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IMPRESSÕES DE IDENTIDADE:
Um olhar sobre a imprensa gay no Brasil
R 696
Rodrigues, Jorge Caê
Impressões de Identidade: um olhar sobre a imprensa gay no Brasil / Jorge Caê Rodrigues —
Niterói: EdUFF, 2010.
190 p. : il. ; 23 cm. — (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)
Bibliografia. p. 185
ISBN 978-85-228-0544-0
1. Imprensa 2. Cultura I. Título II. Série
CDD 070.48
No Brasil e no Rio não temos uma imprensa gay como a dos Estados
Unidos. Apesar de já ter mais de 30 anos o lançamento da primeira
publicação gay brasileira, o investimento nesta área é ainda muito parco.
Compreendo como imprensa gay as publicações periódicas que orientam
sua linguagem verbal, assim como a linguagem gráfica, para leitores que se
identificam como homossexuais. Assim como uma “imprensa afro”
congregaria publicações dirigidas às pessoas que se identificam como
afrodescendentes.
Este livro é o resultado da minha pesquisa e de um enredamento de
vários interesses meus, tanto no plano intelectual, como no afetivo. Minha
formação e atuação profissional é de designer, e no campo do design tenho
especial interesse pelos objetos produzidos pela cultura de massa. Minha
formação e atuação cidadã, por outro lado, me levou a participar do início
do movimento homossexual brasileiro. Fui integrante do Grupo Somos-Rio
e do Grupo Auê. Estive presente no primeiro Encontro Nacional de Grupos
Gays e Lésbicas, que aconteceu em São Paulo, em 1980, e fui um dos
fundadores do Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual, grupo
que desde 1993 trabalha pelos direitos de gays e lésbicas. Desta forma,
sinto-me à vontade para investigar os discursos apresentados nas
publicações dirigidas ao público homossexual na, por vezes, tímida, mas
expressiva, imprensa gay carioca.
1. A literatura comparada e o design gráfico como espaço
plural
Karl Erik Schollhammer nos diz que:
O campo da Literatura comparativa é um “campo expandido” que continua abrindo-se para
outras áreas, outras disciplinas e para um leque de temas não estritamente literários,
recolhidos às vezes sob o rótulo de “Estudos Culturais”, que cruzam as fronteiras
tradicionais entre as ciências humanas, sociais e exatas (2001: 28).
A partir dessa afirmação, pergunto: como situar o design nesse campo?
Eu acredito que a própria natureza do objeto propicia esta inserção. Um
periódico é feito de textos e imagens – elementos textuais e não textuais –
que obedecem a um ordenamento estético-formal determinado pelo
designer. O design gráfico cumpre, assim, seu papel de promover uma
espécie de interlocução, um diálogo entre o objeto e o usuário. Gustavo
Bomfim nos diz que “o design é uma práxis que confirma ou questiona a
cultura de uma determinada sociedade” (2000: 150). Impossível negar que
vivemos hoje numa sociedade cada vez mais dominada pela cultura da
imagem. Nos diferentes aspectos da “aldeia global”, a cultura visual é de
extrema importância. Conforme afirma Maurizio Vitta:
O objeto, no nosso sistema, é, ao mesmo tempo, um signo de identificação social, um
instrumento de comunicação, uma imagem para uso, um simulacro opressivo, um fetiche e
uma ferramenta. O design só pode ser um instrumento de análise social, uma área de
intervenção na vida cotidiana, uma linguagem, uma moda, uma teoria da forma, um
espetáculo, um fetichismo, uma mercadoria. (Vitta, 1989: 35)
E podemos ver os periódicos como um dos objetos do mundo da cultura
material que sintetizam todos esses atributos. Angela McRobbie, analisando
Jackie, uma revista para adolescentes femininas dos anos 1970, diz que a
revista “[...] é um sistema de mensagens, um sistema de significados e
portador de uma certa ideologia, a qual lida com a construção da
feminilidade adolescente”. A revista, segundo a autora, “opera para
conquistar e moldar o consentimento dos leitores para com um determinado
conjunto de valores” (McRobbie, 1991: 82).
Acompanho o pensamento de McRobbie e estendo sua afirmação para
as revistas segmentadas para o público gay. Os periódicos dirigidos às
questões homoeróticas também espelham as dúvidas, lutas e valores desta
comunidade. E acredito que os periódicos façam parte da rede de
informação de grande parte da comunidade gay que vive ainda
clandestinizada, de certa forma invisibilizada no dia a dia da sociedade.
As histórias e estórias desses periódicos, além dos processos de criação
das possíveis identidades do sujeito, serão a investigação que nosso trabalho
pretende realizar na imprensa dirigida ao público gay. A investigação das
tensões forma/conteúdo de alguns importantes periódicos gays terá como
elemento central o próprio design identitário formulado por e para este
grupo.
Em grande parte do planeta, os anos 1960 foram marcados pela
emergência dos movimentos sociais das minorias – mulheres, negros e
homossexuais –, cada qual à sua moda, ou melhor, criando suas formas,
lutando para afirmar sua cidadania. Os homossexuais, que até então viviam
suas vidas invisíveis para a sociedade e isolados dentro da sua própria
comunidade, passam a exibir um novo padrão histórico de
homossexualidade. Gays e lésbicas iniciam um movimento de emancipação
como forma de negar a posição inferior que a sociedade hegemônica lhes
tinha reservado. Este novo movimento acabou por constituir uma nova
“cultura gay”.
Este trabalho pretende averiguar os desdobramentos da cultura gay, que
toma vulto a partir dos anos 1970, refletidos nas publicações periódicas que
trataram e tratam de suas questões e que surgem no Brasil a partir do fim
daquela década. Pretendi documentar a formação desta imprensa específica
e observar a relação entre a ideologia expressa no discurso verbal destes
periódicos e no discurso gráfico apresentado em suas páginas.
O levantamento desses objetos é necessário à pesquisa por propiciar
uma maior compreensão da possível construção de uma identidade gay
nacional e da história da imprensa gay no Brasil. Para a análise do discurso
(linguagem) verbal, recorri aos editoriais e, em alguns casos, às
reportagens; para analisar o discurso (linguagem) gráfico, abordo o design
gráfico desenvolvido para os periódicos e as mudanças visuais ocorridas ao
longo da sua existência, aqui apoiado na ideia barthesiana de que “a
imagem se transforma numa escrita, a partir do momento em que é
significativa [...] Entendendo que por linguagem, discurso, fala, etc., toda a
unidade ou toda a síntese significativa, quer seja verbal ou visual” (Barthes,
1993, p. 132-3. Grifo do autor).
Há muito se discute a homossexualidade de diferentes formas e com
múltiplas abordagens. Dentro dos “novos movimentos sociais” que
emergiram durante os anos 1960, o movimento gay foi aquele que talvez
mais dificuldades teve para se estabelecer, ou nas palavras de Stuart Hall
(2000), para encontrar sua “política de identidade – uma identidade para
cada movimento”. Como em toda forma de legitimação, foi necessário criar
todo um aparato de valores, ideias e discursos. E os periódicos, entre as
várias formas de mídia da sociedade moderna, levam estas informações de
forma direta e acessível.
Não tenho dúvida de que a imprensa desempenha um papel muito
importante na sociedade. Como nos diz Woer e Gregorius: “The printed
medium makes our affiliation visible. Many people display their favorite
magazine on coffee tables to signal their attitudes to others” (1998: 25).1
Ainda podemos ver os periódicos como contadores de estórias
(storytelling). Aqueles que recriam o mundo para o leitor e criam um senso
de comunidade.
Parafraseando Schollhammer, minha abordagem se situa na relação
entre o que o texto “faz ver” e o que a imagem “dá a entender” para
delinear o projeto/design do regime representativo de um determinado
momento histórico e cultural. O design desempenha também um papel de
tradutor e mantenedor da sociedade na qual ele se inscreve. O designer
italiano Alberto Alessi fala que o design tende mais para arte e poesia do
que para tecnologia e mercado (apud Couto & Oliveira, 1999). Na nossa
sociedade, os objetos assumem cada vez mais o papel de interlocutores dos
indivíduos, expressando valores, status e personalidade. Alessi se refere à
tensão que teve origem no século XVIII, quando a mecanização trazida pela
primeira revolução industrial vai criar a distinção entre a esfera artística e a
esfera produtiva, tensão esta que se intensificará no século XIX,
configurando uma separação de atividades até então vistas como unas. A
partir daí vamos ter as chamadas “arte pura”, enaltecendo o espírito, e a
“arte aplicada”, feita para a produção, para a esfera econômica. As pessoas
compram objetos visando ao prazer intelectual ou espiritual.
Na área das ciências humanas e sociais, cada vez mais os estudos
tendem a ser interdisciplinares, uma vez que isolar uma disciplina de outra
significa deixar de lado um saber que pode ser imprescindível para a
compreensão do objeto em questão. A necessidade de interdisciplinaridade
na produção do conhecimento funda-se no caráter dialético da realidade
social – que é, ao mesmo tempo, una e diversa – e na natureza
intersubjetiva de sua apreensão.
O conhecimento que se constitui se amplia ou se modifica, não decorre
de uma arbitrariedade racional ou abstrata. Advém da própria complexidade
da forma através da qual o homem se constrói enquanto ser social e
enquanto sujeito e objeto de conhecimento social.
2. Os leitores e suas diferentes identidades
As grandes mudanças gráficas nos periódicos gays aparecem
paralelamente à necessidade da afirmação e das possíveis manifestações da
homossexualidade.
Dentro da proposta do professor Schollhammer – “uma abordagem aos
Estudos Culturais a partir da relação entre discurso e visibilidade” (2001:
28) –, e com a hipótese de que há uma mudança no design gráfico que
acompanha a mudança dos desejos e expectativas dos leitores, proponho-
me a fazer uma análise comparativa entre o discurso verbal (a partir dos
editoriais e das reportagens dos periódicos gays), e o discurso visual (a
partir dos elementos estéticos-formais destes objetos). Com isso, pretendo
mostrar como estas mudanças refletem a construção e afirmação das
inúmeras facetas identitárias da cultura gay.
O conceito de identidade será trabalhado dentro da perspectiva dos
Estudos Culturais. Isto é, o conceito de identidade não é fechado. A
identidade se dá através da diferença. Uma identidade depende, para existir,
de algo fora dela: quer dizer, outra identidade. De acordo com Stuart Hall,
As identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez
mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente
construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser
antagônicos (Hall, 2000: 108).
A identidade é marcada pela diferença e construída por meio de
símbolos. Outra questão importante para os Estudos Culturais é a dinâmica
dos sistemas simbólicos. Conforme afirma Kathryn Woodward:
É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e àquilo que somos. A representação é compreendida como um processo
cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais
ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que eu poderei ser?
Quem eu quero ser? (2000: 17).
A representação é vista, neste caso, como um sistema de signos. Ela
expressa-se por meio de diferentes linguagens, tais como as artes plásticas,
a fotografia, o cinema, a literatura, o design, além de circular também pela
vida cotidiana e o mundo do trabalho.
A despeito de a produção teórica a respeito da identidade gay ser vasta,
e de esse tema guardar estreita relação com o trabalho aqui apresentado, não
a restringirei a nenhuma teoria específica, mesmo porque a discussão de
qualquer uma destas não caberia nas páginas deste livro.2 O que interessa à
pesquisa aqui apresentada é que pessoas que têm exigências comuns
tendem a experimentar vivências coletivas e, desta forma, a criar um
fortalecimento a partir da noção de pertencimento (Goffman, 1983). Dito de
outra forma, muitos homossexuais partilham das mesmas vivências, dores e
alegrias, e, consequentemente, se reconhecem nas necessidades do coletivo,
no qual, neste caso, se inserem ou se identificam como pertencentes.
Também procuro evidenciar que a identidade gay é um aspecto da
identidade de um indivíduo. Como disse Trevisan (2000: 40): “[...]
[homossexual] será um adjetivo a mais num conjunto inevitável de
qualificativos, que definirá alguém como homossexual além de brasileiro
ou inglês, nordestino ou gaúcho, jovem ou velho, alto ou baixo, etc.”
Não é demais afirmar que
a homossexualidade é uma infinita variação sobre um mesmo tema: o das relações sexuais e
afetivas entre pessoas do mesmo sexo. [E] ... que não há nenhuma verdade absoluta sobre o
que é homossexualidade e que as ideias e práticas a ela associadas são produzidas
historicamente no interior de sociedades concretas e que são intimamente relacionadas com
o todo destas sociedades (Fry & MacRae, 1983: 7-10).
Muito embora este livro não se ocupe centralmente de uma nova
discussão sobre o universo da homossexualidade, pretendo, como já
afirmei, fortalecê-la com a investigação do design.
Segundo Foucault (1988), as questões que envolvem sexo e sexualidade
humana foram motivo de exaustivos estudos das esferas de poder a partir do
século XVIII. As liberdades comportamentais, “uma certa franqueza,
discursos sem vergonha, anatomias mostradas”, tudo isso se cala a partir do
século XVII. A repressão à sexualidade vai estar intimamente ligada às
relações de poder e saber. No século XVIII dá-se a multiplicação dos
discursos sobre o sexo, não só no campo do fazer, descobrir, ensinar, como
também no exercício do poder:
[...] é a primeira vez em que, pelo menos de maneira constante, uma sociedade afirma que
seu futuro e sua fortuna estão ligados não somente ao número e à virtude dos cidadãos, não
apenas às regras de casamentos e à organização familiar, mas à maneira como cada qual usa
seu sexo. O sexo não se julga, administra-se (Foucault, 1988: 9,22,27 e 28).
Esta administração do sexo e dos papéis socialmente criados e impostos
a cada indivíduo quase nunca vai estar de acordo com o desejo e a
orientação sexual de cada um. E algumas práticas sexuais, entre elas a
sodomia, foram vistas, revistas, discutidas e analisadas à luz de “controle
pedagógico e tratamentos médicos”. E o sujeito ator dessas práticas passa a
ser visto como uma persona: o homossexual, trazendo consigo as ideias de
homossexualismo e homossexualidade (a prática e o caráter do
homossexual). Conforme afirma Jurandir Costa (1992: 44), “A atual divisão
dos homens em homossexuais e heterossexuais é tão arbitrária e datada
quanto qualquer outra”. E tão pobremente reducionista.
Este mesmo autor propõe que os termos “homossexualismo” e
“homossexualidade” sejam substituídos pelo termo “homoerótico”, cunhado
em 1911, por F. Karsh-Haak e utilizado por Sandor Ferenczi, psicanalista
contemporâneo de Freud. As palavras “homossexualismo” e
“homossexualidade” carregam consigo o preconceito, pois elas remetem ao
vocabulário científico-moral dos séculos XVIII e XIX, quando foram
criadas, e desta forma sua utilização reforçaria tal preconceito
institucionalizado. Homoerotismo, segundo Costa, é uma noção mais
flexível e que descreve melhor a pluralidade das práticas ou desejos dos
homens same sex-oriented (Ver Costa, 1992; e Nunan, 2003). Sem
desprezar esta contribuição, usarei os termos “homossexual”, “gay”, e
“homossexualidade” indistintamente. A palavra homossexualismo
aparecerá sempre que os periódicos estudados a ela assim se referirem.
“A mídia impressa torna nossa afiliação visível. Muitas pessoas colocam sua revista predileta sobre a
mesa de centro para demonstrar suas atitudes para os outros” (1998: 25).
A esse respeito, ver: Goffman (1983); Fry & MacCrae (1983); Costa (2002), e Nunan (2003).
CAPÍTULO I
PRIMÓRDIOS DA IMPRENSA GAY NOS
ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL
1.1 A imprensa gay nos Estados Unidos
A década de 1950 foi uma das mais retrógradas na história para os gays
norte-americanos. As posições do Senado e as posições anti-homossexuais
do senador Joseph McCarthy fizeram do período um dos mais repressivos
para a comunidade homossexual. Porém, dentro do processo histórico, as
relações da economia capitalista, a industrialização, a socialização da
produção e o crescimento urbano criavam um contexto no qual o desejo
homossexual começava a se manifestar e a se constituir em identidades
mais definidas, seja no âmbito pessoal, seja socialmente. Segundo John
D’Emilio: “Conforme homens e mulheres que se sentiam atraídos por
pessoa do mesmo sexo foram assumindo uma autodefinição de
homossexual ou lésbica, começavam a buscar outros como eles, e aos
poucos foram criando uma vida de grupo” (D’Emilio, 1998: 22).
O alistamento de milhares de homens e mulheres nas forças armadas
americanas durante a Segunda Guerra Mundial traz intensas mudanças na
expressão sexual destes recrutas. Centenas de homens e mulheres que
sentiam atração por pessoas do mesmo sexo de repente encontram-se sós,
longe de seus familiares, tendo à sua volta somente homens ou somente
mulheres. Esta situação acabou proporcionando uma atmosfera na qual,
ainda que de maneira camuflada ou escondida, eles puderam manifestar
seus desejos homoeróticos. De acordo com D’Emilio, as condições
incomuns da guerra permitiram que os homossexuais se expressassem mais
facilmente:
As pessoas que já chegaram a uma autodefinição como homossexual ou lésbica
encontraram melhores oportunidades durante a Segunda Guerra para conhecer outros como
eles. Ao mesmo tempo, aqueles que experimentavam uma forte atração pelo mesmo sexo,
mas se sentiam inibidos de agir, subitamente tinham relativamente mais liberdade de iniciar
um relacionamento homossexual (D’Emilio, 1998: 24).
Ao fim da guerra e depois de terem vivido experiências muito pessoais,
a volta dos recrutas (homens e mulheres) ao cotidiano de suas pequenas
cidades de origem não será tranquila. Muitos deles não conseguem se
adaptar ao ambiente hostil prevalecente nas pequenas cidades. Nova York,
Los Angeles e San Francisco serão algumas das grandes cidades nas quais
eles vão tentar se estabelecer como cidadãos plenos. E, neste caso, a
identidade sexual não podia mais ser negada.
É neste contexto de mudanças e afirmações que surge em Los Angeles
aquele que viria a ser o primeiro periódico feito por e dirigido a uma
comunidade homossexual, neste caso específico, para as lésbicas. Em 1947,
uma jovem secretária, usando o pseudônimo de Lisa Ben (anagrama de
LESBIAN), lança o jornal Vice-Versa.
Rodger Streimatter, em seu livro Unspeakable: The Rise of The Gay and
Lesbian Press in America (1995), nos fala do jornal de Lisa Ben, uma
lésbica californiana. Ele era feito de forma artesanal. Ela datilografava
usando o recurso do papel carbono. Lisa Ben fazia 12 cópias, as quais
distribuía pessoalmente, pedindo que após a leitura o jornal fosse passado
adiante.
Segundo Streitmatter, o Vice-Versa parecia mais um trabalho acadêmico
do que um jornal. De acordo com o autor,
essa aparência comunica um forte sentido de precisão, muito diferente das imagens não-
conformistas e aleatórias, comuns entre publicações de movimentos sociais. Essa forma
altamente convencional sugere que uma outra característica a distinguir a imprensa gay e
lésbica seria um forte compromisso com a forma e a aparência (Streitmatter, 1995: 16).
Streitmatter e D’Emilio falam da importância dos primeiros periódicos
para a vida dos gays e das lésbicas. Streitmatter diz que
o feito mais importante foi que as revistas, de fato, falavam. Criavam um espaço nacional
para os homossexuais, uma arena na qual lésbicas e gays poderiam, pela primeira vez, falar
um tom acima de um sussurro sobre assuntos fundamentais de suas vidas. As revistas
davam a uma minoria oprimida uma chance de exprimir pensamentos que antes haviam
sido barrados do discurso público. Os leitores admiravam a coragem exibida pelos editores
(Streimatter, 1995: 18).
D’Emilio atesta que “este esforço pioneiro de publicar revistas sobre a
homossexualidade trouxe ao movimento gay sua única vitória significativa
durante os anos 1950” (D’Emilio, 1998: 115).
Os primeiros periódicos impressos de forma industrial e distribuídos
nacionalmente nos Estados Unidos vão surgir também na Califórnia. Em
1953 foi fundada a One; em 1955, a Mattachine Review; e, em 1956, a The
Ladder. Estas três publicações se mantiveram por mais de 12 anos.
Em 1950 existia em Los Angeles a Mattachine Society. Esta sociedade
secreta tinha sido criada por um grupo de homossexuais, com fortes
tendências esquerdistas, para discutir o papel do homossexual na sociedade.
Eles enfatizavam a contribuição que os homossexuais tinham dado à
sociedade, e além disso participavam de programas assistenciais, tais como
doação de sangue, doação de roupas em hospitais etc.
Durante esses primeiros anos, a visão dos homossexuais era uma visão
para dentro de si próprio. Existia uma culpa internalizada em grande parte
da comunidade homossexual. O papel da Mattachine Society era procurar
soluções para seus “problemas” na medicina e/ou na lei, ao mesmo tempo
que pediam tolerância para a sociedade.
Talvez, para os fundadores da One, isso não fosse algo consciente
naquela época. Mas, de alguma forma, eles deviam saber que transpor a
barreira das reuniões secretas para a comunicação em público foi um ato de
profundo impacto político. E o mais importante é que estes periódicos
constituíram o primeiro foro público onde gays e lésbicas puderam pela
primeira vez discutir assuntos fundamentais para sua vida. Estas
publicações pioneiras estavam preocupadas não só com o conteúdo, mas
também com a aparência.
Aos poucos desaparece o mimeógrafo e as pequenas publicações
começam a usar a impressão off-set, o que contribui para dar aos jornais
uma aparência mais profissional. O processo de impressão off-set possibilita
novos desafios no design dos periódicos. De acordo com Streitmatter:
[...] outra característica das publicações dos anos 1950 que refinou um elemento introduzido
pelo seu predecessor girava em torno do design. Ben demonstrou um compromisso forte
para com a aparência de sua revista, e os fundadores de One e The Ladder levaram esse
compromisso adiante, usando elementos gráficos arrojados e imagens cativantes para tornar
o design um dos elementos mais distintivos das publicações. One enfatizou ainda mais o
visual ao introduzir imagens sugestivas de homens, destinadas a se tornar um ingrediente
básico da imprensa gay (Streitmatter, 1995: 49).
Em janeiro de 1953, um grupo de amigos que vinham se encontrando
secretamente com intuito de discutir um “problema” que os atingia resolveu
lançar a revista One. O problema deles era a homossexualidade de cada um,
que já não sabiam como esconder. Segundo Streitmatter, eles estavam
cansados de falar para si próprios. Era chegado o momento de falar com
outras pessoas.
Figura 2 - Capas e páginas internas da One. Elegante e sofisticada, a revista foi um marco para o
movimento gay norte-americano.
Figuras 5 e 6 - Jornal Advocate, volume 2, número 9, setembro de 1968, (capa) a Advocate passa a
ser uma revista, número 232, setembro de 1978, (capa).
Expressão utilizada pela comunidade gay que significa “não assumir-se”, “não divulgar sua
homossexualidade”, isto é, “ficar escondido dentro do armário”.
São fontes que parecem mais desenhos do que propriamente letras. Não se destinam a textos
corridos.
“Publicar o que a imprensa heterossexual não publicaria” (Streitmatter, 1998: 88).
“Parabéns para nós! Nascemos. E como toda criança, somos, e seremos por um tempo, desajeitados,
desengonçados, cheios de inocência, e talvez até um pouco feios, exceto, é claro, aos olhos de nossos
pais. Os homossexuais, mais do que nunca, estão em campo para conquistar seus direitos legais, pôr
fim às injustiças cometidas contra eles, experimentar seu quinhão de felicidade à sua maneira. Como
jornal, o objetivo principal do Advocate é publicar as notícias que são importantes para o
homossexual – passos legais, notícias sociais, acontecimentos das várias organizações – qualquer
coisa que o homossexual precisará ou quererá saber. Existimos para servir você, mas não podemos
fazê-lo sem a sua ajuda” (The Los Angeles Advocate, n. 1, set, 1967: 6).
“Você está empregado e é um cidadão útil e responsável. Você tem um corpo atraente, boas roupas e
um lar convidativo. O ‘Homem do Advocate’ vive a boa vida – malhando, frequentando bares várias
noites na semana, enriquecendo sua sexualidade gay, lendo literatura e apreciando arte” (Advocate, n.
29, jan, 1975: 3).
“O sexo era o oxigênio das nossas vidas. Stonewall presenteara os homens gays com uma noção
visceral de liberdade, e definimos isso, literalmente, como dar-nos licença de nos deliciarmos com
múltiplos parceiros sexuais e realizarmos uma variedade infinita de fantasias sexuais” (Jim Kepner
apud Streitmatter, 1995: 194).
“A cobertura jornalística agora consiste em artigos sobre como os gays estão se aproximando do
status quo, sem falar nada sobre o que fazem os grupos ativistas. No passado poderíamos pensar em
dois grupos adversários – gay e antigay –, porém, não mais ‘o inimigo está entre nós’” (apud
Streitmatter, 1998: 186).
Título de uma música de Gilberto Gil, LP Gal Costa, Philips, 1969.
Expressão que surge na década de 1970, e que traduzia o comportamento de alguns jovens que
tinham como política a liberdade sexual, o uso das drogas e a música, em contraste com outros que
aderiram à luta armada.
Extraido do livro Além do Carnaval de James Green.
CAPÍTULO II
O PRIMEIRO LAMPIÃO É ACESO
O legado mais importante da “Rebelião de Stonewall” foi ela ter se
transformado de um simples momento de emoção à flor da pele em um
movimento de racionalização, de sistematização da luta, de inauguração e
prolongamento de ações políticas que deixarão marcas profundas nos
corpos e mentes de gays e lésbicas. Depois que a tormenta passou, foi a vez
dos jornais e revistas da imprensa gay manterem acesa a lembrança daquela
semana nas cabeças e corações de sua comunidade e de toda a América.
Rodger Streitmatter (1995) conta-nos que somente nesse período (os
meses seguintes a Stonewall) apareceram em Nova York quatro jornais:
Gay, Come Out!, Gay Times e Gay Flames; na costa do Pacífico surgiram
vozes radicais: Gay Sunshine e San Franciso Gay Free Press; em Boston
tivemos o Lavender Vision; em Detroit, o Gay Liberation; e o Killer Dyke,
em Chicago. Estes foram alguns dos mais importantes periódicos que
surgiram logo depois do incidente de Stonewall.
Os periódicos sempre foram bons comunicadores das histórias da vida e
dos sonhos. Além disso, eles criam verdadeiros espaços de manifestação de
opiniões acerca de um certo tema, com alguma coerência ideológica entre
si, e colaboram para congregar um determinado grupo de pessoas que leem
a mesma história e compartilham dos valores ali expressos, e que de alguma
maneira se identificam com eles. Por isto, jornais e revistas são um campo
da inevitável ação do design gráfico, responsável por estabelecer um
equilíbrio entre forma, conteúdo e função, num mecanismo de amarra de
comunicação para os leitores. De certo modo, posso dizer que o design
gráfico tem um grande peso no sucesso de mercado ou não dos novos
periódicos.
De acordo com Richard Buchanan (1989), o designer, em vez de
simplesmente criar um objeto ou coisa, está criando, de fato, um argumento
persuasivo que se aviva sempre que um usuário contemplar ou usar um
produto. Ou ainda, conforme Rafael Cardoso Denis (1998: 35): “A função
do designer é fazer colar – aderir mesmo – significados de outros níveis
bem mais complexos do que aqueles básicos que dizem respeito apenas à
sua identidade essencial”. O design é responsável por articular numa
linguagem complexa um processo de enunciação que envolve relações
ontológicas, históricas, atributos simbólicos, materiais, técnicos etc. Trata-
se de uma tecnologia aplicada à criação, produção e veiculação da mídia
visual, bem como dos diferentes discursos assumidos nas suas diversas
manifestações. Nessa perspectiva, o designer também é um construtor de
discurso. Ele ocupa o lugar de intermediar o processo comunicacional.
Segundo Kress e Leeuwen: “O design visual, como a língua, na verdade
como todos os modos semióticos, desempenha duas funções principais –
uma função de produzir ideias, representando o mundo ao redor e dentro de
nós, e uma função interpessoal, articulando as interações sociais com
relações sociais” (Kress & Leeuwen, 2000: 13).
O design é uma área intersticial, que se avizinha e se estende por
diversas áreas. Para Gustavo Bomfim (1998): “O design, do mesmo modo
que qualquer outra atividade do processo extremamente complexo e
dinâmico do trabalho social, é orientado por um conjunto de objetivos de
natureza política, ideológica, social, econômica, etc.” O design gráfico, por
sua vez, é uma das especialidades dentro do próprio design. Ele articula
questões que são maiores e muitas vezes distantes da sua esfera de ação
tradicional como mera arte aplicada, pois trata de associar elementos da
comunicação social, das artes plásticas, da arquitetura etc. com a indústria
cultural como um todo.
Streitmatter (1995) nos leva a uma detalhada viagem pela imprensa gay
americana, mostrando o papel importantíssimo que os periódicos tiveram e
continuam tendo para a construção e afirmação de um movimento com
ideias e identidades próprias. De acordo com o autor, circulam nos Estados
Unidos cerca de 850 publicações endereçadas ao público gay/lésbico.
No Brasil, como veremos a seguir, ainda demoraria para que gays e
lésbicas pudessem ter canais formalmente concebidos e elaborados para
veicularem seus interesses e opiniões, e sobretudo servirem de instrumento
agregador de diversos grupos. Diferentemente dos Estados Unidos, só em
1978 surge no Brasil o primeiro periódico nacionalmente distribuído e
dirigido a este público, que ajudou a semear o que viria a ser o movimento
gay brasileiro: o Lampião da Esquina.
2.1 Nasce uma cultura gay organizada (?)
O surgimento do Lampião da Esquina faz parte do inconformismo
diante da repressão e do conservadorismo que se abatia sobre uma parcela
da sociedade brasileira. O Lampião foi o primeiro, em nível nacional, a
abordar a questão da homossexualidade, além de lutar contra a repressão e o
preconceito fortemente recrudescidos durante a ditadura militar. Entretanto,
como indiquei no capítulo anterior, de maneira discreta e reservada outras
publicações circulavam por pequenos grupos. Entre os anos 1960 e 1970
muitos periódicos direcionados para o público gay surgiram e
desapareceram no Rio de Janeiro. Fora do Rio, um dos lugares mais
significativos em termos de imprensa homossexual foi Salvador. Entre 1963
e 1978 várias publicações datilografadas, mimeografadas ou xerocadas
circularam entre a comunidade gay, conforme atesta Marcus Assis Lima
(2001) em seu ensaio sobre a imprensa homossexual no Brasil.
No Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, o movimento gay
organizado começou efetivamente na segunda metade da década de 1970.
Em 1976, o escritor e jornalista João Silvério Trevisan tentou formar um
grupo para discutir a homossexualidade. Dos poucos que compareciam aos
encontros, grande parte era reticente em falar publicamente de seus medos e
anseios, ou em assumir a sua sexualidade. Esta iniciativa inspirou outras
ações com o mesmo objetivo, as quais, ainda que não tenham logrado êxito,
marcaram o panorama inicial de um rico movimento. Mas foi o começo!
No fim da década de 1970, um grupo de intelectuais assumidamente
gays, entre eles o próprio Trevisan, valendo-se do arrefecimento da
repressão política brasileira, lançam aquele que é considerado o primeiro
veículo de ampla circulação dirigido ao público homossexual – o jornal
Lampião da Esquina. A ideia do jornal surgiu a partir da visita ao Brasil do
editor Winston Leyland, da Gay Sunshine Press, de São Francisco,
Califórnia. Ele veio à procura de autores brasileiros para fazer uma
antologia da literatura gay latino-americana. Pode-se dizer que o
lançamento do jornal, em abril de 1978, fortaleceu a ação de alguns rapazes
de São Paulo, organizadores de um grupo que se tornaria responsável por
consolidar o movimento homossexual no Brasil – o Grupo Somos (Cf.
Green, 1999). Com seus textos longos e comprimidos em letras pequenas,
que só não atrapalhavam mais a leitura porque a vontade de lê-los era maior
do que a crítica que podíamos fazer na época, o Lampião da Esquina
iniciava um novo capítulo para a história da construção e da afirmação de
uma identidade gay no Brasil.
2.2 Um lampião na esquina
No fim da década de 1970 começa a chamada “distensão política”, ou
seja, a rigidez do controle social começa a arrefecer. O Lampião da Esquina
faz resistência, enfrenta a moral conservadora da esquerda e o pragmatismo
da direita. Poucos jornais da imprensa nanica refletiam as mudanças
comportamentais pelas quais o mundo e o Brasil estavam passando. A
preocupação maior era discutir os caminhos que a política brasileira viria a
tomar, ou, como se dizia na época: “É necessário unir-se pela luta maior!”
Um ano antes de o Lampião da Esquina ser lançado, Júlio César
Montenegro, Genilson Cezar, Ronaldo Brito e Caio Túlio Costa publicaram
O Beijo. Embora não se tratasse de um jornal para homossexuais, O Beijo,
de vida curta (durou apenas seis edições), foi o primeiro a discutir o prazer
como forma de luta e modo de vida. Nessa época, as teorias de William
Reich eram recuperadas na Europa, e de certa forma aportaram em alguns
setores da sociedade brasileira. Conforme afirma Kucinski (2003): “O Beijo
foi um refinado produto da imprensa alternativa. A radicalidade levada às
últimas conseqüências. Sua diagramação era ousada, concretista”.
Diferentemente do Lampião da Esquina, que nos seus três anos de vida
manteve o mesmo sisudo e conservador projeto gráfico.
Lançado em 1978, ano eleitoral que marcou o início da abertura política,
o Lampião chegou aos primeiros leitores através de uma mala direta
organizada pelos editores e por uma rede de amigos. O número zero do
jornal foi entregue na casa de alguns escolhidos, protegido por um envelope
de papel pardo, como forma de não comprometer quem o recebesse. Na sua
capa, duas grandes chamadas: no alto da página, logo abaixo do logotipo,
“Homo eroticus – um ensaio de Darcy Penteado”; no meio da página,
ladeada de retratos, a chamada principal: “Celso Curi processado. Mas qual
é o crime deste rapaz?” (Figura 1, p. 18). Segundo Edward Macrae (1990),
a primeira tiragem foi de 10 mil exemplares, sendo logo aumentada para 15
mil.
A possibilidade de afirmar uma identidade gay no Brasil foi fruto de um
processo que começou gradativamente nos anos 1950 e 1960 e reflete uma
intricada rede de múltiplos fatores. É durante o final da década de 1970 que
o número de estabelecimentos, tais como bares, saunas e boates, voltados
para os homossexuais se expande consideravelmente, principalmente no
eixo Rio-São Paulo, proporcionando novas oportunidades para os gays
interagirem. Além disso, por essa época, referências a movimentos sociais
americanos chegavam até o Brasil, influenciando uma nova posição com
relação à sexualidade. Podemos citar ainda peças com temas gays, que são
montadas com sucesso, como a produção de 1971 de “Os rapazes da
banda”, sucesso off-Broadway de 1968 e “Greta Garbo, quem diria acabou
no Irajá” em 1974, que ficou vários anos em cartaz. Em 1975 Aguinaldo
Silva lança seu livro Primeira carta aos andróginos. No ano seguinte Darcy
Penteado publica A meta. No mesmo ano Gasparino Damata edita Histórias
do amor maldito. Todos esses acontecimentos representaram uma inédita
expansão do campo da polêmica e da “protagonização” da
homossexualidade. Isso acaba por se refletir na linha editorial do Lampião,
que com o tempo passa a ser o porta-voz de discursos inflamados sobre
sexualidade, no que ela tem de positivo e criador, atingindo milhares de
leitores ávidos de poderem ver-se espelhados nas páginas do jornal.
Tanto quanto narrar a situação social e política de um grupo em
determinada época, um jornal ou revista de temática libertária seleciona os
temas e assuntos que orientam e de certa forma fundamentam a constituição
e o fortalecimento de identidades dos grupos a que se destinam. Como
afirma Kathryn Woodward, “as identidades adquirem sentido por meio da
linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas. [...]
Existe uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que uma
pessoa usa” (2000: 8-10).
A criação de um novo veículo de comunicação, seja ele impresso ou
não, deve significar, portanto, bem mais que a criação de um instrumento de
luta. Trata-se do questionamento criativo das diversas possibilidades
identitárias de uma parcela da população historicamente invisibilizada por
uma singular e lesiva generalidade identificatória. Ainda de acordo com
Woodward, quaisquer que sejam os conjuntos de significados construídos
pelos discursos, eles só podem ser eficazes se nos recrutam como sujeitos.
Os sujeitos são, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles próprios,
assumi-lo como indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si próprios.
As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem
nossas identidades (2000: 55).
É assim que compreendo a apresentação, no título do editorial número
zero, da proposta do jornal: “Saindo do gueto”. O Lampião surge com a
proposta de criar uma consciência homossexual, assumir-se e ser aceito. A
leitura de um trecho do editorial do número dois – que tem por título
“Homossexualismo: que coisa é essa?” – é bastante conclusiva a este
respeito: “Por essa razão a maioria dos homossexuais tem desejado ser
‘normal’ e durante toda a vida recalca e esconde seus sentimentos
verdadeiros, numa tentativa de condicionamento nessa ‘normalidade’”.
Como se pode ver, o discurso é o de ser aceito, e, se possível, dentro da
normalidade.
Por questões de encaminhamento, farei uma apresentação do número
experimental separadamente dos outros, que serão apresentados e
analisados individualmente e/ou em grupos.
O número zero do Lampião
O número zero chamava-se apenas Lampião. A partir do número um, o
cabeçalho do jornal traria o nome Lampião da Esquina.13 O Conselho
Editorial do jornal foi formado por 11 pessoas: os jornalistas Adão Costa,
Aguinaldo Silva, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Gasparino
Damata e João Antônio Mascarenhas; o artista plástico Darcy Penteado; o
crítico de cinema Jean-Claude Bernardet; o antropólogo Peter Fry; o poeta e
crítico de arte Francisco Bittencourt; e o cineasta e escritor João Silvério
Trevisan. Aguinaldo Silva desempenhava a função de coordenador de
edição. Na sua apresentação o Conselho diz que, além de traçar a linha
editorial do jornal, também escolherá os livros que a editora publicará.
E assim começou o Lampião, cheio de esperanças...
O jornal aparece com sete seções: “Opinião” (o equivalente ao
editorial); “Ensaio” (duas vezes); “Esquina” (seção com artigos e notas
variadas); “Reportagem”; “Literatura” (duas vezes); “Tendência” (seção
cultural que se divide em “Livro”, “Exposição” e “Peça”); e “Cartas na
Mesa”. A partir do número cinco é publicada uma nova seção, “Bixórdia”,
de fofocas em geral.
Figura 9 - Lampião, número 0, abril de 1978, (capa).
*
Por muito tempo, grande parte da sociedade tinha no seu imaginário a
ideia de que os homossexuais eram pessoas mais refinadas, mais sensíveis,
e estavam sempre ligados ao bom gosto e ao estilo. Crenças que eram fruto
do preconceito e da intolerância. Tais características sempre foram, ao
longo da história, atribuídas às mulheres, ao feminino. Desta forma todo
homem que fosse gentil ou demonstrasse sua sensibilidade era
imediatamente visto como homossexual.
Esta ideia de refinamento e delicadeza dos gays foi totalmente
subvertida na apresentação visual do Lampião. Com manchas gráficas
pesadas, poucos claros, uma diagramação dura e de pouca inventividade, o
jornal tinha como preocupação maior o seu discurso verbal. Diferentemente
das primeiras publicações americanas, que valorizaram o papel do design
gráfico nos periódicos, no jornal Lampião a transgressão não estava no
campo gráfico, apesar de contar com um artista plástico entre seus editores.
O miolo do jornal não surpreende os leitores. É como se a severidade da
forma respaldasse a seriedade do conteúdo.
No Brasil, alguns tabloides da imprensa alternativa, principalmente os
que adotaram o discurso da contracultura, foram concebidos com bastante
ousadia nos seus designs. Eles tinham uma estética psicodélica, ou então
surrealista, muito em moda na época, talvez uma consequência das
experiências com as drogas. Era um tempo marcado pela busca do novo e
as drogas foram um caminho, entre tantos, às vezes complementar, às vezes
central.
Mas não só os que adotaram a contracultura trouxeram um novo
discurso visual. O pioneiro deles, o Pasquim, é um exemplo. De acordo
com José Luiz Braga, “o projeto gráfico, a paginação, a titulação, a
tipografia, a ilustração se organizam para dar a cada página uma unidade
gráfica de objeto visual. [...] É interessante assinalar que na Biblioteca
Pública Municipal de São Paulo o Pasquim não está classificado na seção
Imprensa, mas em Arte” (1991: 158).
Além do jornal O Beijo, já citado anteriormente por sua diagramação
ousada, outros jornais ressaltavam a apresentação visual, como aponta
Kucinski (2003). O jornal Repórter, lançado em 1977, foi um tabloide que
ganhou muita popularidade pelo seu alto teor “naturalista e, no limite,
escatológico”. Usando chamadas típicas dos jornais populares, “o jornal
retratava a fome, a promiscuidade, os assaltos, os estupros, o analfabetismo
[...]. Um cotidiano abjeto de miséria agravada pela recessão econômica de
1981”. Ainda de acordo com Kucinski:
À ruptura editorial com o padrão alternativo corresponde uma ruptura gráfica. A
diagramação criada pela artista gráfica Pitsi Munk vale-se de aplicativos fortes, em
vermelhos, fotos inclinadas, resultando num visual ágil e agressivo, diferenciado em relação
à maioria dos jornais em circulação, alternativos ou não (2003: 290).
Os jornais em que os temas políticos eram predominantes – ou como
chama Kucinski, “os revolucionários” – adotaram dois caminhos. O
primeiro, um rigor gráfico, como vemos no Opinião, “o mais influente
jornal de toda imprensa alternativa dos anos 70”. Elifas Andreato, jovem
designer do sul do país, desenvolveu um projeto que causou espanto pela
qualidade do seu visual. “A diagramação elegante, as caricaturas a traço
fino de Cássio Loredano e Luís Trimano, e detalhes, como uma seção de
xadrez, conferiam ao jornal o desejado classicismo” (Kucinski, 2003: 315).
O segundo caminho foi o da impureza visual. O jornal Movimento, outro
grande alternativo da época, sofrendo os danos causados pela censura
prévia, não se preocupou com sua forma. Ainda segundo Kucinski:
Tinha a diagramação mais pesada do que a d’Opinião, com textos longos e tijolados, em
corpo oito e até em corpo sete. Suas charges e desenhos eram rudes devido ao pouco tempo
disponível entre a aprovação do rascunho pela censura e a confecção da arte final (2003:
355).
Como podemos ver, a preocupação com a linguagem gráfica era um
ponto em comum entre os jornais alternativos.
A relação entre forma e conteúdo encontrada no Lampião da Esquina
vai mudar ao longo da história dos periódicos da imprensa gay. A partir dos
anos 1990, a linguagem visual vai ganhar tanta importância quanto a
linguagem verbal, mas, durante a sua existência, o Lampião, com raríssimas
exceções, mudou pouca coisa em termos gráficos.
O Lampião era publicado com rígidas colunas. Fios grossos acima e
abaixo delas sustentavam o texto, e uma moldura retangular de cantos
arredondados era empregada para diferenciar as seções; mas se tratava de
elementos que apenas sublinham o texto, não apresentando inovações
gráficas. De um modo geral, a página do jornal como um todo tem pouca
força visual. O “valor informacional, a evidência e o enquadramento”, os
sistemas propostos por Kress e Leeuwen, não são enfatizados.
O Lampião utiliza a composição visual padrão, ou seja, aquela baseada
em blocos horizontais e/ou verticais, e não traz nada de novo ou criativo. As
matérias são dispostas ocupando o número de colunas estabelecidas na
mancha gráfica do periódico. Essa forma de diagramar tende à monotonia e
ao cansaço visual. Com exceção das páginas dedicadas a poesias, todo o
resto do jornal mantém-se preso ao diagrama das quatro colunas. O texto é
ainda impresso com corpo de letra muito pequeno (nove, e em alguns casos,
oito), prejudicando consideravelmente a legibilidade da página.
Em sua maioria, a composição das páginas do Lampião obedece a um
design simétrico, que é relativamente simples de criar, uma vez que nesse
tipo de design, com múltiplas opções e tensões provocadas pela inexistência
de um centro definido, é muito mais complexo para se alcançar um
equilíbrio. Um bom exemplo de uma página assimétrica é a página dupla do
jornal/revista Bondinho. Há um número em que a multiplicidade da persona
do cantor Caetano Veloso se espalha pelas páginas sem nenhuma direção
rígida.
Exemplos de páginas simétricas podem ser encontrados no número 3
(jul-ago/1978). Neste caso a simetria sufoca a expansividade da
entrevistada; a página é pesada e incomoda o leitor. Não se veem aqui os
sistemas propostos por Kress e Leeuwen. Já no número 10 (mar/1979), a
simetria se enquadra perfeitamente na reportagem.
Antônio Moreira, arte-finalista do número 24 até o último, explica que
quando ele chegou à redação o jornal obedecia a uma rotina: “O Aguinaldo
Silva levava todo o material para o Jornal do Comércio e lá ele fechava o
Lampião, contando com o diagramador do dia e da hora. Não existia, até o
número 24, um arte-finalista permanente”. Isto pode explicar a falta de um
projeto mais próprio e estável, que trouxesse uma identidade visual para o
jornal, que corroborasse seu papel político na sociedade da época.
No expediente do número zero a “arte” é atribuída a Ivan Joaquim e
Mem de Sá. Ivan permanece somente até o número dois. Moreira (2005)
acredita que tenha existido um projeto gráfico para o número zero:
Normalmente o número zero você leva um, dois, três meses pra fechar. Faz o teste, volta...
Então ele tem até um acabamento gráfico um pouco melhor, menos “empastelado”, menos
erros, né?
Porém, ao que tudo indica, a preocupação com as questões estéticas
também fazia parte das preocupações do Corpo Editorial. Como mencionei
na seção anterior, na edição número 3 encontra-se um pequeno “recado”
intitulado “Desafio aos cartunistas”. Nele os editores convocavam
chargistas e caricaturistas para ilustrar e colocar um pouco de humor no
jornal, pois não há jornal sem o desenho de humor. A nota anunciava ainda,
para o número seguinte, a colaboração do artista multimídia Patrício Bisso,
que passaria a desenhar alguns selos ou rubricas para as seções.
É a partir do número 4 que também encontraremos o artista plástico
Hildebrando de Castro ilustrando algumas reportagens. As já referidas
rubricas de Bisso vão aparecer junto às seções Reportagem, Tendências e
Literatura. São desenhos a bico de pena que remetem ao art noveau;
ilustrações com detalhes, um certo requinte e um pouco de humor.
A rubrica para a seção Reportagem é de uma figura andrógina em frente
a um microfone; na seção Tendências a mesma figura aparece rodeada de
livros, discos, paleta de cores; na seção de Literatura a imagem é a de uma
mulher (uma pin-up) deitada lendo um livro. As três ilustrações de Bisso
dão um certo frescor ao Lampião. Contrastando com a rigidez da
diagramação, seu traço foi forte o bastante para enriquecer o jornal.
Contudo, o requinte e o humor sofisticado de Patrício Bisso não foram
absorvidos pelo jornal. As vinhetas desaparecem a partir do número 26. As
ilustrações de Castro, diferentemente das de Bisso, têm um humor mais
cáustico, e aparecem em número tão reduzido que quase passam
despercebidas.
As capas
Como em todos os jornais, a capa desempenha um papel
importantíssimo. É o elemento de convencimento ou sedução do leitor. É
ela que atrai o leitor para a compra. Segundo Kucinski (2003), as capas dos
jornais da imprensa alternativa de um modo geral se caracterizavam muito
mais pelo uso da imagem do que do texto, e as capas do Lampião da
Esquina não fugiram à regra. Elas chamam bastante a atenção, seja pelo uso
de uma segunda cor, além do preto, seja pelo uso de uma linguagem verbal
e visual apelativa. O leitor é capturado pelas imagens e pelas chamadas de
conotações dúbias e sensacionalistas.
De acordo com Gilberto Strunck (2001), quando um nome ou ideia é
sempre representado da mesma forma, podemos dizer que ele tem uma
“identidade visual”. Esta identidade visual é composta pelos elementos
gráficos que irão formalizar a personalidade visual de um nome, ideia,
produto.
Um dos aspectos mais interessantes da capa do Lampião é a
representação gráfica de seu nome, traduzida no logotipo e no símbolo no
cabeçalho da capa. O símbolo era posicionado à esquerda do logotipo. A
palavra “lampião” era grafada em fonte egipciana, e as palavras “da
esquina”, em corpo menor, com fonte bastão alinhada à direita e abaixo da
palavra “lampião”. Esta representação, assim como todo o cabeçalho, vai
sofrer pequenas mudanças no final de vida do jornal. No título do jornal, a
palavra “lampião” é empregada com duplo sentido: num primeiro
momento, ela simboliza a luz que ilumina; noutro, faz referência ao
cangaceiro Lampião. O símbolo é seu rosto estilizado.
Figura 15 - Lampião, número 18.
Pode ser considerada a primeira forma popular de acesso à internet; um precursor dos provedores
atuais.
Com a Out, nós adquirimos um nível de profissionalismo para as publicações gay até então nunca
vista.
Os anunciantes são a gravadora EMI, a Columbia Tristar Film, e a grife Sete Sete Cinco.
Isso nos Estados Unidos, porque no Brasil a homossexualidade nunca foi crime.
Roberta Close só faz a operação de mudança de sexo em 1989.
Segundo o Aurélio, “segurar firmemente com as mãos”.
Vampeta foi o primeiro de uma série de atletas que posaram nus para a revista G Magazine.
Um tipo de música que se originou nas discoteques. Tem como base rítmica a soul music, o funk e
ritmos latinos.
“O caubói representa a sociedade machista do faroeste” (Fischer, 1977).
“Segmento de uma história em quadrinhos, usualmente constituído de uma única faixa horizontal
contendo três ou mais quadros” (Cf. Dicionário Aurélio Eletrônico, 1999).
Festas inspiradas nas white parties americanas.
Artista finlandês que se tornou mundialmente conhecido por seus desenhos de homens fortes sempre
em posições eróticas, ostentando pênis enormes.
Jovens, não necessariamente gays, que frequentam o mundo feérico da noite das grandes cidades.
Boates da moda, raves, música eletrônica, DJs e moda alternativa são alguns dos elementos que
fazem parte da tribo dos clubbers.
A revista vai se tornar a primeira publicação gay a publicar fotos de homens famosos, atletas,
músicos, atores, todos com o pênis em ereção. Conforme afirma Robert Howes (2004: 292): “Na G
Magazine, os jogadores de pau duro servem, sem dúvida, para aumentar a venda, mas funcionam
também como um símbolo de contestação, subvertendo o ícone da sociedade de consumo
globalizado, a celebridade, como objeto mais tradicional e transgressivo do desejo homossexual
masculino”.
As leis específicas são as que usamos para alcançar as leis gerais. São elas: variedade, harmonia,
destaque, contraste, equilíbrio, simetria e intensidade e os elementos materiais. (Ver Collaro, 2000;
Hulburt, 2002; e Bonnici, 1999).
CONCLUSÃO
Apesar do passar do tempo, ainda é forte na minha memória a
lembrança do dia no qual recebi o envelope pardo contendo o número zero
do jornal Lampião da Esquina. Foi uma mistura de medo, ansiedade e
curiosidade. Eu conhecia algumas pessoas envolvidas no lançamento do
jornal, daí meu nome ter ido parar na mala direta dos produtores que
estavam escolhendo as pessoas que iriam receber o número experimental.
Lembro-me que corri para o quarto, tentando disfarçar a ansiedade e ocultar
o medo de ser pego com um jornal gay. O que seria um jornal gay? Que
tipo de matérias eu encontraria? Homens nus?
O jornal foi lido ao longo de semanas. Não podia lê-lo depois do almoço
ou no fim de tarde: o ato de lê-lo era algo secreto e quase sagrado. Depois
comprei o número 1, o número 2 e assim por diante. Mas durante todo esse
tempo o jornal era lido escondido. Não havia fotos de sexo, nem de homens
nus, mas eu pensava: “O que diriam meus pais se encontrassem o jornal?
Será que o fato de ter um jornal gay na minha casa indicaria a minha
orientação sexual, ou seria visto como mais um jornal dos muitos que eu
comprava?”.
Bem, essas são perguntas sem respostas. Meus pais já estão mortos e
antes de morrer sabiam da minha preferência sexual. De qualquer forma,
acho que durante os primeiros números a simples visão do jornal não
indicaria sua ideologia. Era mais um jornal como tantos outros dentro do
segmento que ficou conhecido no Brasil como “imprensa alternativa”.
Talvez isso se modificasse nos últimos números, quando ele passou a
estampar fotos de homens nus. Mas, para mim, o surgimento do jornal abriu
uma janela para um mundo que eu desconhecia. Um mundo no qual, apesar
dos preconceitos, poderíamos discutir nossas preferências sexuais sem
medo e sem embaraço.
Já tinha conhecido essa sensação maravilhosa quando tomei
conhecimento do jornal Pasquim. Apesar de na época ter apenas 15 anos, a
chegada do Pasquim às minhas mãos trouxe um mundo de novidades e
descobertas que o colégio não me tinha dado. A partir daí entrei de cabeça
no mundo da imprensa alternativa. Vários jornais passaram pelas minhas
mãos – políticos, ecológicos, psicodélicos, musicais... – até a chegada do
Lampião. Foram objetos que traziam textos e imagens que me ajudaram a
construir a minha identidade. Jornais e revistas, uns coloridos, outros em
preto e branco; uns sofisticados, outros mais humildes; mas todos contando
histórias, todos recriando o mundo em pequenas folhas de papel.
Não foi minha intenção discutir a importância do papel da imprensa
segmentada no Brasil ou no mundo, visto que isto é um fato. Minha
intenção foi mostrar o papel que os periódicos gays tiveram na construção
das diferentes identidades da comunidade homossexual. É sabido que a
condição homossexual é uma das mais discriminadas em todo o mundo ao
longo da história. Por isso, vejo que é muito importante para o leitor
homossexual, que desde a infância lê a vida pelo viés da culpa ou do
preconceito, ter acesso a leituras que contribuem para a valorização da sua
autoestima. Textos e imagens nos quais ele seja o protagonista da sua
história na História e possa contar suas estórias. Contos, romances, ficção,
reportagens e artigos sendo apresentados em duas ou três colunas, fotos
sangrando ou não, fios e cores, personagens dos periódicos que enredam o
leitor num mundo próprio e particular.
Como comentei anteriormente, os periódicos dirigidos às questões
homoeróticas também espelham as dúvidas, lutas e valores dessa
comunidade sem fronteiras sólidas. E acredito que esses periódicos façam
parte da rede de informação de grande parte da comunidade gay que vive
ainda clandestinizada, de certa forma invisibilizada dia após dia na
sociedade, ou seja, no universo do trabalho, das relações familiares etc.
Como afirmei ao longo deste trabalho, tanto quanto narrar a situação
social e política de um grupo em determinada época, jornais e revistas de
temática libertária indiciam as concordâncias que formulam o design
identitário desse grupo. É sob essa perspectiva que lemos a história da
imprensa gay brasileira, que a partir das últimas décadas do século XX
buscou elevar a voz dos homossexuais, voz silenciada pelo
conservadorismo da sociedade brasileira e suas reverberações políticas –
como a ditadura militar – em cujo período floresceram importantes
iniciativas de mídia impressa voltada para o universo gay.
O Lampião da Esquina, o primeiro a surgir, fez um trabalho quase de
catequese, mostrando que os homossexuais não eram os “bobos da corte”,
mas pessoas que também influenciam e ditam as normas na corte. Num
período de grande turbulência política no Brasil, o aparecimento do
Lampião, trazendo suas histórias de lutas e conquistas, “fez a cabeça” de
vários garotos que, como eu, também tinham suas histórias. Muitas delas ao
aparecerem nas páginas do jornal serviam de espelho para outras dezenas de
“entendidos”, “bichas”, “travestis” e “gueis”.
As conquistas sociais dos homossexuais, em grande parte do mundo
ocidental, quase desmoronaram diante da ameaça do vírus HIV.
Infelizmente, foi necessário um grande número de vítimas para que a
sociedade como um todo enfrentasse e freasse a epidemia da aids. O estrago
psicológico que se deu entre os gays só não foi pior porque eles próprios se
uniram em grupos solidários, criando ONGs, ou lançando jornais. O Nós
Por Exemplo foi uma mostra de cuidado e solidariedade para com os gays,
“homens que fazem sexo com homens”, bichas e travestis vítimas da
doença. Com esclarecimentos diretos e objetivos, o jornal ajudou não só
aqueles diretamente vitimizados, mas todos os interessados em lutar contra
o preconceito.
O pequeno ENT& veio para mostrar que tamanho não é documento.
Pequeno no formato e grande de conteúdo, o jornal ajudou a estabelecer a
ponte entre “homens que fazem sexo com homens” e os gays.
As vitórias devem ser comemoradas. E se possível com muita festa. A
segunda metade dos anos 1990 pode ser vista como a outra metade do fim
dos anos 1970: tempo no qual o hedonismo triunfava. Só que nos anos
1990, esse hedonismo vinha revestido de muito cuidado. Depois de anos de
recolhimento, os gays estavam novamente nas ruas, nos bares, nas boates,
nas raves. O jornal dá lugar à revista, veículo mais apropriado para tempos
de sofisticação, consumo e recursos tecnológicos. Com muita cor, muito
grafismo, uma audácia visual e contemporaneidade, a Sui Generis abriu
espaço para os novos personagens da história contarem suas estórias:
“bibas”, “barbies” e “drag queens” unem-se aos “gays”, “entendidos”,
“bichas” e “travestis”.
A criação de uma mídia voltada especificamente para determinada causa
significaria, portanto, mais que a armação de um instrumento de luta:
significou, sobretudo, a deflagração do questionamento criativo das
possibilidades identitárias de um complexo universo, historicamente
invisibilizado e reduzido, em expressão e força social, a uma
singularizadora e lesiva generalidade identificatória. Vemos na forma e no
conteúdo das diversas mídias gays indícios preciosos do que chamamos de
design identitário da multiplicidade das maneiras de acontecimento da
sexualidade homoerótica no Brasil, um design contemporâneo, e, portanto,
aberto a toda possibilidade de transformação e enriquecimento.
POSFÁCIO
Sou biba
Quando a gente chega todo mundo grita!
Faz maior escândalo só porque nós somos bibas.
Sou biba, sou biba e a minha presença incomoda,
Sou biba, sou biba, mas estou na moda!