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Drama e revolta

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Georg Büchner, autor de Woyzeck

No conto A janela de esquina (de 1822), E. T. A. Hoffmann atribui ao personagem “primo” algumas considerações
sobre os pobres moços que viviam pelas ruas de Berlim vendendo cigarros, cujo destino não seria outro senão
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compor guarnições militares prussianas. E num romance do mesmo autor e da mesma época, Reflexões do gato
Murr, o personagem Conde Iräneus conta que no comando do exército, “semanalmente submetia a turma de
fidalgos a uma saraivada de palmatória pelas asneiras que tivessem cometido ou pudessem vir a cometer” e o
tenente descontava infligindo bordoadas nos soldados.

Em entrevista a Alexander Kluge sobre o filme Die andere Heimat (A outra pátria, de 2014), o diretor de cinema
Edgar Reitz aponta como fatores sociais desencadeadores do fluxo de emigração alemã no século 19, sobretudo
rumo ao sul do Brasil, a estatização das florestas, o descaso do Estado em relação às famílias carentes em
consequência dessa interdição do extrativismo, em detrimento de privilégios concedidos à aristocracia, bem como a
introdução do serviço militar obrigatório desde a Sexta Coligação contra o Império de Napoleão (1814-1815).

Ou seja, à pauperizada população campesina e urbana de uma Alemanha ainda em processo de consolidação
como Estado poucas alternativas se descortinavam para a sobrevivência, além das fileiras do exército e da
participação em guerras.

Esses dados esparsos legados pela literatura e pelo cinema indiciam as circunstâncias desoladoras nas quais vivia
a categoria soldadesca arrebanhada dos rincões rurais e suburbanos, e enquadram-se no arcabouço histórico do
período da Restauração Alemã (1815-48). Foi nesse período que viveu o escritor Georg Büchner (1813-1837),
autor de um célebre panfleto insurrecto contra a tirania e a exploração, O mensageiro de Hessen, que se inicia
com a conclamação: “Paz aos casebres! Guerra aos Palácios!”. Büchner e o coautor do texto, Friedrich Ludwig
Weidig, perguntam se por acaso, diferentemente do que se encontra no Gênesis, os agricultores e artesãos teriam
sido criados no quinto dia e não no sexto como os nobres e ilustres, numa alusão à situação temporal da criação
divina na Bíblia, segundo a qual os animais teriam vindo ao mundo no quinto dia e os homens, no sexto. O que
levava esses escritores a redigir e a distribuir cerca de 1.500 exemplares do panfleto era sua convicção da
necessidade de exortarem a população simples a uma revolução contra o status-quo e contra o Grão-duque, cujo
poder incontestável estava implícito no próprio título nobiliárquico. Oficialmente, Ludwig II, que regeu do Estado de
Hessen de 1830 a 1848, se chamava “Ludwig II, por graça de Deus Grão-Duque de Hessen e das margens do
Reno”. Os revolucionários não tardaram a ser vítimas de censura, perseguição, encarceramento e de um possível
assassinato.

É surpreendente o número de obras marcantes que Georg Büchner escreveu em poucos anos de vida: em clave de
história o drama A morte de Danton, de cunho insurgente O mensageiro de Hessen, de trágico o fragmento Lenz,
sobre os tormentos do dramaturgo homônimo (traduzido ao português por Guinsburg e Koudella; encenado no
palco paulistano em 2015: Lenz, um outro) ou até mesmo no diapasão da comédia romântica Leonce e Lena.
Nessa produção criativa que à primeira vista se apresenta eclética e dispersa, Anatol Rosenfeld chama a atenção
no ensaio A comédia do niilismo para a afinidade íntima comum a toda essa literatura, qual seja um viés epicurista
decorrente de uma “raiz amarga”, que resulta da desilusão ante “valores mais substanciais que os meramente
hedonísticos”. A manifestação desse desengano é o tédio, o vazio, o niilismo portanto, que Rosenfeld assinala
numa tradição que associa Baudelaire, Chekhov, A montanha mágica, de Thomas Mann, A náusea, de Sartre, e
O desprezo (La Noia), de Moravia. Embora a análise se refira às personagens que em sua ação e caracterização
contaminam os demais elementos dentro dessa literatura, Rosenfeld não duvida que o estilo se explique ademais,
numa dimensão exterior à diegese, pela experiência traumática do jovem Büchner confrontado com a falência do
idealismo e o arroubo materialista das ciências naturais daquela época.

Os estudos de anatomia e medicina, aos quais Büchner se dedicara na cidade de Darmstadt sob a tutela do pai
médico, e sua atividade política num quadro social onde o soldado equivalia a reles categoria em contraposição à
burguesia são fundamentais para a criação de Woyzeck.

O comentário
E é justamente essa peça dramática o centro do livro do professor de literatura e médico Tercio Redondo:
Woyzeck: comentário e tradução da tragédia de Georg Büchner.

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A fim de completar o parco soldo, o soldado Woyzeck se submete a experimentos científicos em troca de lentilhas
e de algum trocado. Cabe-lhe viver dessa dieta restrita em grave estado de desnutrição e sujeito, por conseguinte,
aos sintomáticos obscurecimento da visão e falta de vitalidade. Fica exposto durante as preleções médicas às
apalpadelas e investigações degradantes dos cientistas, e as suas reações são comparadas às de asininos e
felinos. À medicina, na figura do fisiologista, importa o triunfo da pesquisa; na escala da dignidade aquela cobaia é
inferior às espécies anfíbias subterrâneas aparentadas com a salamandra, ao Proteus anguinus: “Se ao menos
fosse um proteu que estivesse morrendo à minha frente!”.

Tampouco na relação com seu superior, o capitão, o soldado raso faz jus a qualquer distinção moral, ele
constantemente recebe censuras pelo tempo célere que imprime a cada gesto e a cada passo, plenos da urgência
que expressa antes de tudo a condição de estresse e decorre do extenuante esforço desprendido para cumprir
tantas tarefas, de modo a garantir a sobrevivência mísera da família; afinal tem um filho a quem chama “verme”.
Vez ou outra o capitão lhe insinua a infidelidade da concubina Marie. Não somente o filho bastardo e o
concubinato, mas também o comportamento rude do moço que mija pelos cantos motivam o desprezo do superior
militar em eminente ascensão na sociedade, porque para a classe burguesa as atitudes do trabalhador Woyzeck
projetam o respectivo espelhamento abjeto.

Esse fuzileiro ordinário — segundo informação do livro o primeiro personagem proletário dentro da dramaturgia
alemã — contrasta na disputa por Marie deploravelmente com o representante da pequena burguesia tambor-mor
“distinto suboficial, comandante da simpática banda militar: ao passar defronte à janela de Marie, o militar faz-lhe
uma vênia; no domingo costuma receber o elogio do príncipe”.

E é dessa argumentação pelo viés da dialética entre as classes sociais, ad extremum entre as espécies animais,
que Tercio defende que o elemento dramatúrgico “ação” em Woyzeck não se conforma ao drama clássico do palco
mágico (Guckkastenbühne), na medida em que o protagonista e a personagem Marie em falas que não constituem
interação ou diálogo desafiam a compreensão com a exigência de leitura paradigmática a cada nova intervenção.

Semelhantemente à urgência no tempo, as marcações espaciais do drama adquirem autonomia e correspondem


implicitamente a atributos da personagem. E cada objeto cênico assume extensões simbólicas funcionando no
sentido de distinguir outros elementos. Assim, quando Woyzeck barbeia o capitão com uma navalha, o
deslizamento da lâmina cortante acentua a sensação prazerosa do personagem sentado na cadeira, remete à
afobação do protagonista atabalhoado pelos afazeres e, finalmente, prenuncia a ação trágica do desfecho
dramático.

Um estudo minucioso da peça precede o capítulo central do livro, 7 Woyzeck: tradução e notas, se a opção for a
leitura linear. Revelam acuidade tradutória as referências às notas do original, a diferenciação da grafia
antiga/atual, a remissão ao histórico inquérito, as referências às expressões de linguagem, aos dialetos,
regionalismos e estrangeirismos, a escolha dos pronomes de tratamento, a justificativa de certa elisão
terminológica relevante no texto dramatúrgico.

A menção dos manuscritos redunda em ambígua compreensão entre o acesso direto aos manuscritos ou a
obtenção das informações através de comentário da edição alemã. Ressente-se da menção de edições anteriores
de Woyzeck no Brasil, como por exemplo a edição esgotada da Clássicos de Bolso Ediouro que contém a
tradução de João Marschner e no prefácio o ensaio de Anatol Rosenfeld, que citei anteriormente.

O livro é resultado de uma pesquisa de doutorado que já foi publicada anteriormente pela Editora Hedra. Através da
configuração atual, em sua complexa capilaridade temática — a micro-história, os manuscritos de Woyzeck, o
médico Büchner, a contestação formal e ideológica configurada em drama, a tradução e as notas, o recurso ao
gênero épico no drama — atesta o rigor e a profundidade da pesquisa na matéria. Esses itens que enumero não
correspondem aos títulos dos capítulos do livro mas propiciam um panorama das questões tratadas nas 222
páginas que engendram questões de história, literatura, dramaturgia, enfim, uma densa sincronia da atualidade
com o drama Woyzeck, de Büchner.
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Woyzeck: Comentário e tradução da tragédia de Georg Büchner
Tercio Redondo
Nanquim
224 págs.

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