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BORANDÁ
(auto do migrante)
Um falso prólogo
Um prólogo verdadeiro
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Sensação de desassossego, de estar num lugar que não é seu. Falar sobre a
expulsão da pátria celeste, do paraíso, do útero. Por que isso tem que se repetir
no mundo real? Por que temos que continuar sendo expulsos. O auto é sobre
os que são expulsos, os desterrados, exilados, degredados. Somos todos
degredados. Somos todos migrantes.
ABU Que tipo de gente somos nós, migrantes? Que tipo de gente
é essa que deixa o coração num pé de serra, num lajeado,
numa beirada de mundo? Que traz o corpo para o trabalho
na metrópole e deixa a alma no lugar de origem? E não
reconhece o lugar, onde vive e trabalha, como seu. Seu é o
lugar que já não tem, é o lugar deixado, para o qual talvez
nunca mais volte, mas para o qual passa a vida sonhando
voltar. Que gente é essa que não se moveu por vontade
própria, não é turista, nem peregrino. Que estranha árvore é
essa cujas raízes estão fincadas muito longe e cujo tronco,
cortado e separado delas, estranhamente sobrevive, flora e
frutifica? (FAZ UM GESTO LARGO EM DIREÇÃO À
CENA JÁ MONTADA. TIÃO CIRILO ESTÁ SENTADO
EM FRENTE A UMA PEQUENA MESA ONDE ESTÃO
UMA CARTA, UM PRUMO DE PEDREIRO, UM PAR
DE SAPATOS DE RECÉM NASCIDO, UM VELHO
CADERNO, UMA TORNEIRA VELHA E UMA PEDRA
ROLIÇA, UM MAÇO DE CARTAS AMARRADAS
COM BARBANTE) Primeira saga: Tião! (TIÃO VEM À
BOCA DE CENA PARA COMEÇAR A
REPRESENTAÇÃO)
TIÃO (AO PÚBLICO) Tião Cirilo, seu criado...
BENECASTA (INTERROMPENDO) Tião Cirilo dos Santos é um
caboclinho pequeno, sem graça, mirradinho mesmo, desses
que chegam com cara de tonto nos terminais de ônibus e de
trem. (CIRILO REAGE)
AMOZ O lugar de onde veio é uma titica no mundo. Caminho pra
lá ninguém quer aprender e quem sabe faz força pra
esquecer. Uns dizem que é perto de Minas, vizinho do
Espírito Santo. Outros falam que é além de Goiás, acima da
Paraíba, no rumo de Mato Grosso, divisa com Pará, à
esquerda de Santa Catarina, não sei direito e não me
interessa! Ó, quer ir lá, mesmo? (APONTA) Segue essa rua
Luís Alberto de Abreu
MÃE E até hoje tenho vontade de soltar aquele grito que não dei.
ABU (COM AUTORIDADE DE QUEM ORGANIZA A AÇÃO
DOS PERSONAGENS) É o suficiente, eu disse. (MÃE E
NORATO SAEM DA ÁREA DE REPRESENTAÇÃO.
ABU COM UM GESTO SOLICITA O
PRONUNCIAMENTO DE TIÃO)
TIÃO E Tião Cirilo dos Santos, que sou eu, vim embora...
(BENECASTA, AMOZ E WÉLLINGTON REAGEM,
FORA DE CENA)
BENECASTA Ei! (TIÃO, INCONFORMADO, RETOMA A
NARRATIVA AGORA COMPLETA)
TIÃO E Tião Cirilo dos Santos, que sou eu... um caboclinho
pequeno, sem graça, mirradinho mesmo... vim embora nos
idos dos anos 50... (IRRITADO) e cheguei com cara de
tonto ao terminal de trem! (ABRAÇA COM FORÇA
CONTRA O PEITO E CAMINHA DESCONFIADO)
WÉLLINGTON (UM TANTO INCONFORMADO) Não, na metrópole
nada aconteceu de inusitado com Tião Cirilo. Não
roubaram suas coisas, ele não caiu em conto do vigário,
não comprou lote no mar, nem terreno na lua à vista, nem
viaduto a prestação, essas coisas que, às vezes, acontecem
quando o migrante chega. Ou seja, nem pra fazer a gente rir
um pouco esse personagem tá prestando!
TIÃO (IRRITADO SE REFERINDO A WÉLLINGTON) Oh,
vontade que “das veiz” dá de a mão da gente trombar com
a cara de um sujeito à toa!
BENECASTA Nada de muito cômico ou muito trágico aconteceu com
Tião Cirilo. Isso porque ele é um migrante trivial, comum,
sem lances heróicos nem defeitos risíveis.
TIÃO Nunca sei se é elogio!
BENECASTA A vida de gente assim é feita um nada por dia, mas é feita
todo dia.
AMOZ Quando se chega é só estranhamento. Tudo é novo e difícil:
o frio, o lugar, a comida, os costumes e, principalmente, a
solidão.
TIÃO É o que dói mais. Solidão enlouquece. Eu odiava domingo
e até hoje não gosto. Dia de semana tinha os companheiros,
peão de obra, o trabalho. Chegava sábado, sumiam todos
dentro da cidade, iam pra junto das famílias, dormir com as
quengas. Eu amanhecia domingo sozinho na obra.
Luís Alberto de Abreu
TIÃO Eita, que quando for pra eu me acabar queria que fosse
numa festa assim! Foi num brinquedo desse, aqui em São
Paulo, que conheci Luzia. (APONTA LUZIA) Formosa,
né, não? Até hoje não sei o que ela viu em mim.
LUZIA Eu sei, mas não conto. Nem pra ele que é pra não virar
soberbo, nem pra vocês que é pra não crescer o olho pra
riba dele. Mulher burra não nasceu, não!
TIÃO Namoro da gente tá que é só mel mais melúria.
LUZIA (MOSTRA OS SAPATINHOS) Olha só, Tião!
TIÃO Bonitinho, Luzia. O que é?
LUZIA Sapato de criança.
TIÃO Isso eu sei, estou vendo!
LUZIA (APREENSIVA) Ganhei da Marcela.
TIÃO E por causa de que a Marcela lhe deu isso? (OLHAM-SE.
TIÃO CONCLUI, DESOLADO) Ichi! (LUZIA
CONFIRMA COM A CABEÇA) Seu pai já sabe?
LUZIA Sou doida? Ele é das Alagoas. Você é que vai contar!
TIÃO (AO PÚBLICO) A Marcela deu mais três pares de sapatos.
Da Leninha, do Genivaldo e da Licinha, além do Tiãozinho
que foi o primeiro, o mais velho. Comecei a gostar daqui
foi quando conheci Luzia. Bonita, sestrosa, bem-querente.
Tem coisas que a gente quer demorada. Gostar, por
exemplo, tem de ser coisa lerda, feita sem pressa, mas vida
aqui tem urgência. E num lugar onde se diz que tempo é
dinheiro a gente não tem nem um nem outro.
(WÉLLINGTON PEGA A CARTA DO ORATÓRIO E
NA PASSAGEM PEGA O MAÇO DE CARTAS DA
MESINHA E ENTRA NA ÁREA DE
REPRESENTAÇÃO. GRITA COMO CARTEIRO.)
WÉLLINGTON Carta pra você, Tião!
TIÃO (TIÃO PEGA A CARTA) Fazia três anos que eu ´tava
casado e doze que eu estava aqui, quando recebi de volta a
carta que tinha mandado para minha mãe. (EMOCIONA-
SE) Foi baque. Foi baque que homem rijo, engrossado no
asp’ro da vida não sustenta. Ô, meu Deus, essas distâncias
de quem a gente quer bem! (RECOMPÕE-SE) A carta
ainda estava fechadinha, como mandei. A Santa Aparecida
ficou com uma tia minha. Agora eu já não tinha mais
porque voltar. De vez em quando ainda choro, escondido.
Luís Alberto de Abreu
arrastando a gente pra não sei que dor? Mexe com a gente,
não mexe?
MARIA DÉIA Amor por homem não tive, não sei se tive, não sei o que é.
Fui mulher de um homem só e o que tive foi filhos. Um
depois do outro. Amor foi todo pra eles. (SORRI) Era um
gramado grande no meio do mato. Eu e os seis filhos
brincando de pique, de esconder, de pular sela... quem me
visse ia dizer é louca ou é criança também... contava
história de quando caçava com meu pai. Depois, abria o
farnelzinho com a comida que era a mesma comida da
semana, um arroz, feijão e farinha, sem mistura. Era nosso
piquenique, de domingo. Era uma felicidade que até doía!
FABIANO (MEIO BÊBADO, RI, SATISFEITO) Sou amigo do peito,
de dividir a perna da calça, a camisa. Que é do homem sem
amigos? Tá certo que eu queria pegar o Perivaldo e aquele
eu ainda pego! Ele é folgado, eu sou cabeça quente, o santo
não bate. Coisa boa da vida: dividir prosa e bebida! Sou
amigo dos meus amigos! (GRITA) Déia! Cadê a janta?!
(MARIA DÉIA SE LEVANTA E VAI EM DIREÇÃO À
ELE)
MARIA DÉIA Ele chegava bêbado em casa, um barraco onde a gente
morava, e me batia, espancava mesmo, às vezes, parecia o
diabo.
AMOZ (COMO O PAI DE MARIA DÉIA) Morri na cama, de
tardinha, depois das seis, que é hora que todo moribundo
mal vivente afraca de vez. (DÁ DE OMBROS) Puxei o
derradeiro ar e o ar não veio, pulmão parou, tonteei e no
escuro que se fez pra mim vi a figura de Maria Déia,
menina, trazendo na mãozinha um nhambu. Foi assim que
minha vela se apagou.
FABIANO (FURIOSO) Isso não é janta que um homem coma!
MARIA DÉIA Meu pai morreu. (ENCARAM-SE) Nessa noite ele não me
bateu. Meio bêbado, disse coisa que não entendi.
FABIANO Pêsamesdesentimentocoitado!
MARIA DÉIA Mas me bateu no dia seguinte e nos outros dias. Bebia
muito, não parava em emprego. Ligeiro, vamos! Juntem as
coisas! Rápido!
TIÃO CIRILO Onde é que vamos, mãe, perguntou o mais velho.
MARIA DÉIA Viajar, pra longe!
TIÃO CIRILO E o pai?
Luís Alberto de Abreu
MARIA DÉIA Vamos nós! Salatiel põe o sapato na Liana! Pára de chorar,
Moacir, você quer ficar? Vamos logo! (AO PÚBLICO)
Chegou o dia do nunca mais! Minha patroa me emprestou
dinheiro pra passagem. Deixei tudo pra trás, só levei roupa.
A máquina de costura eu deixei com a vizinha pra Fabiano
pensar que eu não tinha ido longe. Fui pra Minas onde
tinha parente. Fiquei dois anos lá.
WÉLLINGTON Os meninos já tão crescidos.Quem sabe criar homem é o
pai, disse o tio de má vontade.
MARIA DÉIA Mandei os dois mais velhos pra São Paulo, levei os outros
quatro para o interior do Paraná, que era pra Fabiano perder
meu rastro. Ali, por mais de ano, embebedei de sossego.
Aprumei a vida, tomava conta de uma vendinha. A vida
seguiu um dia após o outro até que um dia... (SURPRESA)
Ah!, meu Deus! Ai, que meu coração se acendeu!
(ABRAÇA LONGAMENTE TIÃO CIRILO) Você veio!
Que saudade! Filho longe, coração doente! Que é de
Moacir, Salatiel? Você veio sozinho? (FABIANO SE
APROXIMA, MAS MANTÉM DISTÂNCIA)
FABIANO Veio, não.
MARIA DÉIA Fogueira do coração gelou de pronto. Geada sobre geada,
vento, orvalho e noite, até apagar o último carvão. Me cobri
de frio e recolhi meu tanto de alegria.
FABIANO Não sei porque vim. Vim porque a mulher era minha. Vim
porque vim, deu vontade. Não vim pedir nada, nem devia
ter vindo. Raiva me dá de ter vindo!
SALATIEL Volta com a gente, mãe.
MARIA DÉIA Por que vou voltar? Por que estou voltando? Por que
voltei?
FABIANO Por que fui buscar? Por que trouxe?
TIÃO CIRILO (AO PÚBLICO) Não devia ter voltado, disse a mãe de
Fabiano. (A MARIA DÉIA) Se não quiser que seus filhos
virem bandido vai embora daqui, dessa miséria de lugar.
Ajude seus filhos porque eu não pude ajudar os meus.
FABIANO Porque fui buscar? Gosto dela? Mulher é o cão! Afraca a
gente, deixa a homem mofino! Tenho raiva dela! (A SI
MESMO) Você é bicho Fabiano! (AO PÚBLICO) Tem
hora imprevista que me estoura rio de raiva e me afogo. O
que fiz ontem não se faz! Fechei um copo na palma da mão
e com força que não era minha soquei a boca dele na cara
Luís Alberto de Abreu
Epílogo
Ninguém registra a história de Maria Déia. Ela não sabe que ela é um valor.
Que melhorou sua raça. Não conta com poesias literatura
que lhe diz que é grande. Não tem quem lhe cante as
humildes e grandes façanhas. Mas como todo bicho ela se
ergue e decide continuar vivendo. Conta só consigo mesma
e com seus iguais. Borándá, Maria Déia. Maria Déia se
ergue. Só desisto quando Deus mandar.