Você está na página 1de 12

No coração do Recife, São José: um lugar potente de histórias

empretecidas1
Mário Ribeiro dos Santos

“[...] A rua nada mais é do que o que se passa por ela, sujeitos
comuns e suas práticas. A rua é tão diversa quanto os tipos que a
praticam, inscrevendo seus saberes nos cotidianos.”
(RUFINO, 2019, p.108)

O pensamento do pesquisador Luiz Rufino nos instiga a refletir sobre uma


temática potente e cara nos debates da disciplina Cidade, patrimônio urbano e Ensino
de História, ministrada no Mestrado Profissional em Ensino de História da
Universidade de Pernambuco campus Mata Norte, no segundo semestre de 2020.2 As
inquietações pautavam-se na invisibilidade da história do povo negro nas ruas centrais
do Recife, em especial, no Bairro de São José, onde se concentra o maior número da
população preta do centro da cidade, seja residindo nas casas e sobrados seculares,
muitos dos quais em situação de abandono, seja trabalhando no comércio formal,
informal ou circulando nas suas ruas de paralelepípedos acinzentados impregnados de
memórias e historicidades.
Ficamos a nos perguntar: por que esse lugar, com todas as suas potenciais
narrativas, não é abordado nas aulas ou não consta no roteiro de visitas técnicas da
Educação Básica? Sabia que é possível pensar o cotidiano da população negra, no pós-
abolição, a partir da obra do poeta, ator e militante Solano Trindade, nascido em São
José? Também podemos refletir sobre a relação do bairro com a história do carnaval de
rua do Recife, cuja localidade constitui o berço de agremiações com mais de meio
século de existência.
Muitos questionamos foram lançados, principalmente, ligados à história do
Movimento Negro no estado. Como exemplo, destacamos as ações protagonizadas pela
negritude, a partir de eventos como a Terça Negra, o Baile Perfumado, a Noite dos
Tambores Silenciosos e o Encontro dos Afoxés. A importância das Tias do Terço na
salvaguarda do patrimônio cultural religioso para as Comunidades Tradicionais de
Terreiro da cidade é outro capítulo escrito pelas vivências empretecidas no bairro,

1
Texto publicado na coletânea: ARAÚJO, Sandra Simone de Moraes; SANTOS, Mário Ribeiro dos.
(orgs). Narrativas urbanas: práticas de pesquisa e escrita de novas histórias. EdUPE, 2021.
2
A disciplina Cidade, patrimônio urbano e Ensino de História foi ministrada em parceria com a
Professora Sandra Simone Moraes de Araújo.
possível de ser identificado a partir do momento em que ampliamos o nosso olhar e
enxergamos São José como um lugar de produção de conhecimento histórico, basilar
para a formação de sujeitos que respeitam o outro na sua diversidade e não com foco na
fixidez de impor um único modelo de ser, pensar e agir.
Partindo dessas inquietações, este artigo visa problematizar o silêncio em torno
da produção de conhecimento existente nas práticas vivenciadas nas ruas centenárias de
São José, em especial, aquelas protagonizadas pelas pessoas negras, assim como
redimensionar teoricamente a temática em pauta, sobretudo, num curso voltado para o
Ensino de História, numa região do país onde a temática do cotidiano e das relações
raciais ainda é tratada com negligência, sem ações sistemáticas e o incentivo de
pesquisas científicas sobre o assunto.3
Dentro dessa perspectiva, associado aos tempos em que estamos vivendo, de
intensa desestabilidade social e econômica provocada pela pandemia do COVID-19,
acreditamos que é fundamental refletirmos sobre o protagonismo da questão racial nesse
contexto, tendo em vista ser a população negra o segmento social mais afetado por essa
catástrofe. Refletiremos sobre tais questões, a partir de posturas decoloniais que nos
possibilitam o contato com outras epistemologias, as quais seguem na contramão de um
pensamento único e de verdades absolutas, disseminado por formas de educação
pautadas “a partir de lógicas de conversão” e que defendem, na prática, “a negação, a
perseguição e o extermínio de toda e qualquer possibilidade fora de seu eixo”
(RUFINO, 2019. p.81).
Daí a necessidade de momentos dentro da academia que ampliem as
perspectivas de análise e nos auxiliem na compreensão histórica, social, cultural,
econômica e política da temática em foco - pilares que consideramos importantes para
desenvolvermos um “ensino transgressor e uma educação como prática da liberdade”4,
reflexões não marcadas por estereótipos e com estigmas exóticos, que reforçam o

3
A professora Isabel Cristina Martins Guillen, em um dos seus trabalhos, questiona o apagamento dos
lugares de memória da cultura negra no Recife e cidades da Região Metropolitana e reflete sobre as
estratégias dos movimentos negros em dar visibilidade à temática. Sobre o assunto, ver: GUILLEN,
Isabel Cristina Martins. Lugares de memória da cultura negra no Recife. Inscrever a memória na cidade.
In: XIV Encontro Nacional de História Oral. Testemunhar por imagens: história oral e o registro
audiovisual, 2018, Campinas. Anais do XIV Encontro Nacional de História Oral. Testemunhar por
imagens: história oral e o registro audiovisual. Campinas: UNICAMP, 2018. Disponível em: <
https://www.encontro2018.historiaoral.org.br/resources/anais/8/1524268689_ARQUIVO_Lugaresdemem
oriadaculturanegraguillen.pdf> Acesso em: 20 jan. 2021.
4
A expressão entre aspas intitula um dos trabalhos da ativista negra, professora e pesquisadora bell
hooks. Cf. hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2 ed. São Paulo:
Editora WMF Fontes, 2017.
preconceito, o discurso de ódio, a satanização das coisas pretas e o racismo em todas as
suas configurações.

1. A despotencialização dos lugares da cultura negra na História

É importante refletir sobre o lugar que a colonização teve na deslegitimação de


saberes e práticas dos africanos, seus descendentes e dos povos nativos por não
defenderem os valores europeus. Foi o projeto de colonização estruturado numa
branquitude ocidental e cristã que invalidou os saberes e fazeres dos africanos e seus
descendentes, construindo e disseminando representações negativas para as suas
produções, assim como esvaziando de sentido todos os assuntos relacionados à história
e às culturas dos povos afro-diaspóricos. Abdias Nascimento em, O genocídio do negro
brasileiro, escrito em 1977, já nos alertava para as investidas de esvaziamento,
inferiorização, desqualificação, folclorização e aniquilamento das culturas negras pelos
colonizadores. Segundo o autor, quando “a cultura africana é posta de lado como
simples folclore se torna um instrumento mortal no esquema de imobilização e
fossilização dos seus elementos vitais. Uma sutil forma de etnocídio” (NASCIMENTO,
2016, p.147).
É nesse sentido, que as histórias contidas nas ruas estreitas do Bairro de São José
foram invisibilizadas no discurso oficial das escolas e nos projetos de políticas públicas
em diferentes temporalidades, numa tentativa de desumanizar e aniquilar a existência do
povo preto. Um explícito “processo de subalternização do outro [...] que leva ao
epistemicídio e ao apagamento daquilo que a hegemonia não suporta ver vivo, humano
e verdadeiro”, diz o Prof. Dr. Babalorixá Sidnei Barreto Nogueira (2020, p. 123).
Esse tipo de prática está pautado em relações de poder protagonizadas por um
Estado que é avesso as experiências e os valores não cristãos, o qual condena a
perspectiva da diversidade, segregando o mundo em duas partes: de um lado os lugares,
os saberes e os modos de pensar e agir autorizados e validados pelo sistema; do outro,
aqueles que existem na clandestinidade, que não possuem nenhum valor, que não são
autorizados a circular, portanto, devem ser negados, invisibilizados e silenciados. Essa
forma binária com a qual se enxerga e interpreta a sociedade, segundo a filósofa e
ativista Djamila Ribeiro, “existe há séculos, e é exatamente a falta de reflexão sobre o
tema que constitui uma das bases para a perpetuação do sistema da discriminação racial.
Por ser naturalizado, esse tipo de violência se torna comum” (RIBEIRO, 2019. p.25).
Baseado nessa problemática de intersecção entre passado e presente, que
atravessa temporalidades, trouxemos para as aulas do ProfHistória a reflexão sobre a
relação entre o período escravista e a redução da existência dos pretos e das pretas à
condição de marginalidade. Um debate caro e necessário na formação de docentes
conscientes da importância de fazer da escola um lócus para problematizar “o lugar do
negro como um lugar de não acesso, não poder, não saber, não ter, não ser...” (LIMA,
2015. p.23).
Seguindo na contramão desse discurso hierarquizante, o Bairro de São José
preserva histórias protagonizadas por gentes “ordinárias”, descendentes de uma
ancestralidade que a partir do processo traumático da escravidão passou a residir nos
lugares “embaixo (down), a partir dos limiares onde cessa a visibilidade” (CERTEAU,
2007.p. 171). São desses personagens potentes, que empretecem com suas práticas o
cotidiano do centro da cidade, que este estudo se dedica.

2. O que o Bairro de São José tem a nos ensinar?

As ruas, os becos e os pátios de São José são “verdadeiros pontos de ancoragem


da memória” (PESAVENTO, 2007), guardam histórias que cheiram a vida; a acarajé
frito na Rua das Calçadas; a peixe cru sendo tratado nas margens do Cais de Santa Rita;
a camarão fresco vendido na esquina do Pátio de São Pedro. Muitos são os cheiros que
mexem com nossas memórias olfativas e afetivas, fazendo com que sentimentos de
dentro manifestem-se cá fora tal como os foliões endiabrados, em dias carnavalizados
de Momo, tomam as ruas estreitas do bairro embalados pelo ritmo frenético das
orquestras.5
Parece até que São José enfeitiça o povo e faz magia com a sabedoria preta
ancestral presente no bairro desde a sua formação, no século XVII, quando o Recife
“assistia ao aumento da pobreza decorrente do seu crescimento populacional
desordenado” (COSTA, 2013, p.77). Segundo a historiadora Valéria Gomes Costa:

Em São José habitavam muitos negros de ganho [...]. Porém, libertos e


livres não negros pobres também se fixaram no bairro e por aí viviam,
disputando os espaços de trabalho com os escravos. Entre os forros, as
mulheres se destacavam [...] muitas delas desempenhavam as
ocupações de lavadeiras, engomadeiras, cozinheiras, entre os mais

5
Sobre o carnaval de rua do Recife ver SANTOS, Mário Ribeiro dos. Trombones, tambores, repiques e
ganzás: a festa das agremiações carnavalescas nas ruas do recife (1930-1945). Recife, SESC, 2010.
variados serviços domésticos. [...]. Negros e moleques circulavam
com caixas de engraxates, negras e pardas com seus tabuleiros de
bolos. [...] Cativas e libertas estabelecidas com seus tabuleiros de
iguarias e frutas (bolo de mandioca, mungunzá, cajus, mangas,
laranjas) disputavam os fregueses do bairro e de seu entorno (COSTA,
2013, p.77-78).

Toda essa gente que empretecia as ruas de São José com o seu trabalho e seus
fazeres, os quais atribuíam sentidos de existências variados à história da localidade, em
tempos endoidecidos de Carnaval, transformava-se em folião, deixando tomar-se por
uma força invisível, que os embriaga, que “[entrava] na cabeça, depois [tomava] o corpo
e [acabava] no pé”.6 Essa energia contagiava a todos quando passavam, num frenesi de
corpos, os bandos de Pierrots, Verdureiras, Saberés, Batutas, Donzelos, Traquinas,
Estudantes, Pedros, Edites, Vasculhadores, Vassouras, Pás, Pratos Misteriosos e até
Galos e um Leão Coroado7 pelas artérias mal iluminadas e de calçamento desordenado
do bairro. São nomes carregados de simbologias, possuidores de cheiros e cores
próprios.
O Bairro de São José é o lugar carnavalizado do centro do Recife. Aqui, os
moradores e os foliões caem no passo, ao som de um frevo bem quente. As mesmas
pessoas que em dias ordinários de trabalho fazem uso de diferentes gramáticas não
validadas por um sistema hegemônico de educação que trata diferenças como
desigualdades, deslegitimando os “saberes de frestas”8. São as experiências produzidas
por personagens ocultos da história oficial, cotidianamente encontrados neste ponto da
cidade, que escurecem com suas trajetórias as ruas centenárias do bairro impregnadas de
historicidade.
Seguindo os ensinamentos dos mais velhos, dos militantes e dos ativistas, os
quais defendem que o racismo não deve ser considerado “apenas como uma
reencenação do passado colonial, mas também como uma realidade traumática, que tem
sido negligenciada” (KILOMBA, 2019.p.29), voltamos nosso olhar para o Bairro com o

6
Verso do frevo-canção Voltei Recife, de Luiz Bandeira, 1958. Disponível em:
https://www.discografiabrasileira.art.br/fonograma/105700/voltei-recife. Acesso em: 23 fev. 2021.
7
As palavras em destaque dizem respeito a agremiações que têm ou já tiveram sede no Bairro de São
José. Hoje, encontram-se na localidade: o Bloco de Samba A Turma do Saberé, os Blocos Pierrot de São
José e Edite no Cordão, a Troça Verdureiras de São José, O Boneco Seu Pedro, o Clube de Alegorias e
Críticas Galo da Madrugada e a Escola de Samba Estudantes de São José. Nas memórias dos mais velhos
residem os tempos em que existiam no Bairro: Batutas de São José, Clube Vassourinhas, Prato
Misterioso, Pão Duro, Clube Bola de Ouro, Clube dos Vasculhadores, Clube das Pás Douradas, Maracatu
Leão Coroado, Donzelos e Traquinas de São José.
8
Expressão gestada pelo pesquisador Luiz Rufino. Cf, RUFINO, 2019.
intuito de desvelar histórias protagonizadas por sujeitos que cotidianamente burlam a
ordem e protagonizam movimentos, os quais contradizem as regras do sistema opressor.
Nas palavras de Michel de Certeau, são as “táticas”, “as práticas microbianas”, [...] “que
se compensam e se combinam fora do poder panóptico.”9
O Pátio de São Pedro, no coração de São José, é um desses lugares
anticonformistas, que desconcertam o censo institucional na indisciplina de suas
práticas e confundem o discurso político fixado em verdades absolutas.10 Solano
Trindade que o diga, do alto de sua alfaia, assiste a movimentos que conferem ao Pátio
um lugar de subjetividades, memórias e pertencimento do povo negro. É nesse ponto da
cidade, que nos anos 2000, o Movimento Negro Unificado de Pernambuco em parceria
com a Prefeitura do Recife, transfere a Terça Negra do Pagode do Didi, atrás do prédio
dos Correios Central, para o Pátio de São Pedro.11
O início dos anos 2000 é bastante significativo para a militância negra no Recife.
No cenário político da cidade, chegava ao poder o primeiro prefeito eleito pelo Partido
dos Trabalhadores - João Paulo Lima e Silva, sendo reeleito em 2004. Na ocasião, o
plano de campanha do político contava com o amplo apoio das agremiações
carnavalescas12, dos seguidores das religiões de matriz africana; dos movimentos
sociais, a exemplo do Movimento Negro Unificado (MNU), entre outros. O então
candidato eleito se comprometeu em contemplar em sua gestão as exigências desses
segmentos, concedendo-lhes maior participação em suas ações.
É nesse contexto que, em 2001, lideranças negras do Recife se reuniram e
reivindicaram do Município a criação de uma pasta dedicada especificamente aos
assuntos da cultura negra. O pleito foi contemplado com a criação do Núcleo da Cultura
Afro-Brasileira (NCAB) vinculado ao Departamento de Formação e Cultura da
Fundação de Cultura Cidade do Recife (FCCR). O Núcleo foi criado com o intuito de
“promover a valorização e o fortalecimento da cultura afro-brasileira”, tendo como

9
As expressões entre aspas foram extraídas do capítulo VII, de autoria de CERTEAU, Michel de. A
invenção do cotidiano: 1 Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
10
Sobre os movimentos de resistência protagonizados pelo povo preto nessa área central do Recife, ver:
SANTOS Mário Ribeiro dos. Negros em movimento: práticas de decolonialidade e as interfaces com as
novas configurações políticas para os povos de terreiro no Recife (2000-2008). In: Anais eletrônicos do
XIII Colóquio de História da UNICAP| III Colóquio de História do PPGH. Cidades, história, cultura
e memórias municipais. Recife, UNICAP, 2019.
11
O prédio dos Correios Central fica localizado no Bairro de Santo Antônio, vizinho ao Bairro de São
José.
12
No Recife, as agremiações carnavalescas são divididas em modalidades, como: clubes de frevo, troças,
blocos de pau e corda, clubes de boneco, maracatus de baque solto, maracatus de baque virado, escolas de
samba, caboclinhos, bois de carnaval, afoxés, ursos e tribos de índio. Ver PREFEITURA DO RECIFE.
Cartilha do Carnaval do Recife. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2010.
missão “a pesquisa e a formação cultural, em articulação com os grupos afros13 da
cidade” (PREFEITURA DO RECIFE, 2004,p.28).
Partindo dessa perspectiva, a Terça Negra entra na pauta municipal como uma
ação de política afirmativa, reunindo, semanalmente, “cerca de três mil pessoas entre
lideranças tradicionais do movimento negro, religiosos, pesquisadores, parlamentares,
ministros, embaixadores de países africanos, representantes nacionais e internacionais
de grupos de dança e música” (PRAZERES, 2019. p.40) relacionados a projetos e à luta
antirracista. Protagonista assídua desse movimento, a educadora, pesquisadora e
militante Lúcia dos Prazeres, afirma que:
A Caminhada dos Terreiros [...], a Festa do Fogo e a Feira de
Culinária Étnica somam-se as atividades realizadas no Pátio de São
Pedro, a partir da Terça Negra. A ampliação dos afoxés, a realização
do cortejo de afoxés durante o carnaval, a criação da Associação dos
Afoxés de Pernambuco, são exemplos que definem a Terça Negra,
como movimento aglutinador e ao mesmo tempo dispersor de ações
para o fortalecimento de pessoas e grupos que estão integrados ao
projeto e a luta da causa negra (PRAZERES, 2019. p.40).

No Pátio de São Pedro, vozes negras resistem e confrontam um sistema racista


que violentamente invalida, desumaniza e desqualifica o conhecimento produzido pelas
lentes pretas. Quantos autores negros e autoras negras que subiram ao palco da Terça
Negra para lançar seus trabalhos foram lidos nas escolas? Nomes como Inaldete
Pinheiro, Martha Rosa, Ester Monteiro, Claudilene Silva, Lúcia dos Prazeres, Lia
Menezes, entre outros intelectuais qualificados, negros e negras que “buscam,
interpretam, indagam, produzem e fazem a disputa por outras narrativas. Narrativas
negras. Narrativas diaspóricas” (GOMES, 2019. p.244), mudaram os rumos da história
dita oficial com os seus trabalhos. De fato, um tempo marcado por grandes desafios,
disputas por espaço, debates, parcerias e conquistas árduas. Um momento de
desestruturação hierárquica nas relações sociais e políticas da cidade, articulado,
sobretudo, por técnicos que atuavam, simultaneamente, no interior da máquina pública e
nos movimentos sociais.

13
Entende-se por “grupos afros”, agremiações carnavalescas diretamente vinculadas às religiões afro-
brasileiras, as quais utilizam em seus repertórios ritmos, instrumentos musicais e letras característicos dos
terreiros de Xangô, Umbanda e Jurema Sagrada. Como exemplo, podemos citar, mais explicitamente, os
grupos de afoxés, maracatus de baque virado (maracatus nação) e as escolas de samba. Também podem
ser inseridos na expressão em análise, os grupos de hip hop, as bandas de reggae, os blocos de samba, os
blocos de dança afro, os grupos de capoeira, coco e de uma maneira mais ampla, o povo de santo ligado a
algum terreiro da região. Sugiro para aprofundamento do tema Cf. SILVA, Claudilene (Org). Recife:
nação africana: catálogo da cultura afro-brasileira: maracatu nação, capoeira, samba, afoxé, reggae, hip
hop. Recife: Secretaria de Cultura, NCAB; MINC/Fundação Cultural Palmares, 2008.
Saindo do Pátio de São Pedro, seguindo pela Rua das Águas Verdes chegamos
ao Pátio do Terço, “lugar praticado” pelo povo preto, que reúne grande parte da
população negra e desafortunada do Recife, além de brancos pobres, desempregados,
ambulantes e outras gentes classificadas pelas elites e autoridades como desordeiras e
perigosas à manutenção da ordem e do bem estar social.
O Terço da família Trindade, quando Solano ainda menino aprendeu com o pai
sapateiro, Manuel Abílio, o gosto pelo carnaval de rua, bumba-meu-boi, mamulengo,
folhetos de cordel, entre outras inventividades dos populares que embasaram a sua
formação e as suas produções enquanto poeta, dramaturgo, ator, coreógrafo, escritor e
militante político.
O Terço também da casa de número 143, onde passou a residir, desde a primeira
metade do século passado, as filhas de Eugênia Duarte Rodrigues – africana, praticante
da religião dos orixás, que chegou ao Recife na segunda metade do século XIX.
Lavadeira de ofício, Eugênia teve duas filhas: Vivina Rodrigues Braga (Sinhá) e Emília
Rodrigues (Iaiá), as quais foram criadas trabalhando com a mãe para ajudar nas
despesas da casa.
Essas mulheres eram carinhosamente chamadas como as “pretas africanas” ou
“as Tias do Terço”.14 Sua residência ficou conhecida como uma das primeiras casas de
culto aos orixás do centro do Recife. As “Tias”, por sua vez, também mantinham
diálogos com as práticas religiosas católicas, a exemplo das irmandades de Nossa do
Rosário dos Homens Pretos, Nossa Senhora do Carmo e a Sociedade de São
Bartolomeu, esta com sede na sua casa.
Outro aspecto relevante na trajetória das “Tias” é a estreita relação com o
Carnaval. Elas, além de costurarem para algumas agremiações carnavalescas, faziam
trabalhos religiosos para grupos que realizavam oferendas para os orixás patronos de
seus clubes, blocos e escolas de samba.
Essa representação histórica e a estreita relação do Pátio do Terço com as
religiões afro-brasileiras fundamentou a mudança de endereço do espetáculo da Noite
dos Tambores Silenciosos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos

14
Sobre o cotidiano na casa das Tias, consultar as transcrições das entrevistas para o Projeto “As Tias do
Terço” realizado pelo NCAB e o Departamento de Documentação e História da Fundação de Cultura
Cidade do Recife, em 2004. Os depoimentos arquivados constituem importantes fontes de conhecimento
para nos aproximarmos do cotidiano na casa, as pessoas que lá frequentavam, os acontecimentos
realizados, além do contexto histórico da cidade do Recife na época. Ver Acervo do Centro de Formação,
Pesquisa e Memória Cultural – CASA DO CARNAVAL.
para a frente da Igreja de Nossa Senhora do Terço, nos anos 1960.15 Esse evento foi
idealizado pelo filho de santo e jornalista, Paulo Viana, com o objetivo de homenagear
os ancestrais africanos no carnaval. Inicialmente, não havia nenhum caráter religioso
explícito, apenas apresentações teatrais rememorando os tempos da escravidão e o som
das alfaias dos grupos de maracatu nação.
Após a morte do idealizador, Maria de Lourdes da Silva, mais conhecida como
Badia (responsável pelo legado das Tias do Terço)16 juntamente com lideranças do
MNU e representantes do Candomblé da cidade, especialmente o Babalorixá Raminho
de Oxóssi, ressignificaram o evento retirando a encenação teatral em alusão aos tempos
do cativeiro, atribuindo um caráter religioso à solenidade. A cerimônia ainda hoje é
realizada na Segunda-feira de carnaval e tem seu momento principal à meia noite,
quando as luzes do Pátio são apagadas e são entoados cânticos e saudações, em iorubá,
para os orixás Iansã, Xangô e Oxalá. Os responsáveis pelo ritual fazem homenagens aos
eguns (espíritos dos antepassados), utilizando alguns elementos ritualísticos do
Candomblé como o fogo e a soltura de pombos brancos, simbolizando um pedido de
paz para o período que se iniciará após o Carnaval.
As constantes referências à presença das práticas religiosas afro-brasileiras no
Pátio do Terço levaram o poder público municipal a reconhecer o lugar como uma
referência da memória do povo negro, assim como reduto das tradições religiosas do
povo de santo da cidade, transformando-o, durante o período de carnaval, no Polo Afro
Babalorixá Luiz de França (1901-1997) – homenagem ao sacerdote da religião dos
orixás, jornaleiro, trabalhador do porto e presidente do Maracatu Leão Corado (1863).
Outra referência à cultura negra presente nas proximidades do Pátio é o monumento
dedicado ao Maracatu Elefante (1800), de autoria do artista plástico Abelardo da Hora,
em homenagem a Maria Júlia do Nascimento (1877-1962) – a mais conhecida rainha
dos maracatus em Pernambuco, carinhosamente conhecida como Dona Santa ou Mãe
Santa - mulher negra, carnavalesca, Ialorixá e uma das detentoras dos ensinamentos da
religião da Jurema Sagrada no estado.

15
A Igreja dedicada a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos fica localizada próxima à Praça da
Independência, no Bairro de Santo Antônio, centro do Recife. A Igreja de Nossa Senhora do Terço,
localiza-se no Pátio do Terço, no Bairro de São José, área central da cidade.
16
Sobre aspectos da trajetória de Maria de Lourdes da Silva, ver SILVA, Augusto Neves da. Badia, a
dona do Carnaval de 1985 - ela é de festa, ela é de religião!. In: Encontro Internacional e XVII Encontro
de História da Anpuh-Rio: Histórias e Parcerias, 2018, Niterói. Anais do Encontro Internacional e
XVIII Encontro de História da Anpuh-Rio: Histórias e Parcerias. Niterói: Eduff, 2018.
Trazer esses personagens para o debate contribui com a luta do povo negro e o
alargamento da validação de conhecimentos produzidos fora da lógica eurocêntrica,
evidenciando, segundo o pensamento de Nilma Lino Gomes, “narrativas que compõem
a diversidade epistêmica no campo do conhecimento científico eivadas de aprendizados
construídos na história e nas práticas e experiências culturais, políticas e sociais”
(GOMES, 2019, p.244).

Considerações Finais
Seguindo na contramão de um racismo estrutural que não reconhece os saberes
negros “como sofisticados e libertadores, mas apenas como peculiares e folclorizantes”
(SIMAS, 2020. p. 23), trouxemos para a academia reflexões históricas sobre um lugar
impregnado de sentimentos de pertença, onde o povo negro elege-se como principal
autor de suas narrativas.
O Bairro de São José mantém vivo valores, crenças e conhecimentos diversos,
os quais despotencializam estruturas hegemônicas que disseminam “um entendimento
de que tudo que é bom ou bonito não pode ser preto” (WILLIAN, 2019. p. 61). Nesse
sentido, é importante registrar que o assunto em pauta não está dissociado das temáticas
das relações de poder, de raça, de disputas políticas, simbólicas e territoriais. Quando
discorremos sobre quem produz e quem consome culturas negras nas ruas, becos e
pátios de São José, estamos nos referindo a sujeitos que circulam diariamente nos
espaços produzindo novas trocas com vistas a “descolonizar a ordem eurocêntrica do
conhecimento” (KILOMBA, 2019, p.53).
Desse modo, defendemos o pensamento de que precisamos mudar essa
realidade. É urgente e necessário introduzir nas escolas os trabalhos e a presença de
intelectuais não brancos. Precisamos conhecer o que eles e elas têm a nos dizer sobre o
nosso patrimônio não valorizado, sobre memórias, ancestralidade, estética,
manifestações culturais, entre outros assuntos caros às pautas dos movimentos sociais
negros.
Refletir sobre essas problemáticas contribui para relativizar verdades,
desnaturalizar desigualdades, compreender as narrativas sobre os lugares como isentas
de neutralidades, mas, sim, impregnadas de conflitos e tensões, de fluxos, de
inventividades e resistência. Desse modo, finalizamos o nosso pensamento com um
provérbio bakongo que diz: “enquanto os leões não tiverem seus historiadores, a história
das caçadas continuará glorificando os caçadores”.
Fontes e Referências

Documentos oficiais

PREFEITURA DO RECIFE. Relatório Anual do Departamento de Documentação e


Formação Cultural (2004). Fundação de Cultura Cidade do Recife. Acervo do Centro
de Formação, Pesquisa e Memória Cultural – CASA DO CARNAVAL. Recife, 2004.

Bibliografia
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 Artes de fazer. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2007.
COSTA, Valéria Gomes. Trajetórias Negras. Os libertos da Costa d’África no Recife
(1846-1890). Tese (Doutorado). Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas. História, 2013.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro e a intelectualidade negra descolonizando
os currículos. In: COSTA-B., J., TORRES, M. N., GROSFOGUEL, R.
Decolonialidade e pensamento diaspórico. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2019.
GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Lugares de memória da cultura negra no Recife.
Inscrever a memória na cidade. In: Anais do XIV Encontro Nacional de História
Oral. Testemunhar por imagens: história oral e o registro audiovisual. Campinas:
UNICAMP, 2018.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2 ed.
São Paulo: Editora WMF Fontes, 2017.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2019.
LIMA, Maria Nazaré Mota de. Relações étnico-raciais na escola: o papel das
linguagens. Salvador: EDUNEB, 2015.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo
mascarado. 3 ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.
NOGUEIRA, Sidnei Barreto. Intolerância Religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen,
2020.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História, memória e centralidade urbana. Nuevo
Mundo Mundos Nuevos. Nº7, 2007. http://nuevomundo.revues.org/document3212.html.
PRAZERES, Lúcia dos. Terça Negra no Recife: narrativas sobre dança, música,
espiritualidade e sagrado. Recife: Ed. do Autor, 2019.
PREFEITURA DO RECIFE. Cartilha do Carnaval do Recife. Recife: Fundação de
Cultura Cidade do Recife, 2010.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.
SANTOS, Mário Ribeiro dos. Trombones, tambores, repiques e ganzás: a festa das
agremiações carnavalescas nas ruas do recife (1930-1945). Recife, SESC, 2010.
______. Negros em movimento: práticas de decolonialidade e as interfaces com as
novas configurações políticas para os povos de terreiro no Recife (2000-2008). In:
Anais eletrônicos do XIII Colóquio de História da UNICAP| III Colóquio de
História do PPGH. Cidades, história, cultura e memórias municipais. Recife,
UNICAP, 2019.
SILVA, Augusto Neves da. Badia, a dona do Carnaval de 1985 - ela é de festa, ela é de
religião!. In: Encontro Internacional e XVII Encontro de História da Anpuh-Rio:
Histórias e Parcerias, 2018, Niterói. Anais do Encontro Internacional e XVIII
Encontro de História da Anpuh-Rio: Histórias e Parcerias. Niterói: Eduff, 2018.
SILVA, Claudilene (Org). Recife: nação africana: catálogo da cultura afro-brasileira:
maracatu nação, capoeira, samba, afoxé, reggae, hip hop. Recife: Secretaria de Cultura,
NCAB; MINC/Fundação Cultural Palmares, 2008.
SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2020.
WILLIAN, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019.

Você também pode gostar