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O HOMEM AO AVESSO

Esquetes cômicos
de
Luis Alberto de Abreu
AÇÃO ACONTECE NO INTERIOR DE UM ÔNIBUS URBANO.
ENTRA UM APRESENTADOR

CHAMARIZ Já vai começar! Vamos entrando pra ver um espetáculo


especial vindo diretamente da boate Lidô, de Paris para o
Largo 13 de Maio! Vamos lá, conterrâneo! Quem for ho-
mem sarado chega aqui. Quem não tiver medo de mulher
vai entrar aqui nesse ônibus e conferir dois números es-
peciais de canto e dança, dois números de renome inter-
nacional feitos pela modelo, atriz e cantora Naomi Camp-
bell! Eita, mulher de raça, canela fina que transtornou a
vida de homens de Estado, levou as cabeças coroadas da
Europa a beijarem seus pés! Venham ver seus fantásticos
números de canto e de quebra a mais incrível e assusta-
dora história já acontecida com um ser humano. Quem
tem medo de passar por tal acontecimento, não venha.
Quem for macho venha ouvir o inacreditável depoimento
de um homem que passou por uma experiência inconce-
bível e se transformou numa coisa absolutamente incrível
e impensável! Venha! Caboclo sarado chega aqui e entra.
Entra bem, entra no macio e não reclama! Vai começar o
espetáculo! Não vou esperar mais. Quem não vir agora,
só no próximo! Venham ver a grande Naomi Campbell di-
retamente da boate Lidô, de Paris! Por favor, acomodem-
se!

COM O PÚBLICO SE ACOMODANDO NO ÔNIBUS SÃO FEITAS AS INS-


TRUÇÕES EM VOZ GRAVADA. ATRIZ MIMA INSTRUÇÕES DE SEGURAN-
ÇA COMO EM AVIÕES.

VOZ OFF Senhoras e senhores, obrigado por terem vindo e o azar é


de vocês por terem caído em nossa armação. Quem
mandou acreditar em tudo que ouvem. Na verdade seria
bem melhor vocês terem ficado em casa com a patroa as-
sistindo TV e comendo pipoca porque, quem sabe, rolas-
se algum clima quando as crianças fossem dormir. Mas
vocês foram curiosos, quiseram saber o que tinha aqui
dentro e vocês vão saber! E não há mais tempo para se
arrepender arrepender. Pra começo de conversa este ô-
nibus está equipado com todos os equipamentos de segu-
rança exigidos por lei menos portas corta-fogo e escadas
de incêndio. Também não possui flutuadores nem coletes
salva-vidas para o caso de cair no mar. Na eventualidade

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impossível de despressurização vocês estarão todos fer-
rados por que não dispomos de máscaras de oxigênio
que caiam do teto como nos aviões. Pedimos que não
fumem dentro deste coletivo, não cuspam no chão, não
peidem mesmo em caso de necessidade porque não te-
mos ar condicionado. Se se sentirem mal pedimos enca-
recidamente que não vomitem sobre o vizinho, não batam
nos atores nem xinguem a progenitora das atrizes se não
gostarem do espetáculo. Tudo bem que nós não temos
vergonha na cara mas ninguém entrou aqui forçado nem
amarrado. Qualquer reclamação procurem o Montanha na
saída (dois metros de altura, um e oitenta de largura) mas
verifiquem bem se ele está de bom humor, o que é bas-
tante raro. Um bom divertimento, se conseguirem!

APRESENTADOR Muito obrigado pela presença de todos em nosso espetá-


culo! Vocês não se arrependerão por ter entrado em nos-
sa casa de shows ambulante.

UM PASSAGEIRO BÊBADO LEVANTA-SE, CAINDO SOBRE OS DEMAIS.

BÊBADO Eu tenho uma coisa prá falar.

APRESENTADOR Depois, meu amigo.

BÊBADO Depois uma pinóia!

APRESENTADOR Logo vocês vão ver uma atração trazida a peso de ouro
para o Largo 13!

BÊBADO Você não acredita se eu contar o que tenho prá contar.

APRESENTADOR Não quero ouvir.

BÊBADO Você nem sabe o que eu vou contar! É sobre um ânus.

APRESENTADOR Sobre o que?

BÊBADO Se falo em linguagem culta ninguém entende. Anus! Cu!

APRESENTADOE Não estou interessado e aqui ninguém está interessado


em histórias desse tipo.

BÊBADO Está sim. Todo mundo está sempre tirando o seu da se-
ringa!

APRESENTADOR Vamos lá pra fora, meu amigo!


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BÊBADO Amigo meu sou eu que escolho e não é qualquer um!

APRESENTADOR Depois do show você conta está bem. Com vocês, a incrí-
vel, a incomparável...

BÊBADO (CORTANDO.) Ou deixa eu contar minha história de cu e


num vai apresentar porra nenhuma!

APRESENTADOR Meu amigo, por favor!

BÊBADO Ou o cu, ou nada!

APRESENTADOR Tá bom meu amigo, entre com o cu!

BÊBADO Entrar com o cu uma pinóia... Posso tá bebinho, mas o


meu tem dono! O que vou é contar um caso estranho e
absolutamente singular que me aconteceu um dia desses.
Uma coisa absolutamente surreal. Vinha eu andando dis-
traído pela calçada, ali na confluência da Conselheiro Car-
rão com a rua dos Ingleses, na calçada direita, logo em-
baixo do número 171, quando bato o olho no chão e vejo
ali, largado no cimentado, uma coisa, um objeto, assim,
parecido com uma argola. Não, não era uma coisa inani-
mada, era vivo, pulsava contraindo-se. Imediatamente eu
pensei numa lesma ou numa minhoca enrolada em si
mesma, mas não, era algo que nunca tinha visto antes.
Ou melhor, na verdade já tinha visto, mas não assim se-
parado de sua outra parte. Vão seguindo meu relato que
vocês logo entendem. Me abaixei, com minha curiosidade
dominando meu medo – morro de horror desses bichos,
essas coisas esquisitas – olhei de um lado, olhei de ou-
tro, pensei, assuntei e comprovei o que já desconfiava.
(RI) Eu estava mesmo diante de um fato insólito. Mais, es-
tava diante de uma improbabilidade. Pior, estava diante
de um acontecimento inusitado, único, surrealista, que se
contar ninguém acredita. Não riam, mas, juro por Deus,
que ali, largado na calçada, perdido, sem dono, estava,
com o perdão da palavra, da possível grosseria, um cu. É,
um cu mesmo. Redondo, vivo, pulsante. E não havia nin-
guém debaixo dele, não. Não acreditam? Se eu disser um
ânus, um esfíncter fica mais fácil crer? Eu entendo vocês
porque eu, mesmo, fiquei abismado. Como disse há pou-
co, não é que nunca tinha visto um, mas assim, solitário,
sem fazer parte de sua respectiva bunda, era a primeira
vez. Imediatamente me veio à mente aquela velha piada
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surrealista do olho que estava comendo um x-salada nu-
ma lanchonete. Vocês devem conhecer mas eu conto pa-
ra que tenham a dimensão aproximada da situação ab-
surda em que me encontrava. Um sujeito entra numa lan-
chonete e vê, assustado, um olhão enorme, azul, comen-
do x-salada e bebendo coca-cola no balcão. Tá assustado
por que? – pergunta o olho. Não tem gente que nasce
sem olho? Eu nasci sem gente! Bom, uma piada é uma
invenção de alguém mas ali, na minha frente, estava um
cu real, e imaginar que um cu tivesse nascido sem gente,
francamente era um absurdo. Absurdo igual era imaginar
que alguém tivesse perdido o cu como se cu fosse uma
argola de pressão, um anel, uma rosca, uma arruela de
parafuso qualquer. Não, aquele era um cu real, e um cu,
assim, achado no meio da rua, era coisa que propiciava
até a divagações filosóficas. Não, é sério! Imaginem só: o
que é um cu? Cu é apenas um buraco, um orifício, um
oco, em última instância, um nada sem a parte que o cir-
cunda, a bunda, e sem o dono da respectiva bunda, um
homem ou um animal. Ou seja um cu não tem existência
em si e, assim sendo, é uma impossibilidade lógica. Mas
ele estava ali, existente, real, um conteúdo sem o seu
continente. Eu também não queria acreditar mas sei que
existem mais coisas entre o céu e a terra do que supõe
nossa vã filosofia. E assim pensando me abaixei, peguei
aquele cu perdido e fiquei ali, parado na calçada, feito
besta, com aquele cu na mão, filosofando. Aquele cu não
era um rusguento qualquer, não. Era até bem apessoado,
esteticamente composto, sem dilatações varicosas típi-
cas das hemorróidas, com bordas mui regulares, em su-
ma, um cu saudável e agradável aos sentidos o que, se-
gundo Aristóteles, é um dos elementos fundamentais da
Beleza. Pensei mais: pensei que um cu, diferentemente
de um rosto que pode ter “aplomb”, graça, altivez, diade-
mas e brincos caríssimos, um cu é simplesmente um cu, e
nivela todos os homens. Aquele, ali, poderia ser do papa,
de um ministro, da miss Brasil, de um sem terra, de um
milionário. Todos os homens são iguais perante um cu.
Enquanto eu extraia do cu esse primeiro raciocíno mais
profundo uma iluminação me veio, como um raio, e eu
cheguei a uma verdade ainda mais profunda: aquele cu
poderia ser o de qualquer um, menos o meu próprio. Per-
cebem o alcance do raciocínio? Eu, naquele momento,

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com o cu de um estranho na mão, tinha a comprovação
de minha própria existência porque o meu roscofe, entre
os de cinco bilhões de pessoas que existem no mundo,
era o único que eu podia ter certeza de não estar perdido.
Mas eu fiquei ali tentando resolver aquele mistério absur-
do. E lembrando de expressões igualmente absurdas re-
lacionadas com aquele chamado músculo anal. Alguém
sabe a lógica de se dizer cu de boi para designar confu-
são? Ou cu de judas para indicar um lugar distante?
Quem era a mãe joana para designar coisa em que todo
mundo se mete? E que lógica tem a expressão popular
“amarrar o cu com embira pra ver o lucro que tira? É lógi-
co que existem expressões ditadas pela lógica como cu
da agulha que é o buraco por onde passa a linha, cu de
ferro que é sujeito comportado que não sai do banco es-
colar, cu de breu indica buscapé, cu de foca é bebida ge-
lada, vagalume é tambem chamado cu de lume e cu de
galinha é aquele bolinho de linha que a gente faz para ar-
rematar uma costura. Cu do mundo é um lugarzinho dis-
tante e muito do desgraçado isso eu entendo, mas porque
cu de conde tem o mesmo significado? Cu é algo tão
presente em nossa vida, em nossa cultura e, ao mesmo
tempo, tão absurdo. Cu é um mistério. E eu estava ali, re-
fletindo, olhando meio desconfiado quando, de repente, o
esfíncter teve um estremecimento, uma convulsão saltou
exatos vinte centímetros para o alto e voltou a pousar em
minha mão. E não é que percebi uns cabelinhos tentando
sair daquele orifício?! E não eram simples pelos, não. E-
ram cabelos bem cuidados, encaracolados e sedosos,
cheirando a banho de xampu e creme rinse. Encafifado
com aquilo comecei a puxar os cabelos com cuidado e lo-
go tinha em minha mão, saída do cu uma farta cabeleira.
Puxei com mais força porque agora a resistência era mai-
or, torci, tentei alargar as bordas do anel muscular e, ai,
gritei e recuei horrorizada. O cu caiu no chão e sobre ele
uma cabeça de um homem de aproximadamente quaren-
ta anos, moreno, bonito até, de olhos verdes. Minha pri-
meira atitude foi sair correndo e gritar por socorro mas a
boca da cabeça movimentou-se e pediu minha ajuda com
a voz sufocada. “Socorro, esse cu tá apertando o meu
pescoço!” E na verdade o pescoço da cabeça estava co-
mo que estrangulado pela força compressora do músculo
anal. Meu Deus, eu estremeci ao imaginar como nos fil-

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mes de terror, a possibilidade real de haver soltos no
mundo, cus devoradores de gente como Tubarão ou Pi-
ranhas. Felizmente a solidariedade foi mais forte que o
medo e com as duas mãos e depois com os pés me pus
em luta contra a tensão daquele cu, tentando alargar seu
diâmetro. Com tempo e muito esforço fui conseguindo até
que, com um impulso para cima o homem conseguiu libe-
rar os ombros, depois um braço, outro e aos poucos foi-se
saindo daquela argola. Quando liberou os pés, o cu do
homem, como um elástico, retornou à posição e ao lugar
natural. Olhei para o homem e ri porque ele era o primeiro
caso conhecido de autofagia anal, um cu comedor de ho-
mem. Esperei que o homem se ajeitasse e me desse as
devidas explicações para o caso tão maravilhoso que pre-
senciei. E a explicação não demorou. Por causa da maior
prisão de ventre de que se tem notícia - havia três meses
que o homem não se aliviava – ele tomou a dose mais
cavalar de purgante que um homem já ingeriu de uma
vez, desde que o mundo é mundo. Em decorrência lhe
sobreveio a mais aguda cólica intestinal que liberou numa
explosão contínua as inúmeras camadas de alimentos
que havia ingerido nos últimos três meses. Saíram de
chorrilho pelo seu reto, primeiro, uma porção de feijão, ar-
roz, ovo, salada de almeirão e farinha o que deve ter sido
o bate-entope anal. Após, deslizou rego abaixo, não ne-
cessariamente na ordem que descrevo, uma dobradinha,
sete tutu à mineira, cinco feijoadas, quatro estrogonofes
de frango, seis de carne, três buchadas de bode, quinze
rabadas, quatro picanhas – duas com alho -, treze frangos
a passarinho, três paellas, cinco churrascos à gaucha
completos, treze moquecas à baiana, além de porções
variadas de cuscus à mineira, batatas fritas, na manteiga,
sotê, acarajés e pudins e sobremesas várias. Depois de
tudo escorrido a pressão intestinal continuou sem controle
forçando a saída dos intestinos, tubo digestivo, duodeno,
pâncreas, figado e outros orgãos com o cu se tornando
num sumidouro, um ralo engulindo, sugando músculos,
tecidos e por fim o próprio homem! Afastei-me completa-
mente parvo e não acreditaria em nada do que o homem
me contou se não tivesse visto com os próprios olhos e
ter ajudado, inclusive, aquele homem a sair de volta de
seu próprio cu. E não andei nem cinquenta metros quan-
do bati o olho em algo roliço e cilíndrico na calçada. Vo-

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cês já advinham. Um pênis. Solto, perdido, sem dono, vi-
vo e com uma certa e agradável rigidez, bom peso e ta-
manho. Curioso abaixei-me e vi – acreditem! – que sua
parte oposta terminava num espiral de rosca. E entendi,
então, que aquele órgão sui generis se prendia à virilha
de quem o tinha perdido, rosqueando-se como uma lâm-
pada! Percebi, num exame mais atento que a rosca de
sua base estava espanada. Não, não conto o que depois
aconteceu.. (PARA O APRESENTADOR) Agora manda
entrar a francesa, moço!

APRESENTADOR Por favor, meu amigo, você que já nos deu a história do
cu, nos dê agora a história do pênis!

BÊBADO Eu, hein! E sou homem de troca-troca! (PARA OS PAS-


SAGEIROS.) Vocês não acreditariam mesmo, já que nem
acreditaram na menos fabulosa história do cu. Vejam só
que nem falei que do pênis, que mexia a boquinha como
pedindo socorro, do meio das bordas da cobertura penal
tinha... Não!... Não contar!... Ninguém vai acreditar!... Fi-
quem com o travesti francês que vou tomar mais um tra-
go!

SAI.

FIM

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Luis Alberto de Abreu
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