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SECRETARIA EXECUTIVA DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO

GERÊNCIA DE AÇÕES CULTURAIS

CULTURA AFRO-BRASILEIRA: DESAFIOS PARA A APLICABILIDADE DA


LEI 10.639 NO CHÃO DA ESCOLA

Mário Ribeiro dos Santos1

Celebramos em 2023, duas décadas da Lei 10.639, criada para o enfrentamento


dos paradigmas hegemônicos que durante muito tempo deslegitimaram e invisibilizaram
as formas de fazer ciência e política, os espaços de sociabilidades e as práticas culturais
protagonizadas pelas populações africanas e afro-brasileiras.
Esta consciência histórica, sedimentada pelo letramento racial, passou a
movimentar um coletivo, organizado e fundamentado intelectualmente, que passou a
questionar as ausências, o não lugar, a não existência do legado afro-diaspórico nas
pautas dos debates públicos, na programação cultural do estado, nos currículos, nas
atividades das escolas e universidades, nos manuais didáticos, construindo outras
narrativas e itinerários que evidenciassem os patrimônios não europeus, atribuindo
protagonismo aos seus detentores e às práticas pelas quais dão sentidos de existências
às suas vidas.
Partindo dessa perspectiva empretecida, a Gerência de Ações Culturais (GAC),
no âmbito da Secretaria Executiva de Desenvolvimento da Educação (SEDE),
movimenta-se na cadência dos agogôs, alfaias, berimbaus, pandeiros, agbês e
atabaques para trilhar outros caminhos, correr novas giras e preparar novos ebós
epistemológicos, os quais nos possibilitam evidenciar outros saberes, outras estéticas e
escrever sobre outras éticas pautadas em valores ancestrais com cheiros, cores,
texturas e sabores próprios.
É com esse propósito que este material foi pensado, com o objetivo de contribuir
com a qualificação continuada dos professores e professoras da rede estadual de ensino,
oportunizando o acesso a novas versões para discursos negacionistas, eivados de
verdades absolutas e sentimentos de ódio, que se natualizam e cristalizaram-se quando
o assunto em pauta são as manifestações culturais de matrizes africanas, os seus
fazedores, os sentidos, os significados e os locais onde tais práticas são realizadas e
vivenviadas.

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Historiador, docente do curso de Licenciatura em História, do Mestrado Profissional em Ensino
de História da Universidade de Pernambuco e membro permanente do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Gerente de Ações Culturais da
SEE-PE. E-mail:mario.santoss@educacao.pe.gov.br
Nesse sentido, iniciamos este texto com algumas provocações para o leitor: o
que você tem feito para pôr em prática uma educação antirracista? A escola onde você
trabalha aplica a Lei 10.639/03 no seu cotidiano ou aborda de forma pontual e alegórica
em algumas datas clichês como o 13 de maio e o 20 de novembro? Partindo dessa
premissa, problematizamos a ausência desses conteúdos nos itinerários pedagógicos,
nas pautas das semanas pedagógicas, nos seminários, nas feiras de conhecimentos
entre outros eventos formativos e culturais realizados pela escola.
Não trabalhar a temática do patrimônio cultural afro-diaspórico no ambiente
escolar valida um modelo de educação colonial que subalterniza, considera menor e
hierarquiza conhecimentos, lançando em segundo plano as epistemologias não-
brancas e, portanto, desautorizando a entrarem nas pautas dos debates dos docentes
e discentes, nos planos de ensino e nos projetos pedagógicos das instituições.
Historicamente, sabemos que os registros sobre as práticas culturais afro-
brasileiras foram produzidos por lugares ou por pessoas que ocuparam posições de
poder na imprensa, nas universidades, na polícia, na medicina, na igreja, nas instituições
públicas, a ponto de tornarem-se “especialistas”, disseminando discursos de verdade que
se cristalizaram constituindo o que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie chamará
de “história única” para os africanos e seus descendentes (ADICHIE, 2019).
É importante frisar que esse tempo passou. Representantes dos maracatus, dos
afoxés, dos terreiros de candomblé, do Movimento Negro, da literatura negra, entre
outros coletivos sociais periféricos, estão nos espaços formais de ensino, nos
Programas de Pós-Graduação, ocupando lugares antes negados, publicando livros,
escrevendo artigos, organizando eventos acadêmicos e produzindo “narrativas que
compõem a diversidade epistêmica no campo do conhecimento científico eivadas de
aprendizados construídos na história e nas práticas e experiências culturais, políticas e
sociais” (GOMES, 2019).
Portanto, faz-se necessário trabalharmos nas nossas sulas com autores e
autoras pretos, a exemplo de Solano Trindade, Abdias Nascimento, Inaldete Pinheiro,
Nilma Lino Gomes, Cláudia Akotirene, Djamila Ribeiro, Sidnei Nogueira, Sílvio Almeida,
Rodney William, Ester Monteiro, Helaynne Sampaio, Claudilene Silva, Lepê Correia,
Lúcia dos Prazeres, Vilson Caetano Sousa Júnior, Valéria Gomes, Bárbara Carine
Soares, Marcos Cajé, entre outros nomes não menos importantes e impossíveis de
listar todos no espaço limitado dessas páginas².

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São intelectuais que encontram no cotidiano dos coletivos sociais, nos terreiros e
no cotidiano de suas vivências, o estímulo para colocar em prática uma educação
antirracista e emancipatória, deslocando as experiências das periferias para o centro
legitimamente reconhecido, desestruturando e desmobilizando discursos fixos e
totalizadores.
Nesse sentido, essa reflexão se justifica como uma atitude contra-colonial, ao
analisar por meio da cultura afro-brasileira, como foram gestados estereótipos que
subjugam saberes ancestrais coletivos, pertencentes a grupos sociais distintos. Um
saber poder que racializa conhecimentos e coloca os povos originários, os africanos e
seus descendentes, na condição de “outros”, numa subalternidade que alimenta atos de
violência cotidianos.
Essa forma segregadora, pautada em relações de poder protagonizadas por um
Estado avesso às experiências e aos valores não cristãos, existe há séculos, a ponto de
naturalizar a hierarquização de pensamentos e posturas racistas, que colocam em polos
opostos os corpos e as práticas não-brancas. Frantz Fanon, na primeira metade do
século passado, já dizia há muito “na Europa, o Mal é representado pelo negro. [...] o
carrasco é o homem negro, Satã é negro, fala-se de trevas, quando se é sujo, se é negro
– tanto faz que isso se refira à sujeira física ou à sujeira moral” (FANON, 2008, p.160).
Partindo desse pressuposto, tornar público esse tipo de debate contribui para a
valorização e a salvaguarda das epistemologias produzidas no interior dos grupos de
cultura afro-brasileira, os quais mantêm vivas tradições que conectam o hoje a memórias
adormecidas em outras temporalidades. Considerando tais evidências, estas reflexões
atribuem valor às referências identitárias e dão sentido de existência à vida de inúmeros
sujeitos, agregando valor aos processos criativos de segmentos sociais historicamente
marginalizados e que encontram nas manifestações culturais, meios de resistir e
assegurar a continuidade de suas práticas.
Dito isto, falar sobre as nações de maracatu, os afoxés, as escolas de samba,
entre outras formas de expressão das culturas negras é pensar a periferia como um
lugar produtor de pensamento crítico, onde a diversidade opera na contramão da
linearidade e nutre a existência de outros mundos, com outras lógicas, éticas e valores,
praticados num diálogo constante do presente com o passado.
Desse modo, por meio das manifestações afro-brasileiras seus praticantes
inventam cotidianamente outras formas de se relacionar e vestem-se de
conhecimentos ancestrais que possibilitam reescrever a história a partir da perspectiva

2 Alguns trabalhos dos autores e autoras mencionados serão listados nas referências
bibliográficas ao final do artigo.
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das margens, assentada em outras ciências, podendo ser pautada na imaterialidade das
práticas, no não-dito, no invisível e nos mais diversos lugares onde se possa inventar o
cotidiano a sua maneira, sem obedecer a padrões únicos e universais.
Nessa perspectiva, concordamos com a pedagoga e pesquisadora Claudilene
Silva quando diz que as práticas culturais afro-brasileiras, “são em primeira instância as
expressões de organização política da comunidade negra. Uma associação impregnada
pelo discurso identitário, que não deixa de ser político e ideológico” (SILVA, 2019, p.44).
Nesse sentido, defendemos que colocar em prática a Lei 10.639/03 dentro das
escolas é um posicionamento político que protagoniza movimentos de resistência,
transgredindo o que está imposto e colocando em prática outras concepções demundo,
outros discursos e olhares. Partindo desse pressuposto, corroboramos com o
pesquisador Luiz Rufino, quando reflete sobre a importância de um ensinoemancipador
e defende que “a descolonização não é meramente um conceito, mas uma prática que
integra a emergência pela cura e pela liberdade, que batalha pela dignidade do existir,
com todas as linguagens possíveis” (RUFINO, 2021, p.50).
Assim, acreditamos que esta iniciativa demarca, dentro do espaço escolar, a
inserção de epistemologias que seguem na contramão de um pensamento único,
dobram o esquecimento e a invisibilidade que o sistema dominante impôs sobre as
práticas culturais negras e todas as formas de comunicação e ensinamentos que
divergem do modelo ocidental hegemônico.
Do tensionamento dessas reflexões, evidenciamos a importância de uma escola
problematizadora, que problematize os discursos homogeneizantes, definindo- se como
um território de saberes encruzados, que trabalhe a partir da perspectiva da diversidade
e não da fixidez, que condena a “viabilidade de outras racionalidades epistêmicas e
outros conhecimentos que não sejam de homens brancos europeus ou europeizados”
(WALSH, 2008, p.137).
É sobre deixar-se tocar pelas práticas do outro, que assentamos essas reflexões,
atentos para a necessidade de transformar cada experiência em novas possibilidades de
aprendizagens, emergindo novas histórias.

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Referências
ABREU, Martha; XAVIER, Giovana; MONTEIRO, Lívia e BRASIL, Eric. (orgs). Cultura
Negra vol. 1: festas, carnavais e patrimônios negros. Niterói: Eduff, 2018.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia
das Letras, 2019.
ALMEIDA, Sílvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
ARAÚJO, Sandra Simone Moraes de; SANTOS, Mário Ribeiro dos. (Orgs.) Histórias de
Frestas: outras interpretações e produções para o Ensino de História. Recife: EDUPE, 2022.
BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
CORREIA, Lepê. Caxinguelê. Recife: Edição do autor, 1993.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro e a intelectualidade negra descolonizando os
currículos. In: COSTA-B., J., TORRES, M. N., GROSFOGUEL, R. Decolonialidade e
pensamento diaspórico. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2020.
OLEFUN, Helaynne Sampaio. Dança Nagô: herança ancestral e resistência matriarcal do
Balé Nagô Ajô, corpo que dança Afoxé Oyá Alaxé. São Paulo: Peripécia, 2022.
PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Como ser um educador antirracista.São Paulo:
Planeta do Brasil, 2023.
PRAZERES, Maria Lúcia Gomes dos. Terça Negra no Recife: dança, música,
espiritualidade e sagrado. 2018. 165 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Arte e da
Religião) - Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2018.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
RUFINO, Luiz. Vence-Demanda: educação e descolonização. Rio de Janeiro: Mórula, 2021.
SANTOS, Mário Ribeiro dos. Trombones, Tambores, Repiques e Ganzás: a festa das
agremiações carnavalescas nas ruas do Recife (1930-1945). Recife: SESC, 2010.
SANTOS, Mário Ribeiro dos. Nesse passo tem azeite: histórias de frevo e de terreiros no
Carnaval de Pernambuco. In: TELES, José (org.). Frevo Vivo. Recife: CEPE, 2022.
SILVA, Claudilene (Org). Recife: nação africana: catálogo da cultura afro-brasileira:
maracatu nação, capoeira, samba, afoxé, reggae, hip hop. Recife: Secretaria de Cultura,
NCAB; MINC/Fundação Cultural Palmares, 2008.
SILVA, Claudilene. A volta inversa na árvore do esquecimento e nas práticas de

5
branqueamento: práticas pedagógicas escolares em história e cultura afro-brasileira.
Curitiba, CRV, 2019.
SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano. Ijexá: o povo das águas. Recife: Editora Liceu, 2019.
SOUZA, Ester Monteiro de. Ekodidé Relações de gênero no contexto dos afoxés de
culto Nagô no Recife. 2010. 185 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) -
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2010.
WALSH, Catarine. Interculturalidad, plurinacionadad y decolonialidad: las insurgências
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dez.2018.
WILLIAN, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2020. Coleção
Feminismos Plurais.

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