossexualidade” (Vector, 1971: 6). Pela primeira vez, uma revista
como a Vector mostrava a comunidade gay divertindo-se, seja por meio de
fotos de eventos sociais (Vector, set, 1965: 5), ou de matérias enfocando a
vida cotidiana dos gays, tais como “Strolling Castro Street”, uma matéria
sobre a famosa rua de San Francisco, considerada a meca dos gays dos
Estados Unidos (Vector, jul, 1971: 30); ou ainda, “Restaurants”, enfocando
os diferentes tipos de restaurantes simpatizantes dos gays (Vector, dez,
1973: 29).
A partir da proliferação dos bares e saunas dirigidos ao público gay nas
grandes cidades americanas, em meados dos anos 1970, a revista passa a
publicar vários anúncios destes estabelecimentos, além de artigos que
promoviam a necessidade de sua presença para a comunidade. Isto não era
exclusividade da Vector. A grande maioria dos periódicos dessa época
passam a ter o sexo como elemento fundamental no seu editorial.
No aspecto gráfico, a Vector não era tão audaz quanto a One. Nos
primeiros anos o projeto gráfico é rígido e obedece aos limites da mancha
gráfica estabelecida. Contudo, a partir do terceiro ano de existência,
podemos observar mudanças gráficas na revista. Uma das principais
características é um número muito maior de fotos do que a maioria das
outras publicações – nas quais também se nota um esforço maior em
mostrar a face dos indivíduos. A partir de 1969, as publicações começam
uma campanha, inicialmente muito discreta, mas que mais tarde toma um
peso muito importante para a movimento gay nos Estados Unidos, que é o
“assumir-se”. Eles pediam que todos os gays dissessem para seu amigo,
para sua família, para os colegas de trabalho, enfim, para quem pudessem,
que eram homossexuais. Desta forma dariam mais visibilidade à
comunidade gay. Estratégia que vai ser utilizada durante a formação do
Grupo Arco-íris no Rio de Janeiro.

Figuras 3 e 4 - Revista Vector, setembro de 1967 e página 4, Editorial, fevereiro de 1975.

Sua logomarca passa por várias transformações. Inicialmente a


tipografia era acompanhada de uma seta que indicava o futuro, lançando a
revista para a frente. Com pequenas variações, esta será a identidade da
revista entre os anos de 1964 a 1973, quando a seta desaparece da
logomarca, ficando apenas a tipografia. O futuro passa a ser o presente.
Nesta nova fase, fontes “fantasias”4 irão ocupar o alto da página.
Já mais próximo ao fim da revista, a logomarca assume um aspecto mais
sério, mas ao mesmo tempo leve, com o uso de uma fonte bastão outline.
Outro aspecto importante da revista é que a partir de 1969 ela passa a
estampar fotos de nu frontal masculino, elemento que se tornará uma
característica da maioria dos periódicos da imprensa gay americana a partir
dos anos 1970.
Advocate
O jornal Advocate é lançado em setembro de 1967, na cidade de Los
Angeles. É interessante observar que se a One era uma revista, e a Vector se
autodenominava uma revista, apesar de parecer mais um jornal, o Advocate
surge como um jornal e só muitos anos mais tarde se tornará uma revista.
The Los Angeles Advocate, seu nome inicial, é o primeiro jornal gay dos
Estados Unidos. Ele é renomeado Advocate em maio de 1970, e a partir de
1975 torna-se uma revista bisemanal.
O jornal inicialmente publicava apenas reportagens jornalísticas e não
tinha ficção. O periódico tinha a intenção de publicar o que a grande
imprensa não publicava, ou, nas palavras do seu primeiro editor, Dick
Michael, “print what the straight press wouldn’t print” (apud Streitmatter,
1998: 88).5 Embora a grande arma do Advocate fosse divulgar as conquistas
do movimento gay, ou denunciar as injustiças cometidas contra os
homossexuais, ele tinha colunas pessoais, editorial, crítica de filmes e
livros, e um calendário de atividades sociais na cidade. O periódico desde o
início foi implacável na sua posição de defender os direitos dos gays:
Happy birthday to us! We are born. And like all infants, we are and will for a time be
clumsy, awkward, full of innocence, and perhaps even a little ugly, except of course, to our
parents. [...]Homosexuals, more than ever before, are out to win their legal rights, to end the
injustices against them, to experience their share of happiness in their own way. [...] As a
newspaper, the Advocate’s main purpose is to publish news that is important to the
homosexual – legal steps, social news, developments in the various organizations –
anything that the homosexual needs to know or wants to know. [...] We exist to serve you,
but we cannot do it well without your help (The Los Angeles Advocate, n. 1, set, 1967: 6).6
Desta forma, o jornal se mantém até 1974, quando ele é comprado por
David B. Goodstein, milionário homossexual que resolve investir sua
fortuna na imprensa gay. A compra trouxe mudanças gráficas e ideológicas
para o jornal. Primeiro ele deixa de ser um jornal para se tornar uma revista,
com um projeto gráfico bem mais moderno e audacioso. E passa a ser o
porta-voz de uma nova geração de gays que já não se preocupa em esconder
sua orientação sexual. Pelo contrário, os gays dos anos 1970 exibem seus
corpos e desejos por dezenas de bares, boates e saunas que proliferam pelas
cidades dos Estados Unidos. Com o subtítulo de “Touching Your Lifestyle”,
o Advocate torna-se uma revista de entretenimento e cultura, feita para este
público pós-Stonewall. No editorial da edição número 29, intitulado “Our
Challenge”, Goodstein escrevia:
You are employed and a useful, responsible citizen. You have an attractive body, nice
clothes and an inviting home. The “Advocate man” lived the good life – working out,
spending several nights a week at the bars, enriching his gay sensibility by rea-ding
literature and enjoying art (Advocate, n. 29, jan, 1975: 3).7
Nesse processo de mudança, o projeto gráfico foi muito importante. A
revista passa a ter um layout mais dramático, com muitos claros, fotos que
ocupam toda a página, fios gráficos que sustentam e valorizam o texto.
Além disso, a nudez masculina passa a ser o maior interesse dos leitores,
depois de muitas lutas contra as leis que proibiam a publicação e a remessa
pelo correio de periódicos com fotos de nudez frontal. Agora as fotos
passam a ocupar um lugar de destaque nos jornais e revistas da imprensa
gay americana.

Figuras 5 e 6 - Jornal Advocate, volume 2, número 9, setembro de 1968, (capa) a Advocate passa a
ser uma revista, número 232, setembro de 1978, (capa).

Conforme afirmou o designer Dennis Forbesm, em entrevista para


Streitmatter: “Todo artista gráfico sabe que as imagens atraem o leitor ao
conteúdo editorial, e sabíamos exatamente que tipo de imagens nossos
leitores buscavam” (Streitmatter, 1998: 191). Assim, a revista passou a
dedicar páginas inteiras para fotos de homens totalmente nus. Se a
sexualidade era apenas sugerida nos anúncios da revista One, em 1954, no
meio da década de 1970 a imprensa gay americana vai estar refletindo o
valor que a comunidade gay deposita na beleza física e na liberdade de usar
o próprio corpo como bem quiser. Os anos seguintes ao conflito de
Stonewall é um período marcado pelo assumir-se.
The Stonewall Inn é um bar localizado no coração do Village, em Nova
York. No dia 28 de junho de 1969, um dia após o funeral de Judy Garland,
vários homossexuais, ainda consternados com o falecimento da cantora,
voltavam a se encontrar no The Stonewall Inn. Há muito tempo eles eram
vítimas da opressão e da discriminação que a sociedade branca machista
americana lhes impunha. Empurrados e acuados para os becos e bares da
cidade, eles próprios não sabiam que, naquele fim de semana em que
perdiam um dos seus ídolos, ganhavam o primeiro round de uma luta que se
estende até os dias de hoje.
Durante vários anos, o Departamento de Controle de Bebidas
Alcoólicas, alegando violação contra as leis do uso de bebidas alcoólicas,
inspecionava o estabelecimento, inspecionava os clientes e, ao mesmo
tempo, dirigia comentários homofóbicos aos fregueses, que quase sempre
eram postos para fora do bar. Naquela noite a cena se repetiu. Só que ao
invés de saírem pacificamente como faziam há anos, gays, travestis,
estudantes, boêmios e outros fregueses fincaram o pé e revidaram à
agressão. A luta tomou proporções enormes. Por cinco dias, aquelas pessoas
revidaram às agressões da polícia. E, pela primeira vez, depois de anos de
opressão, pôde-se ouvir a voz de mais uma parcela da sociedade que vivia à
margem.
Este incidente acaba por se tornar um marco histórico, conhecido como
o início da luta dos gays pela cidadania plena. É claro que já houvera outros
indivíduos que lutaram por uma vida fora dos guetos, mas estou aqui me
referindo à manifestação de uma nova postura perante a sociedade, de
acordo com a qual é possível viver sem constrangimentos e com mais
dignidade; esta atitude ainda pode ser vista nas inúmeras manifestações
públicas que aconteceram pós-Stonewall.
Como já sugeri acima, “sair do armário” é uma questão política. Da
mesma maneira, a atividade sexual deveria ser praticada sem medo ou
limite. Múltiplos parceiros e uma infinidade de tipos de fantasias sexuais
deviam ser exercidas pelo prazer, pela liberdade conquistada, e, também,
como uma afirmação política.
Sex was the oxygen of our lives. Stonewall had bestowed upon gay men a visceral sense of
freedom, and we defined that, quite literally, as giving us the license to indulge in multiple
sex partners and play out an infinite variety of sexual fantasies (Jim Kepner apud
Streitmatter, 1995: 194).8
Os periódicos acompanham e divulgam todos os passos da luta pela
conquista do território, não importando se se tratava de questões ligadas ao
sexo, ou ao entretenimento do mercado. E é bom lembrar que nem todas as
mudanças foram totalmente aceitas pelos líderes do movimento gay norte-
americano, ou por uma imprensa gay que mantinha uma posição radical
contra o sistema. Em 1976, o então candidato à Presidência da República,
Jimmy Carter, comprava uma página inteira do Advocate para colocar seu
anúncio de campanha. A revista era simpática ao futuro governo. As
colunas de entretenimento cultural ocupavam agora muito mais espaço do
que as notícias do movimento gay. Fatos como estes não agradavam a
grupos do movimento gay que mantinham uma postura mais esquerdista.
Estas mudanças não foram exclusivas do Advocate. A própria Vector
também muda seu enfoque político no final de sua existência. Para alguns,
isto era traição ao movimento. O jornal Gay Liberation denunciava em sua
edição de setembro de 1976:
News coverage now consists of articles about how gays are trying to get in touch with the
status-quo and nothing on what activists groups are doing. At one point we could think of
two opposing groups, gay and anti-gay, but no longer: the enemy is among us (apud
Streitmatter, 1998: 186).9
Esse era o início das grandes mudanças, não só na imprensa gay, como
também, e principalmente, na vida de milhares de homens que sentiam
atração física por outros homens.
Todo este processo de nascimento e implantação da imprensa gay norte-
americana é totalmente diferente, como veremos a seguir, do que aconteceu
no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro. Entretanto, os sonhos e
desejos daqueles que vislumbravam uma sociedade mais justa, na qual os
homossexuais pudessem ser respeitados como cidadãos, foram iguais. Com
as diferenças naturais que existem entre a cultura brasileira e a norte-
americana, a imprensa gay brasileira também surge discreta – era para
poucos e sofisticada –, apesar dos poucos recursos gráficos. Porém, nem
por isso menos importante na construção de uma rede de amigos ou ainda
na solidificação de uma base para o futuro movimento gay brasileiro.
1.2 A Imprensa No Brasil
Ao contrário de outros países, a implantação e o desenvolvimento da
imprensa no Brasil demoraram a acontecer. A administração da Colônia
portuguesa impedia o uso da tipografia nas terras ultramarinas, e a invenção
de Gutemberg só aportaria no Brasil em 1808, juntamente com a família
real. Apesar de se difundir pela Europa logo após a sua invenção, e de ter
desembarcado no solo norte-americano ainda no século XVI, a imprensa só
pisaria o solo brasileiro quase quatro séculos mais tarde.
A imprensa atraca na costa brasileira de uma forma inusitada. Antônio
de Azevedo, futuro Conde da Barca, tinha adquirido um prelo inglês. A
máquina, que deveria ter sido desembarcada em Lisboa, acabou vindo no
mesmo navio em que se encontrava a família real. Foi a partir de então que
se deu início à impressão de periódicos no Brasil.
Apesar de já circular por aqui o jornal Correio Brasiliense, este não foi
o primeiro jornal impresso no solo brasileiro: ele era impresso em Londres.
O primeiro jornal que vem a ser impresso e editado aqui é o Gazeta do Rio
de Janeiro, no ano de 1808. Em 1812 é lançado em Salvador o folhetim As
Variedades, que é considerado a primeira revista a circular no Brasil, apesar
de o termo “revista” só vir a ser adotado em 1828, no mesmo ano em que é
lançada no Rio a Revista Semanária dos Trabalhos Legislativos da Câmara
dos Senhores Deputados. Revista e jornal, aliás, são designações que na
verdade não se encaixavam muito bem naqueles produtos – a Gazeta do Rio
de Janeiro e As Variedades – no que diz respeito à forma, pois se pareciam
muito mais com livros.
O início da imprensa brasileira é um período de produções despojadas e
simples, ainda com poucos recursos tipográficos. Conforme afirma Nelson
Werneck Sodré (1999: 20), o jornal, feito na Imprensa Oficial, não
“constituirá atrativo para o público, nem essa era a preocupação dos que o
faziam, como a dos que o haviam criado”. De acordo com a Editora Abril,
no seu estudo sobre as revistas no Brasil, os primeiro periódicos tiveram
pouca importância para a sociedade. Não se preocupavam em refleti-la:
tratava-se mais de publicações eruditas, não noticiosas (Cf. Ed. Abril,
2000).
A partir de 1817, o processo gráfico de impressão ganha um novo
aliado: a litografia. A litografia vai permitir um uso maior da ilustração e da
cor. Vários periódicos, assim como livros e cartazes, começam a ser
impressos por meio deste processo. Desta forma, temos em 1860 o
lançamento de um dos mais bonitos periódicos, a Semana Ilustrada.
Publicada por Henrique Fleiuss, a revista vive até 1876. Outra grande
publicação foi a Revista Ilustrada, publicada por Angelo Agostini. A
publicação foi um dos principais meios para a divulgação da arte de seu
tempo. Simultaneamente, promovia uma participação dos seus leitores na
vida política do país. Agostini, artista italiano, caricaturista, ilustrador e
crítico de arte criou um marco para a imprensa brasileira. A revista exerceu
forte influência na opinião pública da época.
Desde que surgiram, no início do século XIX no Brasil, jornais e
revistas lutam para participar dos vários aspectos da realidade brasileira, e,
de uma forma ou de outra, espelhar parte da rica diversidade dessa
realidade, como veremos a seguir.
No início os periódicos eram dedicados principalmente ao público
masculino. No Brasil do século XIX, raríssimas mulheres sabiam ler.
Segundo a publicação A Revista no Brasil: “Dos 4 milhões de brasileiros
contabilizados na década de 1870, apenas 550 mil eram alfabetizados” (Ed.
Abril, 2000: 157). A primeira revista feminina aparece em 1827, e foi
denominada de O Espelho Diamantino: Periódico de Política, Literattura,
Bellas Artes, Theatro e Modas dedicado as Senhoras Brasilienses. Em 1831
surge em Recife a segunda publicação dedicada ao público feminino:
Espelho das Brasileiras. A partir da primeira década do século XX, muitas
publicações passam a dedicar espaço para o mundo feminino e várias outras
revistas começam a surgir, tais como a Cigarra, em 1914, e o Jornal das
Moças, em 1919. É também neste período que os editores se preocupam em
lançar uma revista para meninos e adolescentes. Em 1905 surge o Tico-tico,
uma revista que unia seções de educação com as aventuras de Chiquinho, o
herói infantil. A revista tem vida longa. Com a entrada dos comics
estrangeiros a partir da década de 1930, a revista começa a perder fôlego.
Mas, mesmo assim, ela sobrevive até a década de 1960.
Ao longo do século XX, o progressivo enraizamento dos periódicos na
vida nacional acabaria por criar a necessidade de atender públicos cada vez
mais diversificados. De certa forma, a segmentação do público pelo
mercado editorial acompanha e reflete o fato de que certos grupos sociais
que sofrem algum tipo de discriminação passam a ocupar mais espaço na
sociedade. Assim, chegaremos à década de 1960 com periódicos para quase
todos os grupos sociais, com exceção dos homossexuais, que só ganharão
seu jornal em 1978, e os negros, cuja primeira revista data de 1996.
1.3 A imprensa nanica
Em 1969, seis meses após o Ato Institucional no 5, surge aquele que
viria a ser o primeiro jornal conhecido, inicialmente, como “alternativo” – o
Pasquim. Conforme afirma Rivaldo Chinem:
O Pasquim não era um jornal político, era apenas um jornal debochado, de contestação,
indignado, que queria sair do sufoco. Irreverente, moleque, com uma linguagem desabrida,
bastante atrevido para os padrões da época (1995: 43).
Ou nas palavras de Bernardo Kucinski:
O Pasquim mudou hábitos e valores, empolgando jovens e adolescentes nos anos de 1970,
em especial nas cidades interioranas, que haviam florescido durante o milagre econômico
(2003:15).
Nos anos seguintes vários jornais alternativos surgem, cada um dirigido
a um tipo de leitor, mas todos se caracterizando como alternativos, isto é,
fugindo em forma e conteúdo da chamada grande imprensa. Podemos
dividi-los em duas grandes classes: alguns predominantemente políticos,
que tinham raízes nos ideais de valorização do nacional e do popular dos
anos 1950, e do marxismo dos meios estudantis nos anos 1960; outros
tinham suas raízes nos movimentos de contracultura norte-americanos e,
através deles, no orientalismo, no anarquismo e no existencialismo (Cf.
Kucinski, 2003). Nesta época surgem: o Flor do Mal, em 1971; o Bondinho,
em 1971; o Opinião, em 1972; o Ex, em 1973; o Versus, em 1975; e o
Movimento, em 1975. Circulavam ainda publicações que defendiam temas
que iam da contracultura, passando pela ecologia e pela política, à defesa do
direito de fazer poesia.
Segundo Kucinski, cerca de 150 periódicos nasceram e morreram entre
1964 e 1980. De tamanho tabloide – metade do usado nos jornais
convencionais – eles se caracterizavam pela oposição ferrenha ao regime
militar e ficaram conhecidos como “nanicos”, “de leitor”, “independente”,
“underground” ou ainda como “imprensa alternativa”. Em 1974, ano do
apogeu da imprensa nanica, a diversidade temática dos nanicos incluía os
gramscianos, os leninistas, os feministas, os ecológicos, os pregadores da
importância da sexualidade etc.
A partir do início da década de 1980 estes jornais começam a
desaparecer. Apesar de haver algumas exceções – como o Bondinho, de São
Paulo; o Lampião, de Porto Alegre; ou o Beijo, do Rio de Janeiro, entre
outros –, tratava-se de jornais que não davam muita ênfase à sua
apresentação visual, cuja diagramação, de maneira geral, era pesada, com
textos longos e tijolados, e com corpo da letra (tamanho) pequeno e difícil
de ler. Fortuna, caricaturista e artista gráfico, afirma ter conversado várias
vezes com os dirigentes destes jornais, sugerindo que fosse desenvolvido
um projeto gráfico a fim de os tornarem mais legíveis (Fortuna apud
Chinem, 1995), mas aparentemente a preocupação dos editores era muito
mais com o conteúdo do que com a forma.
1.4 Cultura e civilização, elas que se danem, ou não10
Pode-se dizer que a imagem de revolução político-cultural, decalcada da
década de 1960, é herdeira do movimento beat dos anos 1950, do
existencialismo do pós-guerra, e das novidades libertárias germinadas nos
anos 1920. Dito desta forma, pode parecer que a década não inaugura nada
de novo. Porém sua importância histórica é inquestionável. As novidades
dos anos 1960 vão além destes enredamentos. Seu destaque sociológico
reside na confluência de ideias oriundas das mais diferentes esferas, e que
irão configurar o imaginário revolucionário daquele momento. A
abrangência alcançada graças aos novos meios de comunicação, apoiados
agora nos modernos satélites de telecomunicação, afeta de forma profunda
as relações entre os povos. Surge a “aldeia global”, e com ela as diferentes
formas de protesto.
O ano de 1968 apresenta-se como um divisor de águas na política
internacional. A ofensiva Tet, na Guerra do Vietnã, em janeiro; o
assassinato de Martin Luther King, em abril; o assassinato de Robert
Kennedy, em junho; a greve geral e protesto dos estudantes em Paris, em
maio; a grande manifestação pacifista antiguerra dos estudantes da
Universidade de Berkeley, em maio; a invasão da Checoslováquia pelas
forças do Pacto de Varsóvia, em agosto; as atitudes iconoclastas dos hippies
perante o status quo; e a Convenção Nacional do Partido Democrata, em
Chicago, no mês de agosto, são alguns exemplos notáveis do “design da
década”. O crescente ativismo político, sobretudo no que tange à questão
dos direitos humanos dentro de vários setores da sociedade – tais como as
feministas, os gays, e o movimento black power –, faz emergir novas e
poderosas vozes de protesto. Contestava-se tudo. Surgiam comunidades
alternativas baseadas no anarquismo; outras, num bucolismo; ainda outras,
no trabalho artesanal ou no vegetarianismo. Como afirma Maciel (1987: 8):
“Na raiz interna, o inconformismo era existencial. Não era apenas a
sociedade que estava errada; era o jeito que a gente vivia”. A palavra de
ordem foi “liberdade”.
No Brasil, a década de 1960 tem seu início marcado pela mudança
geográfica da capital da República. Brasília era a imagem da esperança de
milhões de brasileiros pela emancipação nacional nos planos político,
econômico e social, esperança esta que seria ceifada a partir do golpe de 64.
Em março de 1968, após o assassinato do estudante Edson Luís, os
movimentos de protesto contra o regime instaurado ganham intensidade e
relevância. Em junho do mesmo ano realiza-se a “Passeata dos Cem Mil”,
considerada o ápice das manifestações de repúdio à ditadura.
No entanto, esse grande movimento de revolta que aconteceu não só no
Brasil, mas em todo o mundo, terá vida curta, ainda que seus efeitos
posteriores irão se prolongar por muito tempo.
No Brasil, a Tropicália foi um dos mais significativos arautos, em
termos culturais e políticos, que expressou todo um panorama de mudanças
e enredamentos, e influenciou o comportamento e o sentimento de toda uma
geração, abrindo novos caminhos para o cenário artístico, notadamente a
música e o teatro estético, além de trazer novas discussões sobre o
imaginário brasileiro.
A Tropicália, enquanto movimento basicamente musical, foi abortada
pela prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e durou menos de dois anos.
Durante o III Festival de Música Popular Brasileira, em 1967, Caetano e
Gil, seus personagens mais importantes, apresentaram as duas músicas que
mudariam o caminho da MPB: “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”.
Em dezembro de 1968, duas semanas após a promulgação do Ato
Institucional nº 5, que reduziu drasticamente os direitos civis, Caetano e Gil
são presos. Seis meses depois são obrigados a partir para o exílio. Mesmo
assim a Tropicália deixou marcas e mostrou novos caminhos para a
juventude brasileira.
É por essa época que, mesmo tardiamente, começam a chegar ao país
informações da contracultura: debates acerca do uso das drogas, a utilização
da psicanálise, o uso do corpo, os circuitos alternativos, os poetas beats
americanos, o feminismo, o movimento gay e o black power. A juventude
da pós-Tropicália, inconformada diante da repressão e do conservadorismo
vigente no país, “vai desconfiar da direita e da esquerda ortodoxa, dando
lugar a uma radicalização da crítica comportamental e a um novo tipo de
atuação, já presente na Tropicália, que privilegia a intervenção múltipla,
guerrilheira, diversificada e de tom anarquista nos canais de sistema”
(Hollanda, 1981: 63).
Shelton Waldrep afirma que nos anos 1970 continua a tentativa da
década de 1960 de abraçar as mudanças sociais e formais. Na suas palavras:
“Os anos 70 são tanto o produto de uma visão de uma geração de si mesma,
quanto sintoma de uma série de momentos históricos [...] uma busca de si
próprio” (Waldrep, 2000: 3).
Apesar do momento político em que vivíamos no Brasil, a década de
1970, como disse José Miguel Wisnick (1980), “sem movimentos culturais
típicos, sem grandes bandeiras, sem grandes alardes, chegou a dar
impressão de que nada acontecia”. Mas apesar do terror dos tempos, uma
parcela da juventude não se deixava abater: o “desbunde”,11 a contracultura,
a imprensa marginal, o cinema marginal, tudo isto contrastando com a luta
armada e a ditadura que teimavam em nos oprimir, foram os principiais
personagens culturais dessa década.
Em janeiro de 1972, após dois anos em Londres, Caetano e Gil retornam
do exílio. O frio daquela experiência é deixado para trás. No calor do
hemisfério sul eles vão encontrar uma juventude antenada com os
acontecimentos do mundo. Marcada pelos agenciamentos emblemáticos da
Tropicália, aquela juventude enfrentava as imposições do regime político
como podia, inventando modos novos de encarar a repressão vigente,
buscando de forma inédita a liberdade através do exercício do corpo, pelo
sexo, e da mente, pelas drogas. Formalmente, o “movimento tropicalista”
tinha acabado, contudo suas ideias tinham sido incorporadas e aglutinadas
por essa juventude a todas as manifestações artísticas da época.
A juventude vivia o desbunde. As pessoas reinventavam o modo de
viver e o inconformismo era geral. Vivia-se a contracultura. Caetano e Gil
de alguma forma haviam iniciado esta transformação, colaborando
fortemente com a deflagração das transformações comportamentais, ou pelo
menos foram eles que deram as coordenadas a serem seguidas.
No campo da sexualidade, a discussão sobre os papéis sexuais era uma
das questões que o grupo baiano, notadamente atiçado por Caetano Veloso,
tinha iniciado ainda na Tropicália, e que tomaria vulto maior com a volta do
cantor de Londres. Conforme Silviano Santiago, o repórter da revista Veja
que cobriu a chegada de Caetano e o seu show no Teatro João Caetano, em
1972, não se furta em chamar a atenção para as roupas com que Caetano se
apresenta:
Uma modesta calça cor de areia, estilo “tomara-que-caia”, e um blusão Lee muito curto,
desabotoado, com o umbigo de fora. Uma roupa no mínimo “diferente”, como a jardineira
que usava ao desembarcar no aeroporto do Galeão[…] (apud Santiago, 2000: 151).
A apresentação de Caetano e Gil, usando batas femininas e beijando-se
na boca no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, provocou discussões sobre
um novo ser “andrógino”. Em 1973, uma banda de rock despontou no
cenário musical do Brasil – os Secos & Molhados. O grupo causou grande
impacto e muita curiosidade. Não só pelos cabelos compridos dos seus
integrantes, nem só pela música, mas principalmente pelo visual andrógino
e diferente que eles apresentavam. Outro grupo que serve para exemplificar
a emergência no campo da arte de manifestações polêmicas a respeito das
diagramações de gênero, sexuais e comportamentais, foi o Dzi Croquete. O
grupo, liderado pelo bailarino Lennie Dale, fazia um espetáculo que
misturava teatro e dança, no qual a fronteira entre masculino e feminino era
destruída. Os rapazes vestiam-se de mulher, mas não raspavam o bigode.
Este era, em linhas gerais, o cenário no qual a partir de 1978 um lampião
pôde ser aceso nas esquinas do Brasil.
1.4 Surge uma imprensa gay no Brasil
A imprensa gay no Brasil, como no mundo, surge da necessidade que
uma parcela da sociedade teve de procurar seus semelhantes, buscar uma
união com os iguais, construir um refúgio coletivo, lutar contra um sistema
que os tornava invisíveis. Assim como ocorreu na Califórnia, onde Lisa Ben
distribuía em 1947 seu jornal Vice-Versa de mão em mão pelos bares de Los
Angeles, conforme comentei antes, no Rio de Janeiro a coisa não foi tão
diferente. A grande diferença é que aqui no Brasil os primeiros jornais só
apareceram na década de 1960.
Durante as décadas de 1940 e 1950 as revistas voltadas para o
fisiculturismo e as que incentivavam o naturismo como opção de vida
povoavam o imaginário dos homossexuais masculinos. Estas revistas
estampavam várias fotos de homens seminus ou nus em suas páginas. Por
muito tempo estas revistas foram objeto de desejo de muitos homossexuais.
Apesar de fazer parte da cobiça dos gays, elas não eram direcionadas para
este público.
De acordo com o jornal Lampião da Esquina, no início da década de
1960 surgiram as primeiras publicações dirigidas para o público
homossexual. No Rio tínhamos, de restritíssima circulação, as publicações
Snob, Le Femme, Subúrbio à Noite, Gente Gay, Aliança de Ativistas
Homossexuais, Eros, La Saison, O Centauro, O Vic, O Grupo, Darling, Gay
Press Magazin, 20 de Abril, e O Centro; em Niterói existiam Os Felinos,
Opinião, O Mito; em Campos havia o Le Sophistique; a Bahia contava com
O Gay e O Gay Society, O Tiraninho, Fatos e fofocas, Baby Zéfiro, Little
Darling e Ello. Segundo os editores do Lampião, eram jornais que
versavam sobre amenidades e badalações sociais, sem esquecer de falar de
acontecimentos culturais, reportagens e classificados. Eram jornais feitos
por alguns amigos para seus amigos. Nem por isso eram vistos como algo
menor.
No inicio da década de 1960, alguns editores destes jornais resolveram
criar a Associação Brasileira de Impressa Gay (ABIG). O número de jornais
já demonstrava que a busca por um território social tinha tomado outras
feições. O jornal, a mídia impressa, fazia-se necessário como uma forma de
afirmação. Conforme diz Anuar Farah: “Nós tínhamos um ideal, queríamos
mostrar que éramos pessoas normais, que fazíamos o que todas as outras
faziam” (Lampião, n. 28, p. 7).
A associação durou apenas até 1964, mas os jornais continuaram a ser
publicados. Eles eram produzidos artesanalmente, feitos à mão, alguns
xerocados ou mimeografados. De acordo com o Lampião, alguns “bem
eram ‘obras de arte’”, como o único exemplar do Di Paula, da Bahia.
Outros tinham uma diagramação moderna, como o Gente Gay. Em sua
maioria estes jornais usavam a ilustração como ornato, vinhetas sem sentido
ilustrativo, porém todas icônicas. Se, para Corbusier todo ornato tem que ir
para o lixo, é algo desnecessário, para a turma do Snob os ornatos traduziam
uma faceta da vida deles. Neste caso ornato é signo, e como tal faz-se
necessário. Além do que eles respondiam melhor aos processos do
mimeógrafo do que as fotografias. Quando a fotocópia passa a ser mais
conhecida e mais acessível, os desenhos começam a desaparecer e a
fotografia começa a ocupar seu lugar. Apesar de terem vida efêmera e
frágil, estas publicações sofreram transformações, não só na sua narrativa
verbal, como também na narrativa visual.
Em seu livro Beyond Carnival (Green, 1999), um grande painel sobre a
realidade sociocultural da homossexualidade brasileira, o historiador James
Green fala destas publicações que antecederam aquelas que me proponho a
analisar, e que ajudaram na construção de uma identidade gay. Uma delas,
talvez a mais importante, chamava-se Snob (talvez o primeiro jornal
homossexual, e de vida mais longa do Brasil, criado no início dos anos
1960 por Agildo Guimarães). É importante observar como as vinhetas
rococós, elaboradas ilustrações de modelos femininos estampadas no Snob,
vão aos poucos desaparecer. Feito de forma artesanal, o jornal era
mimeografado e distribuído entre amigos, tendo sido quase exclusivamente
um veículo para registrar as festas e reuniões deste grupo, além de dar dicas
sobre locais de “pegação”, moda e os últimos acontecimentos na cidade.
Apesar de suas tiragens terem se limitado quase exclusivamente a um
pequeno grupo, seu pionerismo e originalidade são muito importantes para
analisarmos questões de gênero, a visão política dos editores e leitores e a
questão da construção de identidades. De 1963 até 1969, o Snob apresentou
mudanças significativas, não só em seu discurso verbal como no seu
discurso visual. No editorial do número 1, o jornal se apresentava desta
forma:
Apresentamos nosso jornalzinho: Finalmente estamos lançando o número 1 do nosso jornal.
O jornal do nosso grupo. Para falarmos de nossas festas, fazermos fofocas e discutir as
últimas novidades. Nós não pretendemos ter uma grande circulação ou competir com O
Globo ou Última Hora e, não somos da esquerda nem da direita, é melhor ficar no meio.
Ele terá um milhão de defeitos e erros. Nós pedimos desculpas [...] (apud Green, 1999:
184).
Já no primeiro editorial podemos ver que o editor define a estatura do
seu produto para sua defesa. De acordo com Green (1999), o Snob definia-
se a si próprio como “um jornal de notícias para entendidos. Um jornal para
o público certo. Um jornal para quem tem bom gosto”. O Snob fornecia
uma entrada sui generis para o mundo das “bichas”, “bofes”, “bonecas”, e
“entendidos”.
Figura 7 - Snob, número 8, agosto de 1968, (capa).

Na capa da edição de agosto de 1968, a imagem apresentada traduz o


imaginário deste pequeno grupo de amigos. A ilustração apresenta uma
figura “de uma mulher” vestida em traje de gala, sentada em uma cadeira
que mais parece um trono, cheio de volutas e ornamentos. Era a imagem
das “bonecas”. Figuras com estilo, graça, personalidade, “muito bom
gosto”, que estavam “acima do resto da sociedade”, imagem esta que
durante muito tempo foi aquela idealizada por um certo grupo de
homossexuais: a imagem do diminutivo (“nosso jornalzinho”), da futilidade
(“festas, fofocas e novidades”) e da culpa (“temos um milhão de defeitos,
nós pedimos desculpas”). Esta imagem associada à futilidade, e
preconceituosamente a uma certa feminilidade, começa a ser questionada
por membros do grupo responsável pelo Snob, que passaram a se interessar
pela construção de uma identidade homossexual masculinizada, e não de
uma “boneca”. Em 1969, último ano de publicação do jornal, um dos seus
editoriais trazia o seguinte discurso:
1969 parece ser um ano de novelties. Pelo menos para nós, do Snob, muitas coisas irão
acontecer no curso deste ano. Nós iniciamos um jornal mais adulto, onde as crônicas,
poesias, artigos de real interesse, contos, e um colunismo social saudável sem fofocas, o
que foi abandonado por nosso colunista por um tempo, e sem desenhos de figuras femininas
[…] Nós vamos mostrar que agora nós estamos revelando quem realmente somos. Nós
estamos perto do século 21, a dois passos da lua, e não podemos permitir pessoas com
certas fantasias ficarem estacionadas um século atrás do nosso (apud Green, 1999: 194).
Desta vez a capa não estampava uma boneca, mas dois homens nus
fazendo sexo. O discurso era outro: “um jornal mais adulto” (apresentando
dois homens se amando), “sem desenhos de figuras femininas” (a ilustração
traz dois homens), procurando mostrar “quem realmente somos” (um dos
homens tem o pênis ereto e eles estão de mãos dadas, dando ideia de união).
A figura da “deslumbrada” ou das “bonecas” que aparecia no Snob começa
a dar lugar ao “entendido”.

Figura 8 - SNOB, ano 7, número 2, maio de 1969, (capa).12

Segundo antropólogos que estudaram a homossexualidade no Brasil,


essa nova identidade surge a partir dos anos 1960 entre a classe média do
Rio de Janeiro e de São Paulo. Os “entendidos” negavam termos
pejorativos, tais como “viado”, “louca” ou “bicha”, assim como também
recusavam o maneirismo efeminado. Eles preferiam o termo “entendido”,
pois este refletia uma pessoa mais reservada. Além disto, o termo trazia
uma posição mais igualitária, identificada sobretudo com o modelo norte-
americano, em termos de comportamento sexual, que não imitava as
dualidades ativo/passivo e masculino/feminino, associadas às posturas
hierárquicas, estabelecidas a partir de um “índice de masculinidade”.
Definitivamente aquele que penetra não é mais homem do que aquele que é
penetrado (Ver, a respeito: Green, 1999; Macrae, 1990; e Guimarães, 2004).
Como se vê, significativas mudanças que estavam acontecendo na
sociedade passaram a refletir no tratamento editorial dos periódicos.
Antes de o Lampião ocupar as esquinas do Brasil, outros jornais
tentaram esta façanha. Em dezembro de 1976, algumas das pessoas que
faziam o Snob resolvem lançar o Gente Gay. Feito de forma artesanal – o
jornal era reproduzido por xerox –, Gente Gay teve uma boa repercussão,
chegando a ser impresso de forma industrial em dois números. Mas, sendo
lançado ao mesmo tempo que o Lampião, e não amparado pelo
profissionalismo técnico com que o Lampião se armou, veio a falir. Em
1977, em São Paulo, é lançado o jornal Entender. Inicialmente artesanal, o
jornal, depois de alguns números, resolveu também se industrializar, mas
não obteve sucesso. Ainda existiram de forma bem discreta o Mundo Gay e
o Jornal dos Entendidos (Cf. Green, 1999).
Durante a década de 1970, com as mudanças comportamentais por que
passava a sociedade brasileira, jornais da grande imprensa passam a ter
colunas sociais gays. “Tudo Entendido”, de Fernando Moreno, na Gazeta
de Notícias; “Guei”, de Glorinha Pereira, no Correio de Copacabana; e a
mais famosa, e com grande destaque na mídia, a “Coluna do Meio”, do
jornalista Celso Curi, publicada no jornal Última Hora, de São Paulo, de
fevereiro de 1976 até novembro de 1977. A coluna causou grande alvoroço
no meio jornalístico e social, o que levou o autor da coluna a ser processado
por atentado aos bons costumes. Conforme o número zero do Lampião, o
superintendente do Departamento Regional de São Paulo da Polícia Federal
acusava a coluna de “promover a licença de costumes e o homossexualismo
especificamente” (p. 6).
Mas tudo isso mudaria em poucos anos. A tempestade que se abatia
sobre a sociedade brasileira desde 1964 começava a se dissipar. Os
estudantes voltavam às ruas. A UNE ressurge, e uma oposição ao regime
militar intensifica-se a partir de 1978. São estes ventos da bonança que vão
permitir o aparecimento do Lampião da Esquina, uma nova luz nos becos
escuros do preconceito, conforme veremos no próximo capítulo.

Expressão utilizada pela comunidade gay que significa “não assumir-se”, “não divulgar sua
homossexualidade”, isto é, “ficar escondido dentro do armário”.
São fontes que parecem mais desenhos do que propriamente letras. Não se destinam a textos
corridos.
“Publicar o que a imprensa heterossexual não publicaria” (Streitmatter, 1998: 88).
“Parabéns para nós! Nascemos. E como toda criança, somos, e seremos por um tempo, desajeitados,
desengonçados, cheios de inocência, e talvez até um pouco feios, exceto, é claro, aos olhos de nossos
pais. Os homossexuais, mais do que nunca, estão em campo para conquistar seus direitos legais, pôr
fim às injustiças cometidas contra eles, experimentar seu quinhão de felicidade à sua maneira. Como
jornal, o objetivo principal do Advocate é publicar as notícias que são importantes para o
homossexual – passos legais, notícias sociais, acontecimentos das várias organizações – qualquer
coisa que o homossexual precisará ou quererá saber. Existimos para servir você, mas não podemos
fazê-lo sem a sua ajuda” (The Los Angeles Advocate, n. 1, set, 1967: 6).
“Você está empregado e é um cidadão útil e responsável. Você tem um corpo atraente, boas roupas e
um lar convidativo. O ‘Homem do Advocate’ vive a boa vida – malhando, frequentando bares várias
noites na semana, enriquecendo sua sexualidade gay, lendo literatura e apreciando arte” (Advocate, n.
29, jan, 1975: 3).
“O sexo era o oxigênio das nossas vidas. Stonewall presenteara os homens gays com uma noção
visceral de liberdade, e definimos isso, literalmente, como dar-nos licença de nos deliciarmos com
múltiplos parceiros sexuais e realizarmos uma variedade infinita de fantasias sexuais” (Jim Kepner
apud Streitmatter, 1995: 194).
“A cobertura jornalística agora consiste em artigos sobre como os gays estão se aproximando do
status quo, sem falar nada sobre o que fazem os grupos ativistas. No passado poderíamos pensar em
dois grupos adversários – gay e antigay –, porém, não mais ‘o inimigo está entre nós’” (apud
Streitmatter, 1998: 186).
Título de uma música de Gilberto Gil, LP Gal Costa, Philips, 1969.
Expressão que surge na década de 1970, e que traduzia o comportamento de alguns jovens que
tinham como política a liberdade sexual, o uso das drogas e a música, em contraste com outros que
aderiram à luta armada.
Extraido do livro Além do Carnaval de James Green.
CAPÍTULO II
O PRIMEIRO LAMPIÃO É ACESO
O legado mais importante da “Rebelião de Stonewall” foi ela ter se
transformado de um simples momento de emoção à flor da pele em um
movimento de racionalização, de sistematização da luta, de inauguração e
prolongamento de ações políticas que deixarão marcas profundas nos
corpos e mentes de gays e lésbicas. Depois que a tormenta passou, foi a vez
dos jornais e revistas da imprensa gay manterem acesa a lembrança daquela
semana nas cabeças e corações de sua comunidade e de toda a América.
Rodger Streitmatter (1995) conta-nos que somente nesse período (os
meses seguintes a Stonewall) apareceram em Nova York quatro jornais:
Gay, Come Out!, Gay Times e Gay Flames; na costa do Pacífico surgiram
vozes radicais: Gay Sunshine e San Franciso Gay Free Press; em Boston
tivemos o Lavender Vision; em Detroit, o Gay Liberation; e o Killer Dyke,
em Chicago. Estes foram alguns dos mais importantes periódicos que
surgiram logo depois do incidente de Stonewall.
Os periódicos sempre foram bons comunicadores das histórias da vida e
dos sonhos. Além disso, eles criam verdadeiros espaços de manifestação de
opiniões acerca de um certo tema, com alguma coerência ideológica entre
si, e colaboram para congregar um determinado grupo de pessoas que leem
a mesma história e compartilham dos valores ali expressos, e que de alguma
maneira se identificam com eles. Por isto, jornais e revistas são um campo
da inevitável ação do design gráfico, responsável por estabelecer um
equilíbrio entre forma, conteúdo e função, num mecanismo de amarra de
comunicação para os leitores. De certo modo, posso dizer que o design
gráfico tem um grande peso no sucesso de mercado ou não dos novos
periódicos.
De acordo com Richard Buchanan (1989), o designer, em vez de
simplesmente criar um objeto ou coisa, está criando, de fato, um argumento
persuasivo que se aviva sempre que um usuário contemplar ou usar um
produto. Ou ainda, conforme Rafael Cardoso Denis (1998: 35): “A função
do designer é fazer colar – aderir mesmo – significados de outros níveis
bem mais complexos do que aqueles básicos que dizem respeito apenas à
sua identidade essencial”. O design é responsável por articular numa
linguagem complexa um processo de enunciação que envolve relações
ontológicas, históricas, atributos simbólicos, materiais, técnicos etc. Trata-
se de uma tecnologia aplicada à criação, produção e veiculação da mídia
visual, bem como dos diferentes discursos assumidos nas suas diversas
manifestações. Nessa perspectiva, o designer também é um construtor de
discurso. Ele ocupa o lugar de intermediar o processo comunicacional.
Segundo Kress e Leeuwen: “O design visual, como a língua, na verdade
como todos os modos semióticos, desempenha duas funções principais –
uma função de produzir ideias, representando o mundo ao redor e dentro de
nós, e uma função interpessoal, articulando as interações sociais com
relações sociais” (Kress & Leeuwen, 2000: 13).
O design é uma área intersticial, que se avizinha e se estende por
diversas áreas. Para Gustavo Bomfim (1998): “O design, do mesmo modo
que qualquer outra atividade do processo extremamente complexo e
dinâmico do trabalho social, é orientado por um conjunto de objetivos de
natureza política, ideológica, social, econômica, etc.” O design gráfico, por
sua vez, é uma das especialidades dentro do próprio design. Ele articula
questões que são maiores e muitas vezes distantes da sua esfera de ação
tradicional como mera arte aplicada, pois trata de associar elementos da
comunicação social, das artes plásticas, da arquitetura etc. com a indústria
cultural como um todo.
Streitmatter (1995) nos leva a uma detalhada viagem pela imprensa gay
americana, mostrando o papel importantíssimo que os periódicos tiveram e
continuam tendo para a construção e afirmação de um movimento com
ideias e identidades próprias. De acordo com o autor, circulam nos Estados
Unidos cerca de 850 publicações endereçadas ao público gay/lésbico.
No Brasil, como veremos a seguir, ainda demoraria para que gays e
lésbicas pudessem ter canais formalmente concebidos e elaborados para
veicularem seus interesses e opiniões, e sobretudo servirem de instrumento
agregador de diversos grupos. Diferentemente dos Estados Unidos, só em
1978 surge no Brasil o primeiro periódico nacionalmente distribuído e
dirigido a este público, que ajudou a semear o que viria a ser o movimento
gay brasileiro: o Lampião da Esquina.
2.1 Nasce uma cultura gay organizada (?)
O surgimento do Lampião da Esquina faz parte do inconformismo
diante da repressão e do conservadorismo que se abatia sobre uma parcela
da sociedade brasileira. O Lampião foi o primeiro, em nível nacional, a
abordar a questão da homossexualidade, além de lutar contra a repressão e o
preconceito fortemente recrudescidos durante a ditadura militar. Entretanto,
como indiquei no capítulo anterior, de maneira discreta e reservada outras
publicações circulavam por pequenos grupos. Entre os anos 1960 e 1970
muitos periódicos direcionados para o público gay surgiram e
desapareceram no Rio de Janeiro. Fora do Rio, um dos lugares mais
significativos em termos de imprensa homossexual foi Salvador. Entre 1963
e 1978 várias publicações datilografadas, mimeografadas ou xerocadas
circularam entre a comunidade gay, conforme atesta Marcus Assis Lima
(2001) em seu ensaio sobre a imprensa homossexual no Brasil.
No Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, o movimento gay
organizado começou efetivamente na segunda metade da década de 1970.
Em 1976, o escritor e jornalista João Silvério Trevisan tentou formar um
grupo para discutir a homossexualidade. Dos poucos que compareciam aos
encontros, grande parte era reticente em falar publicamente de seus medos e
anseios, ou em assumir a sua sexualidade. Esta iniciativa inspirou outras
ações com o mesmo objetivo, as quais, ainda que não tenham logrado êxito,
marcaram o panorama inicial de um rico movimento. Mas foi o começo!
No fim da década de 1970, um grupo de intelectuais assumidamente
gays, entre eles o próprio Trevisan, valendo-se do arrefecimento da
repressão política brasileira, lançam aquele que é considerado o primeiro
veículo de ampla circulação dirigido ao público homossexual – o jornal
Lampião da Esquina. A ideia do jornal surgiu a partir da visita ao Brasil do
editor Winston Leyland, da Gay Sunshine Press, de São Francisco,
Califórnia. Ele veio à procura de autores brasileiros para fazer uma
antologia da literatura gay latino-americana. Pode-se dizer que o
lançamento do jornal, em abril de 1978, fortaleceu a ação de alguns rapazes
de São Paulo, organizadores de um grupo que se tornaria responsável por
consolidar o movimento homossexual no Brasil – o Grupo Somos (Cf.
Green, 1999). Com seus textos longos e comprimidos em letras pequenas,
que só não atrapalhavam mais a leitura porque a vontade de lê-los era maior
do que a crítica que podíamos fazer na época, o Lampião da Esquina
iniciava um novo capítulo para a história da construção e da afirmação de
uma identidade gay no Brasil.
2.2 Um lampião na esquina
No fim da década de 1970 começa a chamada “distensão política”, ou
seja, a rigidez do controle social começa a arrefecer. O Lampião da Esquina
faz resistência, enfrenta a moral conservadora da esquerda e o pragmatismo
da direita. Poucos jornais da imprensa nanica refletiam as mudanças
comportamentais pelas quais o mundo e o Brasil estavam passando. A
preocupação maior era discutir os caminhos que a política brasileira viria a
tomar, ou, como se dizia na época: “É necessário unir-se pela luta maior!”
Um ano antes de o Lampião da Esquina ser lançado, Júlio César
Montenegro, Genilson Cezar, Ronaldo Brito e Caio Túlio Costa publicaram
O Beijo. Embora não se tratasse de um jornal para homossexuais, O Beijo,
de vida curta (durou apenas seis edições), foi o primeiro a discutir o prazer
como forma de luta e modo de vida. Nessa época, as teorias de William
Reich eram recuperadas na Europa, e de certa forma aportaram em alguns
setores da sociedade brasileira. Conforme afirma Kucinski (2003): “O Beijo
foi um refinado produto da imprensa alternativa. A radicalidade levada às
últimas conseqüências. Sua diagramação era ousada, concretista”.
Diferentemente do Lampião da Esquina, que nos seus três anos de vida
manteve o mesmo sisudo e conservador projeto gráfico.
Lançado em 1978, ano eleitoral que marcou o início da abertura política,
o Lampião chegou aos primeiros leitores através de uma mala direta
organizada pelos editores e por uma rede de amigos. O número zero do
jornal foi entregue na casa de alguns escolhidos, protegido por um envelope
de papel pardo, como forma de não comprometer quem o recebesse. Na sua
capa, duas grandes chamadas: no alto da página, logo abaixo do logotipo,
“Homo eroticus – um ensaio de Darcy Penteado”; no meio da página,
ladeada de retratos, a chamada principal: “Celso Curi processado. Mas qual
é o crime deste rapaz?” (Figura 1, p. 18). Segundo Edward Macrae (1990),
a primeira tiragem foi de 10 mil exemplares, sendo logo aumentada para 15
mil.
A possibilidade de afirmar uma identidade gay no Brasil foi fruto de um
processo que começou gradativamente nos anos 1950 e 1960 e reflete uma
intricada rede de múltiplos fatores. É durante o final da década de 1970 que
o número de estabelecimentos, tais como bares, saunas e boates, voltados
para os homossexuais se expande consideravelmente, principalmente no
eixo Rio-São Paulo, proporcionando novas oportunidades para os gays
interagirem. Além disso, por essa época, referências a movimentos sociais
americanos chegavam até o Brasil, influenciando uma nova posição com
relação à sexualidade. Podemos citar ainda peças com temas gays, que são
montadas com sucesso, como a produção de 1971 de “Os rapazes da
banda”, sucesso off-Broadway de 1968 e “Greta Garbo, quem diria acabou
no Irajá” em 1974, que ficou vários anos em cartaz. Em 1975 Aguinaldo
Silva lança seu livro Primeira carta aos andróginos. No ano seguinte Darcy
Penteado publica A meta. No mesmo ano Gasparino Damata edita Histórias
do amor maldito. Todos esses acontecimentos representaram uma inédita
expansão do campo da polêmica e da “protagonização” da
homossexualidade. Isso acaba por se refletir na linha editorial do Lampião,
que com o tempo passa a ser o porta-voz de discursos inflamados sobre
sexualidade, no que ela tem de positivo e criador, atingindo milhares de
leitores ávidos de poderem ver-se espelhados nas páginas do jornal.
Tanto quanto narrar a situação social e política de um grupo em
determinada época, um jornal ou revista de temática libertária seleciona os
temas e assuntos que orientam e de certa forma fundamentam a constituição
e o fortalecimento de identidades dos grupos a que se destinam. Como
afirma Kathryn Woodward, “as identidades adquirem sentido por meio da
linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas. [...]
Existe uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que uma
pessoa usa” (2000: 8-10).
A criação de um novo veículo de comunicação, seja ele impresso ou
não, deve significar, portanto, bem mais que a criação de um instrumento de
luta. Trata-se do questionamento criativo das diversas possibilidades
identitárias de uma parcela da população historicamente invisibilizada por
uma singular e lesiva generalidade identificatória. Ainda de acordo com
Woodward, quaisquer que sejam os conjuntos de significados construídos
pelos discursos, eles só podem ser eficazes se nos recrutam como sujeitos.
Os sujeitos são, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles próprios,
assumi-lo como indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si próprios.
As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem
nossas identidades (2000: 55).
É assim que compreendo a apresentação, no título do editorial número
zero, da proposta do jornal: “Saindo do gueto”. O Lampião surge com a
proposta de criar uma consciência homossexual, assumir-se e ser aceito. A
leitura de um trecho do editorial do número dois – que tem por título
“Homossexualismo: que coisa é essa?” – é bastante conclusiva a este
respeito: “Por essa razão a maioria dos homossexuais tem desejado ser
‘normal’ e durante toda a vida recalca e esconde seus sentimentos
verdadeiros, numa tentativa de condicionamento nessa ‘normalidade’”.
Como se pode ver, o discurso é o de ser aceito, e, se possível, dentro da
normalidade.
Por questões de encaminhamento, farei uma apresentação do número
experimental separadamente dos outros, que serão apresentados e
analisados individualmente e/ou em grupos.
O número zero do Lampião
O número zero chamava-se apenas Lampião. A partir do número um, o
cabeçalho do jornal traria o nome Lampião da Esquina.13 O Conselho
Editorial do jornal foi formado por 11 pessoas: os jornalistas Adão Costa,
Aguinaldo Silva, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Gasparino
Damata e João Antônio Mascarenhas; o artista plástico Darcy Penteado; o
crítico de cinema Jean-Claude Bernardet; o antropólogo Peter Fry; o poeta e
crítico de arte Francisco Bittencourt; e o cineasta e escritor João Silvério
Trevisan. Aguinaldo Silva desempenhava a função de coordenador de
edição. Na sua apresentação o Conselho diz que, além de traçar a linha
editorial do jornal, também escolherá os livros que a editora publicará.
E assim começou o Lampião, cheio de esperanças...
O jornal aparece com sete seções: “Opinião” (o equivalente ao
editorial); “Ensaio” (duas vezes); “Esquina” (seção com artigos e notas
variadas); “Reportagem”; “Literatura” (duas vezes); “Tendência” (seção
cultural que se divide em “Livro”, “Exposição” e “Peça”); e “Cartas na
Mesa”. A partir do número cinco é publicada uma nova seção, “Bixórdia”,
de fofocas em geral.
Figura 9 - Lampião, número 0, abril de 1978, (capa).

No primeiro parágrafo do editorial, “Saindo do gueto”, uma pergunta


chama a atenção: “Mas um jornal homossexual, para quê?”. Vê-se nesta
pergunta a preocupação dos editores em lançar um jornal que não falava da
“luta maior”, e sim de assuntos até então considerados secundários, tais
como sexualidade, discriminação social, artes, ecologia etc. Mais adiante,
no terceiro parágrafo, eles respondem à pergunta:
Nossa resposta, no entanto, é esta: é preciso dizer não ao gueto e, em consequência, sair
dele. O que nos interessa é destruir a imagem padrão que se faz do homossexual, segundo a
qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara sua preferência
sexual como uma espécie de maldição, que é dado aos ademanes e que sempre esbarra, em
qualquer tentativa de se realizar mais amplamente enquanto ser humano, neste fator capital:
seu sexo não é aquele que ele desejaria ter (Lampião, número zero, p. 2).
E finalizam dizendo: “Nós nos empenharemos em desmoralizar esse
conceito que alguns querem impor – que a nossa preferência sexual possa
interferir negativamente em nossa atuação dentro do mundo em que
vivemos” (idem).
O jornal abre com o ensaio de Darcy Penteado, no qual ele fala sobre a
arte erótica que diz ter criado, e as dificuldades que os artistas tinham em
tratar do tema, fazendo somente abordagens tímidas ou evitando-o por
causa da delimitação moral imposta pela sociedade. Comenta a ausência de
nu masculino nas obras brasileiras.
A seguir, o jornal apresenta um ensaio sobre a verdade (?) de Garcia
Lorca – poeta e dramaturgo homossexual, vítima da violência política
franquista. Uma pequena nota fala que mulheres foram convidadas a
participar do jornal, entretanto não houve retorno ao convite.
O jornal apresenta ainda um artigo de Frederico Jorge Dantas, dono do
nanico Entender (de São Paulo), em que ele questiona: “Qual é a nossa
imprensa?”. Ele desaprova o que ele chama de “colunismo social”, em
referência às colunas que falavam dos gays, mas mantinham os mesmos
estereótipos criados pela sociedade machista. Ele afirma pretender com seu
jornal formar uma consciência homossexual:
Tentar esclarecer sobre a necessidade existente nos homossexuais desta nova geração, de
buscarem um modelo de identidade a ser aceito pela sociedade, juntando a isto a
demonstração de engodo existente na atualidade, onde as “deslumbradas” [...] insistem em
defender a teoria ainda aplicável de que o homossexual deve se impor pelo campo
financeiro, convivendo no entanto dentro dos preconceitos machistas, é uma das coisas que
pretendo, embora isto acabe transformando a coisa em estado de guerra (Dantas, 1978: 5).
Percebemos, portanto, que a busca por um modelo de identidade não
pertence só ao autor da matéria, mas ao Entender como um todo. O nome
do jornal de Dantas reflete sua preocupação em apresentar o “novo”
homossexual – o “entendido”. O entendido busca uma posição de igualdade
com o parceiro. Os entendidos não querem a imagem das “deslumbradas”;
muito pelo contrário, procuram adotar uma imagem considerada mais
masculina. É nesse momento que a palavra “gay” começa a ser usada por
alguns homossexuais e em pouco tempo fará parte do vocabulário de toda a
sociedade.
Os editores do Lampião adotam todas as denominações, chulas ou não,
para designar o comportamento sexual entre pessoas do mesmo sexo, e
mudam a grafia da palavra “gay” para “guei”, uma forma de abrasileirar um
termo que começa a se impor como sinônimo de homossexual masculino ou
feminino. Na seção Cartas na Mesa do número zero, a carta de Paulo
Bonorino critica a utilização da palavra “gay” para designar homossexual.
“Não aprecio a palavra ‘guei’ aplicada às pessoas homossexuais
simplesmente porque não podemos defini-las como alegres por natureza e
essência”. Com o tempo esta associação desaparece, e a palavra passa a
significar apenas o homossexual masculino.
Durante os seus três anos de vida, o Lampião da Esquina buscou
delimitar essas identidades. Da “bicha louca” ao “gay macho”, o jornal
percorreu vários caminhos. No ensaio “Lontra, piranhas, ratos, veados e
gorilas, atenção: vocês também têm direitos (a ONU decidiu)”, no número
zero, o jornal ironiza as várias lutas das minorias. Por meio da publicação
da Declaração dos Direitos dos Animais, o autor instiga o leitor a
(indiretamente) indignar-se, depois de uma leitura crítica – levando-o à
consciência de si mesmo, ou seja, de sua identidade. O ensaio é
acompanhado de uma charge, em que vários animais marcham com uma
grande faixa na qual se lê: “COLEGAS: UNI-VOS!!!”.
A matéria principal do mesmo número discutiu o caso Celso Curi – o
jornalista que criou a primeira coluna gay de um grande jornal, no caso o
Última Hora, e por isso foi processado judicialmente. Qual foi o seu crime?
Falar publicamente de um assunto até então visto como algo menor e de
certa forma proibido? Ou por ter assumido sua homossexualidade para todo
o Brasil? O jornalista acabou sendo demitido do jornal.
Ainda nesse mesmo número, o jornal falou do Cinema Íris, construído
no início do século XX, em pleno coração da cidade do Rio de Janeiro, e
frequentado pela classe média. Aos poucos estabeleceu-se um público de
homens que iam (e ainda vão) para furtivos encontros sexuais. Naquela
época, era frequentado por soldados da Polícia Militar e do Corpo de
Bombeiros dos quartéis próximos, pessoas saídas da Cinelândia, moradores
das hospedarias próximas à praça Tiradentes, rapazes de outros locais etc. –
todos à procura de prazer com parceiros do mesmo sexo. O Cinema Íris
ainda hoje mantém filmes eróticos e shows de strip tease.
Na seção Literatura é apresentada poesia da novíssima geração de
poetas: João Paulo Augusto, Leila Miccolis e Franklin Jorge – todos com
temática ligada à sexualidade.
Na seção Tendências, há críticas dos novos filmes sobre Nureyev e
Cassius Clay, a montagem em São Paulo de Zoo Story de Edward Albee e a
exposição de Lauro Cavalcanti no MAM – RJ.
O número zero termina com um conto de Moacir Moura, intitulado
“Aniversário”. Uma história de um triângulo amoroso entre dois rapazes e
uma mulher.
Esse foi o número zero. Como se lê no editorial “O importante era sair
do gueto”. E para isto não importava se você frequentava o Cinema Íris, e
não reprimia sua sexualidade, ou ia à galeria de arte de Darcy Penteado, ou
assistia à peça Zoo Story, ou ainda se divertia com a mostra de Lauro
Cavalcanti, legitimando produções e/ou personalidades que destacavam o
papel do gay na sociedade. Foi um número experimental, de circulação
restrita, alcançando apenas alguns poucos que faziam parte da rede de
amigos dos 11 editores. De alguma forma, os primeiros a terem acesso ao
jornal eram socialmente privilegiados, “entendidos” no assunto.
Quanto ao projeto gráfico, de formato tabloide, o jornal não trouxe
nenhuma novidade gráfica. Sua diagramação era tradicional, e os textos
seguem uma mancha gráfica previamente construída. Observa-se que a
ilustração era usada com o mesmo peso da fotografia. Para a capa é
utilizado o recurso da impressão com duas cores, o preto e mais uma; no
interior a impressão é uma cor (P/B). Estas vão ser as características
gráficas predominantes do jornal. Vale assinalar que, para o número zero, a
segunda cor escolhida foi o vermelho, uma cor quente e de grande impacto.
Em termos gerais, o projeto gráfico do jornal seguia o mesmo padrão da
imprensa alternativa. Os editores, por falta de recursos, ou por não
valorizarem este aspecto, não trouxeram nada de novo em termos gráficos,
a não ser o fato de ser um jornal para homossexuais, ou, como eles queriam,
um jornal para as minorias.
De cabo a rabo
Do número um até o fim dos seus dias, o Lampião vai tentar “iluminar”
boa parcela da comunidade gay, ou, como eles queriam, “guei”. O jornal
trouxe grandes reportagens, abordando temas que falavam da situação dos
homossexuais em Cuba, passando pela posição da Igreja em relação à
homossexualidade, e até reportagens sobre os travestis cariocas.
Personalidades do meio cultural, não necessariamente homossexuais,
também foram entrevistadas. Contos, poesia, críticas de teatro, de cinema,
literárias etc. juntavam-se às cartas dos leitores, num fórum de grandes
debates. Durante seus três anos e meio de vida, o jornal não perdoou
aqueles que, de alguma forma, eram homofóbicos, e notas de desagravo
eram constantes. Já no final de sua existência, o jornal começa a publicar
nus masculinos, o que durante muitos números tentou evitar. O Lampião da
Esquina acabou por iluminar várias esquinas e becos escuros deste país.
Conforme afirmaram Peter Fry e Edward Macrae:
O jornal certamente foi de grande importância, na medida em que abordava
sistematicamente, de forma positiva e não pejorativa, a questão homossexual nos seus
aspectos políticos, existenciais e culturais (1983: 21).
O jornal tentou atingir um público muito diverso e com muitas
particularidades. A identidade do seu público pode ser percebida pela
diversidade de assuntos que o jornal abarcou. Tratava de bichas, gueis,
entendidos, viados, homossexuais, travestis, negros, mulheres, feministas,
ecologistas etc. A proposta de criar uma consciência homossexual, assumir-
se e ser aceito, foi desenvolvida no Lampião da Esquina por meio de
denúncias, opiniões e reportagens. Nesta perspectiva, o jornal procura
muito mais uma identificação com aquele que o lê, do que afirmar uma
identidade monolítica.
Stuart Hall afirma que “a identificação é construída a partir do
reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são
partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo
ideal” (2000: 106). E assim como existe gay (guei?) para todos os gostos, o
Lampião da Esquina não vai falar para os leitores acerca de uma identidade
homossexual pré-definida, mas para um homossexual que quer compartilhar
sentidos e não encontra semelhantes na grande imprensa.
Assim, não vamos encontrar no jornal um discurso dirigido a uma classe
social definida. Ele vai falar para aqueles que vivem na “terceira margem
do rio”, ou melhor, para aqueles invisíveis, socialmente falando. Mas
também vai trazer informações para aqueles que já estão acostumados a
obter informação. Vai falar de Foucault e de Sartre, de Carmem Miranda e
de Mário de Andrade, de abertura política e de repressão violenta. O
homossexual brasileiro, com suas múltiplas identidades, encontra no
Lampião da Esquina seus semelhantes. Diferentes, porém iguais.
O Lampião da Esquina inicia um movimento que em pouco tempo, e
juntamente com outras mudanças sociais, vai beneficiar uma comunidade
até então sem espaços para se expressar. A consciência de que se é cidadão
e de que a homossexualidade é uma identidade a ser encarada como uma
alternativa legitima à heterossexualidade é apresentada nas diferentes
narrativas do jornal, nas cartas dos leitores, nas charges, e/ou nas vinhetas
das seções.
A aparição do Lampião trouxe pela primeira vez a possibilidade de um
espaço estruturado de discussão nacional sobre a homosse-xualidade. Toda
a imprensa dirigida ao público gay anterior ao Lampião era produzida por e
para grupos de amigos, e, de certa forma, ingênua e frágil. O Lampião é
aceso para iluminar um espaço obscuro, para clarear questões sobre a
sexualidade e principalmente sobre a homossexualidade. O Lampião da
Esquina deu chance a uma parcela da sociedade de expressar seus
pensamentos e seu modo de ser, criou um espaço para a discussão que não
existia na grande imprensa. A coragem dos editores traz esperança para
aqueles que leem o jornal. O discurso do Lampião da Esquina é de não
conformismo.
Segundo Foucault, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que se luta, o poder do
qual nos queremos apoderar” (2003: 10). Assim, o jornal vai oferecer seu
espaço de debate àqueles menos privilegiados, e por isso vai procurar
estabelecer alianças com as outras “minorias”, como os negros, as
feministas, os índios, e com as “minorias dentro das minorias” – michês,
travestis, prostitutas etc. Porém, infelizmente este objetivo não é alcançado.
O Lampião vai esclarecer, vai evidenciar certas questões, mas também se
mostrará contraditório e incoerente; esta possibilidade de se abrir para
várias direções vai acabar por confundir os leitores. Como indica Foucault
(1984):
A identidade é útil enquanto for somente um jogo, um procedimento para manter relações
sociais e de sexo/prazer que criam novas amizades. [...] Não devemos excluir a identidade,
se ela dá prazer às pessoas, mas não devemos concebê-la como uma regra universal.
Edward MacRae, no seu livro A construção da igualdade: identidade
sexual e política no Brasil da abertura, conta-nos que
apesar deste empenho em manter suas páginas abertas a outros grupos sociais, o Lampião
nunca conseguiu ser plenamente aceito como um jornal das minorias, seus aspectos
homossexuais emprestando-lhe um estigma que parecia por demais “contagiante”
afugentando os segmentos heterossexuais de seu público potencial (1990: 76).
Em entrevista a mim concedida em 2005, Antônio Carlos Moreira,
jornalista que participou diariamente da produção do jornal, desde o número
23 até o último, 37, esclarece que o jornal não tinha pesquisa sobre quem
era seu leitor. E que isto era uma questão muito conflitante na redação, pois:
O Aguinaldo achava que sabia quem era esse leitor, né? Então ele sempre dizia, que ele
queria que... O jornal, ele estava direcionado e quem lia o jornal era... (vamos usar os
termos...) Era aquela bichinha do subúrbio, a bichinha da cidade, que não era
intelectualizada e que estava procurando alguma informação e queria, de uma certa forma,
se inteirar da história e queria um roteiro, não sei o que... E... Ele fechava o jornal com esse
porte pra esse segmento, né? [...] O Trevisan queria um jornal mais intelectual, aos moldes
dos jornais estrangeiros.
Ou ainda, conforme MacRae, os conflitos do jornal refletem “a grande
diversidade de opiniões existentes não só na redação do jornal, mas também
entre o seu público leitor. Esse era sabidamente heterogêneo em termos de
classe, cultura, idade, ideologia política, localização geográfica etc.” (1990:
76).
De suas intenções iniciais, de se tornar um veículo para “destruir a
imagem-padrão que se faz do homossexual, segundo a qual ele é um ser que
vive nas sombras, que prefere a noite, que encara sua preferência sexual
como uma espécie de maldição” (Lampião, número zero), o jornal, na
tentativa de falar para todos, acabou colocando no mesmo barco gays e
“gueis”, bichas, entendidos, travestis e o que mais viesse, acabando por se
arriscar a ratificar a imagem-padrão que eles queriam destruir.
Concomitantemente, os militantes do movimento homossexual que se
iniciava achavam que o jornal devia conceder mais espaço para eles. Essa
questão era polarizada dentro da redação. Antônio Carlos diz que “o
‘movimento’ era uma outra coisa, e o Aguinaldo fazia questão de deixar
isso claro! O Francisco Bittencourt, aliás, era a pessoa que mais era avessa
ao “movimento”. [...] A preocupação era que o jornal não virasse uma voz
da unidade do movimento gay” (Moreira, 2005).
MacRae também menciona esta tensão entre o jornal e o movimento:
Embora durante a maior parte de sua existência o Lampião tenha defendido e promovido a
militância, a partir de um determinado momento a posição do jornal tornou-se francamente
agressiva em relação aos grupos, e as manchetes e artigos publicados serviram para
divulgar pelo país inteiro uma grande desconfiança a respeito de qualquer política
homossexual (MacRae, 1990: 88).
Nessa disputa de poder, o jornal perdeu-se na luta contra os paradigmas
que o incipiente movimento homossexual tentava pregar. Conforme João
Silvério Trevisan, um dos fundadores do jornal:
Lampião acabou radicalizando infantilmente seu repúdio ao ativismo guei. Certos setores
do jornal mergulharam num vago populismo, brandindo descabidamente o travesti em
contrapartida ao guei-macho, o que acabou lhe dando um aspecto quase tão sensacionalista
quanto os jornais da imprensa marrom. O resultado foi uma descaracterização das intenções
iniciais do projeto, o que provocou uma sensível diminuição nas vendas de exemplares
(Trevisan, 2002: 361).
Com um corpo editorial formado por 11 personalidades com posições
ideológicas tão díspares, não é de se estranhar que cedo as disputas por
temas acabariam por enfraquecer o jornal. Isto pode ser percebido logo de
início pela falta de um editorial dirigido. A seção Opinião, que caracteriza o
espaço para o jornal desenvolver sua linha editorial, é ocupada na verdade
por opiniões pessoais de membros do Conselho Editorial. Segundo Dolores
Rodrigues (2005), jornalista e redatora, que trabalhou no jornal do número
27 até o último, 37, existiam dois núcleos no jornal: o do Rio, capitaneado
por Aguinaldo Silva, e o de São Paulo, representado por Darcy Penteado e
João Silvério Trevisan, sendo que a palavra final era dada pelo núcleo do
Rio. Já na visão de Moreira, “essa diversidade das cabeças tornava
complicado você ter uma página de opinião. No início, lá no número zero,
você tem lá as intenções. Quer dizer... aquilo, acho que foi uma tentativa de
se ter uma estrutura editorial, que fica até um determinado momento”.
É muito significativo que a seção desapareça a partir do número 7.
Durante 13 números a seção Esquina, caracterizada nas outras edições por
ser um espaço para matérias mais informativas do que discursivas, vai
ocupar o espaço da seção Opinião. Esta volta a aparecer a partir do número
20, e se mantém até a edição 29. Esta é o começo do fim do jornal. O
espaço agora passa a ser ocupado por outras duas seções: Cartas na Mesa e
a seção Troca-troca. Falando para poucos, e não tendo como se sustentar
financeiramente, o jornal fecha as portas na edição de junho de 1981.
Para analisar as mudanças pelas quais o jornal passou, e a sua relação
com os leitores, investiguei os diferentes discursos nele veiculados.
Veremos primeiramente a linguagem verbal, o texto apresentado nas suas
capas e páginas. Em seguida, abordarei a linguagem gráfica, sua
diagramação, suas imagens e vinhetas.
A partir de leituras e observação sistemática dos 37 números do jornal,
pude verificar que seu discurso verbal, diferentemente do discurso visual,
mudou muito. Já que o Lampião não tem uma linha editorial definida, ou
uma seção assumidamente intitulada Editorial, comum a vários periódicos,
fiz primeiramente um levantamento da seção Opinião, sua equivalente, ao
longo dos anos. De acordo com Moreira
O Aguinaldo nunca quis [ter uma seção Editorial], até onde eu percebi, no dia a dia da
redação do jornal, quando entrei. Ele, por perceber a diversidade, e também por saber que
ele tinha hegemonia sobre o produto, né? Já que ele finalizava o produto. [...] Ele tinha a
preocupação de não ter uma coluna de opinião, onde tivesse uma única posição.
Dessa forma, pude observar as opiniões de alguns membros do
Conselho Editorial, ou opiniões alheias, mas que de certa forma eram
respaldadas pelo jornal, e assim levantar as questões que o jornal assumia
como sendo “sua opinião”. Em alguns casos comentarei também certas
matérias ou pequenas notas que chamaram a atenção pelo tema.
Pelas esquinas do jornal: a linguagem verbal
Com o título de “Nossas gaiolas comuns”, a seção Opinião do número 1
apresenta um texto assinado apenas por Mariza (uma colaboradora do
jornal). Ela comenta que o jornal se queixa no seu número zero “de não
haver encontrado mulheres dispostas a colaborar com ele em sua luta
comum de pessoas que não aceitam ser definidas como desiguais em
relação a outras pessoas”. Mariza coloca que, em termos de definição
sexual, as “categorias” deveriam ter bem clara sua autodefinição, e como os
enunciados dos atributos essenciais e específicos se relacionam com “outras
categorias”. Não se tratava, segundo a autora, de um isolamento de várias
categorias em grupos fechados, mas de uma reflexão prévia sobre qualquer
discussão mais geral. O texto questiona, então, as dificuldades desta
reflexão de se concretizar.
Ela aponta duas questões: em primeiro lugar, a irrelevância dessa
tentativa, já que a “luta maior” (a da transformação da sociedade) seria mais
importante; em segundo, o papel da história, pois, segundo Mariza, “sempre
foi assim em todas as sociedades, a mulher sempre ocupou um lugar de
subordinação, os homossexuais sempre aparecem na história em crise da
humanidade, ou o macho é o ser agressivo e de dominação”. Para terminar,
o texto aponta que as categorias “sexuais são específicas e essa
especificidade deve ser concretamente analisada por todos os interessados
em seu esclarecimento”. Mas, que se fique alerta, pois “ao definirmos o
específico enfrentamos o risco de criarmos outras divisões”. Para a autora:
Ou tentamos, todos juntos, abrir a porta da gaiola, ou permaneceremos lá dentro, cada um
com a ilusão de que está numa gaiola particular. Isto não significa esquecer a singularidade
da situação da mulher, ou de outras situações, mas implica ter plena consciência da “gaiola-
blusa”, vestida por todos nós, cada um à sua maneira (Lampião, n. 1, Opinião).
Esta foi a primeira participação de uma voz feminina dentro do jornal.
Esta posição vai mudar com o tempo. O jornal não discute nem comenta o
posicionamento de Mariza, embora o lesbianismo e o feminismo
merecessem um grande espaço nas páginas do jornal. As mulheres irão
ocupar boa parte desse espaço, seja apresentando reportagens, fazendo
denúncias, ou dando entrevistas.
Assinada por membros do Conselho Editorial, a seção Opinião do
Lampião número 2 traz dois artigos cujos títulos são perguntas.
“Homossexualismo: que coisa é essa?” e “Assumir-se ? Por quê?”. O
primeiro, assinado por Darcy Penteado, discute as “causas” da
homossexualidade, e como a sociedade tenta “enquadrá-la”. Como diz o
artigo, mais do que um fato, o homossexualismo é uma condição humana.
O segundo, assinado por João Antônio Mascarenhas, responde aos leitores
dando 12 motivos para o assumir-se; entre eles estão: o fazer-se respeitar; o
defender-se contra a opressão e angústias; por ser um ato político e de
autorrespeito; pela ausência de sentimento de culpa; pelo aumento da
segurança, por nos vermos livres de tensões; e pela liberdade. O artigo
também fala de alguns problemas que isto possa vir a trazer para a pessoa,
mas defende explicitamente o ato de se assumir.
Mas como assumir? Quem vai assumir? O jovem que mora com os pais,
ou o executivo enrustido? A “bicha louca” moradora da periferia da cidade,
ou o jovem intelectual universitário? São questões que ficam sem respostas.
Neste mesmo número, um artigo da seção Esquina mostra que a questão
não é tão fácil, e o leitor fica sem entender o que o jornal pretende, pois ao
mesmo tempo que ratifica a importância do assumir, se contradiz no seu
discurso jornalístico.
No artigo “Algumas histórias de amor”, assinado por Antônio
Chrysóstomo ainda no número 2, ficamos conhecendo os donos da boate
Sótão.14 Durante a reportagem, os proprietários do estabelecimento
comentam com o autor sobre alguns homossexuais que frequentam o local.
Eles afirmam que se trata de “homossexuais de vida social e privada
normal, sem os desvios e neuroses que a maioria tenta impingir”.
Chrysóstomo descreve alguns rapazes, todos ricos e de bem com a vida, e
apesar de a matéria falar que eles “não são tão difíceis assim de serem
encontrados [...] [embora] quase nunca [sejam] mostrados em reportagens”,
o autor também se furta a colocar fotos ou citar os nomes, empregando
apenas as iniciais, ainda que na página anterior o jornal tenha falado da
importância do assumir-se.
MacRae também chama a atenção para esse fato:
Embora o jornal reforçasse a necessidade de “se assumir” (sendo que o próprio ato de ir a
uma banca de revista e comprar o Lampião acabava sendo uma maneira de fazê-lo), ele
sempre deixou em aberto qualquer tentativa de explicação da etiologia dessa condição
(1990: 79).
Assumir ou não é uma discussão que nunca terminou. Hoje, pelo menos
aqui no Brasil, isto ainda é tema presente não só nos periódicos, como
também nos grupos organizados.
Na edição de número 3, uma pequena nota se destaca na seção Opinião.
Com o título “Desafio aos cartunistas”, a nota esclarece que, quando o
jornal foi lançado, o Conselho Editorial assumiu o compromisso de
“renascer a cada número; entenda-se, neste caso, renascimento também por
renovação”. A nota fala que o jornal passou de uma linguagem séria do
número zero para um linguagem mais descontraída. Mas a finalidade do
comentário é protestar contra a falta de humor no jornal. Eles perguntam
onde estão os cartunistas e chargistas deste país e colocam esta questão
como um desafio para os próximos números. Ainda na mesma nota, o
Conselho Editorial avisa que a partir da próxima edição o artista gráfico e
ator Patrício Bisso estará criando rubricas para as seções.
No entanto, infelizmente, é possível constatar que o jornal não alcançou
o humor pretendido. Talvez pelo caráter burlesco e caricatural, as charges e
cartuns de vários números não alcançam o tom procurado. Uma das razões
deste insucesso provavelmente foi o risco de abordagens politicamente
incorretas da imagem do gay. É interessante observar, entretanto, que
quando o jornal assume uma atitude mais “populista” as charges e cartuns
passam a aparecer com mais frequência.
Duas notas na seção Esquina chamam a atenção. A primeira é sobre a
publicação gay norte-americana In Touch. Com o título “Uma questão de
cultura”, e uma foto da capa da revista, a nota apenas a apresenta, sem
nenhum aprofundamento crítico. Ela é comparada com a revista brasileira
Status – “em versão guei” –, mas, segundo os editores “lampiônicos”, se
trataria apenas de uma revista de lazer e informação para o público gay,
repleta de matérias que eles consideram “descartáveis”.
Não é a primeira vez que o jornal aborda as publicações gays
americanas. Na edição de número dois, e com o título “No paraíso do
consumo guei”, o jornal apresenta, com certo deboche, a revista Blueboy,
que também é comparada com as brasileiras Status e Homem como sendo a
“Shangrilá” do consumo gay: “É só pagar e você terá todos os sonhos
realizados”. A nota ressalta o design da revista que, “com uma diagramação
sofisticadíssima, [...] seduz principalmente pela aparência”. As duas revistas
contêm seções de nus masculinos.
É importante observar, para melhor compreender seu percurso e
construção, a insistência inicial do jornal em falar de publicações que
diferem totalmente dele em forma e conteúdo. O Lampião não deseja
atingir uma “diagramação sofisticadíssima”; em contrapartida, também não
vai conseguir os anunciantes que pululavam nos periódicos americanos.
Mas o nu logo vai estar presente nas esquinas do Lampião. Vale notar que
aqui há uma direção editorial implícita: recusar o que se fazia no mercado
gay americano é deixar claro que o projeto do Lampião era seguir contra a
corrente made in USA. Se eles recusavam o que se fazia nos Estados Unidos
é porque acreditavam que se deveria, aqui no Brasil, fazer de maneira
diferente. Além do fato de que existia uma resistência aos produtos
estadunidenses pelo que eles representavam: o capitalismo e o imperialismo
cultural.
Mas o que eles recusavam na revista? Os nus? O aspecto mercadológico
do sexo? A diagramação sofisticada? Eles ironizavam estas revistas sem
saber que este seria o caminho para atingir um grande público, como seria o
caso, anos depois, da Sui Generis e da G Magazine. No novo milênio,
revistas como Junior e Dom alcançariam uma sofisticação ainda maior.
Durante o período mencionado, Status e Playboy são muito bem produzidas
e foram, de certa forma, revolucionárias, pois, diferentemente do que
aparecia nas revistas americanas, as personalidades que posavam (e ainda
posam) nuas são, na sua maioria, estrelas do show business brasileiro. Esta
fórmula seria copiada duas décadas depois pela G Magazine.
A outra nota é assinada por Aguinaldo Silva, e tem o título de “As
palavras: para que temê-las?”. Nesta nota ele defende o Lampião por usar
palavras que alguns leitores consideram pejorativas, tais como “bicha”,
“boneca” etc. Seria uma linguagem mais descontraída? O autor se justifica
dizendo: “O que nós pretendemos é resgatá-las do vocabulário machista
para em seguida desmistificá-las”.
Esta foi uma discussão que também apareceu no movimento gay
americano. Streitmatter fala que no fim dos anos 1970 os editoriais da
imprensa gay americana já não discutiam só o movimento por si, mas
tópicos que variavam entre “História Social” e “pessoas com necessidades
especiais”. E a questão de qual vocabulário usar era um deles. Isto inclusive
foi tema do editorial do jornal The Body Politic, de fevereiro de 1979:
“Mariana Valverde argued that gay people should embrace bold words as
‘faggot’, ‘dyke’, and ‘queer’, even though the terms offended
conservatives” (Streitmatter, 1995: 230).15
Os nomes que são usados para definir homens que fazem sexo com
homens refletem as inúmeras vozes que pensaram sobre a
homossexualidade masculina. São termos usados desde a medicina, até
aqueles que os próprios homossexuais utilizam para se autodenominarem,
assim como temos palavras com conotação depreciativa. A utilização de
determinadas palavras para identificar/catalogar/representar grupos
específicos traz sempre uma relação de força e poder. São palavras
importantes, mas nunca neutras. Conforme afirma Woodward: “Todas as
práticas de significação que produzem significados envolvem relações de
poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído”
(2000: 18).
Aguinaldo estava discutindo um assunto que não era pertinente só ao
movimento brasileiro. Era um assunto que afetava diretamente a construção
de uma identidade. Assumindo as palavras pejorativas, e não tendo medo de
usá-las, o jornal tomava para si o poder de se identificar como bem
quisesse. A diferença é que aqui a discussão acabou passando despercebida
numa pequena nota de meio de jornal.
Na edição número 4 (ago-set/1978), a seção Opinião ostenta um grande
artigo assinado por Clóvis Marques e intitulado “Uma questão de
objetividade”, e uma nota de pé de página assinada por Darcy Penteado.
Marques discute as opiniões de Robert Claiborne, publicadas no The New
York Times em 14 de junho de 1978. Neste artigo, Claiborne diz suspeitar
que a homossexualidade “pode ter alguma coisa com distúrbio hormonal
durante a vida pré-natal, mas que não é contagioso”, pois ele mesmo tivera
experiências quando criança, mas na vida adulta tornou-se heterossexual.
Clóvis Marques destaca o quão perigosos são estes textos, pois, por trás de
uma máscara de liberalismo, afirma o autor, se encontram opiniões que
consolidam o preconceito.
Na pequena nota de pé de página, Penteado refuta a afirmação de uma
escritora que dizia:
Acho errado publicar um jornal como o Lampião. Afinal vocês todos são jornalistas, [...]
escritores, intelectuais ou artistas, trabalhando em vários meios de comunicação, ou
dispondo deles ou com acesso a eles, não precisando portanto de veículo especializado para
expor ideias que, englobadas assim num jornal, só aumentam a discriminação.
O artista chama a escritora de ingênua, e esclarece que eles só são
aceitos porque, enquanto profissionais, são úteis ao sistema. Entretanto, de
forma alguma eles teriam direito de publicar suas ideias, enquanto cidadãos
homossexuais, na grande imprensa. Por isto, é que era extremamente
importante a existência de um veículo como o Lampião da Esquina.
Só não se sabe ainda como o jornal vai desenvolver sua linha editorial e
para quem. Se é criticando artigos estrangeiros, ou dando espaços para
briguinhas particulares. O artigo sobre a passeata em San Francisco, com
240 mil gays, ou como eles preferem “gueis”, fica perdido numa edição que
prefere chamar a atenção para o ensaio fotográfico de travestis. Isto reflete a
diversidade de opinião por que o jornal passou durante toda sua existência.
Uma parte dos editores do jornal, principalmente Trevisan, que tinha
vivido nos Estados Unidos, na área metropolitana de San Francisco, e pôde
vivenciar os rumos do movimento gay, vai direcionar o jornal para o
trabalho de conscientização que os grupos organizados em diversas cidades
do mundo estavam fazendo. Por outro lado, uma parte do Conselho
Editorial refletia a xenofobia dos tempos da ditadura. Desconfiava-se de
tudo que vinha dos Estados Unidos. Além disto, havia a relação pessoal que
os editores tinham com certos aspectos da homossexualidade. Perguntado
sobre a presença constante dos travestis no jornal, Moreira esclarece que o
Aguinaldo tinha sido morador da Lapa por um bom tempo, e que vivera
muito próximo deste mundo:
Se você pega a obra dele, em toda a literatura os travestis aparecem, são os marginais da
Lapa, todo aquele contexto da Lapa de final dos anos 50... e 60. Quer dizer, isso está ali.
Então ele traz isso junto com ele para o jornal, de uma certa forma. E isso também passou
um pouco talvez pela crônica policial, onde ele trabalhou anos, né? E tinha o Francisco
Bittencourt, que achava esse mundo fascinante, essa coisa, esse submundo da Lapa. Essa
coisa... Enquanto que a outra parte do jornal, de colaboradores, não tinha essa visão, né?
Pela segunda e última vez o Conselho Editorial assina um artigo. “Sinal
de alerta” tem um discurso de denúncia. Na ocasião, nove jornalistas da
revista Isto É haviam sido processados por “analogia malsã do
homossexualismo”, e um cirurgião, o Dr. Roberto Farina, também fora
processado por “lesões corporais” por ter realizado uma operação de
transexualismo; além disto, o jornalista Celso Curi é acusado de “promover
encontros entre anormais”. O Conselho está preocupado com estes fatos,
pois ao mesmo tempo que a liberdade de imprensa chega ao país, parece
que para determinado grupo esta liberdade é apenas impressão. O Conselho
ratifica o papel ímpar do Lampião da Esquina, sublinhando a visibilidade
das minorias no processo nacional com uma discussão ampla sobre a
questão sexual. E pede aos leitores que se mantenham atentos aos fatos
relatados.
Mais uma vez a questão da multiplicidade de discursos aparece. Com
que leitores eles estão falando? Os leitores de Pasolini, os leitores de
Cassandra Rios ou os leitores da seção de fofocas sociais Bixórdia? O
Lampião continua atirando para todos os lados, uma característica, aliás,
que será mantida até o fim de seus dias. Porém, aos poucos, ele próprio
parece atingido ao longo desta investida.
Na edição de número 6, o jornal traz uma reportagem com Yukio
Mishima, e trata de um novo periódico nas bancas, o jornal Gente Gay. A
nota diz que apesar de não ter preocupações intelectuais, o novo jornal é
muito importante do ponto de vista de uma ação realmente libertária.
E quais seriam as preocupações intelectuais do Lampião da Esquina? O
jornal seria redutível a um veículo de discussões intelectuais inócuas? Seria
possível um debate de ideias não provocar qualquer efeito? Ou suas
melhores consequências seriam redutíveis às contínuas narrativas de
histórias de vivências como práticas que poderiam tirar os homossexuais da
sombra? De alguma forma havia um dilema posto, mesmo que não fosse
desenhado pelas questões acima apontadas.
A partir do número 7 (dez/1978), o jornal retira temporariamente a
seção Opinião do prelo. O espaço passa a ser ocupado pela seção Esquina,
uma seção de variedades. Observa-se que as mudanças também são
internas. João Antônio Mascarenhas, sem aviso prévio, sai do jornal, e a
seção Opinião só reaparece no número 20.
Como disse anteriormente, não me ative apenas à seção Opinião para
analisar o jornal. Certos artigos também foram objeto de reflexão. No
Lampião da Esquina número 19 (dez/1979), por exemplo, o jornal abre com
uma carta de Oswaldo Isidoro, do grupo Libertus, de Guarulhos, em São
Paulo, pedindo, ou melhor, reivindicando que os grupos políticos não ditem
normas para os grupos homossexuais que começam a se organizar. E entre
reportagens como a condição do negro na sociedade brasileira, uma
entrevista com a atriz Zezé Motta e o movimento gay no México, uma
pergunta chama a atenção: “Cultura homossexual: já existe?”. Neste ensaio,
Darcy Penteado fala do impacto que a conscientização das minorias, a partir
da segunda metade do século XX, provocou na sociedade. O artigo se
desenvolve em torno de considerações sobre a repressão a esses grupos,
particularmente no Brasil.
A repressão foi uma das maneiras de contê-las enquanto possível: a outra foi a manutenção
da ignorância. Não vamos duvidar ou menosprezar a sua eficácia: o resultado dos 15 anos
ainda está aí, bem evidente. Mas até quando o sistema aguentaria incólume? Não foi, ou
melhor, não está sendo portanto, uma concessão bondosa e benevolente, a permissão
também a nós, minoritários, de algumas aberturas – é a própria subsistência do sistema que
está (ou estava) sendo ameaçada, porque, queiram ou não, dele participam todos, claro que
de maneiras diferentes, uns com vantagens e prioridades, outros perseguidos ou
discriminados, porém todos: opressores e oprimidos, majoritários ou minoritários, ricos ou
pobres, benquistos ou malquistos, moralistas ou amorais (Lampião, número 19).
Falando especificamente da homossexualidade, o autor em questão
afirma que a cultura minoritária poderia ser classificada em três etapas:
A primeira, aquela que se faz sobre ela, olhando-a de fora; a segunda, produzida por
elemento ainda não conscientizado da minoria; a terceira, que é construída por elementos
conscientizados, portanto com bases próprias e conhecimento de causa, relegando os
moldes convencionais (idem, ibidem).
Penteado defende que a cultura homossexual está se formando:
É preciso que se entendam como elementos de um agrupamento social, e naturalmente, do
próprio convívio coletivo saem os elementos culturais. É preciso que se entendam como
elementos culturais todas as manifestações vivenciais dentro do grupo, não apenas as “obras
culturais” científicas, literárias, artísticas, etc., que usam esses elementos vivenciais ou
fazem a análise deles. Assim, também é elemento cultural a maneira de usar uma roupa, de
cozinhar um legume, de adotar um neologismo, de reagir a uma acusação (idem, ibidem).
Essa construção se dá com os próprios personagens dessa história e da
produção material que estes personagens criaram. E ainda levaria alguns
anos para ser vista e compreendida por pesquisadores e pelos próprios
homossexuais.
Na edição de número 20 (jan/1980), que chamava a atenção para o
encontro nacional do povo gay (a palavra já é escrita com sua grafia
inglesa), a seção Opinião aparece outra vez. Em “O que é isso,
Heloneida?”, numa clara alusão ao livro O que é isto companheiro?, de
Fernando Gabeira, Francisco Bittencourt denuncia a posição de alguns
políticos que mudam de posição como mudam de roupa. O artigo é
direcionado para a deputada estadual Heloneida Studart. O autor critica a
omissão da deputada perante os problemas específicos de grupos
marginalizados.
Na mesma página a cantora Lecy Brandão narra seu descontentamento
com a direção da Escola Estação Primeira de Mangueira e, publicamente, se
afasta da Escola.
Num box de pé de página, Marta Baptista relata o primeiro encontro de
mulheres jornalistas no Rio de Janeiro. O encontro foi para lutar contra as
diferenças salariais, reivindicar mais campo de trabalho, pelo cumprimento
das cinco horas de trabalho para jornalistas, e pela criação de creches para
todas as funcionárias.
Como se percebe, a seção Opinião volta cheia de denúncias políticas. A
reportagem do encontro do povo gay ocupou quatro páginas. Francisco
Bittencourt, Aguinaldo Silva e Leila Miccolis relatam, de forma clara e
emocionada, as seis horas do acontecimento, considerado por eles como um
marco na história do que viria a ser o movimento homossexual organizado
no Brasil. Segundo MacRae (1990: 192), o encontro foi uma iniciativa do
jornal, e foi a preparação para o grande congresso nacional, que se
realizaria em abril de 1980, o qual ocuparia várias páginas do jornal nos
meses seguintes.
Na edição 22 (mar/1980), revivendo a seção Opinião, aparece “Tá legal,
‘Geni’; mas e a mãe, tá boa?”. A matéria começa com a denúncia de um
leitor sobre os travestis que foram achincalhados durante o carnaval do Rio
aos gritos de “Geni”. Aguinaldo Silva responde ao leitor e explica como a
canção de Chico Buarque de Holanda, “Geni e o Zepelin”, feita para
denunciar e “mostrar a atitude dos cidadãos bem-pensantes, que sempre
utilizam os estigmatizados como alvo preferido de sua hipocrisia”, acabou
sendo utilizada de forma contrária pela força do seu refrão: “Joga pedra na
Geni/Joga bosta na Geni/ Ela é boa de apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá
prá qualquer um/ Maldita, Geni”. O autor afirma que nem só as bichas
estavam sofrendo com o refrão, mas também as mulheres. E por fim
Aguinaldo cobra de Chico Buarque uma posição, pois, segundo o autor, as
boas intenções de Chico não anulam o seu “machismo” em relação ao tema
minorias.
As transformações ocorridas na sociedade brasileira, a partir do fim da
década de 1960, fizeram com que vários grupos ditos “menores”, entre eles
as mulheres, os negros e os homossexuais, lutassem exigindo direitos
plenos como cidadãos. O tema no qual Aguinaldo Silva se diz especialista é
muito abrangente: prostitutas, mulheres, negros. E a questão homossexual,
onde fica?
Fica difícil discutir a questão homossexual, quando na verdade o jornal
está tentando dar voz a outras minorias e atirando em todas as direções. A
discussão sobre a questão homossexual fica perdida no meio de tantas
discussões. Trata-se de um momento de afirmação para os grupos que de
alguma forma foram invisibilisados pela cultura hegemônica, e que naquele
momento pediam a palavra. As mulheres, os negros, os ecologistas, por
diferentes razões, desde questões históricas até questões econômicas,
ganham muito mais espaço em outros veículos do que os homossexuais.
Eram questões específicas às quais outros jornais da imprensa alternativa
também estavam dando espaço, enquanto a questão homossexual só era
discutida pelo Lampião.
Na segunda metade da década de 1970, aparecem os periódicos Brasil
Mulher, de 1975, Nós Mulher, de 1976, O Beijo, de 1977, Ecojornal, de
1979, e Resistência, de 1978 (Cf. Kucinski, 2003). Não seria o caso de
direcionar o espaço do Lampião para apenas um grupo entre os
“estigmatizados”? Observando os primeiros números da imprensa gay
americana, percebe-se que, diferentemente daqui, os periódicos
concentravam toda sua energia na “causa gay”, ou em assuntos
direcionados à cultura gay. Apesar da proposta do Lampião desde o número
zero ter sido dar voz a todas as minorias, isto acabou por fragmentar a
discussão em termos de cidadania plena para o homossexual.
Na edição de número 23 encontramos novamente a seção Opinião
tratando sobre a participação dos gays na luta maior. João Carneiro, do
grupo Somos/RJ, denuncia e critica aqueles que dizem que os homossexuais
são alienados. No texto intitulado “Esquerda, direita um dois”, o autor
ressalta a importância da participação dos “viados e sapatões” na vida
política do país. Carneiro assinala que vários grupos organizados estavam
pipocando por todo o Brasil, e que era dever dos gays ir à luta.
Segundo o número 24 do Lampião, existiam à época oito grupos gays
organizados no Brasil. Com certeza o jornal contribuiu muito para seu
aparecimento. Entretanto, no artigo “Deus nos livre do boom gay”, deste
mesmo número, Francisco Bittencourt afirma que o jornal não tem nada a
ver com a proliferação de assuntos “gueis” na grande imprensa. Segundo
ele:
Para o Lampião, o que interessa são as manifestações marginais desse chamado boom gay e
não o bottom less fabricado em Ipanema por bichinhas que nunca tiveram coragem de arriar
as calças no Buraco da Maysa. Sim, nos interessa essa proliferação de espetáculos de
travestis que está ocorrendo no Rio. E nos interessa porque achamos esse fenômeno de
grande importância para a consciência da comunidade travesti...
A polarização de temas começa a desaparecer para dar lugar a um só
tema. De acordo com Moreira
Ele [Aguinaldo] acabava dando o tom no jornal. No início tinha Foucault, tinha Guy
Hocquenghem, tinha um monte de gente, mas até um determinado momento do jornal.
Depois isto desaparece, some...
Moreira tem razão, mas esqueceu que Hocquenghem concedeu uma
entrevista para aquele que seria o último número. E apesar de Bittencourt
criticar o bottom less, o assunto seria capa do Lampião número 31.
Darcy Penteado, na edição número 24, denuncia o preconceito do jornal
O Estado de S. Paulo, que publicou duas reportagens falando da invasão
dos travestis nas ruas da capital. E uma terceira notícia na qual O Estado
esclarece que as polícias civil e militar estavam unindo as forças para
combater o que eles chamavam de “crime por vadiagem”. O autor chama a
atenção para o fato de que o jornal utilizou as palavras homossexual e
travesti sem especificação adequada.
Penteado trata do papel do travesti na sociedade brasileira, afirmando
que a prostituição dos travestis é um “fenômeno relativamente novo no
enorme painel da sexualidade”. E diz que o “travestismo a nível de
prostituição é consequência da nossa fome” (sic). O artigo termina
constatando que a “máquina da repressão”, não podendo mais ser usada
para fins políticos, voltava-se contra os estigmatizados: os homossexuais e
os travestis.
Essas eram duas categorias que o jornal, apesar de reconhecer como
grupos bem distintos, já que cada qual a seu modo tinha necessidades
específicas, acabou por colocar no mesmo espaço, criando dissabores para
ambos os lados. Além disso, conforme afirma MacRae, “a maioria dos
homossexuais parece nutrir profundo desprezo e antipatia pelos travestis,
achando que estes simplesmente alimentam os preconceitos dos
heterossexuais que acreditam que todo homem homossexual deseja, na
verdade, virar mulher” (1990: 54).
Como se vê, era difícil estabelecer alianças num momento em que os
dois grupos são (e continuarão sendo por algum tempo) frágeis, política e
socialmente falando, e tinham interesses bem divergentes.
Na edição número 25, o jornal publica uma vez mais as opiniões do
escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini, morto em 1975. João Carlos
Rodrigues traduz e resume o artigo publicado no Corriere della Sera em
janeiro de 1975. No artigo intitulado “O aborto segundo Pasolini”, o
cineasta faz suas considerações sobre o assunto.
Primeiramente, o autor se diz favorável. Contudo, deixa claro que é
contra a forma casuísta com que os senhores do poder se apropriam deste
tema. Ele se manifesta contrário a uma sociedade marcada pelo consumo e
mercado que vê o aborto como uma conveniência. Pasolini diz que a
liberdade sexual nos dias de hoje “é uma obrigação, uma convenção, um
dever social. E que, por outro lado, tudo que é sexualmente diferente é
repelido”. Ele esclarece que o problema do aborto é bem mais amplo e
ultrapassa a ideologia dos partidos. E que a reflexão sobre este assunto deve
começar antes, quer dizer no coito, pois, segundo Pasolini, é ele que
condiciona a necessidade do aborto, portanto é por ele que deve começar a
discussão. Aquele era um momento em que a sociedade brasileira estava
discutindo o aborto, e o Lampião dava espaço ao tema. Além do artigo de
Pasolini, o jornal deu voz a vários grupos feministas para que emitissem
suas opiniões.
Com o título de “Quem liga para o meio ambiente” (Lampião número
27, ago/1980), Penteado, lembrando o dia do meio ambiente, critica a
posição do presidente do Brasil de ocupar uma grande área verde de São
Paulo para instalação de uma usina nuclear. Na outra parte da seção, João S.
Trevisan critica militantes dos grupos gays. Segundo ele, “o movimento gay
tornou-se igual a todos os outros movimentos socialmente aceitos”. Em
“Recadinho para Alice” (numa alusão a Alice no país das maravilhas), o
autor mostra claramente que alguns membros do movimento estão
completamente contra a ideia de criar uma “bicha verdadeira”, ou um
“viado mais autêntico”. O autor diz achar “que alguma coisa está
precisando ser checada nessa famigerada ‘militância’ – dentro do Lampião
e dos grupos organizados”. Trevisan já vinha mostrando seu
descontentamento com os rumos do movimento homossexual desde a
edição do número 25, no qual ele se mostra contrário ao partidarismo
político presente em certos grupos organizados. O autor ressalta a
importância do distanciamento dos centros decisórios do poder, porém
afirma sua aproximação com as minorias:
Direitas e esquerdas do sistema estão querendo tornar-nos consumidores de
homossexualismo, e com isso recuperar-nos. Trata-se de uma forma de nos iludir com o
poder e neutralizar o potencial subversor. A única maneira de garantir nossa subversão e
impossibilitar essa recuperação é ser cada vez mais viado e sapatona, portanto mais
malditos e menos cobiçáveis por todas as formas de poder (ordem), tipo partidos,
publicidade, família, mídia. (p. 10).
Apesar das diferenças ideológicas estarem cada vez mais visíveis dentro
do jornal, o Lampião da Esquina cumpre seu papel de comunicador e dá
espaço para as diferentes vozes que compõem as facções gays da política
partidária dentro do movimento homossexual. Apesar de a seção Opinião
do Lampião número 28 ter o título de “Nós ainda estamos aqui”, os leitores
poderiam perguntar: “Quem ainda está?”
Começa-se a perceber que o jornal passa por graves problemas.
Aguinaldo Silva inicia o texto pedindo perdão aos leitores, pois o jornal
chegou atrasado nas bancas. O jornal, financeira e ideologicamente,
atravessa uma enorme crise. O autor se questiona se os editores não
envelheceram nestes dois anos de existência: “Estaríamos acomodados, a
repetir infindavelmente os mesmos chavões, sem acompanhar o trem da
história?” Bem, este foi o recado que Trevisan havia mandado para a
“Alice” na seção Opinião do número anterior. É claro que o jornal está
fragmentado e não sabe que caminho tomar quanto à estratégia do
movimento homossexual brasileiro e, principalmente, em relação aos
leitores do Lampião, que a essa altura eram muitos. Apesar dos pesares,
Aguinaldo diz que o jornal continuará, e faz um apelo aos leitores para que
assinem o jornal e comprem os livros da editora, pois só a venda em banca
não estava pagando as despesas. Nas suas palavras: “O jornal está triste”.
Os indícios de que a situação era grave podem ser vistos no Corpo
Editorial, que começa a mudar: Peter Fry, por exemplo, se ausenta.
A seção Opinião do número 29 (out/1980) traz duas mensagens. A que
chama mais a atenção é uma charge: parados em frente a uma banca de
jornal coberta de revistas de culinária, duas figuras, visivelmente famintas,
devoram-nas com o olhar. Uma das figuras diz: “Pô! Estas revistas de
sacanagem são mais quentes que as revistinhas dinamarquesas”. A charge
ironiza a declaração de um curador de menores, que disse serem as revistas
pornográficas as grandes responsáveis pelo destino obscuro das crianças.
A outra mensagem é o texto de João C. Rodrigues, intitulado “Dando
nome aos bois”. O artigo relata um fato ocorrido em Belém do Pará. Um
agente do Dops, “conhecida boneca paraense”, havia pedido asilo político
ao consulado da Bélgica, mas não fora acolhido. Esta “Mata-Hari
amazônica” dizia ter criado um movimento gay paraense para comprometer
políticos. Ao final, o autor se pergunta: “O que tem o leitor do Lampião
com isso?”. Para justificar o questionamento, ele argumenta que esse tipo
de ocorrência representa sintomas de tentativa de manipulação, tanto da
esquerda quanto da direita, do movimento gay. Por esta razão, os gays, quer
queiram ou não, não podem deixar de lado a política, mesmo que ela os
assuste.
Naquela época já sabíamos das redes de poder. O filósofo Michel
Foucault já tinha exposto nossa condição de enredamento inegável com o
poder, da relação intrínseca entre discurso e poder. Este era o grande dilema
entre os grupos organizados da época. Afinal, política e poder caminham
juntos. E o jornal não estava fora desta discussão.
A seção Opinião desaparece a partir do número 30. O expediente, que
sempre fora posicionado na segunda página, a partir da edição 32 é
deslocado para a última página. Nesta mesma edição desaparece o Conselho
Editorial, ficando apenas o coordenador de Edição, Aguinaldo Silva. O
Conselho reaparece na edição número 33. Agora lê-se: “Editores:
Aguinaldo Silva e Francisco Bittencourt (Rio) e Darcy Penteado e João S.
Trevisan (SP)”. Adão Costa, um dos fundadores, volta a aparecer junto aos
editores do Rio. E assim o expediente permanecerá até o último número.
Mas, na verdade, vários membros do Conselho Editorial apareciam apenas
como nomes, pois, a esta altura, do Conselho Editorial original apenas
Aguinaldo Silva, Francisco Bittencourt e Adão Costa haviam permanecido.
A primeira impressão é a que fica
Diante da diversidade de opiniões e, como vimos, devido à inexistência
de um Editorial estável, resolvi, numa segunda tentativa de abordagem do
jornal, estabelecer parâmetros de análise, criar categorias temáticas
levantadas a partir das principais chamadas de capa de cada uma de suas
edições.
A capa é a primeira coisa que se vê num periódico. É a parte que é
exposta nas bancas da cidade. É ela que traz as informações que o
identificam: o logotipo, o número da edição, a data de publicação e as
chamadas para as matérias no interior. Normalmente, em um periódico
tradicional, há uma grande chamada. Grande não só em importância
jornalística, mas também em termos gráficos. O corpo da fonte da chamada
principal é muito maior do que o das chamadas secundárias. É a matéria
principal daquele número. Há também outras chamadas, menores em
tamanho e interesse. São todas elas juntas que vão ajudar a vender o
periódico, neste caso o jornal, e de certa forma sintetizam o seu universo.
No caso do Lampião da Esquina, as capas do jornal sempre trouxeram
um número muito grande de chamadas, e uma diagramação que não definia
a matéria principal. De qualquer forma, esse padrão foi mantido até o fim
do periódico. As capas poderiam ser consideradas, na perspectiva dos
cânones tradicionais do design, caóticas. Porém, observamos que a
composição visual não foi uma preocupação maior, nem sequer secundária.
Este aspecto será comentado mais adiante. Desta forma, fiz certas escolhas,
em alguns casos, levando em consideração também os elementos
imagéticos (fotografia ou ilustração).
Na etapa final da investigação listei os seguintes temas: “Violência”,
“Ativismo”, “Aliados políticos”, “Comportamento sexual”, “Bichas e
travestis” e “Entrevistas”. Os temas foram discriminados a partir de
palavras/imagens-chave retiradas das capas, por denotarem os assuntos
abordados. A categorização foi feita a partir das chamadas. Apenas um
tema apareceria no corpo do jornal, embora não tenha tido destaque na
capa.
Assim, em oito edições, a “violência” foi o foco das reportagens; em
sete, o “ativismo” falou mais alto; em outras sete, a “questão de gênero”
teve o papel principal; em seis, o “comportamento sexual” foi privilegiado;
em cinco, o foco foram as “minorias sociais”; e em quatro, os
“entrevistados” foram o destaque do jornal. Desta forma pude observar os
temas mais recorrentes na pauta do jornal, e a partir deles estabelecer
comparações com os outros periódicos da minha pesquisa. Pude verificar
ainda quais foram os temas mais constantes e os menos frequentes no
desenvolvimento da imprensa gay.
O grupo cujo tema é a “Violência” é composto pelas seguintes edições e
suas respectivas chamadas principais:

N. 1: “As relações perigosas. Este é Gaúcho, um rapaz de vida


fácil. Ele matou um homem a socos e pontapés” (fig. 2);
N. 6: “Crimes sexuais. Décio Escobar, Fred Feldman, o cupido de
ouro: uma nova versão para estas mortes” (Fig. 7);
N. 7: “Latinamérica: Na terra dos hombres, pauladas na boneca”
(Fig. 8);
N. 13: “De Sodoma a Auschwitz: a matança dos homossexuais”
(Fig. 14);
N. 17: “Corre, que lá vem os home! Estão matando as mulheres”
(Fig. 18);
N. 25: “A volta do esquadrão mata bichas: três crimes abalam a
comunidade guei” (Fig. 26);
N. 26: “A igreja e o homossexualismo (20 anos de repressão)” (sic)
(Fig. 27);
N. 28: “Em agosto foi assim: Crioulo não é gente, bicha e mulher
tem mais é que morrer” (Fig. 29);
Nestas oito chamadas de capa, a violência destacada ganha contornos
sensacionalistas. Conforme atesta MacRae (1990: 76):
A questão da violência e das arbitrariedades policiais foi exaustivamente explorada, e
longos perfis foram traçados de dois delegados considerados especialmente agressivos: José
Wilson Richetti, em São Paulo, e Geraldo Padilha, no Rio (no Lampião, n. 26).
A violência contra os homossexuais é um assunto que até os dias de hoje
assusta as pessoas mais esclarecidas. E continuará tema dos periódicos que
surgiram nas décadas seguintes. As matérias publicadas expunham a
violência psicológica e física, que em alguns casos chegou até o assassinato.
As edições números 1 e 6 trazem reportagens sobre crimes cometidos
contra homossexuais por michês, e como estes crimes quase sempre acabam
sendo arquivados sem solução. Nas edições 7, 13 e 26, a violência é
política. Nessas reportagens denuncia-se a violência em outros países da
América Latina, a violência praticada contra os homossexuais através do
tempo, e como a Igreja e a filosofia cristã, em relação à homossexualidade
(com as campanhas anti-homossexuais), mostraram-se ao longo da história
desinteressadas em amparar fiéis homossexuais.
Nas outras reportagens, o jornal faz denúncias de crimes cometidos não
só contra os homossexuais, mas também contra as mulheres e os negros. Os
editores deixam claro que estes crimes são frutos do preconceito, e afirmam
que não é crime ser homossexual, e que não há proibição da prática perante
a lei.
O grupo “Ativismo” é formado pelos seguintes números e suas
respectivas chamadas principais:

N. 10: “Minorias exigem em São Paulo: ‘Felicidade deve ser ampla


e irrestrita’” (Fig. 11);
N. 11: “Lesbianismo, machismo, aborto, discriminação: são as
mulheres fazendo política” (Fig. 12);
N. 16: “Homossexuais se organizam” (Fig. 17);
N. 18: “Povo gay já pode falar” (Fig. 19);
N. 20: “Encontro nacional do povo gay” (Fig. 21);
N. 23: “Tudo sobre o encontro do povo gay” (Fig. 24);
N. 24: “Homossexuais, a nova força” (Fig. 25).
A história do movimento homossexual brasileiro se confunde com a
história do Lampião da Esquina. Sob certo ângulo, este enredamento
tornou-se o grande vilão da história.
O Somos, o primeiro grupo homossexual organizado, é criado meses
depois de o jornal chegar às bancas de todo o Brasil. O grupo surge
inicialmente em São Paulo e logo depois cria-se uma representação no Rio.
Movida ideologicamente, uma parte do grupo achava que devia trabalhar
com outros setores da esquerda nacional, enquanto outra parte era
radicalmente contra. O grupo acabou se dividindo (ver Trevisan, 2002; e
MacRae, 1990).
No Lampião número 25, uma pequena chamada – “Racha no Somos
paulista” –, localizada no canto esquerdo inferior do jornal (área
considerada com menos força visual), nos remete para uma questão com a
qual o jornal parecia ter muita dificuldade em lidar. A reportagem é
composta por reproduções de documentos enviados ao jornal pelas facções
em conflito do grupo Somos-SP, além de um texto de um participante do
Somos-RJ. A divisão se dá porque parte do Somos-SP achava que o grupo
deveria ser apolítico, outra parte exigia do grupo uma participação mais
política, e outra, a das lésbicas, não se sentia mais confortável em
permanecer naquele coletivo.
O jornal vai acompanhar bem de perto todas as discussões e resoluções
do grupo Somos. E vai se posicionar contra a facção que, na visão do
Lampião, pretendia guiar o movimento homossexual no Brasil. Isto vai
levar a uma situação na qual os grupos organizados e o Lampião começam
um debate que só enfraquece ambos os lados.
Segundo Trevisan, “divergências frente aos rumos do movimento
homossexual foram se acentuando, sobretudo com os grupos do Rio de
Janeiro, que criaram frágeis e apressadas alianças com outros grupos do
país, na tentativa de isolar o jornal” (2000: 361).
Ou, na visão de MacRae, “apesar de se propor a unir o ‘povo gay’ do
Brasil, o Lampião acabou servindo para tornar ainda mais evidente a sua
heterogeneidade não só devido às diferenças culturais, regionais, classistas
e etárias, mas também entre os próprios ‘homossexuais organizados’”
(1990: 192).
Era uma via de mão dupla. O movimento precisava do jornal, assim
como o jornal precisava do movimento. Estas questões não foram bem
articuladas e, de certa forma, adiaram o fortalecimento do movimento
homossexual no Brasil, que só vai se consolidar na sociedade brasileira a
partir dos anos 1990.
O grupo “Aliados políticos” é formado pelos seguintes números e suas
respectivas chamadas principais:

N. 9: “Moral e bons costumes?” (Fig.10);


N. 14: “Alô, alô classe operária: e o paraíso, nada?” (Fig. 15);
N. 15: “Negros: qual é o lugar deles?” (Fig. 16);
N. 33: “Cuba: os órfãos de Sierra Maestra” (Fig. 34).

O lançamento do Lampião coincide com o início da abertura política no


país. Desta forma, vários setores da sociedade brasileira, entre eles presos
políticos e metalúrgicos, reivindicavam seu espaço social, e alguns números
do Lampião da Esquina foram dedicados quase que exclusivamente às
outras minorias.
A edição de número 15 (fig. 16) foi uma delas: vários artigos falam da
posição do negro na sociedade. Abdias do Nascimento, um dos líderes do
movimento negro no Brasil, concede uma entrevista. Lula, líder do
movimento sindical e hoje presidente da República, é capa do número 14
(fig. 15). Foram tratados temas que envolviam religiosidade e
homossexualidade, como também a situação dos gays em países socialistas.
Havia também matérias sobre os índios brasileiros, vários artigos do
ecólogo José Lutzemberger, e muita matéria sobre feminismo. Nestas
quatro capas as representações gráficas reforçam o sentido do texto.
O grupo “Comportamento sexual” é formado pelos seguintes números e
suas respectivas chamadas principais:

N. 8: “Gay-macho (uma tragédia americana?)” (Fig. 9);


N. 12: “Amor entre mulheres” (Fig. 13);
N. 30: “Prostitutos” (Fig. 31);
N. 31: “Masturbação” (Fig. 32);
N. 34: “Hotéis de pegação homem com homem” (Fig. 35);
N. 37: “Viado gosta de apanhar” (Fig. 38).
Artigos relacionados a práticas sexuais serão temas constantes nos
últimos números do jornal, sempre valorizando os aspectos criativos e
prazerosos destas práticas. Este grupo sinaliza os interesses do jornal, que
irão caracterizá-lo no final de seus dias. A partir do fim do Conselho
Editorial, o jornal assume características dos jornais sensacionalistas. Suas
matérias exploram o corpo e o sexo. Segundo MacRae, “muitas matérias
foram dedicadas às possibilidades de prazer escondidas nas ruas e praias do
Rio e outros locais brasileiros, sendo muito discutidos os assuntos de
“caçação”, prostituição, etc.” (1990: 77).
As manchetes apelativas vêm acompanhadas de fotos de homens nus ou
travestis com seios à mostra. Desde a edição 27 (fig. 28), o jornal vinha
publicando o nu frontal masculino. Na edição de número 31 (fig. 32), o nu
vem para a capa numa matéria sobre o bottom less na praia de Ipanema.
A matéria da edição número 8, “Gay-macho (uma tragédia americana?)”
é uma tradução de um artigo norte-americano sobre a nova onda de
masculinidade entre os homossexuais. O artigo trata dos homossexuais que
adotam imagens de masculinidade na indumentária e no comportamento, e
que veiculariam seu desejo de poder e sua crença de beleza nestas imagens.
Segundo o autor, esses homens estariam na verdade erotizando os mesmos
valores da sociedade careta que tiraniza suas próprias vidas.
“Viado gosta de apanhar” é republicação da matéria “Gay-macho”, só
que desta vez com uma introdução de Aguinaldo Silva, e fotos colhidas do
filme Cruising, de 1980, dirigido por William Friedkin e traduzido no
Brasil como Parceiros da noite. O jornal dedicou vários números ao tema
dos michês.
O grupo “Bichas e travestis” é formado pelos seguintes números e suas
respectivas chamadas principais:

N. 4: “Travestis! Quem atira a primeira pedra?” (Fig. 5);


N. 21: “Tudo sobre o carnaval das bichas” (Fig. 22);
N. 22: “Carnaval das bichas é o maior do mundo” (Fig. 23);
N. 27: “A incrível metamorfose de Andrea Gasparelli” (Fig. 28);
N. 32: “Brasil, campeão mundial de travestis” (Fig. 33);
N. 35: “A bicha que virou mulher” (Fig. 36);
N. 36: “A praça é das bichas” (Fig. 37).
Neste grupo resolvi reunir todas as principais chamadas nas quais o
tema em questão é o “transformismo”, isto é, homens que modificam
parcialmente o corpo, adquirindo formas mais femininas, seja por meio de
injeção de silicone nas bochechas, seja por meio de “implante de seios”
(através do uso de silicone ou de hormônios), seja quando mudam a forma
dos quadris etc. Também agreguei a este grupo a denominação “bicha”,
quando ela aparece como sinônimo de travesti querendo caracterizar a
postura efeminada e “flamboyant” de alguns homossexuais.16
Percebi que o jornal utiliza muito pouco a palavra “entendido”, dando
preferência aos termos “bicha”, “viado”, “gay”, “guei” e “homossexual”.
Fica claro, pelo número de chamadas de capa, que a “questão travesti” é
fato importante para o jornal, fato já visto no número 22. Na realidade, em
11 edições, a palavra travesti e/ou a imagem de travestis é estampada na
capa. Mas as colocações são sempre do ponto de vista da aceitação, com
certo paternalismo, sustentando que o travesti é aquele que soube confundir
o sistema.
Na capa da edição número 4, somente a chamada é sensacionalista, pois
a matéria é um ensaio fotográfico. Nas edições números 21 e 22, a matéria é
o carnaval do Rio de Janeiro, e, consequentemente, a participação já
histórica do travesti. A edição 27 enaltece o show que o travesti Andrea
Gasparelli apresentava no Rio de Janeiro. As edições 32, 35 e 36, apesar
das chamadas sensacionalistas, tentam trazer o mundo dos travestis para os
leitores: mostrar a difícil vida que eles levam. O número 35 fala sobre o
transexualismo: a convicção que o homem ou a mulher têm de pertencer ao
sexo oposto, cuja característica fisiológica aspira ter, ou já adquiriu por
meio de cirurgia. Este assunto, anos mais tarde, será capa de quase todos os
periódicos do Brasil, com o “fenômeno Roberta Close”.
Finalmente, o grupo “Entrevista” é formado pelos seguintes números e
suas respectivas chamadas principais:

N. 2: “Sou Tarado! Lennie Dale” (Fig. 3);


N. 3: “Norma Benguell solta o verbo: eu não quero morrer muda”
(Fig. 4);
N. 5: “Cassandra Rios ainda resiste” (Fig. 6);
N. 29: “3 entrevistas para derrubar: Cassandra Rios, Roger
Peyrefitte e Ruddy” (Fig. 30);
O Lampião entrevistou artistas, políticos e escritores que de alguma
forma faziam trabalhos que refletiam as preocupações “lampiônicas”, isto é,
dar visibilidade à homossexualidade para o maior número de pessoas
possível. Nestes quatro números a capa deu destaque a personalidades que
concederam entrevistas ao jornal. Nunca existiu uma seção específica para
esta atividade jornalística, porém em quase todas a edições existia uma
entrevista. Esta forma de fazer reportagem foi uma característica que
começou com o jornal Pasquim e estendeu-se por toda a imprensa
alternativa da época. Segundo José Luiz Braga:
O Pasquim se habituara a não copidescar as entrevistas. Desde o número 1, por intenção ou
por preguiça, [...]. E tinham conseguido assim o estilo de entrevista que marcou época e
renovou [...] o trabalho jornalístico no país (1991: 31).

O contorno do Lampião: a linguagem gráfica


Streitmatter observa que no fim da década de 1960 algumas questões se
tornaram predominantes no jornalismo gay norte-americano. Enfatizar o
design gráfico foi uma delas. Ele aponta que
dentre os tópicos está uma ênfase no design [...] Os fundadores de One reforçaram este
tema durante a década de 1950, insistindo que sua revista fosse impressa profissionalmente
e usando um grafismo arrojado para tornar o design uma de suas marcas registradas. As
publicações do final dos anos 1960 reforçaram o papel central do design [...] Uma relação
muito próxima com o design é uma forte ênfase nas imagens visuais. (Streitmatter, 1995:
113).
Um projeto de design gráfico de um periódico consiste num todo que é
formado pelo texto do corpo do jornal, os diferentes títulos e subtítulos.
Para isso é usada uma fonte e seus respectivos corpos, fotos e/ou ilustrações
e elementos gráficos: cor, elementos acessórios, como vinhetas, fios, figuras
geométricas etc. O ato de dispor texto e figuras em um determinado campo
(página de livro, jornal, revistas, cartazes etc.) é o que chamamos de
diagramação. Diagramar significa construir, estruturar os elementos que
irão compor uma mensagem, auxiliando, e até mesmo, guiando o leitor para
uma melhor leitura.
Podemos ainda agregar um valor informacional a um certo elemento, ou
evidenciar uma outra parte, ou ainda atrair a atenção do leitor para um texto
ou uma foto através de molduras (fios ou vazios). Clareza, modernidade,
responsabilidade, flexibilidade e subversão são questões com que o público,
inconscientemente, se depara diante de um projeto bem-organizado, pois as
palavras e as imagens podem descrever a qualidade de um bom jornalismo,
mas elas não terão a mesma força se a apresentação gráfica da linguagem
não apresentar algo diferente, ou em outras palavras, se o projeto gráfico
não for bem planejado.
Para Michael Twyman, o processo de diagramar é o que ele chama de
“apresentação gráfica da linguagem”: a composição da página, a relação
entre o conteúdo do texto e a forma como ele é apresentado para o leitor.
Para Twyman (1982), a representação pictórica é uma linguagem formada
por uma cadeia de elementos que juntos geram os sintagmas visuais; esta
linguagem pode estabelecer uma série de relações com a linguagem verbal.
De acordo com Kress e Van Leeuwen, “a composição é a maneira pela qual
os elementos representacionais e interativos se relacionam uns aos outros, a
maneira pela qual são integrados num todo significativo [...]”. A
composição, portanto, articula os significados representacionais e
interativos da imagem através de três sistemas interrelacionados:

1. O valor informativo: a colocação de elementos (participantes e sintagmas que se


relacionam uns aos outros e ao leitor) os dota de valores informativos específicos
ligados às várias “zonas” da imagem: esquerda e direita, superior e inferior, centro e
margem;
2. Saliência: os elementos (participantes e sintagmas representacionais e interativos)
são feitos para atrair a atenção do leitor em graus diferenciados, e são realizados
através de tais fatores como a colocação em primeiro ou segundo plano, tamanho
relativo, contraste de valor tonal (ou de cor), diferenças de nitidez etc.
3. Enquadramento: a presença ou ausência de dispositivos de enquadramento (realizado
através de elementos que criam linhas divisórias, ou por linhas de quadro,
propriamente) desconecta ou conecta elementos da imagem, significando que eles
pertencem ali ou não pertencem, de alguma maneira (Kress & Van Leeuwen 2000:
83).

Sob a perspectiva técnica da diagramação, pode-se verificar que os três


sistemas propostos por Kress e Van Leeuwen e as teorias de Twyman não
são bem articulados na maioria dos números do Lampião. Eles aparecem
apenas numa ou noutra página do jornal, conforme veremos a seguir.
Figura 10 - Information Value – a posição e o tamanho das fotos fazem com que o leitor fixe-se nas
imagens do escritor/cabeleireiro.
Figura 11 - Salience e Framing – a posição inclinada da foto sobre as linhas paralelas quebra o
rigor da página.

*
Por muito tempo, grande parte da sociedade tinha no seu imaginário a
ideia de que os homossexuais eram pessoas mais refinadas, mais sensíveis,
e estavam sempre ligados ao bom gosto e ao estilo. Crenças que eram fruto
do preconceito e da intolerância. Tais características sempre foram, ao
longo da história, atribuídas às mulheres, ao feminino. Desta forma todo
homem que fosse gentil ou demonstrasse sua sensibilidade era
imediatamente visto como homossexual.
Esta ideia de refinamento e delicadeza dos gays foi totalmente
subvertida na apresentação visual do Lampião. Com manchas gráficas
pesadas, poucos claros, uma diagramação dura e de pouca inventividade, o
jornal tinha como preocupação maior o seu discurso verbal. Diferentemente
das primeiras publicações americanas, que valorizaram o papel do design
gráfico nos periódicos, no jornal Lampião a transgressão não estava no
campo gráfico, apesar de contar com um artista plástico entre seus editores.
O miolo do jornal não surpreende os leitores. É como se a severidade da
forma respaldasse a seriedade do conteúdo.
No Brasil, alguns tabloides da imprensa alternativa, principalmente os
que adotaram o discurso da contracultura, foram concebidos com bastante
ousadia nos seus designs. Eles tinham uma estética psicodélica, ou então
surrealista, muito em moda na época, talvez uma consequência das
experiências com as drogas. Era um tempo marcado pela busca do novo e
as drogas foram um caminho, entre tantos, às vezes complementar, às vezes
central.
Mas não só os que adotaram a contracultura trouxeram um novo
discurso visual. O pioneiro deles, o Pasquim, é um exemplo. De acordo
com José Luiz Braga, “o projeto gráfico, a paginação, a titulação, a
tipografia, a ilustração se organizam para dar a cada página uma unidade
gráfica de objeto visual. [...] É interessante assinalar que na Biblioteca
Pública Municipal de São Paulo o Pasquim não está classificado na seção
Imprensa, mas em Arte” (1991: 158).
Além do jornal O Beijo, já citado anteriormente por sua diagramação
ousada, outros jornais ressaltavam a apresentação visual, como aponta
Kucinski (2003). O jornal Repórter, lançado em 1977, foi um tabloide que
ganhou muita popularidade pelo seu alto teor “naturalista e, no limite,
escatológico”. Usando chamadas típicas dos jornais populares, “o jornal
retratava a fome, a promiscuidade, os assaltos, os estupros, o analfabetismo
[...]. Um cotidiano abjeto de miséria agravada pela recessão econômica de
1981”. Ainda de acordo com Kucinski:
À ruptura editorial com o padrão alternativo corresponde uma ruptura gráfica. A
diagramação criada pela artista gráfica Pitsi Munk vale-se de aplicativos fortes, em
vermelhos, fotos inclinadas, resultando num visual ágil e agressivo, diferenciado em relação
à maioria dos jornais em circulação, alternativos ou não (2003: 290).
Os jornais em que os temas políticos eram predominantes – ou como
chama Kucinski, “os revolucionários” – adotaram dois caminhos. O
primeiro, um rigor gráfico, como vemos no Opinião, “o mais influente
jornal de toda imprensa alternativa dos anos 70”. Elifas Andreato, jovem
designer do sul do país, desenvolveu um projeto que causou espanto pela
qualidade do seu visual. “A diagramação elegante, as caricaturas a traço
fino de Cássio Loredano e Luís Trimano, e detalhes, como uma seção de
xadrez, conferiam ao jornal o desejado classicismo” (Kucinski, 2003: 315).
O segundo caminho foi o da impureza visual. O jornal Movimento, outro
grande alternativo da época, sofrendo os danos causados pela censura
prévia, não se preocupou com sua forma. Ainda segundo Kucinski:
Tinha a diagramação mais pesada do que a d’Opinião, com textos longos e tijolados, em
corpo oito e até em corpo sete. Suas charges e desenhos eram rudes devido ao pouco tempo
disponível entre a aprovação do rascunho pela censura e a confecção da arte final (2003:
355).
Como podemos ver, a preocupação com a linguagem gráfica era um
ponto em comum entre os jornais alternativos.
A relação entre forma e conteúdo encontrada no Lampião da Esquina
vai mudar ao longo da história dos periódicos da imprensa gay. A partir dos
anos 1990, a linguagem visual vai ganhar tanta importância quanto a
linguagem verbal, mas, durante a sua existência, o Lampião, com raríssimas
exceções, mudou pouca coisa em termos gráficos.
O Lampião era publicado com rígidas colunas. Fios grossos acima e
abaixo delas sustentavam o texto, e uma moldura retangular de cantos
arredondados era empregada para diferenciar as seções; mas se tratava de
elementos que apenas sublinham o texto, não apresentando inovações
gráficas. De um modo geral, a página do jornal como um todo tem pouca
força visual. O “valor informacional, a evidência e o enquadramento”, os
sistemas propostos por Kress e Leeuwen, não são enfatizados.
O Lampião utiliza a composição visual padrão, ou seja, aquela baseada
em blocos horizontais e/ou verticais, e não traz nada de novo ou criativo. As
matérias são dispostas ocupando o número de colunas estabelecidas na
mancha gráfica do periódico. Essa forma de diagramar tende à monotonia e
ao cansaço visual. Com exceção das páginas dedicadas a poesias, todo o
resto do jornal mantém-se preso ao diagrama das quatro colunas. O texto é
ainda impresso com corpo de letra muito pequeno (nove, e em alguns casos,
oito), prejudicando consideravelmente a legibilidade da página.
Em sua maioria, a composição das páginas do Lampião obedece a um
design simétrico, que é relativamente simples de criar, uma vez que nesse
tipo de design, com múltiplas opções e tensões provocadas pela inexistência
de um centro definido, é muito mais complexo para se alcançar um
equilíbrio. Um bom exemplo de uma página assimétrica é a página dupla do
jornal/revista Bondinho. Há um número em que a multiplicidade da persona
do cantor Caetano Veloso se espalha pelas páginas sem nenhuma direção
rígida.
Exemplos de páginas simétricas podem ser encontrados no número 3
(jul-ago/1978). Neste caso a simetria sufoca a expansividade da
entrevistada; a página é pesada e incomoda o leitor. Não se veem aqui os
sistemas propostos por Kress e Leeuwen. Já no número 10 (mar/1979), a
simetria se enquadra perfeitamente na reportagem.
Antônio Moreira, arte-finalista do número 24 até o último, explica que
quando ele chegou à redação o jornal obedecia a uma rotina: “O Aguinaldo
Silva levava todo o material para o Jornal do Comércio e lá ele fechava o
Lampião, contando com o diagramador do dia e da hora. Não existia, até o
número 24, um arte-finalista permanente”. Isto pode explicar a falta de um
projeto mais próprio e estável, que trouxesse uma identidade visual para o
jornal, que corroborasse seu papel político na sociedade da época.
No expediente do número zero a “arte” é atribuída a Ivan Joaquim e
Mem de Sá. Ivan permanece somente até o número dois. Moreira (2005)
acredita que tenha existido um projeto gráfico para o número zero:
Normalmente o número zero você leva um, dois, três meses pra fechar. Faz o teste, volta...
Então ele tem até um acabamento gráfico um pouco melhor, menos “empastelado”, menos
erros, né?
Porém, ao que tudo indica, a preocupação com as questões estéticas
também fazia parte das preocupações do Corpo Editorial. Como mencionei
na seção anterior, na edição número 3 encontra-se um pequeno “recado”
intitulado “Desafio aos cartunistas”. Nele os editores convocavam
chargistas e caricaturistas para ilustrar e colocar um pouco de humor no
jornal, pois não há jornal sem o desenho de humor. A nota anunciava ainda,
para o número seguinte, a colaboração do artista multimídia Patrício Bisso,
que passaria a desenhar alguns selos ou rubricas para as seções.
É a partir do número 4 que também encontraremos o artista plástico
Hildebrando de Castro ilustrando algumas reportagens. As já referidas
rubricas de Bisso vão aparecer junto às seções Reportagem, Tendências e
Literatura. São desenhos a bico de pena que remetem ao art noveau;
ilustrações com detalhes, um certo requinte e um pouco de humor.
A rubrica para a seção Reportagem é de uma figura andrógina em frente
a um microfone; na seção Tendências a mesma figura aparece rodeada de
livros, discos, paleta de cores; na seção de Literatura a imagem é a de uma
mulher (uma pin-up) deitada lendo um livro. As três ilustrações de Bisso
dão um certo frescor ao Lampião. Contrastando com a rigidez da
diagramação, seu traço foi forte o bastante para enriquecer o jornal.
Contudo, o requinte e o humor sofisticado de Patrício Bisso não foram
absorvidos pelo jornal. As vinhetas desaparecem a partir do número 26. As
ilustrações de Castro, diferentemente das de Bisso, têm um humor mais
cáustico, e aparecem em número tão reduzido que quase passam
despercebidas.

Figura 12 - As vinhetas criadas por Patrício Bisso.

Dolores Rodrigues, redatora do jornal a partir do segundo ano, relata


que a participação desses artistas era muito mais por amizade e adesão
ideológica do que por dinheiro. Talvez, por estas razões, não houve a
manutenção de uma equipe constante e, consequentemente, a metodologia
necessária para manter uma identidade visual foi deixada de lado. Por outro
lado, a participação amadora da arte denota que o jornal não tinha ainda
estrutura robusta e acabada, como outros jornais.
Os chargistas e/ou cartunistas vão demorar a aparecer, mas depois que
são incorporados ficam até o final. Entretanto, sua participação, medida em
centimetragem ocupada no jornal, é muito pequena. O primeiro cartum
publicado é assinado por Jônio, no mesmo número em que o Conselho
Editorial convoca os chargistas. O cartum ocupa um espaço muito pequeno,
e, com um traço frágil, brinca com o trocadilho de “viado” e “veado”. No
número dez é apresentado Hartur, que publica suas charges até o número
24, contabilizando 12 charges no total. Seus temas preferidos são a relação
entre pais e filhos, ecologia e corrupção, mas ele também produziu charges
sobre a dupla identidade de alguns homossexuais. Pode-se perceber que
estas últimas funcionaram mais como uma área de descanso visual, e não
tinham a intenção de ilustrar o texto.
Na edição 21 aparece outro cartunista, Levi, que permanece até o final,
podendo ser considerado o chargista do jornal. Suas charges ou cartuns são
bem desenvolvidos, com um traço mais vigoroso. Expressavam uma
estética popular, bem ao estilo do rumo que o jornal tomou no fim da sua
existência. Com Levi, a charge passa a fazer parte da matéria, ilustrando na
maioria das vezes uma reportagem. O autor tem um estilo próprio,
qualidade imprescindível para o sucesso de um desenho de humor. Durante
seu tempo no jornal, Levi publicou 24 cartuns, a maioria nos últimos
números. Como podemos notar, as charges, os cartuns e as ilustrações
tiveram uma importância menor dentro do jornal. Conforme afirma Braga,
não conhecemos um jornal que publicasse a cada número um chargista diferente: encontrar
quotidianamente o seu humorista parece hábito entre os leitores. Esse desenho não é
encomendado pelos editores: o desenhista (encarado em uma perspectiva que o vê mais
como artista que jornalista) tem a liberdade de escolher não só o assunto que prefere
abordar, mas também o ângulo, a posição crítica, que não raramente é independente da
linha editorial definida para a folha. (1991: 159)
Figura 13 - charge de Levi, Lampião número 22.

As charges e cartuns desempenham a função de complemento visual do


texto. É fácil perceber que conforme o Lampião se direcionava para o
popularesco, o número de charges aumentava. O jornal acaba por
materializar nos seus desenhos a figura estereotipada do “guei”. O caráter
burlesco e caricatural das charges e cartuns reforçam a figura do
homossexual “louca e deslumbrada”. Num momento em que o sujeito
homoerótico começa a reivindicar mais respeito e mais dignidade, as
charges e cartuns apresentadas no Lampião caminham na direção oposta.
Veremos nos capítulos seguintes que o desenho de humor, nas suas diversas
formas, não terá papel relevante nos outros periódicos da imprensa gay
carioca.
Outro elemento importante para o jornalismo impresso são as
fotografias. Elas explicitam de forma direta o que as palavras às vezes
ocultam. Mas no Lampião da Esquina as fotografias são pobres, sem força
estética, além de encontrar limitações técnicas de reprodução no suporte do
papel-jornal. As fotografias não desempenham aí um papel definido. Não
vamos encontrar, nem nas grandes reportagens, nem nas entrevistas, fotos
que mereçam destaque. Alguns casos isolados merecem um pouco de
atenção, como a foto de Ruddy, ou a do futuro presidente Lula deitado de
short. As fotos só ganham algum destaque quando começam a exibir
homens seminus ou nus.
Apesar de o jornal propor um “assumir-se”, naquele momento ainda era
muito difícil (e ainda hoje o é, aliás) as pessoas se deixarem fotografar, pois
a exposição individual podia trazer problemas de ordem pessoal ao
fotografado. Desta forma, em todas as reportagens sobre os encontros gays,
as fotos são pequenas, as pessoas estão de costas, ou reproduzidas em alto
contraste. Os meios-tons são apagados, criando uma imagem de contrates
em que não se reconhecem os rostos. É claro que existiam aqueles que não
tinham problemas em aparecer, mas a maioria ainda estava “no armário”. O
uso da máquina fotográfica nos eventos era sempre um ponto importante de
discussão nos debates das organizações. Conforme MacRae, no Encontro de
Grupos Homossexuais Organizados (1o EGHO), “um esquema de segurança
contando com a participação tanto de homens como de mulheres [...]
certificava-se também que ninguém levava máquinas fotográficas” (1990:
197).
Quanto ao universo do pictórico, houve uma tentativa de publicar
quadrinhos no jornal, mas isso não foi adiante. Um leitor mandou uma
história pronta para a edição e os editores resolveram publicá-la numa
edição extra do Lampião. Aguinaldo Silva pediu publicamente ao autor que
entrasse em contato com a redação do jornal, e no número 21 (fev/1980), o
jornal apresenta “Ave Noturna”, um super-herói que protege os gays que
andam pela noite. Nesta ocasião o super-herói ocupa a página inteira do
jornal, mas, na segunda e na última aparição (Lampião, número 23), apenas
meia página. “Ave Noturna” foi uma tentativa de trazer para o jornal a
linguagem dinâmica das HQs. Mas, infelizmente, ou não convenceu os
leitores, ou Agnaldo Silva simplesmente parou de publicar. Não se encontra
nas outras edições nenhuma carta elogiando nem protestando pelo seu
desaparecimento.
Apesar de várias tentativas, o Lampião da Esquina não conseguiu
estabelecer um projeto gráfico que acompanhasse o discurso verbal. Se em
termos textuais o Lampião da Esquina iniciava uma nova era para uma
minoria social, na linguagem gráfica o discurso foi antigo e tradicional.
Trevisan fala-nos que o discurso do Lampião “gozava de uma saudável
independência, era um jornal que desobedecia em várias direções” (1986:
204). Mas não desobedecia em relação ao design gráfico. No jornal
Lampião, a transgressão certamente não estava no campo gráfico.
Figura 14 - Lampião, número 27, fotos tiradas do livro “Homens”, de Vania Toledo.

As capas
Como em todos os jornais, a capa desempenha um papel
importantíssimo. É o elemento de convencimento ou sedução do leitor. É
ela que atrai o leitor para a compra. Segundo Kucinski (2003), as capas dos
jornais da imprensa alternativa de um modo geral se caracterizavam muito
mais pelo uso da imagem do que do texto, e as capas do Lampião da
Esquina não fugiram à regra. Elas chamam bastante a atenção, seja pelo uso
de uma segunda cor, além do preto, seja pelo uso de uma linguagem verbal
e visual apelativa. O leitor é capturado pelas imagens e pelas chamadas de
conotações dúbias e sensacionalistas.
De acordo com Gilberto Strunck (2001), quando um nome ou ideia é
sempre representado da mesma forma, podemos dizer que ele tem uma
“identidade visual”. Esta identidade visual é composta pelos elementos
gráficos que irão formalizar a personalidade visual de um nome, ideia,
produto.
Um dos aspectos mais interessantes da capa do Lampião é a
representação gráfica de seu nome, traduzida no logotipo e no símbolo no
cabeçalho da capa. O símbolo era posicionado à esquerda do logotipo. A
palavra “lampião” era grafada em fonte egipciana, e as palavras “da
esquina”, em corpo menor, com fonte bastão alinhada à direita e abaixo da
palavra “lampião”. Esta representação, assim como todo o cabeçalho, vai
sofrer pequenas mudanças no final de vida do jornal. No título do jornal, a
palavra “lampião” é empregada com duplo sentido: num primeiro
momento, ela simboliza a luz que ilumina; noutro, faz referência ao
cangaceiro Lampião. O símbolo é seu rosto estilizado.
Figura 15 - Lampião, número 18.

Como se sabe, Lampião é um personagem muito importante do universo


mítico do nordeste brasileiro, figura histórica que viveu no início do século
XX, sempre associado à virilidade. O símbolo é composto de um chapéu (o
chapéu de cangaceiro) decorado por círculos brancos e pretos, e tendo no
centro um triângulo. O rosto do cangaceiro é estilizado, apresentando
apenas os olhos em forma de círculos, e o nariz em forma cilíndrica, que na
representação pictórica toma a forma de um pênis.
As capas de o Lampião desenvolveram uma estética própria. Às vezes, o
Editorial, que não encontrávamos no interior do jornal, era estampado nas
capas. Suas composições, algumas vezes caóticas, estiveram presentes do
início ao fim do jornal, e podemos dizer que elas foram sempre coerentes.
A composição gráfica apresentada na capa, diferentemente do corpo do
jornal, era totalmente livre, e em alguns casos bastante desordenada. Mem
de Sá é o designer que vai criar todas as capas do jornal. Segundo Moreira
(2005):
Até onde eu sei, o Mem de Sá não era homossexual. Era um profissional que vinha da
imprensa, que o Aguinaldo conhecia há muito tempo. Ele fez todas as capas, mas o
Aguinaldo devia dar as coordenadas. Dava os títulos, batia tudo lá. Tinha uma ou outra
imagem, ou então indicava para ele arrumar essas imagens, e certamente muitas coisas
vieram da pesquisa d’O Globo. E a capa aparecia.
Conforme indiquei anteriormente, é na capa do jornal que se encontram
as “chamadas” para os assuntos mais importantes daquela edição. A
hierarquização das chamadas é geralmente feita por meio do corpo da fonte
utilizada, pelo uso de imagens (fotos ou ilustrações) ou ainda pelo uso de
elementos gráficos que ajudam a garantir o destaque. Segundo Braga, “a
primeira página de um periódico aponta em duas direções: a realidade
exterior à publicação, à qual ela se refere, perante a qual se situa; e o corpo
do jornal, com suas matérias, onde os fatos se tornam notícia, comentário,
opinião” (1991:168).
No Lampião da Esquina, esta relação nem sempre acontece. A seleção
das notícias que se transformarão em chamadas não necessariamente
hierarquiza as matérias do corpo do jornal. No Lampião todas as
possibilidades são utilizadas, mas não necessariamente para a matéria mais
importante.
No número 1, a capa traz um desenho de um bigode estilizado, que
chama muito a atenção pelo peso que ocupa na capa. Na legenda vê-se que
o assunto é o jogador Rivelino, que usava bigodes. Mas na verdade não
existe matéria com Rivelino, e sim uma carta de leitor pedindo uma
entrevista com o jogador. O número 4 traz a palavra “TRAVESTI”, em
caixa alta e corpo enorme, colocada logo abaixo do nome do jornal. Num
primeiro olhar, parece que a palavra está vinculada às fotos do estilista
Clodovil, que aparecem mais embaixo. São duas matérias diferentes, mas
com o mesmo peso. Outro exemplo é o número 17, na qual splashes e
balões de quadrinhos (elementos gráficos) são usados ao mesmo tempo.

Figura 16 - Lampião, número 7.


Figura 17 - Lampião, número 25.

As capas dos números 7 e 25 mostram um bom exemplo do padrão


caótico que o jornal esboçava nas capas. Na edição número 7, a linguagem
verbal fala em bonecas, enquanto a linguagem visual mostra uma série de
fotos de rapazes másculos nas praias do Rio.
No número 25, logo abaixo da chamada “A volta do esquadrão mata
bichas”, aparecem três fotos de artistas da MPB: Emilinha Borba, Fagner e
Zezé Motta. A confusão gráfica acaba por criar um certo humor, ao mesmo
tempo que minimiza a violência das chamadas principais. Por outro lado, a
edição número 26 traz uma das capas que melhor obedeceram aos cânones
do design funcionalista: equilibrada e funcional, ela acaba por fugir do
“padrão lampiônico” de fazer suas capas. Na edição número 27 os fios que
envolvem o símbolo e o logotipo tornam-se mais grossos.

Figura 18 - Logotipo e símbolo do jornal ao longo da sua existência.

No número 28, o cabeçalho sofre outra alteração, no número 29 idem, e


assim sucessivamente até o número derradeiro. O símbolo também se
modifica. A partir do número 28 o rosto estilizado do cangaceiro sofre
pequenas mudanças. As mudanças ideológicas, a pluralidade de opiniões
são visivelmente traduzidas nas transformações gráficas do cabeçalho do
jornal, quer dizer, na sua identidade.
Figura 19 - Lampião, número 36

À medida que o Lampião se encaminha para o seu fim, as capas tornam-


se mais irregulares. Com exceção da do número 31, as outras capas
parecem não ter sido projetadas para este ou aquele fim. O trabalho de
paste-up não obedeceu a nenhuma mancha gráfica. Os projetos são
confusos. O único destaque são as fotos sensacionalistas que o jornal
passou a publicar.
No número 36, fotos, ilustrações, vinhetas e uma salada tipográfica
ocupam o mesmo espaço, deixando o leitor sem saber por onde começar.
Elas traduzem mais uma vontade de apresentar o jornal de forma
popularesca, já que ele tentava alcançar os leitores do poeta português
Antônio Botto, e os admiradores do transformista Andrea Gasparelli.
A questão aberta aqui é que a cultura gay reúne todos estes elementos
para ressignificá-los, forjando assim a tessitura da sua rede identitária.
Rede, é importante sublinhar, de consistência cada vez mais firme, contudo
aberta a possibilidades cada vez mais plurais. De qualquer forma, a
proposta era bastante ousada para a época, e refletia o que o próprio jornal
apontava no número 19, no artigo já mencionado, “Cultura Homossexual: já
existe?”:
Assim sendo, tanto contribuirão para uma cultura homossexual o ensaísta conscientizado, o
artista que retrate aspectos desse cotidiano, o entendido que não pretenda criar nada, mas
que viva a sua sexualidade cotidianamente, a bicha louca que dá show na rua, a sapatona
que distribui sopapos, o travesti prostituto que leva porrada da polícia, etc. (Penteado,
Lampião, número 19).
Nos anos 1970, quando se desprezava o kitsh, quando se criticavam
profundamente os meios de comunicação de massa e tudo era dividido entre
a alta e a baixa cultura, a proposta era muito ousada e talvez nem os
editores soubessem com o que estavam lidando. Hoje, sabe-se que tanto
Antônio Botto como Carmem Miranda, Madona ou Pasolini, entre outros,
são referências fundamentais para o universo gay, e não importa se são alta
ou baixa cultura na medida em que se converteram em elementos culturais
de resistência e de consistência. Neste aspecto, o jornal foi bem avançado
para a época.
2.3 Acabou o gás. O Lampião se apagou
Na opinião de Dolores Rodrigues (2005), “O Lampião da Esquina foi o
mais revolucionário jornal da imprensa nanica. Todos os jornais discutiam a
abertura política, a ditadura, a anistia, etc. O Lampião passou por tudo isto e
foi além. Ele foi o primeiro a discutir a identidade do homossexual
brasileiro”.
Dolores tem razão. O jornal ajudou a materializar um sonho de várias
pessoas – a afirmação individual e a possibilidade real de um movimento
gay organizado. De abril de 1978 até julho de 1981, o Lampião esteve nas
bancas de todo o país, ou em quase todas. Como nos conta Dolores
Rodrigues (2005), “Algumas bancas tinham vergonha ou medo de vender o
jornal, além de que a maioria das bancas de jornais eram controladas por
italianos, que tinham preconceito contra o Lampião da Esquina”.
Apesar das dificuldades, não há dúvidas de que eles cumpriram o que
tinham prometido no seu número zero: “falar da atualidade e procurar
esclarecer sobre a experiência homossexual em todos os campos da
sociedade e da criatividade humana”. Quando a Universidade de São Paulo,
em fevereiro de 1979, organizou um debate público sobre as chamadas
minorias, o jornal estava presente. Foi a partir da sua iniciativa junto ao
grupo Somos que, em 1980, realizou-se em São Paulo o 1o Encontro
Nacional de Gays e Lésbicas do Brasil, e não há dúvida de que o jornal foi
um forte catalisador para a sua concretização.
É interessante observar que o interesse pelo ativismo político que deu o
pontapé inicial para a concretização do jornal vai ser uma das causas do seu
fechamento. As lutas internas, editoriais, em torno de qual identidade
seguir, e o risco de uma burocratização do movimento “guei” acabariam por
descaracterizar o jornal, levando a uma sensível diminuição nas vendas dos
exemplares, e consequentemente ao seu fim. Mas, ao que tudo indica, foi
uma relação de mão dupla: por um lado, o jornal precisava do movimento
(durante algum tempo foi o movimento que manteve o jornal vivo); por
outro, o movimento sem o jornal não teria aglutinado tantas pessoas em
todo o Brasil.
O jornal divulgou, por meio do seu “Roteiro Turístico”, locais de
encontros de homossexuais por todo o Brasil. Além disso, concedeu espaço
aos leitores, na seção “Cartas na Mesa”, para opinar, discutir e debater as
matérias. Na seção “Troca-troca” o espaço foi para a paquera, para a
realização das fantasias. O jornal falou de Fernando Pessoa, trouxe Abdias
do Nascimento para o debate, comentou o lançamento de História da
sexualidade de Michel Foucault, e disse que o metalúrgico Lula era o novo
símbolo sexual.
Segundo Kucinski (2003), o Lampião começou “elegante e terminou
pornográfico”. Pode-se observar que as mudanças visuais do jornal foram
percebidas por outros autores. Mas o que é um jornal elegante? Elegância
nos textos ou nas formas? Pornográfico porque passou a estampar fotos de
nu masculino?
Bem, o Lampião era elegante no sentido textual, pois tentava dar espaço
para todas a minorias, e no sentido visual era inicialmente discreto. A
preocupação era muito mais com o conteúdo do que com a imagem gráfica.
Como disse Dolores Rodrigues (2005): “Para ter um bom visual tinha que
pagar um bom profissional e o jornal não tinha dinheiro. A bichinha não ia
fazer de graça”. Esta parece ter sido a tônica do jornal, mesmo contando
com Darcy Penteado no Corpo Editorial, ou tendo a colaboração de Patrício
Bisso. A preocupação visual foi levantada, mas acabou ficando em segundo
plano.
Isto vai mudar a partir dos anos 1990. Graças a um movimento
homossexual mais organizado, e com a epidemia da aids aterrorizando
milhares de homens que fazem sexo com outros homens, as publicações
dirigidas ao público gay vão se estabilizar, cada uma a seu modo, dirigindo-
se para os diferentes estilos de vida, de classe e de grupos sociais dentro da
própria comunidade homossexual. E o design vai ter um papel muito
importante nisto tudo, pois é ele que configura o planejamento e o
desenvolvimento da maioria dos artefatos da sociedade moderna. Não
podemos negar uma discussão do papel do design diante das questões da
diversidade cultural. É essa discussão que nos faz compreender sua
influência e poder de controle na conformação de objetos e espaços.
O Lampião, como qualquer outra publicação, estava trabalhando com o
imaginário de seus leitores, procurando estabelecer com eles um diálogo
direto. O leitor do Lampião muda conforme as mudanças da linha editorial
e as consequentes brigas internas. Uma visão clara disto é a presença de
fotos de homens nus. Com a distensão política, a pornografia passa a ter um
espaço na mídia. O nu masculino, que antes era negado, acabou sendo uma
forma de chamar a atenção do leitor e vender jornal. Mas o jornal não se
preocupou em ver que seu leitor inicial não era mais o mesmo do fim. As
imagens de travestis nas capas afastavam o leitor enrustido, ou mesmo o
“entendido”. O jornal ficou visualmente descaracterizado. Não agradava
mais aos gregos, nem aos troianos. Acabou de uma hora para outra.
Segundo Moreira e Rodrigues (2005), na reunião de pauta para o número
38, Aguinaldo Silva falou: “Não vamos mais ter o jornal. Acabou o jornal”.
Ou, na visão de MacRae (1990: 92), “Os últimos números do jornal
começaram a refletir cada vez mais a convicção de Aguinaldo Silva de que
não se estava oferecendo o produto que o mercado queria e que o ativismo
só apelava à minoria da minoria. [...] o jornal não conseguiu aumentar suas
vendas”.
Na sua última edição, número 37, junho de 1981, o Lampião traz um
anúncio de meia página anunciando a nova revista da Esquina Editora – a
Playguei: “Um jornal em forma de revista, que abre caminho para a
segunda geração de publicações gueis no Brasil”. Apesar de não declarar
seu fim, o anúncio sinalizava os novos horizontes das publicações gays. É
muito curioso imaginar como seria esta revista que inauguraria a nova
imprensa gay do país.
Durante toda sua vida o Lampião teve pouquíssimos anunciantes, que
não chegaram a ocupar nem 1/3 de suas páginas. Apesar de comporem a
estrutura do jornal, os poucos anúncios não chegaram a criar um diálogo
com os outros elementos das páginas. Os grandes anúncios são de filmes,
tanto brasileiros como estrangeiros. Alguns chegaram a ocupar uma página
inteira, como foi o caso de Bye, Bye Brasil, de Cacá Diegues. As assinaturas
também não eram muitas. Apesar de o jornal receber milhares de cartas
mensais, isto não se traduzia em assinaturas. Em alguns números,
Aguinaldo Silva tinha de colocar dinheiro do próprio bolso para pagar a
edição (Moreira & Rodrigues, 2005).
No seu curto tempo de vida, o Lampião iluminou o caminho de várias
pessoas que viviam à sombra de sua própria identidade. Foi importante para
toda essa geração que pôde ver que não estava sozinha, que não era louca
nem doente, e que existia um outro lado. Apesar de se confundir nos seus
próprios passos, é inegável a contribuição do Lampião no longo e tortuoso
caminho da construção das identidades gays – caminho que se consolidaria
em publicações como a G Magazine, Dom e Junior nos dias de hoje. Sob
certo aspecto, foi como se os editores tivessem esquecido de que antes de
assumir uma identidade “marginalizada” para a sociedade, é necessário
assumi-la para si. Esta ação passa por um delicado processo de
identificação com aquilo que desejamos ser, ou que teremos de fingir que
somos. Conforme afirma Hall: “A identificação é um processo de
articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção”
(2000: 106). O jornal criou moldes e os ofereceu aos leitores, quando ainda
era um tempo, aqui no Brasil, de ensinar a fazer moldes, e não de entregá-
los prontos.
Segundo Woodward (2000: 80), “a construção de uma identidade é tanto
simbólica quanto social”. Os movimentos sociais da década de 1960
começaram a luta pela afirmação das diferentes identidades, trazendo à tona
neste processo os conflitos latentes entre os grupos opressores e os
oprimidos. Os jornais e revistas dirigidos para o grupo oprimido são muito
mais que apenas palavras e imagens. São representações simbólicas de que
desejos e sonhos um dia se tornem realidade. A linguagem verbal assim
como o design são os protagonistas destas expressões, que têm como alvo o
leitor. Parafraseando Lugarinho (2001), o leitor deixa de ser um mero elo na
cadeia da comunicação, para ser descrito numa perspectiva social,
psicológica e política.
Os editores tiveram que escolher outro nome por já existir um jornal Lampião no Rio Grande do Sul.
A maior boate dirigida para o público gay dos anos 1970 no Rio de Janeiro. Localizada na Galeria
Alaska, em Copacabana, a boate fechou as portas no início dos anos 1980.
“Mariana Valverde defendia que os gays abraçassem palavras ousadas como ‘boiola’, ‘sapatão’ e
‘viado’, embora tais termos ofendessem os conservadores” (Streitmatter, 1995: 230).
Homossexuais que adotam uma “postura dândi”, palavra esta que caracteriza de forma
preconceituosa a postura efeminada de alguns homossexuais.
CAPÍTULO III
O PRAZER TORNOU-SE RISCO DE VIDA
Em julho de 1982, subindo a ladeira da rua Castro, em São Francisco,
Estados Unidos, um pequeno cartaz me chamou a atenção. O cartaz
convidava as pessoas a assistirem uma palestra sobre o “câncer gay”.
Aquele convite me causou estranhamento. Nunca tinha ouvido falar sobre
tal doença. Sabia que a homossexualidade tinha sido considerada uma
doença, mas sabia também que o Conselho de Medicina, a partir da década
de 1970, já não mais a considerava como tal.
Por algum tempo fiquei sem saber do que, de fato, tratava aquele
pequeno cartaz colado numa vitrine de um bar da rua Castro, considerada
um dos locais de maior concentração de gays dos Estados Unidos. Um mês
depois, voltei ao Brasil, já sabendo que uma desconhecida doença estava se
manifestando entre a comunidade gay, e que era conhecida como o “câncer
que só gay tem”. No Brasil percebi que poucas pessoas tinham
conhecimento do assunto. E assim, com a imagem daquele cartaz na
memória, fiquei sem maiores informações. Mas, por pouco tempo.
Em 16 de junho de 1983, o Jornal do Brasil publicava uma reportagem
sobre a conferência realizada na Faculdade de Saúde da UnB, acerca de
possíveis vírus causadores do “câncer gay”. Essa mesma reportagem
anunciava a morte de Markito, estilista bastante conhecido no meio
artístico, cuja causa mortis era a aids. A partir deste fato, notícias sobre a
doença começam a ter mais espaço na imprensa. Entretanto, antes dessa
ocorrência, e sem grande alarde, a imprensa brasileira já havia mencionado
a ainda misteriosa doença.
Marcelo Secron Bessa, no seu livro Os perigosos, relata que a primeira
reportagem jornalística sobre o “câncer homossexual” foi publicada no
Brasil, mais especificamente no Jornal do Brasil, no dia 3 de agosto de
1981. A primeira reportagem norte-americana havia sido publicada um mês
antes, em 3 de julho de 1981, no The New York Times (Bessa, 2002: 22). O
livro de Bessa aborda a experiência de vários autores vivendo com a
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (aids), além de recontar a história
coletiva da aids no Brasil.
Apesar da enorme influência e do poder de investigação do The New
York Times, o jornal não foi o primeiro a publicar a existência da aids. Em
maio de 1981, o jornal gay New York Native havia publicado um artigo
chamado “Disease Rumors Largely Unfounded”. Nele lia-se: “Na semana
passada surgiram rumores de que uma nova doença exótica assolou a
comunidade gay de Nova York”. O artigo, escrito pelo doutor Lawrence
Mass, foi de singular importância porque alertou os gays de Nova York
sobre algo misterioso e maligno que estava ocorrendo entre eles. E o mais
importante é que o Native vai continuar trazendo notícias com maior
frequência que qualquer outro jornal. Em julho do mesmo ano, o assunto é
capa do referido periódico. Dr. Lawrence estava convencido de que os
jornais (não só o Native, mas também o Times) poderiam alertar a
comunidade gay do perigo ao qual estava exposta. Mas, segundo
Streitmatter (1995: 248), a grande imprensa não deu muito espaço para
notícias a respeito deste início da epidemia.
No Brasil, apesar da ainda distante realidade assombrosa que tomava os
grandes centros norte-americanos, o assunto aids era algo que, ainda que
discretamente, estava presente nos grandes periódicos. Segundo Bessa
(2002), a imprensa brasileira passou a fornecer notícias principalmente
vindas dos Estados Unidos.
O espaço entre a publicação de um artigo e outro vai diminuindo com o
passar do tempo. A proliferação da doença no mundo e as descobertas da
ciência sobre suas causas passam a ser notícias quase semanais. No ano de
1985, durante os meses de agosto, setembro e outubro, o Jornal do Brasil
(JB) publicou 26 matérias sobre aids. Na matéria “Tudo o que você jamais
sonhou saber sobre os ídolos virgens”, de julho de 1985, o JB dava notícias
sobre a saúde do ator americano Rock Hudson e, para decepção de muitas
fãs, da sua orientação sexual. Neste mesmo período, o assunto foi capa das
revistas Visão e Fatos, e por duas vezes da Isto É. Além de ganhar espaço
no jornal O Globo, na Folha de São Paulo, com quatro artigos, e no Jornal
dos Sports.
Eram notícias que assustavam. Vivíamos um tempo em que a doença era
uma esfinge. A aids inicialmente era tratada como um escândalo, quando o
alerta e a prevenção é que deveriam ter ganhado espaço. Tudo, ou quase
tudo, era misterioso e assustador, mas estas informações eram necessárias.
A informação era crucial naquele momento.
Ainda que essas reportagens iniciais muitas vezes tivessem um cunho moralista e
preconceituoso, [...] a mídia teve um papel de grande importância, pois, em uma época em
que não existiam uma literatura médica disponível, iniciativas governamentais e não-
governamentais e, muito menos, casos de doentes no país, ela foi o único meio de
informação – [...] a mídia foi uma das primeiras respostas – senão a primeira – da sociedade
civil à epidemia de Aids no Brasil (Bessa, 2002: 23).
O aparecimento da aids nos anos 1980 vai desestabilizar um movimento
que havia se iniciado nos anos 1960 e tinha se fortalecido na década de
1970. Mudanças das convenções sociais e do comportamento sexual de
vários segmentos da sociedade vinham adquirindo espaço e força nos
debates sobre os direitos humanos. No fim da década de 1970, os
homossexuais gozavam, nos grandes centros urbanos, de uma certa
liberdade, refletida nas inserções na mídia e no considerável aumento de
espaços sociais, tais como bares, boates, restaurantes, praias, muito embora
o preconceito se manifestasse forte em diversas áreas. De qualquer forma, a
conjuntura daqueles anos proporcionava à comunidade gay uma liberdade
na qual o hedonismo era o personagem de maior destaque.
A aids vem perturbar e desestabilizar esse cenário de conquistas. Luto e
ameaça apagam as luzes das boates e tiram os rapazes das saunas. A
“questão homossexual” ganha, dessa vez, uma discussão pública. Os
homossexuais tornam-se, uma vez mais, malditos, pois são vistos como os
vilões dessa história. Por outro lado, passos sem retorno haviam sido dados,
e a sexualidade humana foi posta na mesa e discutida sob diferentes
ângulos, interessando agora também aos sociólogos, médicos, políticos,
economistas etc.
Durante a década de 1980 as informações sobre a aids estavam nas
páginas dos grandes periódicos. Não existia naquele momento uma
publicação especificamente direcionada para os gays que criasse um espaço
de militância, ou congregasse ações direcionadas ao grande problema que
emergia. Contudo, essa ausência de manifestações midiáticas não significa
que reações não estivessem sendo gestadas. Ou seja, sob o silêncio de
publicações específicas, discussões e reflexões inevitáveis engendravam as
muitas iniciativas, algumas delas de importância capital no enfrentamento
da aids e de suas decorrências, e que eclodiriam alguns anos depois.
Uma das características da década de 1980 foi a mobilização da
sociedade civil pela luta dos direitos básicos da população. Em várias partes
do mundo, grupos se organizam em defesa das causas ecológicas, dos
direitos de cidadania de segmentos socialmente marginalizados, uma luta
pela vida. A luta que teve início nos anos 1960, ainda que de uma forma
idílica, é retomada nos anos 1980 com um caráter mais pragmático.
No Brasil vivíamos o fim da ditadura militar e o início da
redemocratização. É o momento no qual os movimentos sociais aparecem
para suprir as muitas demandas acumuladas ao longo das últimas décadas
pela maior parte da sociedade brasileira. Surgem novos partidos, e entre
eles o mais expressivo é o PT. O Brasil organiza uma nova Constituinte, e a
militância política passa a ser mais relacionada ao dia a dia e aos interesses
de indivíduos. Conforme afirma Cristina Câmara da Silva, “o pluralismo e a
diversidade trazidos à luz por estes movimentos marcam o cenário social no
qual surge a problemática da aids, que gradativamente constitui um
movimento social próprio” (1998:132).
Os ativistas remanescentes dos primeiros grupos organizados, de certa
forma desiludidos com o movimento – ou, como disse Trevisan (2000),
com a “mera movimentação mundana” –, passam a se envolver
efetivamente com a política partidária. Muitos se filiam ao PT e começam a
atuar dentro dos partidos. Vários grupos políticos, tais como o PCB e o PT,
que anteriormente tinham se posicionado de forma avessa à luta dos
homossexuais, incluem a discussão dos direitos homossexuais nas suas
plataformas.
O deputado Listz Vieira, eleito para a Assembleia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro, em 1982, pelo PT, tinha como assessor Herbet Daniel,
ex-guerrilheiro que na volta do exílio envolveu-se com a luta partidária e
com o ativismo homossexual. O Grupo Gay da Bahia (GGB), fundado em
1980, começa a se destacar por sua contundente luta contra as injustiças
dirigidas aos homossexuais. O grupo lidera um abaixo-assinado nacional
para que o Ministério da Saúde não mais adote o Código 302.0, da
Classificação Internacional de Doenças, que incluía a homossexualidade
como desvio e transtorno sexual. É também o GGB que começa a divulgar,
como uma forma de protesto, os assassinatos de homossexuais.
Dentro deste contexto, as organizações não governamentais (ONGs) se
fortalecem no Brasil e no mundo. E, com o início da epidemia da aids,
passam a surgir ações direcionadas a uma união mais solidária entre os
diferentes grupos e segmentos sociais, notadamente entre aqueles que
lidavam com as vítimas do HIV. Em 21 de julho de 1985, o Jornal do Brasil
publicava uma matéria por meio da qual soube-se que o Brasil era o terceiro
país em incidência da aids. As expectativas para o que estava por vir eram
as piores. A doença passou a ser assunto constante em quase todas as
mídias. Não só a doença, como também a sexualidade humana, e sobretudo
a homossexualidade.
Apesar disso, as pessoas atingidas pelo vírus viviam um sentimento de
desamparo e solidão que nenhuma outra doença havia provocado antes.
Sem respostas alentadoras dos órgãos públicos e da medicina, as vítimas da
aids foram levadas a procurar umas às outras, e dessa forma começaram a
se organizar. Foi o início dos grupos de apoio aos portadores do vírus.
Naqueles dramáticos tempos, ser portador do vírus significava o fim da
vida, uma terrível dupla condenação – física e moral –, pois o vírus também
trazia o “estigma da homossexualidade”.
Em 1979, o sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho, depois de um
longo exílio, retorna ao Brasil e passa a se dedicar às lutas sociais e
políticas. Betinho e seus dois irmãos – o cartunista Henfil e o músico Chico
Mário – eram hemofílicos. Obrigados a frequentes transfusões de sangue,
acabaram por contrair o vírus HIV. Betinho, então, começa a lutar pelo
direito à vida digna aos portadores do HIV/Aids. Uma luta que não era só
no plano pessoal ou familiar, mas abrangeu um nível mais amplo – o da
defesa da dignidade humana.
Em 1986, Betinho e um grupo de profissionais de diversos setores da
vida política e do movimento social criam a Associação Brasileira
Interdisciplinar de Aids (ABIA). A ABIA é uma entre as várias ONGs que
surgem para acompanhar as políticas públicas de saúde. Entre suas atuações
constava um intenso trabalho de educação e prevenção, e também de
assistência e tratamento aos portadores do HIV/Aids. Henfil e Chico
morrem em 1988, e Betinho vem a falecer em 1997.
Outro nome que se tornou importante na luta pelos direitos humanos das
pessoas que viviam com aids foi Herbert Daniel. Escritor, homossexual e
ex-exilado político, ele foi um dos fundadores da ABIA, junto com Betinho.
Herbert dedicou-se à luta pela valorização e dignidade das pessoas vivendo
com aids, até sua morte em 1992.
Em março de 1989, em uma matéria no Jornal do Brasil intitulada
“Notícias da outra vida”, este ex-guerrilheiro torna público seu status
sorológico. Ainda no mesmo texto, Daniel inicia sua luta contra a
discriminação e o preconceito que aflige as pessoas portadoras do vírus. Ele
dizia: “Eu, por mim, descobri que não sou aidético. Continuo sendo eu
mesmo. Estou com aids” (apud Bessa, 2002). A partir desta matéria o
escritor dará várias entrevistas, escreverá vários artigos e livros sobre a
epidemia. No mesmo ano, apesar de ele já fazer parte da ABIA, cria
também o Grupo Pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de
Aids (Pela VIDDA).
Outra ONG importante é o Grupo de Apoio à Prevenção da Aids
(GAPA-RJ), criado em março de 1987 por Artur Carvalho de Amaral
Gurgel e Antônio Carlos Barros de Freitas, ambos homossexuais. O GAPA-
RJ surge depois que Artur e Toni assistem à uma reportagem sobre o
GAPA-SP, que já funcionava desde 1986.
Essas e outras ONGs desenvolveram, aqui e fora do Brasil, um trabalho
que nenhum governo conseguiu realizar: conscientizar e defender a
dignidade daqueles que vivem com o HIV/Aids. Um dos trabalhos dessas
ONGs era publicar periodicamente boletins com informações sobre a
doença. A maioria destes boletins traziam notícias positivas sobre as novas
descobertas no campo da medicina e da farmacologia. Surgem, assim: o
Boletim da ABIA; o Boletim Pela Vidda/RJ; o Beijo da Rua, publicado pelo
ISER; o Boletim do Grupo de Incentivo à Vida, de São Paulo; o Boletim
Informativo Folha de Parreira, de Curitiba; o Boletim Epidemiológico Aids,
publicado pelo Ministério da Saúde; e o Boletim Informativo ATOBÁ. Todos
estes boletins passam a ser publicados a partir de 1986, mas têm uma
periodicidade instável.
Os primeiros anos da década de 1990 são um período de grandes
transformações na comunidade gay brasileira. Começam a surgir vários
grupos organizados no Brasil. Estes grupos começam a se articular entre si,
buscam parceiros e apoio em órgãos do governo, fazem articulações
importantes, tais como a retirada da homossexualidade como patologia da
Classificação Internacional de Doenças; tentam a possibilidade de incluir
na Constituição Federal a proibição da discriminação por orientação sexual;
é lançado um guia Gay Rio; e um candidato, assumidamente gay, concorre
a vereador no Rio de Janeiro. Estes acontecimentos demonstram que a
comunidade gay avança na consolidação da luta pelos direitos que lhe são
devidos. Hoje observamos que a comunidade gay de alguns estados
brasileiros tem um papel importante, ainda que pequeno, no contexto
sociopolítico do Brasil.
Historicamente, a paternidade para os homossexuais, sobretudo nas
sociedades cristãs, foi vista como algo inconcebível. Isso gerou e incutiu
um sentimento de negação internalizado, e se acreditava que gays e lésbicas
não tinham competência nem direito de educarem crianças, mesmo sendo
seus filhos. A grande questão seria: “Como um gay ou uma lésbica
poderiam educar uma criança?” A radicalidade do preconceito contra a
homossexualidade estava embutida nesta questão. O pensamento da fé
judaico-cristã de que o sexo é para procriação deixou os homossexuais por
muito tempo à margem da paternidade como instituição, na medida em que
muitos destes foram, são e serão pais, a despeito do que quer e pensa o
poder dominante.
A ideia de família que nós conhecemos e que é aceita – a família
conjugal –, é resultado de um processo do regime de repressão ao sexo
iniciado no século XVIII. Baseado no patriarcado, este é o paradigma que
vai se estender até a década de 1960, quando parte da juventude em vários
lugares do mundo começa a discutir novas formas de famílias. Segundo
Anna Paula Uziel, no Brasil a Constituição de 1988 inova ao “conceber
como família quaisquer dos pais e seus descendentes, rompendo o formato
único existente anteriormente” (2004: 29).
No Brasil, a união civil entre pessoas do mesmo sexo ganha destaque
apenas nas edições da Sui Generis, como veremos mais à frente.
Primeiramente em 1996, trazendo a deputada Marta Sulicy na capa e, em
1998, “a família gay” é capa da edição número 40.
Em 1995, a então deputada Marta Suplicy apresentou ao Congresso
Nacional o Projeto de lei no 1.151, propondo a legalização da união de
pessoas do mesmo sexo. O projeto gerou grandes debates na sociedade
brasileira, e foi substancialmente alterado na comissão que o discutiu
(Uziel, 2005). Apesar de toda a discussão, o projeto ainda está à espera de
votação no Congresso Nacional.
Embora o assunto já tenha mais de 50 anos nas páginas da impressa gay,
demonstrando um interesse de parte da comunidade, e projetos de lei
tramitem nos Congressos Nacionais de vários países, a união civil legal
ainda é sonho para muitos!
Mas não restam dúvidas de que nos anos 1990 o crescimento do
movimento a favor das causas dos homossexuais trouxe mudanças não só
no campo político, na medida em que o homossexual se coloca como
cidadão e ganha visibilidade na sociedade brasileira. Como decorrência, os
gays ganham destaque nas suas individualidades, sendo estimulados e
apoiados na luta para assumir as suas identidades. Isto pode ser visto nos
diferentes termos empregados para definir o reflorescimento do ativismo
homossexual no Brasil.
Com o passar dos anos constatamos que houve um amadurecimento das
identidades públicas. Foi necessário um longo período para que os gays, as
lésbicas e os travestis conseguissem ir para as ruas reivindicar os seus
direitos. Este amadurecimento é fruto de vários fatores que de certa forma
beneficiaram a vida de boa parte dos gays e lésbicas. A medicina trouxe
esperanças, com a descoberta dos antirretrovirais; o mercado financeiro
percebe que os gays e as lésbicas consomem; uma legião de héteros passam
a viver, de forma aberta, muito próximos dos homossexuais, e até ganham
um nome: “simpatizantes”. Conforme veremos no capítulo IV, será este o
universo refletido pela Sui Generis, uma revista de comportamento típico
dos gays dos anos 1990. Treze anos depois da primeira tentativa de
organizar uma parada gay, o Brasil tem a maior parada GLBT do mundo.
O Lampião da Esquina fechou as portas em julho de 1981 e durante
toda a década de 1980 não existiu outro periódico, a não ser os
pornográficos, dirigidos à comunidade gay. Todas as notícias sobre a aids
eram obtidas na grande imprensa e/ou através de boletins e/ou periódicos
relacionados ao órgão de saúde nacional ou ONG.
Aparentemente, nesse período, outras eram as prioridades, o que de
certa forma adiou o aparecimento de um periódico que voltasse a ocupar o
papel que o Lampião da Esquina havia representado. Segundo Marcus
Assis Lima, dezenas de publicações surgem explorando o nu masculino.
Concentradas em São Paulo, as revistas Gato, Alone Gay e Young
Pornogay, entre outras, tentavam discutir questões ligadas à
homossexualidade entre fotos de homens nus (Lima, 2001).
3.1 Nós, por Exemplo17
Em 30 de janeiro de 1991, um grupo de profissionais, partindo da
experiência e do trabalho que desenvolviam nas áreas de saúde e de direitos
humanos, com ênfase no trabalho de prevenção à aids e Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DST), decidiram criar o Núcleo de Orientação
em Saúde Social (NOSS). Conforme Roberto Pereira,
A tônica fundamental do nosso trabalho é a criação de uma consciência de saúde junto à
população atendida e, por extenso, à população em geral, incrementando a adoção de
práticas preventivas e assumindo a defesa dos interesses destas comunidades em suas lutas
reinvidicatórias, entendendo SAÚDE como um conceito amplo e abrangente (Pereira, 1991.
Nós Por Exemplo, número 1: 9).
No fim do ano de 1991, o NOSS lança o jornal Nós Por Exemplo,18
coordenado por Sylvio de Oliveira, designer gráfico e coordenador de
projetos do NOSS, e Paulo Henrique Longo, psicólogo e presidente do
NOSS. Se o projeto gráfico do jornal ainda é fraco, sem um conceito – ou,
como me disse Oliveira (2005): “o projeto gráfico no primeiro número não
existiu” –, a primeira edição, em termos editoriais, já nos mostra claramente
suas preocupações em relação à saúde e ao bem-estar do gay brasileiro.
O NOSS fazia um trabalho de campo. Seus membros iam ao encontro de
gays em áreas de prostituição, em presídios etc. Porém, eles queriam
alcançar um número maior de pessoas. Em entrevista específica para este
trabalho, Sylvio de Oliveira (2005) me disse:
Tinha viado em tudo que era lugar. Então não tinha como fazer um trabalho assim... Então a
gente pensou no jornal. Eu pensei no jornal. Conversei com o Paulo. Paulo achou a idéia
perigosa, mas interessante e... A gente acabou resolvendo fazer o primeiro número, enfim...
No editorial do número 1, o jornal se apresenta da seguinte forma:
Já que normalmente o editorial do primeiro número de um jornal traz explícitas suas
tendências, devemos dizer que não é pretensão ou desejo do Nós Por Exemplo fincar no
preconceito de nosso povo a bandeira da homossexualidade, nem tentar iniciar um
movimento de organização dos grupos homossexuais [...].
Para o Nós Por Exemplo é vital que o homossexual brasileiro seja respeitado. E, para que
isto aconteça, a busca do conhecimento é indispensável. Refletir sobre a própria condição é
iniciar o processo de auto-estima que é o único caminho para se fazer respeitar.
Para este número de estreia convidamos pessoas significativas em suas áreas para
escreverem artigos que abordassem a homossexualidade de uma forma bastante abrangente.
Notamos que, de uma forma ou de outra, a Aids sempre veio à tona em seus artigos, o que
demonstra ser uma preocupação geral. Abrimos então uma seção exclusiva para as
informações sobre a doença e suas formas de prevenção.
Quanto às nossas tendências, esperamos que sejam iguais às suas. (NPE, número 1: 2)
Neste número as tendências são várias. O jornal abre com uma seção
intitulada Lá fora, um espaço dedicado a apresentar um pouco da vida gay
fora do Rio de Janeiro. Havia ainda as seções: Nós mulheres (dedicada às
lésbicas); Nós homens (dedicada aos gays); Aids (com artigos sobre a
doença); Entre nós (de entrevistas); Informes (de notícias sociais); Opinião
(um espaço de discussão); Rumos (de novidades no mundo gay); Arte; e
Roteiro (com dicas de espaços sociais gays no Brasil). Durante sua
existência, o jornal sofre poucas mudanças. Em termos editoriais, a seção
Rumos desaparece depois do terceiro número. A seção Aids torna-se a
partir do oitavo número um encarte dentro do jornal, intitulado Agaivê hoje.
Surgem as seções Memória, a partir do terceiro número, e a seção
Movimento aparece na nona edição; Informes muda o nome para Babados a
partir do número 21. Em termos gráficos as mudanças são maiores.
O número 1
A primeira seção – Lá fora – apresenta alguns mitos e algumas verdades
sobre a liberdade sexual dos gays na Holanda. E durante toda a existência
do Nós Por Exemplo, com exceção de apenas dois números, a coluna vai
estar presente. A partir do número 10, ela troca de nome, passa a ser
chamada de Out Rio.
Figura 20 - NPE, número 1, a capa é uma salada tipográfica.

O jornal era distribuído nacionalmente. Nas vinte e duas edições que


trazem o turismo gay, o jornal nos leva à Republica Dominicana, passa pelo
deserto da Líbia, atravessa a Grécia, usufrui das praias de Fortaleza e chega
até Londres, sempre informando, a possíveis turistas, onde encontrar boa
diversão com segurança. O turismo gay já era pauta nas páginas do
Lampião da Esquina dez anos antes, mas a diferença agora é que o roteiro
não se prende apenas às capitais e cidades do Brasil.
Apesar de ser um jornal quase inteiramente voltado para a
homossexualidade masculina, a discussão do universo lésbico também é
contemplada nas páginas da seção Nós mulheres. Neste primeiro número,
Jaqueline Muniz escreve sobre “indiferente invisibilidade, típica do amor
entre mulheres”, e como “a homossexualidade feminina é interpretada
como uma coisa sigilosa e até mesmo invisível” (1991: 5). A despeito da
centralidade deste trabalho ser dedicada ao mundo gay masculino, é preciso
sublinhar a presença não menos importante das ações da militância lésbica,
que de uma forma ou de outra se beneficiaram da abertura dos espaços
midiáticos aqui tratados.
A seção Nós homens do número 1 traz um belo texto de Nestor
Perlonger, no qual o autor fala de um possível desaparecimento da
homossexualidade. Segundo Perlonger (1991: 7), a foice da aids estava
ceifando o que um dia foi “[...] o interminável festejo da emergência à luz
do dia, no que foi considerado o maior acontecimento do século XX: a
saída da homossexualidade à luz resplandecente da cena pública”. Este
texto, que, segundo Carlos Alberto Messeder, foi escrito ainda nos anos
1980, previa um triste fim de uma grande festa.
Mas a geração que viveu ou convive com o HIV vai encontrar saídas
para a armadilha que a capturou. Uma nova identidade surge do meio de
tanta tristeza. A atmosfera reinante naquele momento era a de que os gays
passariam a lutar pelos seus direitos sem esquecer os prazeres dionisíacos,
pois o dionisíaco sempre foi e será alcançado independentemente de leis ou
doenças. Sem se tornar radical, uma “cultura gay”, ou um “modo de vida
gay”, ganha espaço na sociedade e na mídia, principalmente a partir da
segunda metade da década de 1990. É o gay do Nós Por Exemplo, e
principalmente das páginas da revista Sui Generis, tema de nosso próximo
capítulo.
Na seção intitulada Aids, do primeiro número, o jornal traz quatro
artigos: “Os mitos e verdades sobre a prevenção da Aids”; um texto da
doutora Márcia Rachid, médica do hospital Grafée Guinle, sobre “Aids e
Ética”; um outro no qual é ensinado como usar a camisinha; e, por último,
um artigo do Núcleo de Orientação em Saúde Social (NOSS), apresentando
seus trabalhos, objetivos e seus fundadores. É esta seção que vai justificar o
jornal.
Na primeira entrevista da seção Entre nós, o jornal conversa com o
escritor e presidente do grupo Pela VIDDA, Herbet Daniel. A entrevista
gira em torno de aids, guerrilha e homossexualidade. Daniel foi incansável
na luta contra o preconceito em torno da aids.
Na seção Informes, as dicas são: como fazer sexo seguro; o que fazer se
você e seu namorado forem barrados em um motel; e os cuidados com as
DSTs. Com o tempo esta seção assume um aspecto de colunismo social.
A seção Opinião traz dois textos: um, de forma irônica, discute a
possibilidade da heterossexualidade ter cura; o outro versa sobre os “gays
efeminados”, que no mundo dos anos 1990 começam a desaparecer quase
que por completo da cena social gay. Este momento marca o surgimento
das “barbies”, 19 uma personagem típica dos anos 1990, e da qual me
ocuparei no próximo capítulo.
A seção Rumos publica um artigo de Richard Parker, antropólogo da
UERJ, sobre a bissexualidade na cultura brasileira: uma discussão sobre os
conceitos de “ativo” e “passivo” dentro do mundo masculino brasileiro. O
jornal termina trazendo contos e poesia na seção Arte, além de uma
reportagem com o ator Wagner de Almeida, que trabalha com causas
sociais, e traz ainda uma crítica da peça Blue Jeans, de Wolf Maia. A seção
Roteiro dá ainda o endereço de bares, discotecas, shows, teatro, livros e
vídeos, todos relacionados com o mundo gay.
Nós Por Exemplo tem o mesmo formato tabloide que tinha o Lampião
da Esquina. É impresso em papel off-set, papel branco mais resistente que o
papel jornal, que ao mesmo tempo dá ao periódico uma aparência bastante
próxima das revistas. Neste primeiro número, o jornal vem impresso em
duas cores: o preto e o verde. Tem uma diagramação mais clara e traz
muitas fotos, tornando a leitura mais agradável.
A abrangência de assuntos é uma característica que o jornal vai manter,
apesar de não conter uma seção de humor. Não que o humor fosse
imprescindível, mas as charges ou cartoons, que têm seus espaços
garantidos na maioria dos jornais, não aparecem e nem iriam aparecer.
Sylvio de Oliveira conta que entrou em contato com alguns humoristas,
pedindo a criação de uma personagem para o jornal, mas não obteve
resposta. Na edição número 14, o Editorial menciona: “Damos início ao
concurso de charges, na necessidade de colocarmos um pouco mais de
humor em nossas páginas” (NPE, número 1: 2). Mas as charges não
aparecem. Ainda não havia sido encontrado um caminho para que os
humoristas pudessem ironizar e debochar sem incorrer no “politicamente
incorreto”. Ser um humorista de fato é poder ser iconoclasta; do contrário
ficaríamos sem humor. O humor mordaz, debochado, iconoclasta só
encontrará espaço na revista Sui Generis.
Nós somos apenas vozes20
O surgimento do Nós Por Exemplo veio a preencher várias lacunas.
Primeiro, tratava-se da volta de um periódico direcionado à comunidade
gay/lésbica. Segundo, um veículo no qual a aids pode ser tratada de forma
honesta e segura, livre do cunho moralista e preconceituoso. Terceiro, o
movimento homossexual brasileiro, até então sem uma mídia que lhe
garantisse espaço de expressão, encontra no NPE o que um dia o Lampião
da Esquina fez para o iniciante movimento de organização da “minoria
gay”: apoio e divulgação.
Com uma tiragem inicial de 500 exemplares, nos seus primeiros
números o jornal era vendido em banca ou por meio de assinaturas. A partir
do número 12, passa a ser distribuído gratuitamente (ele ganhou um
financiamento particular). Isto fez com que aumentasse seu alcance e sua
popularidade. Na edição número 18, a tiragem do NPE chegou a dois mil
exemplares.
Conforme Sylvio de Oliveira (2005): “O jornal só existiu porque existia
a aids. A gente tinha muito medo do jornal não alcançar o público que a
gente queria”. A preocupação dos editores era bastante pertinente, pois a
aids, apesar de ser o assunto do momento, era algo difícil de ser abordado
sem ter seu entendimento empanado pelo discurso moralista e
preconceituoso. Não que hoje o preconceito e a visão conservadora tenham
desaparecido, mas já não são absolutos. A discussão que o NPE trazia se
deu antes da chegada do “coquetel” dos antirretrovirais, remédios que
trouxeram uma considerável melhoria para a vida das pessoas portadores do
HIV/Aids.
Por toda a década de 1980, e até o início de 1990, as reportagens sobre
aids apareciam sempre nas seções de Ciência e saúde e Medicina dos
grandes jornais. Segundo Bessa, “mesmo quando o conteúdo poderia ser
caracterizado de ‘comportamento’, ou ‘sociedade’, as reportagens
continuaram a ter o rótulo de saúde ou medicina, como se o fato de estarem
inclusas nessas seções desse mais credibilidade ao texto” (2002:31).
Os editores do NPE tinham receio de que o jornal fosse mal-
interpretado, e que as pessoas o vissem como se ele só falasse de aids. De
acordo com Oliveira (2005):
Era a época de plena prevenção. Estava no auge a coisa da prevenção, mas também de uma
tremenda rejeição a coisa da aids. Muitos, não só gays, mas... muitas pessoas, né? É... Não
queriam saber... A questão da aids... Preferiam ignorar... Então a gente tinha muito medo
disso, mas o que a gente fez? Começou... Eu acho que... Com uma coluna explícita sobre a
aids e no corpo do jornal... No início tinha uma coisinha ou outra. E isso foi aumentando. O
que a gente publicava? O que que a gente passou a publicar, a partir do segundo número? O
primeiro número eu encomendei artigos. Com pessoas ligadas à aids, que foi o Richard
Parker, a Dr. Marcia Rachid, o Paulo Longo, e mais umas quatro ou cinco pessoas. A partir
do primeiro número os artigos chegavam para gente, muitos sobre sexualidade, muitos
sobre a aids. Então eu achei ótimo. Eu vi que alguma coisa estava funcionando ou iria
funcionar.
Os editores trataram o assunto com muito respeito e carinho. A seção
Aids, espaço exclusivo para as informações sobre a epidemia, torna-se um
encarte dentro do jornal a partir do número 8. Segundo o editorial da
mesma edição, “cerca de 70% das cartas recebidas mensalmente são
relacionadas à questão da aids”. Oliveira (2005) conta que:
Então essa coisa veio num crescendo até um momento em que começou a ficar mais ou
menos equilibrado o número de cartas sobre sexualidade e o número de cartas sobre aids. E
foi quando a gente resolveu fazer um caderno especial sobre a aids, chamado “Agaivê
hoje”. Mesmo porque isso resolvia dois problemas: só ali, naquele caderno se falava de
aids. Era o caderno central, completamente destacável. Se o cara não quisesse saber de aids,
ele pegava aquele caderno, jogava fora e acabou. Ficando com um jornal bonito, cheio de
homem pelado, cheio de artigos interessantes sobre gays. É... Enfim, foi assim.
É provável que os leitores não jogassem fora o encarte Agaivê hoje.
Primeiro, porque ele não reduzia a doença a um sinônimo de morte, nem a
métodos de prevenção, apenas. O Agaivê hoje falava de prazer. Tinha
reportagens sobre sexo e carnaval; informava sobre as conferências
nacionais e internacionais sobre aids; dava dicas sobre a relação aids e
trabalho; trazia as novas descobertas da medicina para o tratamento da
doença; discutia o papel da mídia sobre a aids; e ostentava muitas histórias
positivas sobre os soropositivos. Segundo, o encarte não tinha uma
aparência austera ou didática. Ele mantinha o mesmo critério de qualidade
na escolha do papel no qual era impresso o jornal, bem como em seu
projeto gráfico. E também veiculava as fotos de homens nus.
Se dez anos antes o jornal Lampião da Esquina ocupara um lugar de
destaque na mídia, por ter sido o primeiro periódico dirigido ao público
gay, o NPE não causou nenhuma surpresa. Homossexual, gay,
homossexualidade, lésbica e aids eram palavras constantes nos noticiários
do fim dos anos 1980 e início da década de 1990. Rock Hudson, Cazuza e
Renato Russo são alguns nomes de pessoas famosas que assumiram sua
homossexualidade, depois que descobriram ser soropositivos. O movimento
gay, que desabrochou junto ao Lampião da Esquina e quase feneceu
quando o jornal desapareceu, revitaliza-se e com muito mais força, pois
sempre existiu um público ávido por um jornal ou revista que falasse deles
e para eles.
O NPE veio preencher esta lacuna e ao mesmo tempo trouxe
informações sobre o Lampião da Esquina para os novos leitores. Na seção
Memória, por quatro edições, o NPE reproduziu artigos originalmente
publicados no Lampião. A primeira seção Memória trouxe à tona os feitos
do cronista João do Rio, homossexual e figura importante do cenário
intelectual do Rio de Janeiro do início do século XX. Nos outros números, o
jornal publicou o artigo “Assumir-se por quê?” da edição número 3 do
Lampião; o roteiro gay do Rio de Janeiro, publicado na edição número 19; a
carta aberta ao Sr. Karol Woitjila, da edição número 27; e o artigo “Um
roteiro turístico: os buracos do Rio”, de Antônio Carlos Moreira. Esta
última reprodução foi feita sem autorização do autor, e por causa disso
causou constrangimento em ambas as partes, o que levou os editores do
NPE a suprimir a seção do jornal. No final das contas, quem perdeu foram
os leitores, pois a coluna proporcionava um retorno ao passado que só
contribuía para difundir ainda mais a cultura gay.
Sylvio de Oliveira enfatiza que queria um jornal agradável e esperava
que o público-alvo se identificasse com ele. Perguntado sobre quem era esse
público-alvo, ele é direto: “Sem dúvida nenhuma foi feito para o público
gay. Eu não sabia muito bem como fazer, apesar de conhecer bem o
público-alvo” (Oliveira, 2005). Oliveira conhecia a imprensa gay do Rio de
Janeiro, tinha conhecimento do Lampião da Esquina, mas não era aquilo o
que ele queria.
Tinha uma preocupação em ser um jornal agradável, né? E que o público-alvo se
identificasse com ele. Eu não sabia muito bem como fazer, apesar de conhecer bem o
público-alvo. Mas não sabia como deveria ser um jornal ou um veículo de comunicação
para esse público. Apesar de eu ser gay e ter feito jornalismo, eu não tinha a experiência.
Porque o que eu tinha de conhecimento era o jornal Lampião que foi o antecessor do Nós
Por Exemplo. Que primeiro eles não se diziam um jornal gay. Eles se diziam um jornal de
minorias. Aliás, eles especificavam: gays, mulheres, negros, índios etc.
Então, não seria aquela cara. Eu queria uma coisa muito específica e a solução era buscar
em jornais e publicações estrangeiras que eram extremamente bem elaborados e caros e etc.
e tal. Então, a partir do que eu observei nessas publicações, eu tentei fazer uma coisa
tupiniquim, barata.
Sylvio, diferentemente dos editores do Lampião, que chegam a criticar
as publicações estrangeiras, não se intimidou em pesquisar e beber na fonte
destes periódicos. O Nós Por Exemplo conciliou um bom texto com uma
boa apresentação, e não evitou, muito pelo contrário, uma certa dose de
erotismo.
Tomando como ponto de partida da história da imprensa gay brasileira o
jornal Lampião da Esquina, pretendo, a seguir, tomar o NPE como
contraponto do Lampião, sublinhando suas singularidades, seus encontros e
afastamentos, para dessa forma mapear suas diferenças. E a partir de suas
representações, tanto verbais quanto visuais, mostrar os caminhos
percorridos na construção e afirmação das possíveis identidades da cultura
gay.
Nós somos apenas nós
Com apenas dois editores – inicialmente Sylvio de Oliveira e Paulo
Longo – e mais tarde contando com a colaboração de Sergio Barcelos, o
NPE, tendo como eixo central a questão da aids, manteve a coerência dos
seus propósitos ideológicos refletida na unidade do seu aspecto gráfico.
Esta sintonia se manteve até o desaparecimento do jornal. Isto é observável
na constância do Editorial e no discurso direto que ele tem com o leitor.
Não, amigos, não é que tenhamos perdido a cor, visto que continuaremos tentado dar cor à
verdade (NPE, n. 2).
Esperamos que o encarte seja do agrado de todos, e que com a mesma atenção que sempre
foi dada ao Nós Por Exemplo também possamos contar com sua colaboração no envio de
artigos para o Agaivê hoje (NPE, n. 8).
Vibramos com o casamento de Adauto e Cláudio, em abril, um marco na história gay
brasileira (NPE, n. 14).
Bem, eis aqui o NPE mensal, de cara nova, com novas propostas (NPE, n. 17).
De grandes novidades, temos o Safe Bar – o bar do Nós Por Exemplo. Inaugurado no dia
15, já está fazendo o maior sucesso (NPE, n. 21).
Esses exemplos demonstram que o Editorial era também o local do bate-
papo informal, sem distanciamento entre editores e público. Se o Editorial é
“a página que veicula a opinião dos proprietários de uma determinada
publicação” (Rossi, 1984: 9), no NPE este espaço era o local que
estabelecia um diálogo direto com o leitor.
Como vimos anteriormente, o Lampião da Esquina não tinha um
Editorial típico, ou canônico. Em alguns números a seção Opinião
substituía as ideias dos editores, mas a própria seção não foi constante. Isto
me fez procurar outras possibilidades de abordagem para o jornal Lampião.
O NPE, além de manter o seu editorial, também trazia uma seção Opinião.
Nesta seção o espaço era ocupado por opiniões diversas sobre assuntos
diversos, tais como “Homossexualidade na adolescência” (NPE, n. 2); “O
Papa e os direitos humanos” (NPE, n. 4); “Casamento gay” (NPE, n. 5);
“Possíveis causas da homossexualidade” (NPE, n. 8); “Repensando o
transexualismo” (NPE, n. 16); “Violência contra homossexuais” (NPE, n.
17); “Sadomasoquismo erótico” (NPE, n. 19). Podemos perceber que
alguns temas fazem parte, especificamente, do universo de discussão da
homossexualidade, mas todos participam da própria condição do ser
humano.
No Lampião da Esquina, a partir de suas capas, levantei seis grandes
temas que ocuparam suas páginas – Violência, Ativismo, Aliados políticos,
Comportamento sexual, Bichas e travestis e Entrevistas. Todos os temas –
com exceção de Aliados políticos –, em diferentes proporções, continuavam
e ainda continuariam a aparecer nas páginas da imprensa gay. Se as pontes
que o Lampião tentava fazer com outras minorias desaparecem no NPE, é
porque vivíamos outra conjuntura política. A ditadura militar tinha
terminado há uma década. No cenário nacional refletiam-se as
preocupações internacionais. A luta pelos direitos humanos e pelos direitos
das minorias já era um fato, ou seja, já ocorriam os enfrentamentos dos
problemas que o regime de exceção havia provocado. Mas é importante
ressaltar que os temas citados no NPE não traziam a carga dramática das
chamadas das capas que caracterizaram o Lampião.
Vejamos alguns exemplos. Para começar, a questão da violência contra
os homossexuais, um dos temas constantes em ambos os periódicos.
A morte do vereador Renildo dos Santos, em Coqueiro Seco, Alagoas,
em 1993, mereceu uma matéria que tinha como título “Caso Renildo: a
morte anunciada” (NPE, n. 7). O vereador tinha sido assassinado
barbaramente. O corpo fora encontrado carbonizado, sem os braços e sem a
cabeça.
O jornal faz um relato pungente do caso. O grupo Triângulo Rosa e o
jornal estavam acompanhando o caso Renildo desde que o vereador tinha
sido afastado do cargo. O grupo e o jornal suspeitavam de que o vereador
tivesse sofrido pressão por ter assumido sua homosse-xualidade
publicamente. A referida matéria apontava o preconceito de grande parte da
sociedade brasileira e a incompetência para lidar com uma pessoa pública
homossexual. Infelizmente, o crime foi esquecido.

Figura 21 - NPE número 7, página 13.

Na edição número 7, outra grande matéria sobre violência contra


homossexuais – “Violência contra Homossexuais: elaborando uma agenda
de soluções” –, de Edgar Merchán Hamann. O autor discute a violência
observando que em muitos casos a condição da homossexualidade da
vítima constitui fator atenuante para a responsabilidade do agressor.
Na última década, as entidades de militância homossexual têm chamado atenção para os
números crescentes de episódios de violência contra o homossexual. Fora do âmbito destes
grupos, este problema é raramente abordado e estudado, ou é encarado como um fenômeno
marginal (NPE, n. 17: 16).
Edgar relata o trabalho que grupos gays organizados do Rio de Janeiro
vinham desenvolvendo junto à comunidade gay para tentar diminuir este
problema. Ele conclui afirmando que “o problema da violência é mais um
sintoma das múltiplas tensões sociais de uma estrutura perversa”. O jornal
discute o assunto sem fazer estardalhaço. Não tem fotos de corpos
mutilados, nem homossexuais apanhando; pelo contrário, a segunda matéria
é ilustrada com fotografias de um belo corpo masculino.
Se o ativismo no Lampião da Esquina em alguns momentos foi motivo
de grandes celeumas, fora e dentro do jornal, no Nós Por Exemplo, o
movimento gay brasileiro é motivo de orgulho. Em primeiro lugar, uma
seção – “Grupos gays” – é dedicada somente para eles. Em segundo, a
partir do número 9, surge a seção Movimento. Nesta seção são discutidos os
caminhos do movimento gay, apresentando-se um novo grupo, que trata de
questões sobre a visibilidade etc. Existe um orgulho do jornal em relação ao
movimento e à própria comunidade gay/lésbica. É o jornal que promove a
primeira passeata gay no Rio de Janeiro, em janeiro de 1993. A passeata
aconteceu na Avenida Atlântica, em Copacabana, ainda com um número
pequeno de participantes: por volta de 200 pessoas. Este número que o
jornal divulgou foi mais uma estratégia de marketing, pois segundo Luiz
Carlos Freitas, que participou do evento, não havia mais de 50 pessoas na
“passeata”.
Na edição de número 7, decepcionados, os editores do NPE fizeram um
balanço da passeata. A avaliação era de que o jornal havia se empenhado,
mas não conseguira alcançar seu objetivo. Foram publicadas várias
chamadas para a passeata, que acabou recebendo o nome de “Passeata das
Máscaras” em virtude de muitos terem preferido não mostrar a cara. Por
outro lado, afirmava-se que “o importante era participar”: “Chego às vezes
a questionar para que serve um jornal dirigido ao público gay. Por que
compram? O que buscam? Fotos sensuais?” (Oliveira, NPE, n. 7: 13). O
jornal termina o artigo dizendo que não vão desistir.
Isto fica claro ao constatarmos o número de grupos que se organizam
durante a existência do Nós Por Exemplo. Na primeira edição do jornal, em
dezembro de 1991, existiam seis grupos gays no Brasil. Em março de 1995,
a edição número 21 publicava a lista de nomes dos 62 grupos gays
espalhados pelo país.
De várias formas o jornal incentivou essas organizações. A partir do
número 3, o jornal passa a ter uma seção chamada Grupos gays, na qual são
divulgadas notícias acerca do movimento gay brasileiro, e é até dada
orientação aos interessados sobre como fundar um grupo gay (NPE, n. 6:
16). Sylvio de Oliveira conta que estes grupos recebiam um pacote de
jornais do NOSS gratuitamente. Desta forma, o jornal chegava ao
Camaleão, um grupo de Porto Velho; era lido pelos membros do Tibira, um
grupo gay de São Luís; e discutido pelos frequentadores do Nuances, outro
grupo de Porto Alegre. Sem tomar partidos, o jornal aglutinava todos os
interesses político-sociais de 62 grupos distribuídos pelas cidades do Brasil.
Infelizmente, o jornal divulgou, mas não esteve presente na 17a
Conferência Internacional de Gays e Lésbicas (Ilga), que aconteceu no Rio
de Janeiro em junho de 1995. O NPE saiu de circulação no mês em que
aconteceu a conferência. Organizada por grupos do Rio, a conferência (a
maior que já existiu) teve cobertura da imprensa brasileira e estrangeira. O
evento trouxe ao Brasil vários ativistas estrangeiros e de outros estados do
Brasil. A conferência culminou com uma grande passeata na Avenida
Atlântica, na Zona Sul do Rio de Janeiro, com 2 mil participantes (esse foi
o número oficial divulgado. Mas na realidade não havia nem 500 pessoas,
pois a própria Conferência não contava com duas mil pessoas e os
participantes da passeata eram quase exclusivamente os participantes da
Conferência). O número divulgado, aumentado, era uma estratégia para
conferir uma visibilidade positiva e de sucesso, coesão e força da categoria
organizada, que na verdade lutava para se organizar. O movimento
gay/lésbico brasileiro sem dúvida caminhava para um amadurecimento, que
veio a acontecer uns três ou quatro anos depois. A conferência e a passeata
foram um marco inicial.
Se nas páginas do encarte Agaivê hoje o sexo era associado às questões
de saúde, e alertava à comunidade gay dos possíveis riscos que podíamos
correr caso não tomássemos os devidos cuidados com a prevenção, em
outras seções o comportamento sexual era discutido e repensado mostrando
que as dificuldades podiam ser superadas.
A seção “Nós homens” é a que vai dar mais espaço para as discussões
sobre o comportamento sexual do gay dos anos 1990, mas não
necessariamente apenas ela. Outras seções, tais como Reportagem, Opinião
e Rumos também vão trazer assuntos relacionados ao comportamento
sexual. Algumas destas reportagens são sobre tópicos já vistos no Lampião
da Esquina, tais como “Prostituição masculina” (NPE, n. 2); “Sexo no
banheiro” (NPE, n. 3); e “Mito da promiscuidade” (NPE, n. 7). O
importante é que estes assuntos, dez anos depois, ressurgem sem as
chamadas sensacionalistas. São discutidos como realidades da vida sexual
de alguns gays, e sem moralismos, apenas com a preocupação de alertar o
leitor.
No artigo “Banheiro: adivinhe quem vem para transar”, o autor discute
primeiramente o significado da palavra “promiscuidade”, muitas vezes
associada aos gays, e o quanto de preconceito é atribuído a ela. O texto é
escrito para discutir que atos considerados promíscuos são totalmente
seguros do ponto de vista da prevenção, e pode-se ter muita diversão:
Em uma pesquisa informal com um grupo de gays, michês e alguns bissexuais, pude
constatar que a masturbação a dois é o ato mais praticado nos banheiros públicos desta
cidade e, imagino, de outras. Visto que a masturbação a dois é uma prática de sexo
extremamente segura, como podemos chamar de promíscuos os indivíduos que a praticam
(e às vezes só a praticam)? (NPE, n. 2: 5)
Os mitos da passividade e da promiscuidade também são discutidos por
Paulo Longo. O autor relaciona dois aspectos constantemente ligados à
homossexualidade. Segundo Longo, para a sociedade todo gay é passivo e
promíscuo. Ele discute estes aspectos mostrando que isto está “ligado à
inevitável questão do poder e dominação, tão presentes na cultura do
macho”, além de serem usados para legitimar o preconceito contra os
homossexuais. O autor discute ambos os comportamentos mostrando que
com o aparecimento da aids estes aspectos do comportamento sexual de
alguns gays serviu para diversos estudos afirmarem que “os homossexuais
estariam sujeitos, com maior propensão, à infeção pelo HIV devido a seu
estilo de vida”. (NPE, n. 7: 6).
No texto de Longo, podemos observar que a aids é sempre colocada
como um fator que implica a mudança de comportamento, mas não a sua
negação. Sendo o NPE ligado a uma ONG (NOSS) que desenvolvia um
trabalho com prostitutas e michês, estes assuntos são frequentes na pauta do
jornal. Além disso, embora o sexo nas esquinas já estivesse presente nas
páginas do Lampião, outros comportamentos só viriam a ser discutidos nas
páginas do NPE. No seu número 5, a seção de entrevista Entre nós traz o
depoimento de Paulo Sérgio, homossexual e pai. Na mesma edição, o
casamento gay ganhou destaque, sendo matéria de capa.
Na comunidade gay, a parentabilidade e a oficialização da união de gays
há muito vinham sendo debatidas. A revista One, de 1953, trazia como
chamada de capa o tema “Homossexual Marriage?”. Em dezembro de 1959,
o assunto novamente era debatido na One, no artigo “Homossexual
Marriage: fact ou fancy?”. Em fevereiro de 1970, a revista Vector discutia o
“casamento gay”, e em março de 1973 a mesma revista entrevistava uma
família gay. Em janeiro de 1978 e junho de 1979, a revista Advocate trazia
artigos falando sobre gays que são pais. Como vimos no capítulo I, tanto a
One como a Vector (que já não existe mais) e a Advocate são publicações da
imprensa gay norte-americana da Califórnia.
No Brasil, a partir dos anos 1990, depois de quase uma década de
convivência com o HIV e um número muito grande de perdas, ganha
espaço a discussão sobre direitos patrimoniais de parcerias homossexuais,
tema este que tem ocupado muitas páginas de jornais. Estas discussões
trouxeram à tona um debate mais abrangente sobre as novas famílias e
novas possibilidades de parentabilidade.
Em vários lugares do mundo, homossexuais formam famílias. Em 1993,
já se encontravam registrados mais de 3 milhões de gays e lésbicas que
tinham filhos (Cf. Martin, 1993). É óbvio que este desejo não é uma coisa
nova. Mas onde encaixar esta família? Como encaixá-la na rígida matriz
tradicional da família brasileira. Este desejo de constituir família, seguir os
padrões tradicionais, e (por que não?) ter filhos é um desejo pessoal e
ponto! Inclusive de muitos gays. Uns almejam o “viver felizes para
sempre”, e outros não.
Outro tópico que denota as mudanças do comportamento sexual da
comunidade gay nos anos 1990 e se reflete nos periódicos estudados é a
matéria sobre relações intergeracionais (relações entre jovens e idosos)
apresentada no NPE número 13. Com o subtítulo de “Quando a pedofilia
não é crime e nem doença”, Sérgio Barcellos, num longo texto, analisa este
tipo de relação ao longo da história. Ao final o autor nos informa da
criação, no Rio de Janeiro, de um grupo gay chamado “Caras e Coroas”,
que reúne jovens que se interessam quase exclusivamente por pessoas
acima de 50 anos. Na seção Movimento, o jornal torna a citar o novo grupo,
publicando a caixa postal para os interessados.
Essa relação sempre existiu, mas não era abordada. A geração
“lampiônica”, agora “coroa”, e de certa forma assumida, não tinha mais
receio em mostrar seus desejos. E os jovens pós-Lampião, por outro lado,
convivendo com a ameaça da aids, sonhando com a possibilidade de um
“casamento”, indo para as ruas marchar, não só assumem suas sexualidades,
como não mascaram suas fantasias.
Regina Facchini, no texto “Movimento homossexual e construção de
identidades coletivas em tempos de Aids”, aponta para as alterações
ocorridas no nome do movimento. Inicialmente, o primeiro encontro, em
1980, ganhou o nome de I Encontro Brasileiro de Homossexuais, e assim
permaneceu até o sexto encontro. No sétimo encontro, em 1993, o nome
mudou para VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais. A partir
daí seguiram outras reformulações como GLT (Gays, Lésbicas e Travestis),
e, mais tarde, a denominação GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e
Transgêneros), este último sendo uma categoria que envolve os travestis e
os transexuais (Facchini, 2004). Atualmente (já há pelo menos três anos) é
LGBT, colocando as lésbicas na frente, como estratégia de subversão da
ordem de poder masculina e machista, presente mesmo no movimento de
minorias sexuais. Estas mudanças no coletivo refletem as mudanças
ocorridas no plano individual.
O avanço da marcação dos fios que enredam a “homossexualidade”, e
que atenderiam a certa exigência prática, indicia, de certa forma, a
pluralidade que inexoravelmente se abriga sob a “identidade”. Os diferentes
personagens que se abrigavam e se mesclavam debaixo do termo
“homossexual” passam a reivindicar o destaque para seu lugar na luta pelos
seus direitos. Cada personagem traz suas particularidades e idiossincrasias.
No Lampião criei uma categoria que denominei “Bichas e travestis”, na
qual agrupei várias chamadas e reportagens sobre homens que modificam
parcialmente o corpo. Travestis são personagens polêmicos, pois
radicalizam a transgressão dos limites que embasam as questões de gênero.
Pessoas que inúmeras vezes são condenadas às mais desgraçadas condições
de vida. Estes personagens desaparecem no Nós Por Exemplo. Não porque
de fato tenham desaparecido, mas porque a rede de símbolos identitários
ampliou-se.
A vida trágica e o vedetismo dos travestis dos anos 1970 (ainda herança
dos anos 1950) desaparecem da vida social nos anos 1990, e de um modo
geral das páginas da imprensa gay. Nas páginas do jornal, os travestis
presentes não são exatamente aqueles que sofrem as agruras dos travestis de
calçada, que se prostituem para sobreviver. Os que ocupam os espaços do
jornal são bem-posicionados na cena cultural do Rio de Janeiro, tais como
Laura de Vison (1939 – 2007) ou Rogéria, que fossilizaram o travesti dos
anos 1950, mas que não são vistas apenas como travestis, mas como
artistas. Ou então vamos encontrar os novos personagens do travestismo: as
drag queens. São rapazes que não utilizam nem hormônios nem silicone no
corpo e trabalham com a criatividade artística para se vestirem de mulher.
Criam ou dublam personagens, que se tornaram referência no circuito das
casas de shows gay do eixo Rio-São Paulo. Uma delas, inclusive, tornou-se
bastante famosa por ter beijado o então futuro presidente do Brasil,
Fernando Henrique Cardoso.
No réveillon de 1993 para 1994, o ministro da economia, Fernando
Henrique Cardoso, andando pela avenida Atlântica foi abordado e beijado
pela então desconhecida Isabelita dos Patins. A foto da drag beijando o
ministro foi capa de todos os jornais na manhã seguinte. Este fato acabou
por contribuir de forma indireta para a divulgação de uma personagem
típica dos anos 1990. As drags são o travesti do novo milênio, não dublam
só Judy Garland, agora imitam Madonna e são pop. Trabalham na televisão,
são ativistas, fazem trabalhos sociais, tudo isso sem perder o bom humor e a
purpurina.
No Lampião, o termo “bicha”, um dos nomes usados para definir
homens que fazem sexo com homens, era usado indiscriminadamente.
Palavra extremamente popular, não só usada no meio dos homossexuais,
mas também pela maioria heterossexual, o termo era usado como sinônimo
de efeminado, passivo, com uma associação ao travesti. A palavra ainda
continua sendo usada no NPE, mas apenas com o sentido de referência, sem
mais nenhuma conotação pejorativa.
A seção Entre nós equivale à seção Entrevista do Lampião. Esta forma
de reportagem, característica da imprensa nanica dos anos 1970, continua
no Nós Por Exemplo. O jornal entrevista artistas, drag queens,
personalidades do mundo médico, pessoas que trabalham na prevenção da
aids, ativistas etc. Se nos anos 1970 a entrevista funcionava como uma
forma de discutir a visibilidade gay e lésbica através de pessoas famosas
(Norma Benguell, Lecy Brandão, Ney Matogrosso), agora as entrevistas,
além de darem visibilidade, trazem afirmação, orgulho e a preocupação com
a saúde. Desta forma, são entrevistados artistas assumidamente gays e
lésbicas, como Ney Matogrosso, Angela Ro Ro, Renato Russo, Rogéria,
ativistas como Herbert Daniel, João Mascarenhas, e médicos que lutam
contra a aids, como a doutora Márcia Rachid. A edição número 8 entrevista
o professor Jurandir Freire, falando de homoerotismo, psicanálise, cultura
da pegação etc. Na edição número 11, a entrevista é com um dos fundadores
do Lampião, o escritor João Silvério Trevisan. Na edição número 14,
Lucinha Araújo, mãe do cantor Cazuza, vítima da aids, fala do filho, da
doença e do preconceito. Enfim, o jornal vai estar junto da formação da
ideia de comunidade homossexual.
Essas entrevistas apontam para o grande painel da sexualidade que se
redefiniu no diálogo com a problemática da aids, ao longo do qual diversas
identidades vão se transformando e se afirmando.
3.2 Codinome Beija-Flor21
No editorial do segundo número do jornal Nós Por Exemplo, o terceiro
parágrafo diz o seguinte: “Não, amigos, não empalidecemos. Chegamos ao
segundo número na neutralidade dos tons: nem cores quentes, nem cores
frias. Apenas preto no branco.” E é desta forma que o jornal vai se
apresentar nos números seguintes. Apenas a edição número 1 trouxe duas
cores e uma diagramação ainda não definida, ou, nas palavras de Oliveira:
“O projeto gráfico no primeiro número não existiu.”
Com o passar do tempo o jornal assume um design formal, que refletia a
seriedade dos seus artigos. No número 6, edição de janeiro de 1993, que
comemorava seu primeiro aniversário, o Nós Por Exemplo trazia a seguinte
frase no editorial. “Não adianta ser produzido um jornal bonito, com bom
conteúdo, com fotos lindas, em excelente papel, se não houver um público
interessado em lê-lo.”
Esta preocupação com o projeto gráfico pode ser entendida,
primeiramente, porque um dos editores é designer gráfico. Segundo, porque
não existe impresso gráfico sem design. Isto não quer dizer que todo projeto
é bom, e muitas vezes são mesmo fracos. Se o projeto do Nós Por Exemplo
número 1 não era bom, logo isto seria superado, pois uma das
características do NPE foi sua apresentação visual.
De acordo com Oliveira, a falta de conhecimento das novas técnicas da
computação gráfica e a falta de dinheiro fizeram com que o número inicial
se caracterizasse como algo híbrido, sem um rosto, sem uma identidade. O
jornal foi feito em parte manualmente e em parte com apoio das novas
tecnologias da informática, mas de qualquer forma percebe-se um cuidado
visual. O jornal apresenta-se com duas cores, com muitas fotografias e
unidade tipográfica adequada, ainda que não disponha de um logotipo bem
projetado. O título “Nós Por Exemplo” é desenhado por meio de uma
tipografia em perspectiva na cor verde, contornada por fios pretos. O
logotipo é posicionado verticalmente no lado esquerdo da página. Pesado e
sem força visual, este logotipo aparecerá, já sem a cor verde, até o número
3. O projeto gráfico das páginas internas também permanece até a terceira
edição. Mas é nas capas do jornal que vemos sua primeira grande mudança,
pois a primeira capa do NPE é um painel irregular de fontes e fios, criando
um ruído visual.
No segundo número do jornal, a capa estampa uma grande foto, que
ocupa ¾ do espaço gráfico. Abaixo da foto, em retângulos reticulados,
apenas três chamadas de capa. Estas fotos grandes, ocupando quase toda a
capa, vão se tornar a identidade visual do jornal. A partir do quarto número
a foto de capa ganha mais espaço. O jornal mantém as chamadas na base da
página, e o logotipo, escrito com uma nova tipografia, ocupa verticalmente
o lado esquerdo da página. Na parte interna, a grande mudança é o
desaparecimento de fios e a utilização de uma mesma fonte tipográfica
constante das seções, além da apresentação de uma diagramação que
enfatiza a clareza e a funcionalidade.
Trabalhando a composição com os sistemas propostos por Kress e Van
Leeuwen (information value, salience, framing), a apresentação visual
gráfica das páginas traz uma linguagem que privilegia a comunicação feita
através da linguagem verbal. Twyman afirma que o “elemento linguagem” é
a relação entre conteúdo da informação e sua apresentação visual, levando
em conta o usuário e as circunstâncias de uso da mensagem. Ele chama a
atenção para a importância de se valorizar a forma de apresentação para
destacar o conteúdo do texto (Twyman, 1982).
Esta preocupação é percebida nas páginas do NPE. O jornal não só é
coerente nas suas propostas, como na sua apresentação. Apesar dos textos
longos, ele é generosamente recheado de fotografias, e a fotografia tem um
papel muito importante no desenvolvimento do jornal.
De acordo com Barthes (1993: 132):
A imagem é certamente mais imperativa do que a escrita, impõe a significação de uma só
vez, sem analisá-la, sem dispersá-la. A imagem transforma-se numa escrita a partir do
momento em que é significativa.
Segundo Sylvio de Oliveira (2005),
o jornal melhorou mesmo em termos de projetos gráficos, acho que depois do oitavo
número, mesmo porque até o oitavo número as imagens que a gente tinha eram de homens
nus, não pornográficas, mas homens nus. Eu pegava em livros sem pedir autorização, sem
nada. E depois do oitavo número a gente conheceu o Eduardo Velásquez, que se propôs a
fazer as fotografias.
As fotos roubadas a que o editor se refere dão inicialmente ao jornal
uma cara forte e agressiva. Podemos dividi-las em duas categorias. A
primeira podemos chamar de “fotos surrealistas”. São fotos de pessoas
fantasiadas, algumas delas mostram os modelos, meio humano, meio
animal, fotos alegóricas. A segunda, são “fotos eróticas”, de homens e
mulheres nus ou seminus. A utilização destas fotos assume a função de
adorno ou texto imagético enriquecendo o espaço gráfico, e não a função de
documentar. As fotos que documentam, ou seja, que fazem parte da matéria,
diretamente relacionadas aos conteúdos, são proporcionalmente de menor
incidência. O jornal privilegia a imagem e se aproveita de sua
potencialidade para construir a identidade visual do jornal.
A grande mudança que Oliveira comenta acontece na edição número 9.
A capa traz um retrato de um rapaz brasileiro seminu. Esta imagem tem
como elemento de destaque forte carga de sensualidade, provocada não só
pela pose do modelo, mas também pela hábil utilização do claro/escuro.
Esta foto é o início do trabalho do fotógrafo Eduardo Velásquez dentro do
jornal. A partir desta publicação seu trabalho esteve presente em todas as
edições, não só produzindo as imagens das capas, mas também as fotos que
recheavam seu interior.
As capas se caracterizam por estampar fotos de modelos masculinos nus
e tornam-se a cara do jornal. Na maioria delas os modelos estão sozinhos e
de frente. Em uma das edições o modelo está de costas, e apenas em duas
edições os retratos de capa são de casais masculinos em poses bastante
eróticas. Em dois números, os modelos de capa dão lugar a personalidades
caras às causas e questões do jornal: uma foi o cantor Ney Matogrosso, e
outra foi a doutora Márcia Rachid, ambos fotografados por Velásquez.

Figura 22 - NPE número 16.


Figura 23 - NPE número 24.

Quanto aos modelos, as fotos são sensuais, algumas próximas do


erótico. Na parte interna do jornal as fotos assumem um caráter mais
provocativo. Os modelos aparecem em nus frontais, ou em dupla, em poses
sensuais e, em alguns casos, com os pênis eretos. Velásquez, que é formado
em pintura, se utiliza da luz para compor a dose certa de erotismo das fotos,
todas sempre em preto e branco. Segundo Rudolph Arnheim (2000): “Num
sentido mais didático, a iluminação tende a guiar a atenção seletivamente,
de acordo com o significado desejado.” As fotos direcionam a apresentação
visual do periódico. Segundo Oliveira (2005): “A partir do trabalho de
Eduardo Velásquez, a gente desenvolveu melhor o projeto gráfico. Eu
falava pra ele: ‘Olha, vamos fazer fotos assim, assado...’ A partir das fotos
eu bolava o visual daquela matéria.”
As fotos de Velásquez, distribuídas por todo o jornal – inclusive no
encarte Agaivê hoje –, colocam o leitor numa posição de fruidor e de
voyeur. Além disso, o fotógrafo trabalha sempre com modelos brasileiros,
alguns deles vindos da própria ONG NOSS, e outros que frequentavam as
saunas do Rio, estabelecendo com o leitor uma certa cumplicidade.

Figura 24 - NPE número 9, Agaivê Hoje.


Figura 25 - NPE número 20, pag. 10

Os retratos dos rapazes serviam, de alguma forma, para aliviar o estado


de tensão provocado pela aids, que naquele tempo ainda era fatal. Além
disso, inconscientemente as fotos propagavam uma imagem de saúde, já
que o jornal falava tanto de doença. Os rapazes embelezavam o jornal.
Legitimavam, de alguma forma, no universo gay, o direito à descontração
da fruição de imagens eróticas/sensuais, como há muito se vê no mundo
heterossexual.
Conforme afirma Alberto Manguel, “os retratos levam a representação
para além da própria imagem, destinados a serem lidos não apenas como a
identidade do modelo, como registro histórico ou privado, mas também
como símbolo do que aquela pessoa significava: autoridade, amor,
amizade” (2001: 149).
Outro ponto importante na mudança visual do jornal, além das fotos, é o
surgimento de um símbolo. De uma forma geral os periódicos não possuem
um símbolo. Eles possuem apenas o logotipo, ou seja, a representação
gráfica de um nome por uma mesma fonte tipográfica. Esta fonte pode ser
criada manualmente, ou a partir de um alfabeto já existente. Tanto na
grande imprensa, quanto na imprensa nanica dos anos 1970, os símbolos
não existiam, com exceção do jornal Lampião da Esquina, como vimos no
capítulo anterior. O símbolo, junto com o logotipo, são elementos centrais
na constituição da identidade visual de um produto. O beija-flor, símbolo do
Nós Por Exemplo, surgiu por acaso; quer dizer: não fez parte da
conceituação do projeto gráfico inicial do jornal.
Sylvio conta que morava num apartamento que ficava no segundo andar
da rua Visconde de Pirajá. Em frente da sua janela tinha uma enorme
árvore. Ele diz:
Um dia eu comecei a namorar um beija-flor. Eu estava pensando em que símbolo colocar
no jornal. E esse beija-flor foi uma coisa absolutamente impressionante na minha vida. Eu
chegava na janela, assobiava e ele vinha e ficava aqui na minha cara. Muitas pessoas viram
isso, né? Eu tenho foto inclusive do beija-flor aqui. Aí um amigo estava lá em casa. Um
amigo que não era gay. Falei sobre o símbolo do jornal. Quando aconteceu o negócio. Ele
falou: porque você não bota o beija-flor? Aí eu comecei a pensar. Será que o beija-flor têm
a ver com o gay? Beija-flor é meio gay, né? (Oliveira, 2005).
A partir da sensibilidade de um processo de observação e um
envolvimento (fruição) romântico (?) com o animal, o beija-flor tornou-se a
identidade do jornal. Essa incorporação acabou por ser um fator importante
para seu projeto visual.
Os projetos de design, segundo os cânones vigentes, devem obedecer a
uma metodologia baseada no trinômio: problematização, concepção e
especificação, um paradigma do design nascido na Bauhaus e retomado na
Escola Superior da Forma de Ulm (referência dominante do design
brasileiro nas décadas de 1960, 1970 e 1980). Ou conforme afirma Flávio
Cauduro (1996: 14): “O projeto de design é sempre, e em última análise,
um processo iterativo de tentativa e erro que gera e testa hipóteses”.
Partindo desse princípio, o símbolo do jornal, o beija-flor, seria uma
solução que não foi devidamente projetada e nem testada. Desta forma não
seria design. Parafraseando Cauduro, a partir dos anos 1980, os projetos de
design passaram a ser menos calculistas e mais instintivos, muitas vezes
irônicos, e quase sempre provocantes, uma tendência influenciada pela
filosofia pós-estruturalista de significação de Derrida, Barthes e Lacan.
Segundo esta concepção, a recepção de mensagens é um jogo de
interpretação, que varia de acordo com o sujeito predicante. Desta forma,
cabe ao designer encontrar soluções que possibilitem a seu público-alvo
participar desse jogo de forma prazerosa e cativante (Cauduro, 2000).
Sylvio de Oliveira trabalhou mais com a emoção e menos com a razão,
ou seja, valorizou mais sua sensibilidade do que as regras técnicas de
estruturação do produto visual. Visto que, além de designer gráfico do
jornal, era um dos editores e um dos coordenadores do NOSS, não houve a
menor possibilidade de um distanciamento racional e metodológico.
Quando o jornal resolveu premiar personalidades do mundo social que de
alguma forma tinham contribuído para dar maior visibilidade às causas
GLBT, o troféu foi o beija-flor. Tudo isto embalado pela música de Cazuza.
Esse projeto, que dá a cara do NPE, se manteve até o número 9, quando
mais uma vez o Editorial anuncia: “Boas novas! Várias novidades
apresentadas neste número do jornal. A primeira delas, vocês já devem ter
reparado: mudamos o visual não só da capa como do formato e das páginas
internas” (NPE, n. 10).
O novo projeto muda a tipografia das seções, trazendo ora uma letra
manuscrita, ora letras bastão, ora outline. Não se encontra uma coerência
tipográfica. Percebe-se que a vontade de mudar foi precipitada. O jornal
mantém o novo layout até a edição número 13. O que continua sem
mudanças são as fotos, cada vez maiores. As fotos da capa assumem agora
todo o espaço gráfico. As chamadas saem dos retângulos, diminuem de
tamanho e são colocadas sobre as fotos.
Figura 26 - NPE número 14.

A partir desse número o jornal vai sofrendo pequenas transformações


que não acrescentam muita coisa. É como se a cada dois números fosse
testada uma nova possibilidade gráfica, ou essa dinâmica de mudanças
estaria indiciando os desdobramentos do universo de seu público. Apesar
disso, o jornal continua fiel a seus propósitos: falar da homossexualidade
para homossexuais e participar da luta contra a aids, veiculando
informações corretas sobre a doença.
Na décima segunda edição, o jornal, por ter ganho um financiamento
vindo de fontes particulares, passa a ser distribuído gratuitamente, pois,
assim como o Lampião, o NPE tinha poucos anunciantes. E estes poucos,
relacionados ao próprio mundo gay: bares, saunas e discos. Neste aspecto
não houve mudanças em relação ao Lampião, porque grandes empresas não
anunciavam na imprensa gay brasileira. Hoje isso mudou. Atualmente há
revistas que apresentam anunciantes, como podemos ver na Junior e na
Dom.
Na edição número 17 os editores mudam a cara do jornal. O logotipo,
que durante todo este tempo esteve no lado esquerdo do jornal, passa a
ocupar a parte superior esquerda da página. A tipografia serifada é
substituída por uma letra bastão, e o nome é dividido em duas linhas. As
chamadas de capa são colocadas em um retângulo à direita da foto, que
continua sendo o elemento mais forte da capa. O delicado beija-flor
permanece como símbolo. Se o acaso contribuiu para o sucesso do símbolo,
o mesmo não pode ser dito para as novas mudanças.

Figura 27 - Mudanças do cabeçalho do NPE.


Na edição seguinte, a de número 18, o logotipo torna a mudar. Desta vez
as palavras são agrupadas para reforçar as letras “N”, “P” e “E”.
Procurando uma letra mais adequada, o projeto utiliza uma fonte cujos
contrastes entre as hastes dos tipos se tornam bem acentuados e as serifas
são lineares. Nos próximos números, e a cada edição, o logotipo assume
uma forma, mudando por completo na última edição. Na tentativa de se
ajustar às mudanças, o jornal torna-se uma revista, naquele que seria o seu
derradeiro número, o 24.22 Segundo Sylvio, o jornal cresceu, mas não
economicamente, tornando-se inviável:
O jornal foi melhorando, foi ficando mais caro. Mais da metade da tiragem era distribuída,
não era vendida. Alguma coisa era vendida em banca e tinha assinaturas, que eram muito
poucas. Então o que entrava de dinheiro para jornal era muito pouco. E acabou esse
financiamento que a gente tinha, os anúncios não cobriam. Enfim, a gente foi aos poucos
migrando para outro projeto dirigido aos gays.
Desaparece o beija-flor, assim como o jornal e a própria revista.
É interessante registrar que nos últimos números do Lampião da
Esquina podemos observar uma mudança contínua no símbolo do jornal. O
rosto do cangaceiro muda a cada número, como se quisesse se renovar. No
caso do NPE o que muda é o logotipo. Nos dois casos, a tentativa de
renovação leva os produtos a uma descaracterização.
Conforme afirma André Stolarski (2006): “A identidade [visual] é
criada por um conjunto de fatores”. Estes fatores devem estar bem
agrupados para que a identidade do produto seja mantida e reconhecida pelo
público que o consome. No caso desses dois periódicos, seus momentos
finais e os problemas que envolvem o término de sua atuação são indiciados
pela fragilização das suas “marcas”.
Na edição número 11, o jornal publicou o resultado de uma pesquisa
sobre quem lia o NPE. O resultado nos mostra que 87% dos leitores eram
masculinos, 66% tinham o terceiro grau, e 38% participavam de algum
grupo gay/lésbico. Estes leitores apontaram a seção Entre nós como a
preferida e a seção Informes como a menos importante. A maioria dos
leitores elogiou o projeto gráfico do jornal, principalmente as fotos.
Com esta pesquisa do NPE podemos ter uma ideia de quem lia o jornal
e/ou para quem era escrito: um grupo social bastante amplo e complexo,
vivendo um momento no qual a sociedade discutia a sexualidade como
nunca antes tinha feito. Neste grupo, os homossexuais masculinos tinham
participação assegurada. É importante observar que, embora não tenha sido
realizada uma pesquisa sobre os leitores durante a existência do Lampião,
com o NPE constatamos um público leitor majoritariamente masculino,
letrado e ativista, que se encaixa perfeitamente no novo veículo que
aparecia nas bancas, a Sui Generis.
O Nós Por Exemplo não teve o impacto do Lampião da Esquina e nem
terá o sucesso, como veremos a seguir, da revista Sui Generis. Entretanto,
foi pioneiro em enfrentar a aids, falando de sexo, doença e morte de uma
forma cuidadosa e honesta, sem deixar de lado o cuidado estético. O NPE
desaparece no segundo semestre de 1995, mas desta vez a imprensa gay
tinha crescido. Os periódicos Grito de Alerta, o ENT&, a OK Magazine e a
Sui Generis já ocupavam discretamente as bancas de jornais do Brasil. Cada
um deles dirigindo-se a segmentos distintos das múltiplas identidades que
compõem o cenário GLBT.
3.3 Um novo Entendido
Entre as publicações citadas, o pequeno jornal ENT& – dez edições
apenas, entre 1994 e 1995 – teve vida bastante curta, mas não passou
despercebido. Criado e distribuído pela editora 2AB, o jornal surgiu em
agosto de 1994, quando foi lançado o seu número promocional, e terminou
um ano depois.
A editora 2AB é a única editora especializada em design e só publica
esse tema (atualmente um selo dentro da Editora Novas Ideias). Esta
escolha editorial deu-se, naturalmente, em virtude de um dos donos ser
designer gráfico. Entretanto, no ano de 1994, a preocupação de André
Villas-Boas, um dos editores e proprietário da editora, era com a
constatação que não havia um periódico gay com o qual ele e seus amigos
se identificassem.
Em entrevista por telefone para esta pesquisa, Villas-Boas diz que o
jornal Nós Por Exemplo não era exatamente o jornal que eles imaginavam.
O NPE estava voltado para a prevenção da aids e por isso muito voltado
para o “gueto”. A editora queria um veículo que falasse para o gay
contemporâneo. Questionado sobre como seria este gay, André explica que
seriam homens entre 20 e 40 anos, que tivessem uma aparência e um
comportamento masculino; também pessoas antenadas com os
acontecimentos globalizados. Acrescenta a esse perfil, que fossem
militantes, mas nem tanto. E que assumissem seus desejos homossexuais
sem necessariamente viver dentro da comunidade homossexual. No entanto,
este perfil idealizado por André não encontrou eco bastante nem fora nem
dentro do universo gay para que o jornal se firmasse.

Figura 28 - Ent& número 1.


Figura 29 - Ent& número 3

André cita várias possíveis razões para o fechamento do jornal em tão


pouco tempo. Primeiro, porque esse público idealizado não se constitui um
grupo de identidade definida, talvez o que pudesse manter o jornal, ainda
que com uma pequena tiragem. As fronteiras entre os diferentes
comportamentos homossexuais são muitos elásticas. Outro fator que talvez
tenha contribuído para o desaparecimento do jornal foi seu próprio
conteúdo. O periódico abordava assuntos comuns ao meio gay, mas que não
eram privilegiados nas outras publicações, além de abusar de uma
linguagem irônica, as vezes sarcástica, mas com bastante humor. Na matéria
“Uau! Superlegal!”, publicada no número 1, o jornal defende que ser
diferente, ser anormal, pode ser um privilégio. E exorta seus leitores a
pararem de se lamuriar por serem gays:
Você ouviu a vida inteira que você é um anormal porque é homo, não é isso? [...] Ok, chore
bastante e sinta-se a maior vítima da humanidade. Chorou? Sentiu? Agora vamos ao que
interessa. Sabe o que diferencia um homossexual de um heterossexual? Um prefere pessoas
do sexo diferente pra transar, e o outro transa com pessoas do mesmo sexo. Agora vamos
aprofundar e penetrar mais a fundo (huuum...) na questão, porque o buraco (yeeeh...) é mais
embaixo (uaaaau!). (ENT&, n. 1)
Na edição número 3, o jornal fala sobre o fetiche do tamanho do pênis.
Trazendo uma fita métrica como elemento gráfico da matéria, o jornal não
se vexa em dizer que o tamanho faz a diferença:
Diz o velho ditado que “tamanho não é documento”. Mas tudo leva crer que quem escreveu
tinha o pau pequeno, assim como o autor do “beleza não põe mesa” devia ser feio. Porque,
afinal, assim como a beleza conta, o tamanho também – ao menos entre os homens e mais
ainda entre os homens que gostam de homens (ENT&, n. 3: 15).
Discutindo o último filme do Pedro Almodóvar, fazendo cobertura da
XVII Conferência Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA), ou ironizando
as meninas que adoram andar com gays, o ENT& nas suas dez edições foi
inovador. Mas não emplacou.
Outro aspecto da sua verve inovadora foi sua apresentação gráfica.
Como a editora não tinha dinheiro, seus criadores resolveram fazer um
projeto que tirasse partido dessa condição. A começar pelo formato: o
jornal era um meio tabloide, nada comum para jornais. O ENT& se
apresentava como jornal, mas tinha o formato de revista. Contudo, não era
revista, pois era impresso em papel-jornal, suporte que dá ao objeto, à
publicação propriamente, uma imagem menos nobre. Por outro lado, trazia
um projeto gráfico audacioso, comumente encontrado nas revistas. Fotos
recortadas, utilização de espaços vazios, tipografias distorcidas.
Relembrando que um dos editores é designer gráfico, o aspecto visual foi
fundamental para contextualizar o jornal como um veículo imagético
notadamente contemporâneo.
O projeto gráfico foi baseado nas seções de classificados dos grandes
jornais, embora também tivesse uma seção de classificados voltados para
encontros amorosos, que representavam parte importante do projeto do
ENT&. O jornal usava e abusava dos recursos da informática, na época
ainda uma novidade para a indústria gráfica. As novas tecnologias
proporcionaram facilidades para experiências no campo da diagramação, e
principalmente no campo da tipografia. Foi o momento no qual o design
gráfico, principalmente através de Neville Brody,23 redescobriu os trabalhos
gráficos do dadaísmo e do construtivismo russo.

Figura 30 - Ent& número 1, páginas 12 e 13.

André se deixou influenciar por essas novidades. Os grafismos foram


usados em muitos casos com significados enigmáticos, para mostrar
contemporaneidade. Este arrojo parece não ter sido assimilado nem
compreendido pela maioria dos leitores. A começar pelo próprio nome,
ENT&, que é uma corruptela de entendido, termo usado principalmente na
década de 1960 entre os gays que buscavam uma nova identidade.
André diz que o nome não foi bem-aceito, pois criava uma cacofonia
com a palavra “doente”. E era ainda um momento no qual a aids era um
tema ainda traumático e constante entre os gays. Daí que um jornal que se
chamava ENT& era associado ao estado de doença que estigmatizou e
martirizou vários homossexuais, portanto seria naturalmente repelido.
Apesar de ter conhecimento deste fato, o editor resolveu manter o título, e
para deixá-lo mais enigmático acrescentou o ampersand (&) no fim da
palavra. O ampersand dava ideia de ligação (entendidos & ...), mas
aumentava a estranheza do jornal.
André diz que o ENT& veio fora de época, não tendo sido acolhido
pelos militantes gays e nem entendido pela maioria da comunidade gay,
pois o jornal, que era feito como uma revista, se apresentava como jornal,
dirigido a um público que era gay, mas que não se imaginava frequentando
os ambientes gays. O ENT& se perdeu no meio das novidades e das
conquistas que um grupo assumidamente gay, que frequentava os lugares
gays e adotava uma postura gay, estava acumulando.
O ENT& desaparece quase ao mesmo tempo que surge a Sui Generis,
uma revista arrojada, atualizada e com uma aparência mais sofisticada, que
vai agradar muito mais aos gays. De qualquer forma, as ousadias textuais e
visuais do ENT& completam a ponte entre o Lampião da Esquina e a Sui
Generis. A construção de uma mídia significaria, como veremos no
próximo capítulo, mais que a criação de um instrumento de luta, mais que o
questionamento criativo das possibilidades identitárias de um complexo
universo historicamente invisibilizado por uma singular e lesiva
generalidade identificatória, como já afirmei anteriormente.

Título de uma canção de Gilberto Gil. LP Doces Bárbaros, Polygram, 1976.


O título não incluía vírgula entre o pronome e a preposição.
Gíria para designar rapazes que modelam o corpo nas academias.
Verso da canção Nós, por exemplo, de Gilberto Gil.
Título da canção de Arias, Cazuza e Ezequiel Neves.
O jornal de número 23 é uma edição especial, na qual não há textos. Neste número os editores
tentaram fazer um levantamento de 100 gays e lésbicas mais atuantes do Rio de Janeiro. Apenas 77
permitiram a publicação do seu nome e da sua foto.
O inglês Neville Brody tornou-se conhecido pelos seus trabalhos “pouco comerciais”, devido
principalmente a sua grande experimentação tipográfica, revolucionando o design graças
principalmente a sua ampla utilização dos recursos do computador nas produções gráficas. Foi
amplamente reconhecido e premiado pelos excelentes trabalhos de diagramação que marcaram as
revistas The Face (entre 1981 e 1986).
CAPÍTULO IV
GRAN LUXO SUPER
Durante a década de 1970 vimos o crescimento e a afirmação de uma
nova imagem dos gays nas principais cidades da Europa e dos Estados
Unidos, construída com bases no movimento social que marcou a década de
1960. Os gays buscaram seu espaço social indo para as ruas, assumindo sua
orientação sexual na família e no trabalho. Foi o momento da afirmação de
um estilo de vida ou de uma “cultura gay”. Um dos aspectos que merecem
ser destacados da explícita luta pela visibilidade e legitimidade foi a
supervalorização do sexo. Como vimos no capítulo I, um dos aspectos mais
importantes da liberdade conquistada era a possibilidade dos encontros
anônimos. O surgimento de saunas e bares, com quartos disponíveis para a
prática sexual, facilitou os encontros de uma forma como não existira antes.
Ou conforme afirma Maffesoli: “O orgasmo como fator de sociabilidade. A
‘corrida ao sexo’, enquanto elemento da aventura existencial em seu
aspecto mais concreto, pode ser entendida como um fato social completo”
(2005: 91).
Bares, boates e saunas. E os periódicos incentivavam este
comportamento. De acordo com Streitmatter, “a cada semana no verão de
1981, apenas para citar uma, na sauna Club Baths de San Francisco, 3 mil
homens consumiam sexo como fast food. E a sauna Bulldog inaugurou uma
competição que sintetizava os valores da época: O Maior Pau de San
Francisco” (Streitmatter, 1995: 243).
A desenfreada festa dionisíaca foi subitamente interrompida com o
aparecimento do HIV. Baco sai de cena para dar lugar a Tanatos. Para
muitos, a década de 1980 foi uma longa travessia, cheia de perdas,
incertezas e tristezas, como se o brilho multifacetado dos globos de
espelhos, imagem emblemática das discotecas que catalisavam a juventude
reinventada daqueles anos, tivesse sido substituído pela luz fria e constante
dos hospitais. Algo tinha que ser feito e os gays, duplamente afetados,
estavam atentos!
Conforme afirma Caetano Veloso, no seu “rap-ode” aos americanos:
Veados organizados de São Francisco conseguem/Controlar a propagação do mal/Só um
genocida em potencial/– De batina, de gravata ou de avental – /Pode fingir que não vê que
os veados/– Tendo sido o grupo-vítima preferencial –/Estão na situação de liderar o
movimento pra deter/ A disseminação do HIV (“Americanos”, LP Circuladô ao vivo,
PolyGram, 1992).
Veloso estava correto. Em muitas cidades do Ocidente os gays se
organizavam e lutavam para manter e ampliar as conquistas e se defender
das consequências da aids, sobretudo as de devastadores efeitos morais e
simbólicos. Mas a década de 1980 também pode ser entendida como o
momento de afirmação dos gays. Agora, não só como indivíduos, mas
como cidadãos, incluídos nas redes sociais, já que a aids provocara a
emergência de novas formas de solidariedade e novas formas
reivindicatórias. No rastro dessas ações evidenciou-se uma busca maior
pela integração social. Se nos anos 1970 o verbo seria “transar”, na última
década do século passado o verbo seria “casar”. Os gays passaram a exigir
certos direitos que até então só os heterossexuais detinham.
Talvez a busca pela união civil estável, como o casamento, embora
parecesse uma forma de coibir os hábitos promíscuos típicos de alguns
solteiros, refletisse apenas o aproveitamento das oportunidades que o
universo gay desfrutava. Como afirma Messeder:
Dos anos 90 até hoje temos presenciado a configuração e a consolidação do que vem sendo
chamado, tanto aqui quanto em outros países, uma “cultura gay” ou um certo “gay way of
life”. No conjunto de mídia (tanto na imprensa especializada – voltada para um público
basicamente constituído de gays e lésbicas – quanto na grande imprensa), a expressão
“cultura gay” e as referências a um modo de vida gay vão se tornando cada vez mais
presentes (2004: 57).
Em novembro de 1994, o jornal ENT& trazia a seguinte chamada de
capa: “Tá na moda ser gay?” (Ent&, n. 4). E a matéria afirmava: “A nova
onda é gay flagrante: estamos na moda sim!”.
Em janeiro de 1996, a revista The Economist, um dos símbolos do
conservadorismo britânico, estampou em sua capa uma foto de um bolo de
casamento, no qual os nubentes, colocados no topo, são dois pequenos
bonecos de terno e gravata. A capa continha ainda a seguinte chamada:
“Deixem que eles se casem”. A reportagem era a favor do “casamento gay”.
Repudiando os discursos moralistas e tradicionalistas, discutia a
homossexualidade do ponto de vista da política social. Este é um exemplo
de como a cultura gay paulatinamente vinha ganhando espaço na imprensa
nacional e internacional de forma diferenciada.
O que aconteceu é que a vida gay, em decorrência das inúmeras e
urgentes discussões sobre aids, ganhou visibilidade. O que era escandaloso
saía da marginalidade dos becos e ganhava o espaço nobre da sala de jantar,
pois a doença poderia atingir um vizinho ou um irmão, isto é, ninguém
estava isento de se contaminar. Foi um tempo em que os gays tornaram-se
simultaneamente vítimas e guerreiros de uma doença que nunca foi só
deles. Assim, essa trágica doença trouxe, contrastivamente, ganhos no que
tange à visibilidade e à aceitação da homossexualidade, e produziu
vítimas/heróis midiatizados, como no caso da dupla importância dos
cantores/compositores Cazuza e Renato Russo.
Dezenas de grupos gays organizados surgem na década de 1990. A
maioria trabalhou na conscientização dos homossexuais a fim de fortalecer
as diversas identidades e buscar alguma forma de proteção, o que resultou
na luta pela ocupação do espaço político por meio de várias campanhas pela
visibilidade gay. Um dos exemplos deste tipo de grupo foi o ainda atuante
GAI – Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual (criado no Rio de
Janeiro, em 1993). O grupo era inicialmente formado por rapazes de classe
média do Rio de Janeiro, sem nenhuma participação anterior em
movimentos sociais, mas que perceberam a necessidade de uma
mobilização organizada quando muitos dos seus amigos foram vitimados
pela aids. Com o seu trabalho dedicado e permanente, o Arco-Íris tornou-se
um dos mais influentes grupos no cenário político do Brasil (Andrade,
2002).
Em janeiro de 1995, vários grupos organizados, e voltados para as
causas dos homossexuais brasileiros, fundam a Associação Brasileira de
Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT). Neste mesmo ano, no mês de
junho, grupos cariocas organizaram e sediaram a XVII Conferência da
Associação Internacional de Gays e Lésbicas – a ILGA. A possibilidade de
o Rio de Janeiro ser palco deste evento tinha sido sugerida dois anos antes
por Adauto Belarmino, ativista da ILGA e ganhador do prêmio Reebok
Internacional de Direitos Humanos, na conferência anterior realizada em
Barcelona. No primeiro semestre de 1995, militantes gays e lésbicas
orgulhosos com a resposta positiva da Associação trabalharam
incansavelmente para viabilizar da melhor forma possível o marcante
evento. Apesar de não contar com o auxílio de grandes empresas, a
conferência foi realizada com grande sucesso em um hotel cinco estrelas, na
praia de Copacabana. O cantor e compositor Renato Russo veio a ser o
principal mecenas da conferência, ao doar dinheiro do próprio bolso (uma
cantora brasileira também foi uma importante doadora individual, mas
preferiu manter seu nome em segredo. Entre o discurso e a prática, ainda há
um abismo!). O evento teve um significado muito importante para a
autoestima da comunidade gay. O que por muito tempo foi motivo de temor
e causa de solidão, naquele momento passou a ser motivo de coragem e
orgulho.
De acordo com Marta Suplicy, presidenta da abertura da conferência,
este evento [...] deu visibilidade ao movimento nacional e internacional de gays, lésbicas e
travestis, principalmente pelo fato de que, para além das discussões e propostas levadas
nesta Conferência, o conjunto da população, de uma forma ou de outra, entrou em contato
com este tema que é ainda carregado de muitos tabus e preconceitos (1995: 7).
Os anos 1990 apresentaram ainda várias inovações fundamentais em
termos de conquistas e visibilidade para o movimento homossexual
brasileiro (Trevisan, 2000: 376). E talvez a mais importante tenha sido a
criação do conceito GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes). Em setembro de
1993, o publicitário André Fisher e a jornalista Suzy Capó criaram o
Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual, em que são exibidos vários
filmes que abordam diferentes expressões da sexualidade. Fisher e Capó
tinham se inspirado em outros festivais de igual teor que já existiam em
cidades como Nova York, San Francisco e Paris, entre outras. Na segunda
edição do festival, o Mix Brasil, além de apresentar o primeiro BBS
(Boletim Board System)24 dirigido ao público gay, lança o conceito GLS.
Apropriando-se da sigla que qualificava certos modelos de carros –
Gran, Luxo e Super –, o Mix introduzia a ideia americana do gay friendly,
“de modo simples e adequado ao nosso jeitinho” (Trevisan, 2000). No
momento que Fisher agrega os “simpatizantes” aos gays e lésbicas,
tornando-os uma só unidade – que mesmo assim podia ser separada porque
as partes não perderiam suas identidades próprias –, ele rompe com os
limites estabelecidos para os gays e lésbicas, assim como para os héteros. A
sigla amplia os espaços: um bar não precisaria ser só gay; um restaurante
não seria necessariamente exclusivo das lésbicas, assim como um festival
podia comportar um público mais diversificado. Apesar de a sigla ter sido
rapidamente incorporada ao imaginário brasileiro, alguns grupos gays
organizados não foram muito receptivos a essa ideia, pois de certa forma ela
arriscava tornar a visibilidade homossexual, tão almejada, algo turva.
Estes acontecimentos são acompanhados pelo surgimento e crescimento
de novos e mais ousados estabelecimentos comerciais e culturais
direcionados ao público GLS. O “novo” esquema mercadológico fez com
que a mídia brasileira começasse a noticiar a existência de um “mercado
gay” – conceito norte-americano que chegou ao Brasil bastante tempo
depois de ser reconhecido nos Estados Unidos –, quando as agências
publicitárias brasileiras perceberam que os homossexuais poderiam ser
também ótimos consumidores. O que de certa forma era uma verdade, na
medida em que os mais abastados, residentes nas grandes cidades, eram
assíduos frequentadores de bares, restaurantes, boates e saunas, outrora
lugares baratos se comparados com a moda direcionada a esse público, em
geral bastante cara.
A revista One, de outubro de 1954, já trazia anúncios de roupas
masculinas. Assim como a gastronomia e as viagens, esses produtos são
artigos para poucos. Mas existe uma parcela considerável do público gay
formada por pessoas de classe média que podem consumir esses artigos.
Trata-se de uma parcela que de certa forma sempre transitou entre o mundo
hétero e o homo; e naquele momento, no qual a luta era pela igualdade em
todos os planos sociais e pelas benesses do capitalismo, os gays, de um
modo geral, consumiam à luz do dia.
Adriana Nunam (2003) diz que a primeira pesquisa sobre o consumo
gay foi feita em 1968, através dos leitores da revista Advocate, mas somente
a partir dos anos 1990 é que surgiram agências de publicidade
especializadas no mercado gay. Os consumidores gays são descritos pelos
publicitários como exigentes, sofisticados, fiéis a marcas de qualidade, e
com propensão a consumir mais artigos de luxo, bens ou serviços culturais
e de cuidados pessoais. O que os publicitários perceberam é que naquele
momento existiam condições para fazer publicidade direcionada para o
público homossexual, pois “exigentes, sofisticados, fiéis a marcas de
qualidade” não são características exclusivas dos homossexuais. O que
estava acontecendo é que a sociedade começava a ver principalmente os
gays de classe média como pessoas consumidoras em potencial, isto é, que
potencialmente renderiam mais lucros para os empresários. Por outro lado,
os homossexuais pobres e os travestis, que lutavam com sofrimento pela
sobrevivência, seja no plano material ou existencial, e que viviam da
mesma forma que milhares de outros brasileiros, continuavam à margem da
legitimidade social.
Atualmente o conceito de “mercado gay”, distante das matérias de
primeiras páginas dos jornais como escândalo comportamental, acabou
incorporado pelo capitalismo como qualquer símbolo de promissoras
possibilidades de lucros. A revista Isto É Dinheiro, de junho de 2006,
trouxe mais uma abordagem deste tema, justamente quando quase dois
milhões de “GLS” participavam da parada do Orgulho GLBT de São Paulo,
talvez o evento que mais bem tenha envolvido e conquistado a simpatia da
população dessa cidade.
4.1 We Are Queer, We Are Here
Sui generis significa, conforme o Dicionário Aurélio Eletrônico (1999),
“de seu próprio gênero, que não apresenta analogia com nenhuma outra
pessoa”. E esta era a intenção de Nelson Feitosa, jornalista e editor, quando,
em dezembro de 1994, lançou o número zero da revista Sui Generis, um
marco na história da imprensa gay brasileira.
Em busca de uma nova possibilidade dentro do mercado editorial do
mundo gay, no qual se encontravam apenas publicações com ênfase no
erotismo, sobretudo pela via do nu masculino e dos contos eróticos, a nova
revista investe numa possibilidade de afirmação gay através de temas como
cultura, comportamento, moda e entrevistas com grandes nomes do meio
artístico/político nacional. A Sui Generis aposta numa postura militante sem
o ranço do ativismo dos anos 1970. Ela mantém uma atitude do “assumir-
se”, mas também promove o desejo homoerótico e a autoestima. Tudo isso
regado com textos analíticos, grandes doses de cor, fotografias muito bem-
produzidas e um projeto gráfico inovador, compatível com sua proposta. A
revista procurou desde o início encontrar um caminho para a expressão de
uma identidade gay que de certa forma refletisse o comportamento daquela
comunidade dos anos 1990.
A revista surgiu de um desejo pessoal do editor, que, junto com seu
parceiro na época, José Viterbo, decidiu lançar e financiar o periódico,
inicialmente mensal. Naquela época não existia nenhum periódico dirigido
à comunidade gay que não fosse centrado no erotismo.
Em entrevista para este trabalho de pesquisa, Nelson Feitosa conta como
foi o processo de criação da revista:
Surgiu muito despretensiosamente. [...] Aí comecei a receber notícias de revistas dessa
natureza. Desse tipo de revistas de conteúdo cultural e com jornalismo mais bem feito, mais
profissional, sendo lançadas lá fora, né? Consegui comprar aqui no Brasil, numa livraria de
revistas importadas, a Atitude, que foi uma das primeiras revistas inglesas a serem lançadas
nessa linha. Tinha conseguido uma edição da Out, que é uma revista norte-americana. E aí
eu comecei a achar legal. E aí, conversando com o Zé... Nessa época, né? Isso era 1994...
Não existia ainda essa popularização do computador que existe hoje, né? [...] Fui falando
com os amigos. Começando a organizar umas matérias até que um amigo meu me
apresentou ao Renato Russo e eu falei para ele da idéia.
A revista Out, uma das inspirações de Nelson, apareceu no mercado
norte-americano em junho de 1982. Ela foi e ainda é o maior sucesso dentro
das glossy gay magazines – “revistas gays brilhosas”, ou revistas impressas
em papel couché. Estas revistas, que surgem a partir dos anos 1990, se
caracterizam por mostrarem gays e lésbicas bem-sucedidos na vida; uma
visão parcial e glamourizada da cultura gay pós-Stonewall e pós-Aids. Estas
publicações apresentam uma grande mudança no perfil do leitor, o
nascimento de uma cultura direcionada para os gays mais jovens.
Conforme Streitmatter, “os principais tópicos de discussão vieram a
girar em torno do que vestiam as pessoas gays jovens, bonitas e ‘fashion’
quando adentravam o turbilhão social dos ricos e famosos” (1995: 309).
Ou, na visão de Daniel Harris, “[...] as glossy gay magazines] remetem a
uma visão utópica da subcultura pós-libertação homossexual, um nirvana
urbano nitidamente futurista na qual pessoas gays não são mais perseguidas
e não têm homofobia internalizada” (Harris, 1997: 66).
Nesse cenário, no qual não existe “baixa autoestima e nem cara feia”, o
discurso visual exerce não mais um papel secundário, mas torna-se,
juntamente com o discurso verbal, protagonista do contexto da
comunicação e representação legitimizadora do que quer mostrar. Na
análise das revistas americanas, Streitmatter observa que “a imprensa gay e
lésbica havia demonstrado um compromisso para com o design há quase
meio século. Nos anos 1990 tal compromisso se agigantou numa magnitude
sem paralelo” (Streitmatter, 1995: 330).
O desejo exacerbado pelo belo não existia apenas nas revisas. Os anos
1990 são também um tempo no qual a aparência física é vista como
sinônimo de saúde. O corpo magro e esquálido é evitado a todo custo, pois
remete à ideia de doença. As revistas, sem a urgência da militância,
finalmente conseguem que grandes anunciantes, principalmente os ligados à
moda, patrocinem suas páginas.
Out foi a primeira revista gay a ter anunciantes tais como Banana
Republic, Calvin Klein, Giorgi Armani, Benetton e Tommy Hilfiger.
Conforme Michael Goff, presidente e editor da revista: “With Out, we
brougth a level of professionalism to gay publication that hasn’t been there
before”25 ((Streitmatter, 1995: 330). O que as glossy magazines queriam era
alcançar o mesmo espaço que revistas como Elle, Cosmopolitan e Marie
Claire, entre outras, tinham conseguido junto à comunidade heterossexual.
Para isso, era necessário mais que militância: era fundamental ter uma visão
de mercado; mesmo porque seus objetivos eram outros... De todo modo, e
em um contexto mais amplo, estas revistas não deixaram de ser um
instrumento de legitimação, não apenas dos gays, mas da homossexualidade
em geral.
Sem saber, Nelson tinha tido acesso a um sucesso editorial. Ele se baseia
na fórmula “beleza, dinheiro e sucesso”, acrescenta um pouco de ativismo e
cria a Sui Generis. Continuo seu depoimento para compreendermos melhor
o surgimento da revista.
Ele [Renato Russo] queria ajudar de alguma forma. “Eu faço uma matéria. Quem você
gostaria que eu entrevistasse?” Aí eu pedi para ele entrevistar a Cássia Eller. E isso foi
crescendo, foi se tornando um boom. Um dos jornalistas que escreviam para a gente, se eu
não me engano, se chamava Márcio Tavolari. Na verdade ele não é um jornalista, era um
publicitário envolvido com coisas. É... roteiros de televisão. Ele avisou ou conversou, não
tenho certeza absoluta, com alguém da coluna do Zózimo. Aí [ele] telefonou para ficar
sabendo se ia sair uma revista. De uma forma espontânea foi virando uma bola de neve. [...]
Houve uma reportagem no caderno Ela [do jornal O Globo] dizendo que ia ser lançada uma
revista “Classe A”, e aí eu meio que fui atropelado pela aquela expectativa toda. O Zé dizia:
“E agora? A gente vai fazer um boletim. Um jornalzinho pra circular na Zona Sul...” Sabe
as pessoas já estavam pressionando pro caderno Ela, para o jornalista que chamava João
Ximenes, que era o editor adjunto da Mara Cabalera na época... É perguntando: “Cadê a
revista que vocês falaram?” Que não saía... porque o processo foi longo, né?
Com toda essa expectativa, a revista tornou-se um sucesso imediato,
tendo inclusive lançamento no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de
Janeiro. Nelson conseguiu colocar nas páginas da revista os sonhos e
desejos de milhares de gays, que, como ele, buscavam uma imagem
positiva, uma postura igualitária pautada por um estilo de vida com fortes
influências do modelo norte-americano:
Eu e José fomos para Nova York em junho. Passamos quase um mês lá. Foi na mesma
época que estava rolando os Gay Games de 1994. Apesar de tanto eu quanto ele já
conhecermos os Estados Unidos, a gente nunca tinha tido esse contato tão violento com a
cultura gay organizada. A gente voltou de lá com a cabeça borbulhando, porque tinha gente
do mundo todo. Nova York estava tomada de gente do mundo inteiro para participar do Gay
Games. [...] Era informação para todo lado. A gente viu todo tipo de veículo, de iniciativa
comercial e cultural para os gays. Milhões de festas, tudo que parecia que era impossível.
Que a revista depois acabou transmitindo essas matérias também, né? Pelo menos nos seus
números iniciais, aquela sensação de que podia existir uma cultura mais integrada, mais
visível dentro da sociedade brasileira. Dentro das capitais pelo menos... Eu acho que o
decorrer é um pouco dessa viagem também. Foi a sensação que a gente teve. Nem eu nem
ele somos pessoas provincianas, nunca fomos, né? E a gente se sentiu provinciano naquela
situação...
A revista de número zero, distribuída no lançamento, foi uma prévia do
que seria realmente a Sui Generis. O Editorial comunicava algo novo: trazia
um orgulho, uma expectativa, como se algo definitivamente fosse mudar. A
revista se apresentava da seguinte forma no seu primeiro Editorial:
Não pense que o Village saiu de NY e baixou nos Jardins ou em Ipanema. [...] [É preciso] ir
abrindo caminho para se mudar o comportamento [...] A revista tem um objetivo simples:
falar da cultura gay de maneira vibrante, inteligente, bem humorada, para cima, até
glamourosa [palavras diferentes/sentidos iguais] – para que não ouçam a gente apenas por
esse silêncio já tão fora de moda.
“Cultura, entretenimento, moda, política e comportamento”: este era o
slogan que acompanhava o título da revista no número experimental. Com
apenas 34 páginas, ela apresentava-se ao leitor com notas que falavam de
aids e visibilidade, para, logo em seguida, apresentar uma entrevista com
Lucinha Araújo, mãe do cantor e compositor Cazuza, falecido quatro anos
antes em consequência da aids. Uma seção de cinema, que trazia o artigo
“Estranha provocação”, tratava dos novos lançamentos cinematográficos
que abordavam questões gays, além de introduzir o conceito queer. Um
ensaio de moda, cujas roupas são conceitos estéticos – românticas e ao
mesmo tempo punks – é apresentado por casais do mesmo sexo em poses
bem insinuantes. De forma ainda discreta, a revista apresenta os
personagens de quadrinhos Rocky e Hudson, um casal gay totalmente
debochado. A partir do número 1, o casal ganha espaço na revista. Por sua
novidade e força simbólica, trataremos deles mais adiante.
Entretanto, é o título do artigo de Erika Palomino que sintetiza o espírito
da revista: “A década de 90 é gay!”. Palomino sintetiza em três páginas,
através de texto e imagens, a onda positiva que se derramou sobre os gays e
lésbicas: Madonna e o videoclipe da canção Justify my love; anúncios
homoeróticos do empório Armani; Bill Clinton conquistando os votos dos
gays; cantoras como k.d. lang, nos Estados Unidos, e Laura Finochiaro, em
São Paulo, assumem sua homossexualidade, sem nenhum resultado nefasto
para suas carreiras e gravadora; as tentativas do outing – expor a
homossexualidade de pessoas públicas; as lesbians chic; colunistas sociais e
seus amigos gays; e a alegria e espetacularização de Isabelita de Patins,
Lola Batalhão e Ru Paul; tudo isso divertindo-se junto a Pedro Américo e
Victor Meirelles nos salões do Museu Nacional de Belas Artes. Na
publicação em questão, o tratamento gráfico e os temas abordados,
acompanhados por adequada seleção imagética, sugeriam um clima lindo e
maravilhoso.
4.2 Uma Revista Sui Generis
A edição número 1 é lançada em janeiro de 1995. Com 74 páginas,
trazendo na capa Neil Tennant, da banda inglesa Pet shop boys, que fala
pela primeira vez sobre sua homossexualidade, a revista repete algumas
matérias do número zero e apresenta novidades, tais como os anúncios de
grandes empresas no verso da capa, na terceira capa e na contracapa,26 uma
seção de moda e uma página de humor – os caubóis gays Rocky e Hudson.
Destes novos aspectos, que os periódicos anteriormente analisados não
tinham apresentado, me ocuparei neste capítulo.
Figura 31 - Sui Generis número 1 chega para ocupar seu espaço.

A revista se propõe “a trazer discernimentos sérios e futilidades chics


dirigidas para homens e mulheres gays. Nossa intenção é levar cultura gay
de forma vibrante, inteligente, alegre para fora dos guetos” (SG, Editorial,
n. 1). A revista se estabelece dividida da seguinte forma: as seções Cartas,
Editorial, Contraponto, Cinema, Música, Ponto de vista, Livros, Classicards
e Ponto final; uma seção Especial (contendo artigos); duas colunas sociais;
uma matéria de capa; uma entrevista; comentários sobre moda; e humor. É
um sumário cheio de opções.
Com uma apresentação excelente no que concerne ao aspecto visual,
assim como nas matérias jornalísticas, a revista se apresenta colorida, leve e
vibrante. As vinhetas criadas para as seções são discretas e o projeto gráfico
dos primeiros nove números corrobora o discurso encontrado no editorial.
A diagramação brinca com os espaços brancos, páginas sem fios, sem
molduras, fotos que ocupam todo o suporte gráfico, e muita cor; assim era a
linguagem gráfica da revista. Esse tratamento traduz visualmente as
palavras “vibrante”, “inteligente” e “bem-humorada”.
As páginas são diagramadas dentro de um diagrama (grid) funcionalista,
quer dizer, um sistema que serve de moldura dentro da qual o corpo da
revista é modelado. O diagrama consiste em uma divisão básica das páginas
em módulos. Segundo o funcionalismo em design, no desenvolvimento de
um projeto devem ser determinadas as funções que o objeto deve
desempenhar, e a partir delas estabelecer uma estrutura (forma). Isto
significa o predomínio do conteúdo sobre a forma (Bomfim, 1998). Esta é
conceituada a partir do conteúdo. Quer dizer: a forma é desenvolvida para
sublinhar pontos importantes, guiar o leitor na sua leitura.
A revista inicia um novo processo no mercado editorial de revistas
segmentadas direcionadas para o público gay. Ela foge dos nus e da
pornografia, que tomava conta das outras publicações do gênero. A Sui
Generis procurou falar de assuntos que fossem de interesse da comunidade
gay, sempre de forma positiva. Ela abordava temas tendo sempre como
preocupação o ponto de vista do leitor gay. E isso é uma grande diferença
em relação aos outros periódicos. Com a preocupação de fazer um “bom”
jornalismo, Nelson não é modesto quando diz: “Nossas matérias eram
fabulosas! Eu não vi nada do mesmo nível até agora” (Feitosa, 2005).
Com muito trabalho e muita dedicação, a revista cobriu, em 55 edições,
os interesses de grande parte do universo gay, do qual seu principal editor
fazia parte: a classe média alta. E para isso não mediu esforços para
conseguir a colaboração de pessoas importantes, como Caio Fernando de
Abreu, Marta Suplicy, João Silvério Trevisan, Luiz Mott, Sócrates Nolasco,
entre outros. Nas palavras de Nelson, “Eu pegava o telefone, seduzia os
grandes nomes do jornalismo para ir lá, pra botar o ‘textinho’ maravilhoso
deles, para oferecer um texto de primeira qualidade; ia lá e conseguia o
melhor ilustrador; ia lá e conseguia a melhor história” (Feitosa, 2005).
Tendo por base as referências visuais, dividi a revista em três grupos: o
primeiro, que vai do número 1 até o 18; o segundo grupo, que compreende
o número 19 até o 49; e o último grupo que vai do número 50 até a última
edição, para dessa forma dar continuidade ao estudo proposto neste
trabalho. O primeiro grupo compreende as revistas que foram projetadas
pelo próprio editor. O segundo grupo apresenta as revistas que foram
projetadas pelo designer Felipe Taborda. E o terceiro, que reúne apenas
cinco números, e representa a tentativa de sobrevivência da revista, cujo
projeto gráfico é assinado por Glauber Souza e Marcelo Mello,
supervisionados por Taborda.
Como veremos adiante, por força das mudanças no panorama
sociocultural, fortemente refletidas na Sui Generis, as categorias temáticas
estabelecidas para analisar o Lampião da Esquina, e também utilizadas no
estudo do Nós Por Exemplo (NPE), nos capítulos anteriores, começam a
desaparecer. Algumas são reapropriadas; outras, reinterpretadas.
Força na patolada
Observando inicialmente as capas das revistas que compõem o primeiro
grupo, o elemento de maior importância é a escolha de personalidades
famosas estampadas. Deste grupo, apenas duas edições não trazem
personalidades nas capas. Os famosos representam sonhos, desejos e
realizações; transformam-se em mitos. Conforme afirma Barthes: “O mito é
um sistema de comunicação, uma mensagem” (1993: 131).
Ney Matogrosso, Boy George, Marina Lima, Antonio Banderas, Renato
Russo (que aparece na capa de duas edições), Marta Suplicy, entre outros,
são transformados em imagens, discursos, ou ainda segundo Barthes, numa
“fala mítica”. São imagens de pessoas vitoriosas. É fundamental observar
que aquilo que lhes garante o destaque das capas não é a escolha sexual:
não importa se são gays ou não; o que importa é que todos, em algum
momento da sua história, foram colocados à margem, foram excluídos, e,
mais que superar os efeitos da exclusão, triunfaram em suas profissões e
atuações.
A edição número 6 apresenta o ator André Gonçalves caracterizado
como Sandrinho, um personagem gay da telenovela da Rede Globo – “A
próxima vítima” – de 1995. Pela primeira vez, em 21 anos, a Globo, no seu
horário nobre, apresentava um gay assumido, não estigmatizado, aceito pela
família. Sandrinho foi uma representação de vitória para centenas de gays
que finalmente se viam refletidos na tela da tevê ou na capa de uma revista.
Esta atitude afirmativa foi a tônica da Sui Generis. Isto já havia sido
evidenciado no Editorial do número 3:
A cultura gay está se manifestando no Brasil da mesma forma que em todo mundo:
extremamente cosmopolita em suas referências. Assim, também são elementos da cultura
gay daqui a vibração da noite, dos clubes, a moda em torno desse cenário, o jeans-boot-and-
t-shirt, os ídolos pop, as gírias, o hedonismo e seu reflexo estético, pouco importando se
apropriados, reinterpretados ou originais. (Feitosa, SG, n. 3: 7)
No que diz respeito aos temas abordados, a violência contra os gays –
assunto constante nas páginas do Lampião, e ainda presente no NPE – não é
tratada nesta primeira fase da Sui Generis (SG). Esse tema só irá aparecer
em edições posteriores. É como se evitassem, em nome de um estilo eleito,
certos assuntos contrastantes ou inconciliáveis com a pretensa elegância
almejada pelos editores e desejada pelos leitores. De certa forma, é como se
os editores quisessem fazer valer a possibilidade de uma harmonia entre os
gays e seus opositores, ou seja, a grande parte conservadora da sociedade.
Por outro lado, o ativismo gay – muito importante para o surgimento do
Lampião, e mola mestra durante o NPE – continua sendo retratado nas
páginas da SG, muito embora maior atenção seja dada à organização dos
movimentos em defesa das minorias. Os gays que conquistam visibilidade e
autoridade para falar desse “universo” manifestam outras características. Os
gays organizados querem direitos, querem visibilidade. Na edição número 3
temos notas anunciando a conferência da ILGA (International Lesbian and
Gay Association). No número 4, a revista faz uma matéria intitulada “Pride
in Rio”.
É no mínimo curioso observar que, se nos anos 1970 os “lampiônicos”
abrasileiram a palavra “gay” para “guei”, agora os rapazes da SG não têm
nenhum pudor em assumir o inglês como segunda língua: “O Rio ferve de
orgulho no mês de junho. Conferência internacional, jogos olímpicos,
exposições e muito babado fazem da cidade maravilhosa a capital gay do
país”. Este era o lead da matéria, que contava um pouco da história do
movimento, do Lampião da Esquina e da rebelião de Stonewall. Na edição
de agosto, número 5, a revista faz um balanço da conferência e chama a
atenção para o descaso da grande imprensa na cobertura do evento, com
exceção para a Folha de São Paulo.
O ativismo dos anos 1990 – não só no Brasil, como nas grandes cidades
internacionais – parecia lutar muito mais pela expansão dos direitos civis,
tais como parentabilidade, o casamento e a parceria civil, e os aspectos
práticos que tudo isso traduz, isto é, direitos a compartilhar os benefícios
dos planos de saúde, direito à nacionalidade (nos casos de casais em que um
dos parceiros é estrangeiro), adoção de crianças etc. Se nos anos 1970 a luta
foi pela descriminalização,27 por uma visão de normalidade e não de
doença, pelo direito à pornografia impressa, pela aceitação ampla e geral da
homossexualidade, o orgulho que se instaura no Brasil a partir da segunda
metade da década de 1990 toma estes pontos como obstáculos já superados.
A estética das glossy magazines – com sua visão parcial do mundo gay –
chega ao Rio de Janeiro com um certo atraso, e a Sui Generis é um exemplo
dessas mudanças e desse orgulho. Isso pode ser constatado em matérias
cujo título reflete essas transformações de perspectiva: “GLS: a onda ‘proud
to be friendly’”: “Os simpatizantes – formadores de opinião, figuras de
ponta em seus grupos, líderes por natureza, estimulam o relaxamento de
fronteiras. São heterossexuais fofos, gente como a gente, pessoas que tem
amigos gays sim e que são proud to be friendly” (Palomino, SG, n. 3: 40).
No fim da matéria, a autora reconhece “que nem todo mundo é tão
gracinha”, mas acredita que a simpatia possa mudar alguma coisa.
Ainda na mesma edição, a matéria “Cheios de talento e nem aí para a
fachada” dá destaque para profissionais com sucesso nas suas carreiras e
que assumiram publicamente seus desejos sexuais. Os escritores Mauro
Rasi e Aguinaldo Silva, os empresários Anibal Faria, John McCarthy e
Alex Halter, o DJ Michel Nahim, todos dão depoimentos de como
conseguiram se impor sem precisar esconder a orientação sexual.
“O orgulho tem cara”, da edição número 13, é o título por cima das
fotos que ocupam duas páginas sobre o gay pride novaiorquino de 1995.
Nesta mesma edição, uma chamada de capa chama a atenção: “Jaguari –
transex agita sertão baiano”. A matéria mostra a vida de Josevaldo da Silva,
mais conhecido como “Bões”, um travesti, cabeleireiro de profissão, que
conquistou o respeito da pequena cidade de Jaguari. A matéria tem como
título “To Wong Foo do Cangaço” e termina dizendo: “Pra quem pensa que
já viu tudo, e que o mundo gay é só fashion, drags e make-up, conhecer esta
lady sertaneja é antes de tudo uma auto-análise e uma boa surpresa”
(Fabiano, SG, n. 13: 38). Na verdade, a “lady sertaneja” também é
“fashion” e usa muito “make-up”, como se pode ver pelas belas fotos que
ilustram a matéria. E, como sabemos, ser fashion no sertão já era atributo de
Lampião há muito tempo...
A essa altura o orgulho é tanto que eles até criam uma edição especial.
Renato Russo foi capa da edição Pride, número 4, quando do lançamento
do seu disco de músicas italianas, e novamente no número 17, quando
faleceu. Era um orgulho para grande parte dos gays ter Renato, naquele
momento, como arauto de sua comunidade. Não que ele assumisse esta
postura, muito pelo contrário. Mas o fato de ele ter assumido sua
homossexualidade publicamente (ainda que tardiamente), ter frequentado o
grupo Arco-Íris e ter patrocinado a ILGA, ainda que isso fosse segredo para
o grande público, colocaram-no numa posição de destaque. Renato não
tinha uma beleza convencional, não fazia parte do glitter rock, mas fazia
parte de uma das maiores bandas de sucesso do país, que com suas letras e
músicas arrebanhou uma das maiores legiões de fãs do Brasil.
Assim, acredito que a Sui Generis também fazia militância. Porém, do
seu jeito, apostando agora mais na liberdade individual. Ganham espaço na
revista as novas reivindicações (algumas, aliás, nem tão novas assim...), os
comportamentos típicos dos anos 1990, além de assuntos e personagens que
se destacam no mundo gay.
Como vimos no capítulo III, o jornal Nós Por Exemplo já tinha dado
espaço para a questão da parentela gay. Neste primeiro grupo de edições, o
assunto é abordado na chamada de capa “Família – filho de gays e louco
por mulheres”. A matéria da SG número 15 é sobre o adolescente Leonardo,
filho adotivo de Augusto, na época “casado” com Luiz Carlos.
Figura 32 - Sui Generis número 40.
Figura 33 - Sui Generis número 16, pág. 36 e 37.

A família gay é um dos assuntos mais discutidos entre os homossexuais


no fim do século passado, tendo inclusive revistas direcionadas para este
tópico, como a Gay Parenting, que foi lançada em Nova York em 1998. A
Sui Generis vai fazer do assunto capa na edição de número 40. A revista
informa e discute sem moralismo, mostrando que a família e as relações
afetivas passam por transformações. Na mesma edição, o diretor de teatro
José Celso Martinez Corrêa assume sua união a três e apresenta seus dois
companheiros. Não é um casamento, instituição que Zé considera falida.
Marcelo, um dos namorados, define a relação da seguinte maneira: “Somos
parceiros. A gente convive 24 horas por dia, trepa a hora que quer, é muito
além de um casal” (SG, n. 15: 30). A matéria traz fotos de Zé, caracterizado
como Tirésias, cercado de camisinhas, de Marcelo, como Dioniso, com o
sexo à mostra, e Fransergio, como Penteu, personagens da peça As
Bacantes, de Eurípides. Fotos que ocupam toda a verticalidade da página,
imagens que dispensam texto.
Outra família ocupa algumas páginas da edição número 16. Com o título
de “Love Story Pansexual”, o discurso verbal e o discurso imagético
apresentam Lou, uma lésbica assumida e moderna, que vive com Gaby, um
transexual “femininamente estereotipado”. “Estão apaixonados e nem um
pouco interessados em definir se vivem um amor gay ou hetero” (SG, n. 16:
37). A matéria é ilustrada por uma colagem, na qual se vê uma foto do casal
em pose romântica, emoldurada por uma grande, maciça e antiga moldura.
A ambiguidade dos hibridismos imagéticos confunde o tradicional e o
moderno, e assim anuncia as imponderáveis possibilidades que só a pós-
modernidade ousaria fazer emergir das sombras da história dos séculos,
durante os quais, embora invisíveis, sempre existiram. As diferenças são
enaltecidas e vistas como fonte de diversidade, de uma certa forma
enriquecedora para resgatar as identidades sexuais dos constrangimentos
das normas e celebrar a pluralidade (Woodward, 2000). As diferenças são
assumidas e as identidades se reinterpretam. Quanto a isso, uma passagem
de Stuart Hall é bastante esclarecedora:
Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpretado ou
representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela
tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, descrito como constituindo uma mudança de
uma política de identidade (de classe) para uma política de diferença (Grifo do autor).
Com o sugestivo título “E Deus criou a mulher”, a edição número 11
traz na capa a transexual Roberta Close. As bichas e travestis que
frequentavam as páginas do Lampião agora são substituídas pelas
“barbies”, “bibas”, “drags”, e Roberta Close. Luiz Roberto Gambine
Moreira – ou melhor, “La Close” – reinou absoluta na mídia durante a
década de 1980, chegando ao estrelato em maio de 1984, quando se tornou
a primeira e única travesti a ser capa e matéria principal da Playboy, uma
revista masculina dirigida predominantemente ao público heterossexual.28 A
matéria é ilustrada com quatro fotos (que ocupam toda a página) de Roberta
numa superprodução de muito luxo. O que diria Roger Vadim destas fotos?
O deus midiático, o deus do simulacro e das imagens não criou a mulher,
mas reinventou uma paródia à sua imagem. Por outro lado, se estamos
reconstituindo identidades, a partir de Hall, ela é mulher e pronto!
Gostaria de destacar uma vez mais o papel do design na construção dos
discursos apresentados pela SG. Embora a grande mudança visual só
aconteça a partir do número 19, vários detalhes da publicação, tais como o
grande número de fotos nas páginas, o cuidado na escolha tipográfica e os
espaços brancos indiciam que a linguagem gráfica estabelece um diálogo
mais rápido com o leitor do que a linguagem verbal.
Não haverá grandes mudanças em termos visuais até a edição 19. No
número 5 podemos ver que pequenas mudanças acontecem no visual, mas
nada realmente significativo: é apenas incluída uma foto dos colaboradores,
e a seção Ponto final passa a ocupar a última página. Conforme os editores
escrevem: “Com a gênese da coisa gay só temos a ganhar. Afinal, é uma
confusão. Ninguém consegue dizer com segurança o que é um gay, mesmo
diante de um” (SG, Editorial, n. 5).
Assim como se busca representar um gay ideal, a SG ainda estava à
procura de uma identidade gráfica própria, e a revista ganha novo visual no
número 8. No Editorial dessa edição, que tem como título “Chega de cara
feia”, o discurso é de “mudança”: “A Sui Generis ano II – A Missão
Continua vem diferente. Vamos mudar o visual e um pouco a linha
editorial. Os propósitos iniciais continuam valendo, mas vamos mergulhar
mais nas nossas idiossincrasias”.
Como podemos observar, os sentidos dos discursos se repetem. Em
quatro dentre oito números da revista, os editoriais reforçam as mudanças.
Porém, o que vemos é que apenas os verbos mudam: “falar”, “trazer”,
“mudar”, “comunicar”. Na verdade, há sempre uma proposta em busca da
novidade: elevar a autoestima dos leitores. Conforme afirma Monteiro
(2000: 1): “A revista é muito mais militante no tocante à auto-estima do que
a Homens, assumindo uma postura bem próxima aos movimentos gays
norte-americanos de busca de uma identidade unívoca e coesa”.
Como foi anunciado no Editorial do número 8, a revista número 9 vem
com pequenas mudanças visuais. Ela se divide agora nas seções Cartas,
Editorial, Contraponto, Cinema, Música, Mosaico, Vortex, Ponto final; e em
seções “especiais”: Entrevista, Capa, Moda e Humor. Além disso, surgem
linhas entre as colunas, o índice fica mais condensado, e as vinhetas das
seções crescem de tamanho. Fica evidente que a revista quer crescer, e este
desejo é constatado também nas mudanças visuais que ela traz. Tudo isto é
reafirmado no Editorial do número 9: “Na verdade, a gente quer muito falar.
Todos os gays e lésbicas, certamente, querem ser out. [...]. E esse desejo de
se comunicar tem tudo a ver com o desejo de liberdade” (Negrito no
original).
Outro fato digno de nota é que a edição número 9 não estampa na capa
alguém famoso. Abordando um assunto polêmico, a homossexualidade e o
futebol, ela traz na capa um modelo muito bonito, sem camisa, com calção,
meias e chuteira, sentado em cima de uma bola, e dirigindo um olhar bem
sensual para o leitor. “Força na patolada: o país do futebol põe a mão no
preconceito”, esta é a chamada de capa, que, como todas as outras, ocupa a
metade inferior da página, sempre na diagonal.
A revista inova mais uma vez, fazendo com que o conceito da capa
continue pelas duas páginas seguintes. Na primeira, o modelo aparece em
pé, sem camisa, exibindo um torso delineado como uma estátua grega. Na
segunda foto, o “jogador” aparece com camisa e calção, mas insinua-se
colocando a mão dentro do calção. A patolada torna-se explícita na grande
foto que abre a matéria: “Viva a patolada”.

Figura 34 - Sui Generis número 9, pág. 22 e 23.

Nelson Feitosa e Silvio Barsetti tentam analisar a atitude do jogador


Aílton, que para comemorar o gol que o atacante Rogerinho fez, aplicou-lhe
uma “patolada”.29 Surpresa geral! O ato tornou-se notícia em todas as
mídias, trazendo infortúnios para Aílton, que foi julgado no Tribunal
Especial da CBF. O jogador foi absolvido, mas a masculinidade dos
jogadores maculada. Provocando polêmica, e tendo consciência de que o
escândalo vende, a edição seguinte traz na capa o jogador Renato Gaúcho
falando de “sexo, homossexualismo e dinheiro”.
Vale relembrar que o número 1 do Lampião da Esquina trazia na capa o
desenho de um bigode e a seguinte legenda: “A revolta dos fãs de
Rivelino”. Na verdade, tratava-se de um truque jornalístico: eram cartas dos
leitores (?) que reclamavam do fato de o Lampião número zero ter criticado
o jogador. O Nós Por Exemplo também fez entrevista com o juiz Jorge
Emiliano, mas conhecido como Margarida (NPE, n. 2) e o Lampião
produziu matéria com Pompilio Garcia, jogador de futebol homossexual
assumido do Atlético Boa Viagem, da cidade de Jacareí. Os “lampiônicos”,
assim como os editores da SG, sabiam e continuam sabendo – vide o caso
Vampeta –30 que o futebol e jogadores de futebol habitam as fantasias
sexuais e são objetos de desejo de muitos gays brasileiros.
A outra edição que não apresenta um artista na capa é a número 12. A
matéria principal é sobre a relação das religiões com a homossexualidade.
A capa estampa um modelo de peito nu, carregando vários símbolos
religiosos, com uma luz, ou uma grande aura, que o envolve. A matéria abre
com uma foto do modelo, agora de corpo inteiro.
“Caminhos de Fé” pesquisa entre as religiões aquelas que são mais
tolerantes com os gays e lésbicas. Esta discussão havia sido matéria no
Lampião número 1, e recebera destaque de capa na edição número 5 do
NPE, quando o jornal republica a carta ao papa João Paulo II, publicada
originalmente no Lampião número 27. Na SG número 5, a matéria “Entre a
cruz e o tempo” falava do desprezo da religião católica pelos gays.
Adornado com imagens do juízo final de Michelangelo, o artigo criticava a
intolerância da Igreja católica, que continua a ver a homossexualidade como
prática herege e aberração. O artigo informa ainda que entre 1987 e 1993
vinte e sete padres tinham morrido de aids nos hospitais Emílio Ribas e São
Camilo, ambos na cidade de São Paulo.
Embora a homossexualidade seja considerada pecado pela maioria das
religiões, muitos gays mantêm estreita relação com as Igrejas, e de certa
forma almejam seu acolhimento, seu pertencimento. No entanto, existem
gays que carregam uma certa homofobia internalizada, e neste caso a
religião pode ser “a salvação para o pecado”.
Ousadia indispensável
Desde que os primeiros periódicos dirigidos à comunidade homossexual
surgiram, notadamente na precursora imprensa gay norte-americana,
sempre houve espaço em suas mídias para a moda, seja por meio de
anúncios, que serão constantes em todos os jornais e revistas; seja por meio
de pequenos artigos, tais como “Men’s fashion this season”, na edição de
maio de 1968 do jornal Advocate, divulgando as últimas tendências; seja
em ensaios, tais como “Mink, leather, loafers & bossom & beads”, em que o
autor pergunta: “Clothes make the man, or clothes make the man
makeable?” (Advocate, n. 1: 10).
Por muito tempo, a imagem do homossexual foi associada a alguém que
sempre se preocupa com a aparência. De certa forma, a imagem do “dândi”,
aquele que se veste bem, emblematizada por Oscar Wilde, transitou e
permanece por muito tempo no imaginário popular e assim é compreendida.
Isso não deixa de ser verdade: muitos gays dão especial atenção à forma
como se vestem. Por sua vez, os que adotam uma postura mais efeminada
foram e ainda são a imagem mais reconhecida por grande parte da
população. São personagens associados ao bom gosto, ao estilo e à
sofisticação.
Na década de 1960, o jornal Snob, a que já me referi no primeiro
capítulo, se definia da seguinte forma: “Um jornal para gente entendida.
Um jornal para gente de bem. Um jornal para você que é de bom gosto”
(mar/1965). No Snob, os editores acreditavam que “Bonecas possuíam
estilo, graça, personalidade, senso estético e bom gosto que os destacavam
do resto da sociedade” (apud Green, 1999: 186, Grifo do autor). Desta
forma, entre outras coisas, o jornal é um espaço para que as “bonecas”
vistam-se de Courrèges, Dior, Chanel ou de Carmem Miranda. Segundo
Green, “as bonecas também se retratavam com cabeleiras atuais e vestidos
elegantes. Seus cabelos e seus vestidos mudaram do bouffant e vestidos à la
Jacqueline Kennedy de 1963 para a minissaia e o look da Twiggy em 1968”
(Green, 1999: 189).
Nos periódicos analisados para esta pesquisa, a moda só ganha espaço
enquanto seção permanente na revista Out, número 1, verão de 1992, e na
Sui Generis. Tanto no jornal Lampião da Esquina, quanto no Nós Por
Exemplo, não havia espaço para a moda.
A moda na SG está presente desde o número zero. É uma moda gay, ou
melhor, dirigida para o público GLS. E aqui caberia uma pergunta: o que
seriam roupas para gays? Não pretendo neste livro responder a esta
pergunta, e sim ver a moda como mais um elemento diferenciador das
novas imagens que habitam a Sui Generis. Nelson Feitosa dedica várias
páginas da revista para a seção (no número 8, de suas 50 páginas, 10 são
para o ensaio de moda). Em depoimento para esta pesquisa, Feitosa nos
conta que sua ideia era fazer da seção um espaço como se fosse um desfile
de moda, local onde os estilistas apresentariam suas fantasias e seus
conceitos.
Porque o espaço de moda da revista, ele é um espaço conceitual. É como se fosse a
passarela dos desfiles dos estilistas, entendeu? Ali eles estão expressando um conceito que
não necessariamente vai virar roupas exatamente iguais àquelas das lojas. Eles estão
expressando um conceito, e depois eles vão adaptar pruma coisa mais usada dentro das
lojas. O espaço da moda era a mesma coisa (Feitosa, 2005).
A seção inicialmente apresenta roupas para homens e mulheres,
buscando sempre apresentar um conceito traduzido nos títulos de cada
ensaio: “O circo vai à rua” (SG, n. 2); “De joelhos para o prazer” (SG, n. 5);
“Cafajestes” (SG, n. 6); “Formas de verão” (SG, n. 8); “Quando a
temperatura sobe o sangue esquenta” (SG, n. 16), entre outros. Todos os
ensaios demonstravam cuidado com a produção e apresentação gráfica.
Mas, apesar do esmero de Feitosa, a seção recebia muitas críticas negativas.
Mas foi muito incompreendida essa questão da moda. Todos, muitas cartas. Nos encontros
com os gays também. Mas eu acho que é uma falta de... Faltou um aprendizado. Talvez se a
revista existisse por um longo período, esse aprendizado fosse acontecer porque... ali é uma
informação... é um espaço de beleza, de viagem estética, de revelar tendência, sabe? Se
você gosta de moda, se isso é importante na sua vida, você vai saber se a calça, se a
tendência da calça tá assim, ou tá assado. Mas depois você vai achar a sua dentro do seu
preço. Agora, tinha muita reclamação... (Feitosa, 2005).
Era uma ousadia da qual nem todos os leitores compartilhavam. Talvez
porque se tratasse de uma informação que só funcionava no eixo Rio-São
Paulo, e assim mesmo para uma classe média alta que frequentava
específicos lugares da moda. Por outro lado, como a revista era distribuída
por todo o país, gays de outras partes do Brasil não tinham acesso àquela
realidade. De qualquer forma, a seção permanece na revista até o último
número. E podemos mesmo afirmar que ela se torna a sua mais forte
representação simbólica.
Outro aspecto diferenciador da revista foi a chegada do humor, com a
presença da tirinha Rocky e Hudson (Roqui e Udison), os caubóis gays.
Estes personagens, criados por Adão Iturrusgarai, aparecem pela primeira
vez numa tira em preto e branco no número zero, e permanecem nas
páginas da revista até o número 24. Debochados, iconoclastas,
politicamente incorretos, Rocky e Hudson assumem a homossexualidade
num velho oeste. De acordo com o autor:
Rock e Hudson eu criei quando eu morava no Rio Grande do Sul. Eu queria brincar com
essa coisa de que gaúcho é muito macho, o que eu acho um pé no saco. São muito durões.
Então resolvi criar dois gaúchos gays. Queria sacanear com os gaúchos. Estava me
mudando do Rio Grande do Sul. Na época, tinha morrido aquele ator americano Rock
Hudson, que fazia papel de machão nos EUA. Depois se descobriu que ele frequentava
saunas gays. Resolvi sacanear colocando o nome dele, batizando os dois personagens (Cf.
http://sphere.rdc.puc-rio.br/tvpucrio/entrevista_adao_iturrusgarai.html).
Utilizando o nome do ator americano Rock Hudson, que durante muito
tempo escondeu sua homossexualidade e tornou-se famoso pela sua beleza
e suas comédias românticas, Adão Iturrusgarai trabalha com arquétipos que
fazem parte dos clichês culturais do universo masculino. O caubói assim
como o machão são personagens que representam idealizações do
imaginário heterossexual. São também construções simbólicas do universo
masculino que habitam as fantasias de muitos gays.
Figura 35 - Sui Generis, número 9, página 37.

No fim da década de 1970, aproveitando a moda “disco”,31 foi lançado


nos Estados Unidos, o Village People. Formada por seis rapazes, a banda
cantava e dançava músicas com temas alusivos ao universo gay. A banda
fez muito sucesso, não só pela música, mas pelo figurino e pela maneira
como eles se apresentavam. Os seis rapazes se caracterizavam como
marinheiro, índio, policial, leather, pedreiro e cowboy, todos eles
personagens habitantes do mundo onírico e das fantasias sexuais de grande
parte da população, incluindo-se os gays neste universo.
Hal Fischer, no seu artigo “Gay Semiotics: a photographic study of
visual coding among homossexual men”, apresenta um estudo das imagens
dos gays que frequentavam os redutos de São Francisco e a mídia impressa
em 1977. Ele identifica cinco arquétipos masculinos básicos: classical,
natural, western, urbane e leather (o clássico, o natural, o caubói, o urbano
e o leather). No grupo, os caubóis são reconhecidos por roupas tais como
jeans, botas, camisas de flanela e chapéus. Tudo isso com atitudes
estereotipadamente masculinas. A imagem do faroeste, povoado por
homens rudes e solitários, desperta a curiosidade sobre a sua sexualidade
em muitas pessoas. O último exemplo é o sucesso de The BrokeBack
Mountain, um filme sobre um casal de cowboys apaixonados. Nas palavras
de Fisher: “The cowboy represents the frontier and male dominated
society” (Fischer, 1977).32
Adão Iturrusgarai subverte, desmoraliza a imagem do “caubói machão”,
criando duas figuras delicadas na forma e ao mesmo tempo despudoradas
como Rocky e Hudson. É um humor totalmente diferente daquele publicado
no Lampião da Esquina. Primeiramente, no formato: no Lampião o humor
era em forma de charges e cartoons; na SG Adão trabalha principalmente
com a tira,33 ou com a história em quadrinhos. Em segundo lugar, o humor
no Lampião estava inserido no contexto sociopolítico, na crítica aos
costumes. As personagens faziam parte do “mundo lampiônico”.
Rocky e Hudson são pornográficos, não têm vergonha de se assumirem
como passivos, e pensam em sexo o tempo todo. Adão ironiza vários mitos
e questões que fazem parte do universo gay, tais como as “barbies”, o
“casamento gay”, a internet, o “pau grande”, a moda, e sempre com um
humor escrachado. Por pouco tempo o humor teve espaço na mídia gay.
4.3 ↑←↓→ Ou Vortex
“Salute! Nossa primeira revista do ano vem de cara nova, redesenhada
pelos designers Felipe Taborda e Flavio Mario. A gente torce para que
vocês aprovem a mudança”. Esse era o post scriptum do editorial da revista
número 19. O editorial relatava o que tinha sido o réveillon no Hotel
Copacabana Palace, considerado o “maior réveillon gay que o Copa já
havia testemunhado.” O ano de 1997, na visão da revista, começou bem, e a
revista, pelo visto, também.
Figura 36 - Sui Generis número 19, página 14. Vortex depois da mudança.

Com um projeto gráfico inovador, a Sui Generis assume sua pluralidade.


A seção Vortex traduz a cara nova anunciada. A seção, que ocupava uma
página e era localizada nas últimas páginas da revista, agora é o somatório
de várias pequenas subseções e passa a ocupar um grande espaço nas
primeiras páginas. Divulga em pequenas notas o mundo fashion gay.
A seção tem um dos projetos gráficos mais fortes: a página é dividida
em espaços quadrangulares, emoldurados por grossos fios pretos, uma forte
influência mondriânica, atribuindo força e sustentação para todos os “gays
de todas as naturezas” que naquele ano desfrutavam do réveillon do
Copacabana Palace. Uma dessas divisões quadrangulares vai estar sempre
ocupada por setas que indicam diferentes lugares, que levam para todos os
lugares, sem sair do mesmo lugar. É como se a revista quisesse ocupar
todos os lugares.
A partir deste número 19, a revista Sui Generis muda totalmente seu
aspecto visual, começando pelo logotipo da capa. Desaparece a letra pesada
com serifas quadradas, e surge uma fonte bastão fina, delicada e discreta.
Todas as chamadas de capa ocupam um único espaço vertical, que vai se
posicionar ora à direita ora à esquerda da página, realçando a imagem
pictórica. Desta forma, a capa difere completamente da maioria das capas
de outras revistas, nas quais as chamadas cortam a imagem, quase sempre
provocando ruídos visuais. No interior, linhas grossas e pesadas envolvem
suas matérias. São cercaduras, também conhecidas como “boxes”, recursos
estes que destacam a matéria. A cada abertura de reportagem um conceito é
apresentado graficamente. As mudanças acompanham alguns dos
comportamentos dos homossexuais, suas modas, seu vocabulário, suas
atitudes, formando uma “estética gay” sempre referente a um certo grupo.

Figura 37 - Sui Generis número 19, capa e páginas 26 e 27.


A imagem do gay forte, másculo e viril está estampada na diagramação
original da matéria de capa da edição da mudança. O ator Alexandre Frota
foi capa da revista. Com um corpo muito musculoso, posa encarnando o
papel de um cafajeste. A matéria ironiza sua “hipermasculinidade que faz
sucesso com as mulheres e tem provocado histórias (boatos!?) de romances
gays”, e sua versatilidade como ator. Para reforçar a associação da
masculinidade tão propagada, o projeto gráfico desenvolve um dos mais
interessantes trabalhos da revista. A matéria abre com a foto do ator de
perfil, ocupando todo o centro da página esquerda. Na página direita, o
nome do ator é posicionado do mesmo modo que foi colocada a foto, com o
seu sobrenome ocupando o local equivalente à posição do pênis. O homem,
significante, fica ao lado do seu significado, com toda sua masculinidade
em rosa-shocking.
Em entrevista para este trabalho, o designer Felipe Taborda, autor desse
novo projeto gráfico, contou que conheceu a revista e a achou ótima,
contudo percebeu que a sua visualidade não estava de acordo com a
proposta que a revista veiculava. Faltava ousadia visual. Então ele procurou
o editor e propôs uma mudança. Felipe diz que não pensou no design em
termos de gay, heterossexual ou lésbica, mas num leitor que estivesse
sintonizado com as mudanças comportamentais do fim do século.
Poderíamos aqui retomar o conceito de GLS a fim de entendermos para
qual público a revista estava dirigida.
Felipe diz que “queria limpar a revista, fazer experimentações
tipográficas e dar muito espaço para as fotos”. As novas propostas são
prontamente aceitas pelos leitores, e as mudanças fizeram sucesso não só
entre eles, mas também nas bienais de Artes Gráficas onde a revista foi
apresentada, tendo inclusive ganhado o prêmio maior na Bienal de Artes
Gráficas da República Tcheca.
Conforme afirma Karl Erik Schollhammer, “O texto depende hoje mais
do que nunca da sua qualidade visual, e da sua materialidade de escrita, do
seu meio gráfico, da sua edição ou da sua projeção” (2001: 33).
Observamos que a partir desta edição a “cultura barbie” passa a ocupar
um grande espaço nas páginas da seção Vortex e no interior da revista.
Barbie é uma denominação irônica do gay musculoso, bronzeado e
animado, quando está entre os seus iguais. O ator Alexandre Frota, se fosse
gay, seria um exemplo desta categoria. Trata-se de uma identidade para a
qual a imagem física é elemento primordial. Toda barbie é gay, mas nem
todo gay é barbie.
Este comportamento espalhou-se por todo o mundo durante a década de
1990, principalmente em cidades praianas, como Miami, Los Angeles, Rio
de Janeiro, Ibiza, entre outras. As barbies carregam códigos próprios. Seu
estilo visual e comportamental incluem um jeito próprio de dançar e um
estilo de música próprio. Raspam os pelos do corpo, frequentam as circuit
parties,34 usam cuecas Calvin Klein, camiseta branca colada ao corpo, calça
justa e cintura baixa.
Os homens fortes e másculos sempre ocuparam o imaginário dos gays,
nas publicações que mostravam o fisiculturismo, nas revistas sobre o
naturismo (principais meios pelos quais o homossexual das décadas de
1940 e 1950 conseguia admirar o corpo masculino), e principalmente nas
imagens homoeróticas que Tom of Finland criou.35 O que era admirado nos
outros passa a ser admirado em si próprio. O narcisismo é uma
característica evidente das barbies.
Não podemos esquecer que na década anterior a imagem do gay esteve
associada aos portadores do HIV. Homens muito magros eram logo
inconscientemente associados à doença, e certamente a maioria dos gays
quis fugir desta associação. Muito provavelmente por isso voltou-se para
cultuar o corpo, de uma forma nunca vista antes, para veicular uma imagem
sadia e se distanciar daquelas imagens de pessoas cadavéricas.
A partir dessa edição, as pessoas famosas nas capas dão lugar a fotos de
modelos seminus, torneados, reforçando um padrão de beleza ideal, e
tiranizando aqueles que não se encaixam nestes padrões. Não é de estranhar,
portanto, que os gays peludos e/ou gordos se reúnam e organizem a tribo
dos “ursos”, mais uma identidade existente atualmente dentro do universo
gay. Aqui no Brasil ainda não existe uma publicação dirigida a este público
específico, mas nos Estados Unidos encontramos várias. Curiosamente, o
universo dos ursos brasileiros se construiu pela internet. Atualmente a
revista G Magazine tem uma coluna dirigida aos ursos, que não é nada
comparada ao mundo virtual.
Não quero dizer que a revista tornou-se uma revista para as barbies, e
sim que o “estilo de vida” desta parcela da comunidade gay, que se
confundia com os clubbers,36 foi matéria constante nas páginas da revista,
seja em textos ou em fotos de homens seminus. Na verdade, as barbies
também são motivo de artigos de alguns colaboradores, que discutem a
valoração do corpo por parte dos “meninos fortes”. Na série de artigos
intitulados “Culto ao corpo”, o jornalista Gilberto Scofield analisa a tirania
da estética barbie, que contribui para o desenvolvimento de uma ditadura
segundo a qual quem não tem um corpo bem-modelado não tem vez (Cf.
SG, ns. 40, 41 e 43).
Como vimos, inicialmente a revista se propunha a ser um espaço
público de visibilidade e tematizações de algumas das questões gerais que
envolvem a homossexualidade; ser um local no qual se materializava uma
construção simbólica de uma estética pertinente ao mundo GLS,
principalmente gay. Entretanto, não podemos esquecer que o público é
ativo, e de certa forma vai influenciar na estética da revista.
A valorização do corpo masculino é estampada e comentada em
diversas matérias, nas quais a beleza e consequentemente o corpo são
redesenhados e ressignificados, criando uma nova identidade no universo
gay. A revista não se rende ao nu artístico, mas cada vez mais vai investir
em fotos provocadoras, sensuais, sempre trazendo o belo apolíneo. Isso
pode ser visto em matérias como: “O homem perfeito” (SG, n. 17), que
mostra os caminhos para se conseguir um corpo melhor; “Narciso em
evolução” (SG, n. 31), sobre a nudez masculina durante o carnaval;
“Craques da beleza tropical” (SG, n. 32), uma reportagem sobre o mundo da
moda e a descoberta de modelos masculinos brasileiros; “Adeus bruxa-má”,
outra reportagem que enfoca o mundo da moda e rapazes que tinham uma
vida simples e foram catapultados para o mundo efêmero e feérico dos
desfiles multimilionários – os “novos cinderelos”; “Nascido para dançar”,
reportagem sobre go go boys e strippers que trabalham na noite das
principais capitais brasileiras; “Monumentos vivos”, em que a revista traduz
em fotos, obras de arte clássicas, tais como Apolo de Belvedere, Mercúrio,
entre outros, um belo ensaio fotográfico com modelos apolíneos; “Louro,
alto e poderoso”, reportagem sobre os novos atores e o duro caminho que
eles têm de trilhar para conseguir o sucesso. Todas as matérias são
ilustradas com muitas fotos. O corpo é discutido, e também exibido.
A partir da edição número 30, a revista passa a exibir duas
possibilidades de capas. Alguns problemas com anunciantes levaram-na a
criar uma solução para a contracapa, pois sem anúncios, os editores
resolveram criar uma segunda capa utilizando o mesmo tema da primeira.
No número 41, a SG traz nas duas capas um modelo totalmente nu. Essa
imagem ilustra a matéria “Invasão do bizarro”, que discute a importância da
presença de gays em diversos programas na mídia televisiva. É um
momento no qual personagens gays estão presentes em quase todas as
mídias.
Programas de TV, objetivando uma maior audiência, criam debates com
o pretexto de esclarecer o assunto, e acabam, muitas vezes, colocando os
convidados em situações constrangedoras, confundido-os com as
caricaturas expostas por esses mesmos programas. A matéria citada fala de
novelas e outros programas, tais como “Ratinho Livre”, “Programa Livre”,
“24 horas”, entre outros, e sobre as entrevistas realizadas com vários gays e
lésbicas que foram atraídos para essas verdadeiras “arapucas”.
Apesar da seriedade da matéria, a revista não se furta em publicar o
modelo Rogério Braga sendo clicado saindo do box. A invasão do banho do
modelo é mostrada nas duas capas, além de várias fotos no interior da
revista. Discretamente, na foto da quarta capa, vê-se o pênis do modelo
entre os dedos da mão que tenta, sem muito sucesso, ocultá-lo. Esta é uma
das edições na qual predomina a imagem do sexo exposto. Já no índex, num
dos quadrados que compõem a página, vê-se o close de três pênis. Trata-se
da chamada para a nota sobre três irmãos que fazem filmes pornôs, na qual
eles aparecem totalmente nus.
Na mesma edição, a revista entrevista o cantor e compositor Carlinhos
Brown, numa matéria intitulada “Omelete inter-racial”, uma referência ao
seu CD Omelete man. Com mais um projeto gráfico audacioso – a letra O,
da palavra omelete, ocupa ¾ da página dupla. A foto do cantor é inserida no
meio da letra, e a tipografia sublinha as questões inter-raciais, alternando o
branco e o preto. Mas o que chama a atenção é a foto do cantor totalmente
nu, durante sua apresentação no carnaval baiano. Indagado sobre a razão de
sua nudez, o cantor explica que estava vestindo uma roupa, que só alguns
puderam perceber. A roupa do rei pode disfarçar, mas não esconde os pênis
eretos na seção de moda “Puro Duro Absurdo”. Sungas são apresentadas
em close-up tendo os modelos seus pênis em estado de ereção. Uma ousadia
visual e conceitual.
Figura 38 - Sui Generis número 41, páginas 33 e 34.

O culto à beleza não diminuiu de forma alguma a qualidade do


jornalismo que a revista se propunha a fazer, isto é, de trazer para o seu
espaço assuntos polêmicos, como a violência contra gays, a vida dos
garotos de programa, as práticas da homossexualidade durante a
adolescência, a nova família gay, e uma edição dedicada aos negros. Todos
esses assuntos são apresentados com um texto que analisa e opina, com
fotos bem-produzidas e um projeto gráfico atualizado que orquestra todos
esses elementos.
A edição número 20 traz como matéria de capa a vida dos garotos de
programa: corpos masculinos são exibidos como se fossem troféus. O
discurso gráfico é parafrástico, pois sustenta o sentido produzido pelo
discurso verbal. O lead da matéria diz: “A prostituição masculina sai do bas
fond e ganha palcos, telas, jornais e livros. O novo status de uma antiga
profissão ganha espaço como produto de consumo, cria ídolos e já recebeu
até nome: é o gay for pay.”
O projeto gráfico apresenta fotos de um modelo, personificando um
michê, com uma das mãos cheias de dinheiro, em diferentes posições em
cima da cama de um quarto de hotel. A diagramação apresenta as fotos de
forma a criar um clima que termina com uma foto maior que ocupa toda a
página direita. “A hora da fama” é o título que é representado em forma de
logotipo para a reportagem que ocupa oito páginas da revista.
Se na vida real falta glamour e sobram histórias de misérias, conforme
afirma o título de uma matéria nas páginas da SG, os michês são mostrados
num bom quarto de hotel, bem remunerados e aparentemente sem culpa. A
matéria apresenta os garotos de programa que frequentam os palcos do
teatro (personagens da peça Blue Jeans, de Wolf Maia), as telas de cinema
(John, dirigido por Scott Silver), as páginas do livro (O negócio do michê,
de Nestor Perlonger) e as ruas de São Paulo. Quatro rapazes dão
depoimentos para a revista, relatando verdades e mitos da profissão. Não
tão glamourosa quanto o discurso gráfico representado pela revista, mas
também não tão decadente quanto julgaria a sociedade distante destas
realidades.
Um dado importante sobre o design da SG é sua preocupação em
aproveitar todas as oportunidades para estetizar com elementos caros ao seu
público as diversas matérias que publica, sem comprometer a seriedade de
seus conteúdos e mensagens. A revista vai usar e abusar da sensualidade
dos corpos masculinos. Os assuntos são tratados com seriedade, mas a
“estética da beleza” vai sempre estar presente. Vejamos a apresentação da
matéria sobre violência praticada contra os gays por policiais.
É comum policiais frequentarem logradouros públicos utilizados por
gays como área de encontros e prostituição. Casos de extorsão e violência
são corriqueiros. Os policiais, sabendo do medo internalizado e da
instabilidade emocional de alguns dos frequentadores, aproveitam para
coagi-los e humilhá-los. A reportagem é apresentada em página dupla preta,
cortada por um fio branco, como um raio de lanterna, onde se lê o título
“Flagrantes na madrugada”. Uma pequena foto à esquerda mostra três
modelos em posição como se estivessem sendo revistados. O projeto
gráfico enfatiza o texto que diz: “No escurinho, nas vias e banheiros
públicos sempre aconteceram as ‘pegações’ e os inevitáveis flagrantes
dados pela Polícia Militar e pelas Forças Armadas” (SG, n. 43: 41). Capa e
texto interno são ilustrados por dois modelos que fazem papel de torturador
e vítima, os quais simulam uma revista, na qual percebe-se que o limite
entre o flagrante e o assédio sexual é tênue como a luz dos becos nos quais
ocorrem esses acontecimentos.

Figura 39 - Sui Generis número 43.

A ousadia visual, ou melhor, o limite entre o erótico e o pornográfico,


continuava sendo o desafio para a revista, que manteve sua posição de não
mostrar ensaios fotográficos de homens nus. É claro que o nu aparecia, mas
para a revista aquelas fotos tinham função informativa.
Em abril de 1997, a editora Fractal, aproveitando a lacuna deixada pela
SG, lança a revista Bananaloca. A revista explorava o nu masculino em
ensaios fotográficos com modelos brasileiros, além de reportagens dirigidas
ao público gay. Observo que, segundo a seção de cartas, uma parcela do
público da SG exigia ensaios de nus masculinos e não encontrava. A seção
Vortex apresentou nus em muitos números, mas a revista fazia questão de
colocá-los como uma nota sendo divulgada, e não como uma produção
própria da revista. Eram fotos colhidas de filmes, peças, livros, com o
argumento de ter uma função mais jornalística do que de entretenimento.
De qualquer forma, as pequenas fotos não eram o bastante para satisfazer os
voyeurs. A revista Bananaloca, que a partir do quinto número passa a
chamar-se G Magazine, torna-se o maior sucesso editorial dentro da história
da imprensa gay brasileira, atraindo olhares de todo o mundo, quando na
edição de número 20 publicou fotos do jogador da seleção brasileira,
Vampeta, nu e com o pênis ereto.
As ousadias visuais nos ensaios de moda, os projetos gráficos
inovadores, e os artistas e intelectuais entrevistados para a SG não foram
capazes de enfrentar os “famosos” da G Magazine.37 A falta de anunciantes
e uma boa parte dos leitores preferindo a G, fez com que a SG começasse a
enfraquecer. No mesmo ano, a editora SG Press, que publicava a Sui
Generis, lançou a revista Homens, cuja temática era sexo e homens nus. A
nova revista se tornou rapidamente um sucesso de vendas!
A capa do número 44 da SG estampava a foto de dois rapazes dando um
profundo beijo na boca. Um beijo erótico e provocador. As fotos de capa e
contracapa são a homenagem que a revista faz para o dia dos namorados.
Foram escolhidos para isso dois rapazes que ganharam seus minutos de
fama aceitando posar para a revista. Seu beijo sem pudor faria parte da luta
dos gays pelo direito de, também, expor seus desejos livremente. E, ao
mesmo tempo, foi uma grande jogada de marketing da revista para atrair
leitores. Escancarar a intimidade desta forma (não que as novelas da TV
Globo não o façam) denota que algo de verdadeiro acontecia na
comunidade homossexual. E a SG buscava mostrar ser o único veículo com
legitimidade para exibir, esclarecer e enaltecer o afeto gay. É como se,
depois de tantos anos de invisibilidade social, os gays e as lésbicas, não
mais suportando a autorrepressão, mostrassem a cara e se unissem para
festejar vitórias de uma luta sem fim.
A distribuidora Fernando Chinaglia, achando que a sociedade não estava
preparada para a capa, recolheu a revista em São Paulo, e a distribuiu dias
depois envolta em um saco preto. Esse ato levou vários leitores a escrever
cartas de repúdio à censura e a favor do beijo. Essas cartas foram a ponta do
iceberg do que realmente estava por vir.
O fim do milênio pode ser visto como os anos do orgulho gay nacional.
A SG 47 festejava a presença de 20 mil pessoas na parada gay de 1999, na
cidade de São Paulo. Com o título de “Enfim a parada do milênio”, o
escritor João Silvério Trevisan fez a reportagem:
Vencemos nosso pior inimigo, a invisibilidade, e afirmamos nossa existência.[...] Políticos
conservadores, religiosos fundamentalistas e homófobos em geral, que insultavam gente
anônima, agora terão que se defrontar com uma multidão de homossexuais com rosto e
identidade, que tem capacidade de ir às ruas em nome de seus direitos. Eles gostem ou não,
viemos para ficar. E é melhor ir se acostumando com a nossa presença, pois tudo leva a crer
que de agora em diante o fenômeno das Paradas tende a crescer como rastilho de pólvora e
se multiplicar em cada grande cidade brasileira (Trevisan, 1999: 42).
O escritor tinha razão. A parada alcançou a marca de 1,5 milhão de
participantes, a maior do mundo. Os rostos anônimos que ocupam as capas
da SG são os rostos e as identidades que vão às ruas, que se misturam e se
fundem no desejo coletivo, que é a própria liberdade do indivíduo.
Apesar da qualidade dos seus textos e da sua apresentação gráfica, tanto
no aspecto visual quanto técnico, a revista SG começa a perder o fôlego.
Nem mesmo o enorme número de pessoas famosas que dão entrevistas
conseguem reverter o fracasso financeiro que a levará ao seu fechamento.
As entrevistas são um ponto forte do periódico. Só no número 33, a
revista traz seis. A SG procurou apresentar personalidades que fizessem, e
ainda fazem, parte do imaginário gay, como o jogador de futebol Renato
Gaúcho, o atleta Robson Caetano, entre outros, ou famosos que assumem a
homossexualidade, como o diretor José Celso Martinez Corrêa, a cantora
Mart’nalia e o poeta Glauco Matoso, além de trazer personalidades do
mundo do entretenimento nacional e internacional, como Antônio
Banderas, Ney Matogrosso, Ney Latorraca, Ricky Martin, Melissa Ethridge,
Gilberto Braga, Silvio de Abreu, Costanza Pascolato, Maria Bethânia, entre
outros que concederam entrevista para a revista.
Políticos, intelectuais e acadêmicos também mostram a cara nas páginas
da revista. A deputada Marta Suplicy, o deputado Roberto Jefferson, os
escritores Mário Prata, Luiz Carlos Maciel e João Ubaldo, o geneticista
Renato Flores, o antropólogo Roberto DaMatta, o filósofo Olavo de
Carvalho, e muitos mais, falam sobre a homossexualidade sem
preconceitos. As entrevistas em forma de reportagem, como vimos
anteriormente, começaram com o jornal Pasquim, e unem fatos e
curiosidades da vida pública e particular das personalidades que de alguma
forma contribuem, para o bem ou para o mal, para a construção das imagens
dos rostos anônimos das paradas gays.
A partir do número 50, a revista torna-se quinzenal. Uma forma de
acelerar o seu fim. Isso foi a solução que Nelson Feitosa encontrou para
resolver os problemas com os assinantes, pois, desta forma, em três meses
ele cumpria sua palavra com aqueles que tinham feito uma assinatura
semestral. Com um novo projeto gráfico, agora já sem a participação de
Felipe Taborda, os seis últimos números pouco acrescentaram à história da
revista. Segundo o editor, se não fossem os assinantes, ele teria fechado a
revista três meses antes.
Nelson me contou que a relação com grandes anunciantes era muito
difícil: “É difícil convencê-los a anunciar. Muitas empresas têm dúvidas e
receios em associar sua imagem com o público gay”. De qualquer forma, a
revista foi pioneira em conseguir anunciantes que não pertenciam aos
serviços especializados de bares, boates, saunas, locadoras de vídeo,
revistas pornográficas, telesexo, turismo GLS etc., que, embora estivessem
mensalmente presentes na revista, não pagavam os custos. Mas mesmo os
grandes anunciantes, como a gravadora EMI (que se rendeu ao pedido de
Renato Russo para que ela colocasse anúncios), o projeto “O Globo em
Movimento”, a Ellus, a Yves Saint Laurent, a South African Airways, entre
outros, não pagavam o alto custo de impressão. Para se ter uma ideia, a EMI
pagava R$ 3.000 pela quarta capa, mas a gráfica cobrava R$ 18.000 para
imprimir a revista (dados de Nelson Feitosa). Além disso, só a gravadora
era constante. Os outros anunciantes apareceram duas ou três vezes.
Ninguém fez um contrato por meio do qual a revista pudesse prosseguir
sem preocupações financeiras. Segundo Feitosa:
De quanto a revista custou e de quanto que a gente arrecadava, era um problema que se
arrastava e que na verdade se arrastou durante toda existência dela, até a hora que a gente
teve que fechar. [...] Porque a gente poderia continuar rolando os problemas financeiros.
Porque a gente tinha nome, a gente tinha uma marca forte, a gente tinha prestígio. Então...
É... A gente poderia continuar rolando. Era assim que a gente fazia. O cara da gráfica, sabe?
Sabia que a gente não conseguiu pagar agora. Ah, tá bom... Então... Eu rodo a próxima. E aí
a gente caprichava na capa, arrumava uma pessoa mais difícil, ficava devendo, pagava...
[...] Então, eu perdi um pouco da vontade de prosseguir, porque eu já... A revista já estava
começando a se deteriorar. A dificuldade financeira vai se refletindo na qualidade, não tem
como, né? Já não tava... Sei lá! Todo aquele povo fantástico que teve o maior gás pra tocar
a revista há anos... É... Sabe? Já te pedi dez coisas... Eu vô te pedir mais uma? Sem receber,
entendeu? [...] Porque a revista passou do momento de se profissionalizar, entendeu? Foi
um trabalho pioneiro. Feito na garra, no sonho, no amor, mas que tinha que ter chegado um
momento em que o dinheiro tivesse entrado forte. Porque aí o que acontecia: A gente ia
pegar todo aquele gás, toda aquela criatividade e profissionalizar. A gente ia poder ter
estruturado ela pra ser mais competitiva. Como que eu vou colocar um departamento
comercial forte numa revista sem capital?
A revista se despede, sem se entregar à tristeza. Como é dito no último
editorial: “E a gente termina, podem acreditar, contente como a imagem
escolhida para a derradeira capa” (SG, n. 55: 4). A imagem escolhida para
dizer adeus é a foto de um belo rapaz de torso nu, sorrindo, olhando olhos
nos olhos do leitor.
A revista terminava, mas tinha mostrado que era viável produzir uma
boa publicação sem apelar para os ensaios de nu erótico, ou ser
exclusivamente política, no sentido de ter seções dirigidas para a prevenção
de doenças, campanhas contra violência, informações sobre movimento
GLBT etc. Como vimos, ela não se furtou a falar de todos esses assuntos,
mas pudemos perceber que a sua maior contribuição era levar alegria e
divertimento ao seu público. Mostrar para milhares de leitores, das mais
diversas regiões do Brasil, que ser gay não é necessariamente ser triste e
solitário, muito pelo contrário.
Figura 40 - Sui Generis número 55, o último sorriso.

4.4 Ver mais longe


Se a ideia de que a homossexualidade esteve sempre associada ao bom
gosto e ao estilo tinha sido rejeitada na apresentação visual do jornal
Lampião da Esquina, na Sui Generis esta ideia se afirma. A revista surge
pronta. Com um projeto gráfico que evidencia o valor informativo, a
saliência e o enquadramento (sistemas de inter-relação propostos por Kress
e Leeuwen), que agregam à composição um valor representativo mais
aparente. Além disso, as leis gerais para uma boa composição: a unidade e o
ritmo e as leis específicas são trabalhadas tendo em vista o leitor sofisticado
que a revista pretendia atingir.38 Taborda utiliza as estruturas do diagrama
(grid), sistema de organização da página, baseado na divisão vertical e
horizontal para acomodar textos e imagens, de forma clara, ousada e
satisfatória. O diagrama permite ao designer desenvolver diferentes
projetos, sem, todavia, fugir da estrutura predeterminada. De acordo com
Frances Butler, “para as idéias do senso comum, os pressupostos que
governam a cultura implicitamente, o sistema de diagrama e as frases curtas
e codificadas que ele suporta, fornecem um sistema de leitura simples,
aberto a todos os níveis de leitor” (Butlér, 1994: 94).
A maioria dos jornais e revistas usam o diagrama com a linearidade
horizontal, pois isto não traz nenhum esforço, nem físico, nem mental para
o leitor. Como vimos anteriormente, é dessa forma, com um diagrama fixo,
que o jornal Lampião da Esquina e o Nós Por Exemplo vão se apresentar.
“Ver mais longe” foi o título da matéria que a revista mexicana Lúdica,
especializada em design gráfico, deu para a reportagem de dez páginas com
o designer gráfico Felipe Taborda, diretor de arte da SG do número 19 até o
49. Na reportagem, a revista dedica quatro páginas para os projetos que
Taborda criou para a SG.
O editor Feitosa nos contou que Taborda tinha comprado a revista “por
curiosidade nas bancas, e tinha achado ‘muito naïf’, mas muito legal, assim
como o design e o conteúdo”. Feitosa acrescenta que o designer “ficou
louco com as possibilidades de um novo projeto”.
Figura 41 - Sui Generis número 23.

A primeira coisa que Taborda faz é trazer conceitos gráficos para as


aberturas de matérias, como vimos na matéria do ator Alexandre Frota; ou
na matéria “Uma tatuagem na cara da moral”, que fala dos grafites dos
banheiros públicos, quando os elementos visuais são apresentados como se
fossem um grande grafite na página da revista; ou na capa da edição 47; ou
ainda na matéria sobre a parceria civil da deputada Marta Suplicy, entre
outros. Na linguagem gráfica, Taborda usa e abusa dos espaços brancos,
sangra fotos, não tem receio de usar a linha. Espaços brancos, no design
gráfico, são sempre associados a projetos que denotam classe e sofisticação.
Conforme afirma Keith Roberson, “o design de qualidade desenvolveu uma
associação (um código) segundo o qual o espaço em branco é a principal
variável (ou signo). A presença do espaço em branco é um símbolo de
inteligência, de classe, de simplicidade, da essência do refinamento” (1994:
61).
O espaço branco é extravagância e ousadia, como a revista pretendia ser
e foi. Outra quebra dos cânones foi a “desarticulação” – em termos pós-
modernos – que Taborda fez do diagrama (grid). Taborda trabalha com a
grid, mas não só com sua estrutura bidimensional, isto é, com os espaços
verticais e horizontais. Ele o utiliza como um suporte tridimensional para o
texto e a imagem, criando assim novas direções para o ordenamento do
pensamento e da leitura. Estas experiências podem ser vistas,
principalmente, nas seções de moda da revista. Nestes espaços, o designer
pode mostrar as múltiplas possibilidades do diálogo entre o design e o
leitor. Conforme afirma Butler, “ler dentro de um diagrama desarticulado
está aberto apenas aos leitores esforçados e muito sofisticados. [...] O
diagrama desarticulado talvez reflita mudanças culturais profundas;
mudanças nas preferências de organização, quer dizer, mudanças na própria
maneira de compreender a informação” (1994: 94-5).
Não há dúvidas de que as experimentações gráficas de Taborda (e de
seus vários assistentes) na SG contribuíram para o seu sucesso, e,
consequentemente, para o avanço da comunicação e presença do universo
gay na sociedade brasileira.
4.5 Arte Final
No Lampião da Esquina os temas por mim levantados – a saber,
Violência, Ativismo, Aliados políticos, Comportamento sexual, Bichas e
travestis e Entrevistas – foram os protagonistas do jornal, e os elementos
gráficos desempenharam um papel secundário. Os fios, as rubricas das
seções, as fotografias, as ilustrações, a diagramação, e demais elementos
que constituem a linguagem visual, embora não possamos dizer que
propriamente passaram despercebidos, em alguns momentos foram
intencionalmente deixados em segundo plano.
A utilização, intencional ou não, de um projeto gráfico canônico que
apenas sustentasse as ideias dos editores foi uma das soluções encontradas
para viabilizar a existência do Lampião da Esquina, seja por motivos
ideológicos ou financeiros. Como vimos no capítulo II, somente nas capas
do Lampião houve um diferencial, que, ainda que contrastante com o corpo
do jornal, lhe conferiu uma identidade; da mesma forma que as singelas
rubricas que Patrício Bisso desenhou para algumas seções pareciam destoar
do todo. As outras seções eram destacadas apenas com um retângulo
vazado de cantos arredondados e os fios só foram usados para separar
matérias ou sublinhar seções, e não tiveram função mais importante
associada a um projeto visual. A tipografia utilizada foi sempre discreta e
muitas vezes sequer facilitava a leitura.
A fotografia, por sua vez, não teve nenhum destaque expressivo. Os
espaços brancos eram poucos, como se fosse preciso que todos eles fossem
ocupados. A economia da mídia acontecia na contramão da administração
de sua visualidade, o que saltava aos nossos olhos investigativos como uma
pouca importância dada à inevitável relação, em se tratando sobretudo de
um aparato midiático, entre forma e conteúdo. Mas é preciso considerar que
os temas e assuntos tratados não davam espaço nem dispunham de tempo
para investir nesses “outros” elementos, pois a urgência em informar e
esclarecer era mais importante, o que fatalmente seria compreendido,
naqueles momentos e contextos, como meros e dispensáveis adereços.
No Nós Por Exemplo os elementos visuais começam a ganhar destaque.
O jornal aparece num momento em que a informação é pontual e
direcionada. Os temas apreendidos no Lampião já não se fazem tão
presentes. Surgem novas reflexões. A linguagem visual gráfica passa a
ocupar mais espaço.
Isto é percebido, principalmente, pela maior utilização da fotografia.
Além disso, a diagramação, os fios, as rubricas são usados formalmente,
dando destaque para as fotografias, que passam a ocupar grandes áreas do
jornal, ao contrário, como vimos, do caso do Lampião da Esquina. O jornal
privilegia a imagem pictórica, mas a tipografia ainda não tem seu merecido
destaque. Por outro lado, se as capas do Lampião apresentavam uma
confusão visual, as capas do NPE são claras e objetivas. As fotografias dos
rapazes, que ocupam todo o espaço do suporte, tornam-se a identidade do
jornal, muito mais que o próprio logotipo, que tal qual o logotipo do
Lampião se “desestrutura” nos seus últimos números.
Como vimos anteriormente, alguns temas do fim dos anos 1970 ainda
são discussões no fim dos anos 1990. Se houve grandes transformações na
linguagem visual dos periódicos no fim do milênio, infelizmente alguns
temas, tais como a violência, ainda são destaques. Dos seis temas
categorizados em 1978, apenas três fazem parte do Ent& (Violência,
Comportamento sexual e Ativismo) e quatro da revista Sui Generis
(Violência, Comportamento sexual, Ativismo e Entrevistas).
Por outro lado, os elementos gráficos já não são coadjuvantes. Os fios,
até então discretos, aparecem, interferem, e tornam-se verdadeiros
personagens das páginas da revista SG. A tipografia é escolhida de acordo
com as matérias, e assume o papel de apresentar o texto ao leitor. Fotos
recortadas, fotos sangradas, detalhes, utilização do espaço branco, tanto na
Ent& como na SG, dialogam de igual para igual com o texto. As linguagens
visual e verbal passam a ter códigos próximos, reforçando aquilo que
afirmava Twyman: “as representações gráficas podem reforçar o sentido
dado pelo texto” (1985: 24).
Diferentemente do início da história da imprensa gay nos Estados
Unidos, quando as linguagens visual e verbal ganharam o mesmo destaque,
no caso do Rio de Janeiro o design gráfico não desempenhou um grande
papel. Anos mais tarde isso viria a mudar, e o design passou a ter papel
fundamental na consolidação e consistência das histórias narradas e
noticiadas pelos periódicos.

Pode ser considerada a primeira forma popular de acesso à internet; um precursor dos provedores
atuais.
Com a Out, nós adquirimos um nível de profissionalismo para as publicações gay até então nunca
vista.
Os anunciantes são a gravadora EMI, a Columbia Tristar Film, e a grife Sete Sete Cinco.
Isso nos Estados Unidos, porque no Brasil a homossexualidade nunca foi crime.
Roberta Close só faz a operação de mudança de sexo em 1989.
Segundo o Aurélio, “segurar firmemente com as mãos”.
Vampeta foi o primeiro de uma série de atletas que posaram nus para a revista G Magazine.
Um tipo de música que se originou nas discoteques. Tem como base rítmica a soul music, o funk e
ritmos latinos.
“O caubói representa a sociedade machista do faroeste” (Fischer, 1977).
“Segmento de uma história em quadrinhos, usualmente constituído de uma única faixa horizontal
contendo três ou mais quadros” (Cf. Dicionário Aurélio Eletrônico, 1999).
Festas inspiradas nas white parties americanas.
Artista finlandês que se tornou mundialmente conhecido por seus desenhos de homens fortes sempre
em posições eróticas, ostentando pênis enormes.
Jovens, não necessariamente gays, que frequentam o mundo feérico da noite das grandes cidades.
Boates da moda, raves, música eletrônica, DJs e moda alternativa são alguns dos elementos que
fazem parte da tribo dos clubbers.
A revista vai se tornar a primeira publicação gay a publicar fotos de homens famosos, atletas,
músicos, atores, todos com o pênis em ereção. Conforme afirma Robert Howes (2004: 292): “Na G
Magazine, os jogadores de pau duro servem, sem dúvida, para aumentar a venda, mas funcionam
também como um símbolo de contestação, subvertendo o ícone da sociedade de consumo
globalizado, a celebridade, como objeto mais tradicional e transgressivo do desejo homossexual
masculino”.
As leis específicas são as que usamos para alcançar as leis gerais. São elas: variedade, harmonia,
destaque, contraste, equilíbrio, simetria e intensidade e os elementos materiais. (Ver Collaro, 2000;
Hulburt, 2002; e Bonnici, 1999).
CONCLUSÃO
Apesar do passar do tempo, ainda é forte na minha memória a
lembrança do dia no qual recebi o envelope pardo contendo o número zero
do jornal Lampião da Esquina. Foi uma mistura de medo, ansiedade e
curiosidade. Eu conhecia algumas pessoas envolvidas no lançamento do
jornal, daí meu nome ter ido parar na mala direta dos produtores que
estavam escolhendo as pessoas que iriam receber o número experimental.
Lembro-me que corri para o quarto, tentando disfarçar a ansiedade e ocultar
o medo de ser pego com um jornal gay. O que seria um jornal gay? Que
tipo de matérias eu encontraria? Homens nus?
O jornal foi lido ao longo de semanas. Não podia lê-lo depois do almoço
ou no fim de tarde: o ato de lê-lo era algo secreto e quase sagrado. Depois
comprei o número 1, o número 2 e assim por diante. Mas durante todo esse
tempo o jornal era lido escondido. Não havia fotos de sexo, nem de homens
nus, mas eu pensava: “O que diriam meus pais se encontrassem o jornal?
Será que o fato de ter um jornal gay na minha casa indicaria a minha
orientação sexual, ou seria visto como mais um jornal dos muitos que eu
comprava?”.
Bem, essas são perguntas sem respostas. Meus pais já estão mortos e
antes de morrer sabiam da minha preferência sexual. De qualquer forma,
acho que durante os primeiros números a simples visão do jornal não
indicaria sua ideologia. Era mais um jornal como tantos outros dentro do
segmento que ficou conhecido no Brasil como “imprensa alternativa”.
Talvez isso se modificasse nos últimos números, quando ele passou a
estampar fotos de homens nus. Mas, para mim, o surgimento do jornal abriu
uma janela para um mundo que eu desconhecia. Um mundo no qual, apesar
dos preconceitos, poderíamos discutir nossas preferências sexuais sem
medo e sem embaraço.
Já tinha conhecido essa sensação maravilhosa quando tomei
conhecimento do jornal Pasquim. Apesar de na época ter apenas 15 anos, a
chegada do Pasquim às minhas mãos trouxe um mundo de novidades e
descobertas que o colégio não me tinha dado. A partir daí entrei de cabeça
no mundo da imprensa alternativa. Vários jornais passaram pelas minhas
mãos – políticos, ecológicos, psicodélicos, musicais... – até a chegada do
Lampião. Foram objetos que traziam textos e imagens que me ajudaram a
construir a minha identidade. Jornais e revistas, uns coloridos, outros em
preto e branco; uns sofisticados, outros mais humildes; mas todos contando
histórias, todos recriando o mundo em pequenas folhas de papel.
Não foi minha intenção discutir a importância do papel da imprensa
segmentada no Brasil ou no mundo, visto que isto é um fato. Minha
intenção foi mostrar o papel que os periódicos gays tiveram na construção
das diferentes identidades da comunidade homossexual. É sabido que a
condição homossexual é uma das mais discriminadas em todo o mundo ao
longo da história. Por isso, vejo que é muito importante para o leitor
homossexual, que desde a infância lê a vida pelo viés da culpa ou do
preconceito, ter acesso a leituras que contribuem para a valorização da sua
autoestima. Textos e imagens nos quais ele seja o protagonista da sua
história na História e possa contar suas estórias. Contos, romances, ficção,
reportagens e artigos sendo apresentados em duas ou três colunas, fotos
sangrando ou não, fios e cores, personagens dos periódicos que enredam o
leitor num mundo próprio e particular.
Como comentei anteriormente, os periódicos dirigidos às questões
homoeróticas também espelham as dúvidas, lutas e valores dessa
comunidade sem fronteiras sólidas. E acredito que esses periódicos façam
parte da rede de informação de grande parte da comunidade gay que vive
ainda clandestinizada, de certa forma invisibilizada dia após dia na
sociedade, ou seja, no universo do trabalho, das relações familiares etc.
Como afirmei ao longo deste trabalho, tanto quanto narrar a situação
social e política de um grupo em determinada época, jornais e revistas de
temática libertária indiciam as concordâncias que formulam o design
identitário desse grupo. É sob essa perspectiva que lemos a história da
imprensa gay brasileira, que a partir das últimas décadas do século XX
buscou elevar a voz dos homossexuais, voz silenciada pelo
conservadorismo da sociedade brasileira e suas reverberações políticas –
como a ditadura militar – em cujo período floresceram importantes
iniciativas de mídia impressa voltada para o universo gay.
O Lampião da Esquina, o primeiro a surgir, fez um trabalho quase de
catequese, mostrando que os homossexuais não eram os “bobos da corte”,
mas pessoas que também influenciam e ditam as normas na corte. Num
período de grande turbulência política no Brasil, o aparecimento do
Lampião, trazendo suas histórias de lutas e conquistas, “fez a cabeça” de
vários garotos que, como eu, também tinham suas histórias. Muitas delas ao
aparecerem nas páginas do jornal serviam de espelho para outras dezenas de
“entendidos”, “bichas”, “travestis” e “gueis”.
As conquistas sociais dos homossexuais, em grande parte do mundo
ocidental, quase desmoronaram diante da ameaça do vírus HIV.
Infelizmente, foi necessário um grande número de vítimas para que a
sociedade como um todo enfrentasse e freasse a epidemia da aids. O estrago
psicológico que se deu entre os gays só não foi pior porque eles próprios se
uniram em grupos solidários, criando ONGs, ou lançando jornais. O Nós
Por Exemplo foi uma mostra de cuidado e solidariedade para com os gays,
“homens que fazem sexo com homens”, bichas e travestis vítimas da
doença. Com esclarecimentos diretos e objetivos, o jornal ajudou não só
aqueles diretamente vitimizados, mas todos os interessados em lutar contra
o preconceito.
O pequeno ENT& veio para mostrar que tamanho não é documento.
Pequeno no formato e grande de conteúdo, o jornal ajudou a estabelecer a
ponte entre “homens que fazem sexo com homens” e os gays.
As vitórias devem ser comemoradas. E se possível com muita festa. A
segunda metade dos anos 1990 pode ser vista como a outra metade do fim
dos anos 1970: tempo no qual o hedonismo triunfava. Só que nos anos
1990, esse hedonismo vinha revestido de muito cuidado. Depois de anos de
recolhimento, os gays estavam novamente nas ruas, nos bares, nas boates,
nas raves. O jornal dá lugar à revista, veículo mais apropriado para tempos
de sofisticação, consumo e recursos tecnológicos. Com muita cor, muito
grafismo, uma audácia visual e contemporaneidade, a Sui Generis abriu
espaço para os novos personagens da história contarem suas estórias:
“bibas”, “barbies” e “drag queens” unem-se aos “gays”, “entendidos”,
“bichas” e “travestis”.
A criação de uma mídia voltada especificamente para determinada causa
significaria, portanto, mais que a armação de um instrumento de luta:
significou, sobretudo, a deflagração do questionamento criativo das
possibilidades identitárias de um complexo universo, historicamente
invisibilizado e reduzido, em expressão e força social, a uma
singularizadora e lesiva generalidade identificatória. Vemos na forma e no
conteúdo das diversas mídias gays indícios preciosos do que chamamos de
design identitário da multiplicidade das maneiras de acontecimento da
sexualidade homoerótica no Brasil, um design contemporâneo, e, portanto,
aberto a toda possibilidade de transformação e enriquecimento.
POSFÁCIO
Sou biba
Quando a gente chega todo mundo grita!
Faz maior escândalo só porque nós somos bibas.
Sou biba, sou biba e a minha presença incomoda,
Sou biba, sou biba, mas estou na moda!

ALGUNS ANOS DEPOIS


Em colaboração com Aldo Victorio Filho39
No segundo semestre de 2007, dois novos periódicos foram lançados no
mercado editorial brasileiro: Junior, pela editora Sapucaia, com sede em
São Paulo e DOM – de outro lado, pela editora Peixes, também, com sede
em São Paulo. As duas revistas têm em comum o mesmo público-alvo:
ambas são direcionadas para o público gay. Diferenciando-se de
publicações semelhantes, notadamente a G Magazine, revista gay de maior
sucesso de vendas até então, não apresentam ensaios de nu masculino,
ponto forte da G.
O fluxo comunicacional da “era da informação” vem oferecendo
inúmeros canais de contato pontual para os muitos grupos que afloram na
diversidade social contemporânea. Se, por um lado, o maquinário
mercadológico inventa afinidades e adesões nas mil e uma estratégias de
incentivo ao consumo, por outro, permite a visibilidade e o fortalecimento
desses canais que transbordam o mero contato e fortalecem a agregação de
certos grupos. A despeito do âmbito da sexualidade ter suas infinitas
possibilidades, ainda é inevitável lidar com a emblemática dualidade hétero
e homo. Se, para os primeiros, os canais midiáticos são disponibilizados em
qualquer órbita cultural e estão sempre prontos a atender qualquer nova
possibilidade de público consumidor, para os segundos ainda encontramos
certa limitação na produção de mídias específicas cujas edições se ocupem
de temática associada à orientação sexual. Em outros termos, que se
ocupem das culturas geradas em torno desta diferença. Contudo, a
“imprensa gay” brasileira, termo aqui utilizado com a intenção
identificadora, jamais redutória, tem sua história. Uma história marcada por
movimentações e territorialidades, a contrapelo de todas as dificuldades e
desafios de seus 30 anos40 de iniciativas.
Partindo desse espaço específico, sem desconsiderar as inúmeras
produções anteriores que pavimentaram o percurso da imprensa gay
brasileira, trabalharemos a territorialidade atual desses canais midiáticos.
Produções que no nosso entendimento, além de significarem avanços da
crescente conquista pelo reconhecimento da diversidade, são ricas fontes de
conhecimento direto ou indiciário de faces importantes da trama social que
faz o Brasil ser o que tem sido.
O interesse deste trabalho é observar a mudança do perfil dos
anunciantes desses novos magazines, e a partir desta avaliação contribuir
para a melhor compreensão do universo gay, como universo de grandes e
sutis diferenças culturais que de uma forma ou de outra fortalecem a
tessitura multicultural brasileira.
Se sublinharmos a força política dessas mídias, é preciso localizá-la no
contexto preciso da imprensa atual. Um periódico, para se sustentar, precisa
de anunciantes; as vendas nas bancas e as assinaturas não pagam as
despesas que a indústria gráfica demanda. A imprensa gay no Brasil, até
então, não tinha a presença de grandes marcas, nem serviços que não
fossem exclusivos do público gay anunciando em suas páginas. Os dois
periódicos mencionados trazem novos anunciantes e com estes um novo
jeito de vender seus produtos.
Os periódicos se transformaram, ao longo do tempo, em excelentes
veículos das histórias da vida e dos sonhos. Além disso, eles abrigam
inegáveis espaços de manifestação de opiniões acerca de qualquer tema que
guarde alguma coerência ideológica com suas linhas editoriais. Dessa
forma, é certo que colaboram para congregar determinados grupos que leem
as mesmas histórias e compartilham dos valores lá expressos, e que de
alguma maneira guardam identificação com seus leitores.
Tanto quanto narrar a situação social e política de um grupo em
determinada época, um jornal ou revista de temática libertária seleciona os
temas e assuntos que orientam e de certa forma fundamentam a constituição
e o fortalecimento de identidades dos grupos aos quais se destinam.
Como vimos anteriormente, no fim da década de 1970, um grupo de
intelectuais assumidamente gays, entre eles João Silvério Trevisan,
valendo-se do arrefecimento da repressão política brasileira, lança aquele
que é considerado o primeiro veículo de ampla circulação dirigido ao
público homossexual – o jornal Lampião da Esquina.
Durante toda sua vida o jornal teve pouquíssimos anunciantes, que não
chegaram a ocupar nem 1/3 de suas páginas. A maioria era de serviços, tais
como: advogados, cabeleireiros, saunas, bares etc., direcionados
exclusivamente ao público gay. Os grandes anúncios eram de filmes, tanto
brasileiros como estrangeiros. Alguns chegaram a ocupar uma página
inteira, como foi o caso de Bye, Bye Brasil, de Cacá Diegues.
Ainda sob as agruras da ditadura militar, o aparecimento do Lampião da
Esquina foi um marco na história editorial brasileira. Entretanto, não houve,
por parte do mercado publicitário, interesse em ocupar as páginas do jornal.
Característica também encontrada no começo da imprensa norte-americana.
As grandes empresas daquele país só iriam começar a explorar a imprensa
gay a partir dos anos 1990.
Outro periódico importante na história da imprensa gay brasileira foi o
jornal Nós Por Exemplo, que existiu de janeiro de 1991 até o segundo
semestre de 1995, organizado por um grupo de profissionais que, a partir da
experiência e do trabalho que desenvolviam nas áreas de saúde e de direitos
humanos, com ênfase no trabalho de prevenção à aids e Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DSTs), decidiram criar o Núcleo de
Orientação em Saúde Social (NOSS).
O surgimento do jornal Nós por Exemplo veio preencher várias lacunas.
Primeiro, tratava-se de uma iniciativa de um periódico direcionado à
comunidade gay/lésbica. Segundo, era um veículo no qual a aids podia ser
tratada de forma honesta e segura, livre do cunho moralista e
preconceituoso.
Na décima segunda edição, o jornal, graças a um financiamento oriundo
de fontes particulares, passou a ser distribuído gratuitamente, pois, assim
como o Lampião, o NPE não contava com os recursos de publicidade, até
porque tinha poucos anunciantes. E estes eram todos relacionados ao
próprio mundo gay: bares, saunas e discotecas. Neste aspecto não houve
mudanças em relação ao Lampião – grandes anunciantes ainda
desprezavam a imprensa gay brasileira. De acordo com Soares apud
Nunam,
se por um lado, algumas das publicações dirigidas ao público homossexual fazem sucesso
nos meios de comunicação; por outro lado, praticamente todos os veículos reclamam do
preconceito que sofrem por parte dos anunciantes, ainda limitados às empresas
especializadas nesse público: saunas, boates, termas, sex-shop, disque-sexo (Nunam, 2003).
Os anos 1990 apresentaram ainda várias inovações fundamentais em
termos de conquistas e visibilidade para o movimento homossexual
brasileiro (Trevisan, 2002: 376). E talvez a mais importante tenha sido a
criação do conceito GLS – Gays, Lésbicas e Simpatizantes.
Esses acontecimentos foram acompanhados pelo crescimento e
surgimento de novos e mais ousados estabelecimentos comerciais e
culturais direcionados ao público GLS. O “novo” esquema mercadológico
fez com que a mídia brasileira começasse a noticiar a existência de um
“mercado gay” – conceito norte-americano que chegou ao Brasil bastante
tempo depois de ser reconhecido e explorado nos EUA –, sobretudo quando
o mercado se deu conta do poder de consumo de certo segmento desse
público. Consequentemente o mundo publicitário passou a se ocupar desse
filão com especial atenção. Obviamente tratava-se de uma inequívoca
realidade, na medida em que muitos gays abastados moravam nos bairros
mais sofisticados dos grandes centros urbanos, eram assíduos
frequentadores de bares, restaurantes, boates e saunas, estabelecimentos
relativamente baratos, quando ainda eram em pequena oferta. Esta condição
era devida às contingências da sociedade conservadora, e, podemos inferir,
de um mercado desatento. Ainda não eram estimulados empreendimentos
neste setor específico de entretenimento.
A revista norte-americana One, de outubro de 1954, já trazia anúncios
de roupas masculinas. Assim como a gastronomia e as viagens, estes
produtos eram artigos para os mais abonados. Uma surpreendente rota de
visibilidade e afirmação viria a se dar justo pelas errâncias e avanços do
mercado. Sempre existiu uma parcela considerável da classe média gay,
que, além de acostumada a certo consumo, representava uma preciosa
possibilidade de ampliação de mercado. Tratava-se, sem dúvida, de um
grupo numérica e economicamente expressivo que sempre transitou entre o
mundo hétero e o homo; e naquele momento, no qual a luta era pela
igualdade em todos os planos sociais, as “delícias” do capitalismo surgiam
como novo e poderoso cenário de fulguração. Na medida em que o mercado
se torna a crucial instância da legitimação e da autorização dos trânsitos
sociais, o universo gay, embora representado pelos economicamente
favorecidos, consome à luz do dia. Em outros termos, usufruem como
nunca a legitimidade e a visibilidade de seu acontecimento social.
Adriana Nunam (2003) diz que a primeira pesquisa sobre o consumo
gay foi feita em 1968, através dos leitores da revista Advocate, mas somente
a partir dos anos 1990 é que surgiram agências de publicidade
especializadas no mercado gay. Os consumidores gays são descritos pelos
publicitários como exigentes, sofisticados, fiéis a marcas de qualidade, e
com propensão a consumir mais artigos de luxo, bens ou serviços culturais
e de cuidados pessoais. O que os publicitários perceberam é que naquele
momento existiam condições para fazer publicidade direcionada para este
segmento, pois “exigentes, sofisticados, fiéis a marcas de qualidade” não
são características exclusivas dos homossexuais. O que estava acontecendo
é que o mercado, e a reboque deste, a sociedade, começava a vê-los,
sobretudo os pertencentes à classe média, como importantes consumidores
em potencial. Ou seja, que poderiam ampliar muito sua performance de
consumo, significando, desta forma, uma promessa de lucros de forma
alguma desprezível.
Atualmente o conceito de “mercado gay” ocupa espaços cada vez mais
nobres da mídia. Surpreendentemente distante das matérias das primeiras
páginas dos jornais, que só abriam seus espaços para a exploração do
sensacionalismo dos escândalos comportamentais, a radicalidade moral
culturalmente hegemônica, tão bem representada nas mídias, parece ter
definitivamente absolvido este grupo que, não coincidentemente, o
maquinário capitalista reconheceu como fonte de promissoras
possibilidades de lucros. A revista Isto É Dinheiro, de junho de 2006,
trouxe uma significativa abordagem deste tema, justamente quando quase
dois milhões de “GLS” participavam da Parada do Orgulho Gay de São
Paulo. Certamente o evento popular que mais envolveu e conquistou a
simpatia da população da maior cidade brasileira.
Anos depois, em junho de 2009, a Parada do Orgulho Gay de São Paulo
está citada na primeira capa das versões online dos jornais Folha de S.
Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e JB, os mais importantes do país,
com público estimado em mais de 3,5 milhões de participantes,
movimentando aproximadamente R$190 milhões só com o turismo na
cidade de São Paulo.
Em 1995, em busca de uma nova possibilidade dentro do mercado
editorial do mundo gay, no qual encontravam-se apenas publicações com
ênfase no erotismo, sobretudo via exploração do nu masculino e dos contos
eróticos, surge uma nova revista: a Sui Generis. A revista investe numa
possibilidade de afirmação gay através de temas como cultura,
comportamento, moda e entrevistas com grandes nomes do meio
artístico/político nacional. A Sui Generis apostava numa postura militante
sem os excessos e o estilo do ativismo dos anos 1970.
A revista norte-americana Out, uma das inspirações da Sui Generis,
apareceu no mercado norte-americano em junho de 1992. Ela foi e ainda é o
maior sucesso dentro das glossy gay magazines – “revistas gays brilhosas”,
ou revistas impressas em papel couché. Estas revistas, que surgiram a partir
dos anos 1990, se caracterizam por mostrarem gays e lésbicas socialmente
bem-sucedidos; uma visão parcial e glamourizada da cultura gay pós-
Stonewall e pós-aids. Estas revistas indicam uma notável mudança no perfil
dos seus leitores. Trata-se, enfim, do nascimento de uma “cultura” em
sintonia com os gays jovens, belos e bem-sucedidos.
Out foi a primeira revista gay a ter anunciantes, tais como Banana
Republic, Calvin Klein, Giorgio Armani, Benetton e Tommy Hilfiger.
Conforme Michael Goff, presidente e editor da revista: “With Out, we
brought a level of professionalism to gay publication that hasn’t been there
before” (Streitmatter, 1995: 330). O que as glossy magazines queriam era
alcançar o mesmo espaço e predominância que revistas como Elle,
Cosmopolitan e Marie Claire, entre outras, haviam conseguido junto ao
público heterossexual. Para isso, era necessária outra sorte de militância, era
fundamental ter uma visão de mercado, atitudes e ações compatíveis com a
lógica abraçada. Afinal, os objetivos desta imprensa eram outros... De todo
modo, e em um contexto mais amplo, estas publicações não deixaram de ser
um instrumento de legitimação, não apenas dos gays, mas da
homossexualidade em geral, e consequentemente sublinharam, a seu modo,
a relevância da diversidade cultural.
A explicitação do desejo exacerbado pelo belo não existia apenas nas
revistas. Os anos 1990 foram também um tempo no qual a “boa” aparência
física foi entendida como sinônimo de saúde. O corpo magro e esquálido
passou a ser evitado a todo custo, pois remetia inevitavelmente à ideia de
doença, e não mais a uma doença mítica romantizada, mas a uma ameaça de
terrível concretude. As revistas, sem o exclusivo compromisso com certa
militância, finalmente atraem grandes anunciantes, sobretudo os ligados à
moda, os quais irão disputar o patrocínio de suas páginas.
Em entrevista para esta pesquisa o editor da Sui Generis falou que a
relação com grandes anunciantes era muito difícil: “É difícil convencê-los a
anunciar. Muitas empresas têm dúvidas e receios em associar sua imagem
com o público gay” (Feitosa, 2005). De qualquer forma, a revista foi
pioneira em conseguir anunciantes que não pertenciam aos serviços
especializados de bares, boates, saunas, locadoras de vídeo, revistas
pornográficas, telessexo, turismo GLS etc., que, embora estivessem
mensalmente presentes na revista, não pagavam os custos. Mas, mesmo os
grandes anunciantes, como a gravadora EMI (que se rendeu ao pedido de
Renato Russo para que ela comprasse espaços para seus anúncios), o
projeto “O Globo em Movimento”, a Ellus, a Yves Saint Laurent, a South
African Airways, entre outros, não chegavam a pagar o alto custo de
impressão. Para se ter uma ideia, a EMI pagava R$ 3.000 pela quarta capa,
mas a gráfica cobrava R$ 18.000 para imprimir a revista (dados do editor).
Além disso, só a gravadora era constante. Os outros anunciantes
apareceram duas ou três vezes. Ninguém fez um contrato com o qual a
revista pudesse contar e assim prosseguir com segurança e sem
preocupações financeiras.
É importante observar que as marcas que anunciavam na Sui Generis,
com raríssimas exceções, não desenvolveram anúncios visando
explicitamente o público gay e, sete anos após o desaparecimento da Sui
Generis, as revistas Junior e DOM surgem trazendo mudanças
significativas, não necessariamente em seus conteúdos, mas notavelmente
em seus espaços publicitários.
Em janeiro de 2008, período em que escrevemos este artigo, a Junior já
estava no seu segundo número. Hoje ela se encontra no seu segundo ano, no
décimo primeiro número. Esta revista veicula anúncios de grandes marcas
tais como: Diesel, Calvin Klein, Alexandre Herchovitch, Fnac, OLLA,
Reebok, Foch, entre outras. São produtos, na sua maioria, dirigidos a um
público pertencente às classes média e alta. Público sofisticado que
consome esses produtos e incorpora suas estéticas. Alguns anunciantes
como Calvin Klein e Diesel são fetiches de uma parcela da comunidade
gay. Se a inserção destas marcas de alguma forma poderia ser esperada, por
seus produtos e design representarem objetos do desejo em certas culturas
gays, o que salta aos olhos é a presença da livraria Fnac e dos preservativos
OLLA propondo um diálogo direto com o leitor gay.
O anúncio da livraria, que ocupa uma página inteira, é sua marca vazada
num quadrado listrado com as cores do arco-íris, ligeiramente rotacionado
sobre um fundo da mesma cor do quadrado. No pé da página a palavra
“diversidade” e seu significado em forma de verbete de dicionário. A
propaganda da OLLA ocupa duas páginas. A imagem remete à “Criação do
Homem de Michelangelo”. Nesse caso, uma mão masculina oferece uma
camisinha à outra mão masculina. O Brasil foi um dos países pioneiros nas
campanhas de saúde com distribuição de preservativos. Porém, sempre
limitou os discursos dessas iniciativas à preservação da saúde. Já o anúncio
da OLLA não fala em preservação. Denuncia objetivamente o preconceito e
enfatiza a liberdade sexual.
Na revista DOM, número 1, janeiro de 2007, algumas marcas se
repetem, tais como: Diesel, Calvin Klein, Fnac, OLLA. O anúncio do
preservativo repete a mesma imagem, com texto diferente, mas continua
trazendo uma mensagem de liberdade. Outras marcas parecem não temer a
associação do seu nome com o mundo gay. Encontramos, nas páginas da
DOM, marcas anunciantes como a VIVO, Vinícola Salton, Viagens TAM,
Air Canadá, Roberto Simões Casa, Revista Gula, Espumante Miolo,
Samsung, entre outras. Como podemos observar, marcas que não fazem
parte necessariamente do imaginário gay procuram estabelecer uma relação
de cumplicidade com um novo leitor. A agência de viagens TAM produz
um reclamo de duas páginas no qual se vê um casal inter-racial de dois
rapazes abraçados, como se estivessem fazendo uma refeição, e a chamada
diz: “Nessa viagem, assumi um lado que ninguém conhecia: o lado turista”.
Um jogo de palavras! A grande novidade seria a oferta de viagens com os
preços acessíveis que a agência promete. A orientação sexual de quem viaja
não traz nenhuma relevância. Outra marca que faz um anúncio direcionado
é a Roberto Simões Casa, uma marca conhecida no ramo de produtos
sofisticados para uso doméstico. O anúncio mostra duas colheres
encaixadas e acompanhadas da seguinte chamada “os melhores momentos
começam em casa!”. Pela forma e posição das colheres a associação com a
homossexualidade é quase óbvia, especialmente o lesbianismo.
Provavelmente é significativo o número de lésbicas que podem e investem
na sofisticação e conforto de suas casas.
Na última década a questão da união civil para pessoas do mesmo sexo
ocupou um grande espaço no noticiário, não só impresso, mas também
televisivo. Muitos homossexuais foram às ruas protestar pelo direito de
“casar”. Daí que não é de se estranhar que marcas especializadas em
produtos domésticos não temam ter seus nomes associados a uma
publicação gay. Além da Roberto Simões Casa, encontramos a Douval, a
Divanos e a Tocane, oferecendo produtos que vão de máquinas de fazer
café, mobiliário, até adega climatizada.
Ainda que essa publicidade seja destinada a um público de alto poder
aquisitivo, observando esses novos periódicos, podemos afirmar que
mudanças ocorreram. A imprensa gay amplia sua circulação e os
anunciantes já não temem associar seu nome ao comportamento gay.
A intenção deste estudo foi também mostrar o papel desempenhado
pelos periódicos gays na tessitura das diferentes identidades da comunidade
homossexual. E como a publicidade, que tardiamente percebeu as
possibilidades desses universos, também concorreu com a luta das
populações gays. É sabido que a condição homossexual é uma das
condições mais discriminadas em todo o mundo ao longo da história. Por
isso, defendemos outras leituras para essas publicações facilmente
redutíveis, numa visão desatenta, à mera indústria cultural subserviente ao
capitalismo. Sem dúvida que as agruras e divisões decorrentes das práticas
capitalistas são facilmente identificáveis nessas mídias, contudo, sabemos
que cada leitura é uma leitura, e no caso específico da “imprensa gay” nos
interessa destacar que, a despeito da colonização mercadológica, essas
páginas trazem a afirmação de imagens bastante distintas daquelas que são
impostas à maioria dos homossexuais como seu espelho. Ou seja, imagens
encolhidas pela culpa e desbotadas pelo preconceito. O que ousamos
destacar dessas ricas impressões é o que veiculam de espelhamento da
beleza. A beleza do outro, que a despeito das ordenações culturais
antagônicas, fortalece os indivíduos e anima todas as tessituras sociais,
mesmo as menos ortodoxas que, a despeito das oficialidades dos dogmas e
de qualquer interesse material, são indiscutivelmente elementos
constituidores da sociedade e alimentadores da vida em qualquer sintonia
que venha a vibrar.
Este texto é parte do que foi apresentado no EneCult, na Universidade Federal da Bahia em 2008.
Tendo como base o lançamento do jornal Lampião da Esquina.
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